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1 O AMICUS CURIAE COMO INSTRUMENTO PARA A BUSCA DE UM PROCESSO COOPERATIVO E DEMOCRÁTICO Felipe Caldeira Advogado, pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUCRS Sumário: 1. Introdução 2. Aspectos gerais do Amicus Curiae 3. Requisitos de admissibilidade 3.1. Requisitos Objetivos 3.2. Requisito Subjetivo 4. O Amicus Curiae e a busca de um processo cooperativo e democrático 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas Resumo: A partir da análise das características assumidas pelo amicus curiae no direito estrangeiro e da sua evolução no Direito Brasileiro, o presente artigo se propõe a analisar o tratamento dado pelo direito processual civil brasileiro a esse emblemático instrumento que é objeto de discussões na doutrina e na jurisprudência, principalmente no que tange à busca de um processo cooperativo e democrático. Palavras-Chave: Amicus Curiae; Democratização do Processo; Procedimento; Cooperação; Legitimidade; Requisitos de admissibilidade. 1. INTRODUÇÃO O conceito do que é o amicus curiae tem sofrido uma transformação importante correspondente a uma mudança na abordagem dada ao direito, especialmente no ensino do direito processual civil com a vigência do Novo Código de Processo Civil de 2015. O instituto teve o seu maior desenvolvimento no direito norte-americano, cujo sistema é o da common law, e no Brasil sua atuação vem ganhando cada vez mais destaque, pois, com o advento da Lei 13.105/2015, inseriu- se o amicus no Título do Código que contempla as formas típicas de intervenção de terceiros. Por essas razões será verificado que o Código de Processo Civil/2015 teve o claro propósito de encorajar a participação do amicus curiae para uma ampliação do debate judicial, especialmente nos casos em que há repercussão para além das partes integrantes dos polos da relação processual. Após o estudo dos pressupostos para a intervenção do amicus curiae, será contextualizada a importância da sua atuação para a busca de um processo cooperativo e democrático, marcado pela ampliação do debate prévio entre as 2 partes, especialmente quando a matéria é de relevância para a sociedade ou determinado grupo social. Dessa forma, será possível destacar a importância do instituto, em especial pela possibilidade de o debate ser ampliado visando a uma melhor prestação jurisdicional quando a causa transcender o interesse inter partes. 2. ASPECTOS GERAIS DO AMICUS CURIAE A evolução histórica da figura do amicus, mesmo que de forma breve, permite identificar de que forma ele foi concebido e evoluído especialmente no direito romano, no direito inglês e no direito norte-americano. Ao analisar a origem e o desenvolvimento do instituto, é possível notar que o amicus curiae assumiu diferentes papeis em alguns países. Há controvérsias na doutrina no que diz respeito às raízes do instituto. Isso, pois, conforme traz Isabel da Cunha Bisch: “o instrumento processual ganhou sentidos e funções diversas na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Direito Comunitário Europeu e, mais recentemente, também no Brasil.” 1 Por um lado, há quem afirme a origem do amicus no direito romano, como por exemplo, Michael K. Lowman, quando afirma que “The earliest notion of amicus participation is found in Roman law” 2. Por outro lado, e aonde há respaldo na maioria dos autores, defende-se a origem do instituto no direito inglês. No direito romano, a origem do instituto teria se dado a partir do chamado consillarius, sua função era ser um colaborador neutro em casos cuja resolução girava em torno de questões não estritamente jurídicas, objetivando minimizar o erro dos magistrados nos julgamentos e, além disso, sua obrigação seria prestar lealdade aos juízes. 3 Identificam-se, então, duas características básicas do instituto no direito romano: a sua intervenção dependia de convocação do magistrado (atuação 1 BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 17-18. 2 LOWMAN, Michael K. The litigating Amicus Curiae: When does the party begin after the friends leave? American University Law Review, Summer, 1992. Vol. 41(4). p. 1243-1299. 3 BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro: Um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 112. 3 provocada) e o auxílio era prestado consoante seu próprio e livre convencimento (imparcial). 4 Dessa forma, devido à característica do instituto no direito romano, marcada pela intervenção provocada e pela neutralidade de sua atuação, é possível identificar porque Giovani Criscuoli, citado por Cássio Scarpinella Bueno, defende que a origem do instituto se deu no direito inglês: desde as suas remotas origens no direito inglês, o amicus curiae pode comparecer de forma espontânea perante o juízo e, além disso, eventualmente pode fornecer elementos úteis para a vitória de um dos integrantes dos polos da relação processual.5 Michael K. Lowman, citado por Tatiana Machado Alves, aponta que na Inglaterra medieval o amicus curiae era entendido como um terceiro desinteressado que, mediante requerimento próprio ou do próprio órgão jurisdicional, fornecia informações sobre questões de direito e/ou apontava questões de fato que poderiam acarretar erros manifestos no julgamento da causa.6 Entretanto, essa concepção do amicus como uma figura desprovida de interesse próprio cuja finalidade era auxiliar o juízo foi se modificando com o tempo. A virada no Direito Inglês se deu no caso “Coxe vs. Phillips”, em que foi autorizada, pela primeira vez, a intervenção de um terceiro no processo como amicus curiae para proteger os seus próprios interesses, conforme narra Scarpinella Bueno: Narra-se, a respeito desse caso, que o casamento de Mrs. Phillips e Mr. Muilman foi declarado nulo ao se descobrir que ela j era casada. Mesmo depois de Mr. Muilman se ter casado novamente, Mrs. Phillips invocou seu casamento com ele para alegar a incapacidade de se obrigar quando cobrada pelo n o pagamento de uma nota promiss ria. Como as raz es de defesa invocadas por ela podiam comprometer o ent o atual casamento de Mr. Muilman, a corte permitiu, mesmo que ele n o fosse parte ou interessado no processo, que um amicus curiae representasse seus interesses naquela a o. A tese do amicus foi acolhida, a a o de cobran a foi extinta e as partes, Mr. Coxe e Mrs. Phillips, condenadas como litigantes de m -fé. 7 O amicus curiae ganhou espaço na Inglaterra devido a uma visão bipolar do processo (ideia de um confronto entre dois adversários e um julgador relativamente passivo), pois o amicus não deixava de estar à margem da discussão 4 CRISCUOLI, Giovani. Apud BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 111. 5 BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 113. 6 LOWMAN, Michael K. Apud ALVES, Tatiana Machado. Primeiras questões sobre o amicus curiae no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. v. 256. ano 41. São Paulo: RT, 2016. p. 96 7 BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 114-115. 4 entre as partes. Além disso, manteve-se no Direito Inglês por auxiliar os magistrados a aprimorar seu convencimento, aperfeiçoando ou corrigindo o conjunto probatório elaborado. 8 A partir dos referenciais do Direito Inglês, o amicus curiae passou a integrar o direito norte-americano, sobretudo devido aos dois países possuírem a mesma concepção geral de Direito com a adoção do modeloda Common Law, baseado na aplicação do Direito por meio de precedentes e decisões judiciais pretéritas. No entanto, em que pese em ambos os países haver a prevalência do judge-made law, Isabel da Cunha Bisch destaca que determinadas práticas processuais surgiram ou assumiram novos perfis. 9 No Brasil, antes do advento do CPC de 2015, não havia qualquer referência legislativa expressa ao amicus curiae no direito processual brasileiro. O único ato normativo que o denominava era o Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (Resolução nº 390, de 17 de setembro de 2004, CNJ), no seu art. 23, §1º, que permitia a eventuais interessados, entidades de classe, associações, organizações não governamentais, etc., no julgamento de recursos perante a Turma Recursal, apresentar memoriais e fazer sustentação oral a critério do presidente, recaindo sobre este a decisão sobre o tempo de sustentação que seria permitido. 10 Cassio Scarpinella Bueno comenta que não é coincidência que, na maior parte dos casos, os autores descrevem a atuação do amicus curiae como modalidade sui generis de intervenção de terceiros. 11 Logo, a partir de previsões em leis esparsas, mesmo que estas não mencionassem expressamente a denominação amicus curiae, o instituto foi sendo incorporado no ordenamento jurídico aos poucos. 12 Tatiana Machado Alves aponta que “um grande passo na evolu o do instituto no direito brasileiro foi dado a partir do seu reconhecimento nos processos de constitucionalidade.” 13 8 SILVESTRI, Elisabetta. Apud BISCH, Isabel da Cunha. Op. cit. p. 29. 9 A autora destaca algumas delas: a) nos Estados Unidos, a regra do júri foi incorporada com muito maior importância e destaque do que na Inglaterra atual; b) embora também tenha prevalecido o adversarial system, nos Estado Unidos, as partes detêm mais controle do processo na fase anterior ao julgamento (pre-trial), do que na Inglaterra. c) nos Estados Unidos foi introduzida e muito difundida nova modalidade de ação, a class action (ação coletiva) (BISCH, Isabel da Cunha. Op. cit. p. 34.) 10 BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit. p. 144. 11 Idem, ibidem. 12 ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 103. 13 Idem, ibidem. 5 Desse modo, o amicus curiae é definido como um terceiro ao processo que nele intervém para fornecer ao magistrado elementos relevantes que possam auxiliar na formação do seu convencimento.14 O seu modo de intervenção se realiza de forma espontânea, a pedido da parte ou por provocação do órgão jurisdicional. A finalidade imediata de sua intervenção é permitir que o juiz tome conhecimento de questões subjacentes à lide que não tenham sido informadas pelas partes e que sejam úteis para a resolução da causa. 15 Pode-se identificar também uma finalidade mediata de sua intervenção: preencher a lacuna da legitimidade democrática do Poder Judiciário, na medida em que o amicus irá atuar, em última instância, como um porta-voz da pluralidade de ideias, valores e anseios da sociedade, objetivando enriquecer o debate democrático no processo. 16 Nesta senda, se o direito incide sobre os fatos, evidente que é de suma importância que o juiz possua acesso a todo contexto fático pertinente que permeia a discussão debatida na demanda, incluindo os impactos que a sua decisão poderá ter sobre a coletividade, de modo que ele possa prolatar uma decisão mais justa e correta, e que atenda aos fins do processo. 17 3. REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE A partir da previsão geral do instituto no art. 138 do CPC/201518, observa- se a presença de 3 (três) requisitos objetivos e 1 (um) requisito subjetivo, quais sejam: a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda e a repercussão social da controvérsia, sendo estes os objetivos; e a representatividade adequada como requisito subjetivo. Os requisitos objetivos estão dispostos de forma alternativa, ou seja, não é necessário que todos estejam presentes para que haja a admissão do amicus curiae, visto que foi utilizado pelo legislador a con un o “ou”, característica de alternância. 14 ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 90. 15 Idem, ibidem. 16 Ibidem, p. 93. 17 Ibidem, p. 91. 18 Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. (BRASIL. Lei n. 13.105/2015. Código de Processo Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 08/08/2017). 6 3.1 Requisitos objetivos A intervenção como amicus curiae será possível quando preenchidos os requisitos da relevância da matéria, especificidade do tema objeto da demanda ou repercussão social da controvérsia. Quanto às condições objetivas para admissão do amicus curiae, Eduardo Talamini traz, inicialmente, duas balizas: [...] por um lado a especialidade da matéria, o seu grau de complexidade; por outro, a importância da causa, que deve ir além do interesse das partes, i.e., sua transcendência, repercussão transindividual ou institucional. São requisitos alternativos (“ou”), n o necessariamente cumulativos: tanto a sofisticação da causa quanto sua importância ultra partes (i.e., que vá além das partes) pode autorizar, por si só, a intervenção. De todo modo, os dois aspectos, em casos em que não se põem isoladamente de modo tão intenso, podem ser somados, considerados conjuntamente, a fim de viabilizar a admissão do amicus. 19 A relevância da matéria e a repercussão social da controvérsia se dividem na medida em que a primeiro é analisada sob o aspecto qualitativo e a segunda quanto ao aspecto quantitativo. A abordagem desses dois requisitos se dá, geralmente, de forma conjunta, pois são fundados no interesse extraprocessual da demanda, ou seja, a possibilidade de haver efeitos para além dos limites do processo.20 Igualmente, ás vezes ambos se confundem, pois, se há a possibilidade de ter repercussão da controvérsia em um processo, podemos concluir que também será relevante o tema objeto discutido. Em alguns casos, a solução da causa pode ter repercussão social que poderá ultrapassar o interesse das partes integrantes dos polos da relação processual, visto que os efeitos estarão direta ou indiretamente aplicados a muitas outras pessoas (dimensão ultra partes).21 Por outro lado, em outras demandas a dimensão ultra partes, justificadora da intervenção, poderá estar presente em questões que, mesmo não havendo tendência de repercutir em uma quantidade grande de outros litígios, versará sobre temas fundamentais para o ordenamento jurídico.22 19 TALAMINI, Eduardo. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coord.). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 441. 20 ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 107. 21 TALAMINI, Eduardo. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coord.). Op. cit. p. 441. 22 Idem, ibidem. 7 A especificidade do tema objeto da demanda está relacionada com a complexidade da matéria da demanda. Essa especificidade tanto pode ser fática quanto técnica (jurídica ou extrajurídica).23 Na análise deste requisito, deve-se tercuidado, visto que a especificidade do tema não pode ser considerada genérica nem autônoma, sob pena de haver confusão entre a função do amicus curiae com a do perito, por exemplo. Então, analisados os pressupostos objetivos de intervenção, será abordado o requisito subjetivo para admissão do amicus curiae, qual seja: a representatividade adequada. 3.2 Requisito Subjetivo Exige-se que o amicus curiae possua – além de um dos requisitos objetivos - o requisito subjetivo da representatividade adequada. Este requisito exige que o amicus curiae demonstre a razão de sua intervenção e de que forma seu interesse institucional se relaciona com o processo.24 Note-se que interesse institucional difere de interesse jurídico, conforme ensina Cassio Scarpinella Bueno: O “interesse institucional” n o pode ser confundido (em verdade, reduzido) ao interesse jurídico que anima as demais intervenções de terceiro no que é expresso o caput do art. 119 ao tratar da assistência. Fossem realidades coincidentes e, certamente, não haveria necessidade de o CPC de 2015 – e antes dele, algumas leis esparsas, a jurisprudência e a doutrina – disciplinar expressamente o amicus curiae. O “interesse institucional”, por isso mesmo, deve ser compreendido de forma ampla, a qualificar quem pretende ostentar o status de amicus curiae em perspectiva metaindividual, apta a realizar interesses que não lhe são próprios nem exclusivos como pessoa ou como entidade. São, por definição, interesses que pertencem a grupo (determinado ou indeterminado) de pessoas e que, por isso mesmo, precisam ser considerados no proferimento de específicas decisões; o amicus curiae, é esta a verdade, representa-os em juízo como adequado portador deles que é. Seja porque se trata de decisões que signifiquem tomadas de decisão valorativas, seja porque são decisões que têm aptidão de criar “precedentes”, tendentes a vincular – é o que o CPC de 2015 inequivocamente quer – outras tantas decisões a serem proferidas posteriormente e a partir dela. 25 Nesse interim, o requisito subjetivo da representatividade adequada não impõe ao amicus curiae ser o porta-voz de um grupo ou determinado segmento social. Torna-se necessário o conhecimento e a idoneidade para colaborar para o 23 TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (coord.). Op. cit. p. 441. 24 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 187-188. 25 Idem, ibidem. 8 esclarecimento das questões em debate.26 A título de exemplo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo MP/RS pretendendo a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal 3.700/15, de Gravataí (proíbe o transporte de passageiros por carros particulares cadastrados em aplicativos), o Des. Rel. Alberto Delgado Neto, do TJ/RS, proferiu decisão admitindo a UBER como amicus curiae, conforme trecho que segue: O Uber vem sustentando possuir representatividade para intervir nesta ação na qualidade de amicus curiae (amigo da corte), pois o seu aplicativo de tecnologia tem sido o principal fator desencadeador de uma verdadeira revolução na maneira como as pessoas interagem, trabalham e se locomovem. A figura do amicus curiae se presta a permitir a ampliação do debate prévio decisório, especialmente quando a matéria é de relevância para a sociedade ou determinado grupo social. [...] Assim, a doutrina e a jurisprudência mencionam a necessidade da presença do binômio relevância/representatividade, tendo em vista os efeitos da decisão a ser proferida no setor diretamente afetado, bem como se a entidade possui interesse que justifique a participação. Na espécie, a representatividade está demonstrada nos autos, na medida em que o UBER do Brasil Tecnologia Ltda. representa no caso não só a empresa interessada na solução, mas um segmento social interessado na utilização do aplicativo, com a finalidade conferir escala de transporte individual privado de passageiros, revelando interesse difuso evidente. 27 Na mesma decisão, o Relator fundamenta que mesmo havendo interesse na causa, isso, por si só, não impede a participação de interessado no processo: “[...] a jurisdição constitucional tem natureza diversa da jurisdição de resolução de conflitos, guardando o caráter de controle do sistema jurídico, de molde que a contribuição de segmentos ou grupos, ainda que interessados, amplia o horizonte de conhecimento da base de incidência normativa em debate.” 28 Sob a mesma ótica, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero afirmam: O que o move é o interesse institucional: o interesse no adequado debate em juízo de determinada questão nele debatida. Esse, aliás, o parâmetro adequado para aferição da legitimidade da participação do amicus curiae no processo: é inclusive a partir desse critério que o requisito da 26 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 251. 27 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70072816671. Desembargador Relator Alberto Delgado Neto. Porto Alegre, 06/06/2017. 28 Idem, ibidem. 9 representatividade adequada do amicus curiae deve ser dimensionado. 29 Paulo Cézar Pinheiro Carneiro, por sua vez, alerta que não se pode confundir, apesar da igualdade na grafia, a representatividade adequada da ação civil pública com a relacionada à participação do amicus curiae. O autor defende que deve haver a formação de um novo conceito do “nosso amicus curiae”, agora disciplinado no Código de Processo Civil de 2015, de modo a não defini-lo com base na doutrina estrangeira ou com premissas que a doutrina brasileira estabeleceu no passado, quando o instituto ainda não estava regulado no direito brasileiro. 30 Desta maneira, o CPC/15, ao disciplinar o amicus curiae, não exigiu que este fosse um terceiro imparcial. Se assim o fosse, sua intervenção poderia ser questionada e impugnada pela parte prejudicada.31 Contudo, em que pese o CPC não exija que o amicus curiae seja um terceiro imparcial, Fredie Didier Jr. entende de modo diverso, apontando que “o amicus curiae precisa ter algum vínculo com a questão litigiosa, de modo a que possa contribuir para a sua solução”. 32 Verifica-se, portanto, que a análise da finalidade e do objetivo do amicus curiae se torna fundamental, a medida que o amicus curiae, diferentemente das outras formas de intervenção de terceiro, fornece subsídios para auxiliar o magistrado na análise de determinada matéria/questão. Logo, mesmo que a manifestação do amicus curiae favoreça alguma parte, isso decorrerá da consequência da sua manifestação, e não da sua finalidade e objetivo de intervenção. 4. O AMICUS CURIAE E A BUSCA DE UM PROCESSO COOPERATIVO E DEMOCRÁTICO “Na dúvida, deve-se perquirir: isso atende ou agride o que é apregoado pela cooperação? Assim, e só assim, talvez fique no retrovisor da história, o momento em que vivemos, ou se a, o de mera ‘tentativa’ do processo idealizado pelo Estado Constitucional.” 33 O amicus curiae é um instituto de matriz democrática, que permite que terceiros ingressem no “mundo” fechado de um processo para discutir ob etivamente 29 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 44. 30 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; CABRAL, Antonio do Passo;CRAMER, Ronaldo (coord.). Op. cit. p. 251. 31 Idem, ibidem. 32 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 523. 33 LANES, Julio Cesar Goulart. Fato e Direito no Processo Civil Cooperativo. São Paulo: RT, 2014. p. 127. 10 teses jurídicas que por meio de uma decisão judicial possa vir a afetar a sociedade.34 Nesse sentido, o instituto permite que, antes de ser proferida a decisão e eventualmente virar um precedente, possa haver um debate prévio e questões importantes possam ser levadas à apreciação do magistrado. Tem-se, portanto, que o processo civil se estrutura a partir dos direitos fundamentais que compõe o direito ao processo justo e a construção/reconstrução do sistema processual civil parte da Constituição, ou seja, interpreta-se o Processo Civil de acordo com a Constituição Federal. 35 A partir da observância, em especial, do direito ao processo justo, que se espera a atuação do Estado e dos particulares em algumas situações. Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero apontam que o direito ao processo justo conta com um perfil mínimo: Em primeiro lugar, do ponto de vista da divisão do trabalho processual, o processo justo é pautado pela colaboração do juiz para com as partes (art. 6º, CPC). O juiz é paritário no diálogo e assimétrico apenas no momento da imposição de suas decisões. Em segundo lugar, constitui processo capaz de prestar tutela jurisdicional adequada e efetiva (art. 5º, XXXV, CF, e 3º, CPC), em que as partes participam em pé de igualdade e com paridade de armas (art. 5º, I, CF e 7º, CPC), em contraditório (art. 5º, LV, CF, e 7º, 9º e 10º, CPC), com ampla defesa (art. 5º, LV, CF) com direito à prova (art. 5º, LVI, a contrario sensu, CF, e 369, CPC), perante o juiz natural (arts. 5º, XXVII e LIIII, CF), em que todos os seus pronunciamentos são previsíveis, confiáveis e motivados (arts. 93, IX, CF, e 11 e 489, §1º, CPC), em procedimento público (arts. 5º, LX, e 93, IX, CF, e 11 e 189, CPC), com duração razoável (arts. 5º, LXXVIII, CF, e 4º, CPC) e, em sendo o caso, com direito à assistência judiciária jurídica integral (art. 5º, LXXIV, CF, e 98 a 102, CPC) e com formação de coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF, e 502, CPC). 36 O direito a um processo justo nada mais é do que o resultado da harmonização desses interesses que confluem no processo.37Além disso, é justamente nessa situação em que o CPC/2015, de forma adequada, acertou ao tornar atípica a possibilidade de intervenção de terceiros como amicus curiae, pois, como afirmado por Marinoni, Arenhart e Mitidiero: “Trata-se de uma evidente 34 MACIEL, Adhemar Ferreira. Amicus Curiae: Um Instituto Democrático . Revista de Processo. vol. 106/2002. p. 281-284. 35 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2016. p. 143. 36 Ibidem. p. 144. 37 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 44. 11 concretização da vertente democrática que alicerça nosso Estado Constitucional (art. 1º, caput, da CF).” 38 Paulo Cezar Pinheiro Carneiro corrobora com o ponto trazido neste capítulo: O princípio da cooperação não se limita aos participantes tradicionais do processo: autor e réu. Deve o juiz, sempre que necessário, especialmente nos processos cujo resultado possa alcançar um grande número de pessoas, permitir a intervenção de pessoas, órgãos ou de entidades com interesse, ainda que indireto, na controvérsia. Assim, promover a realização de audiências públicas (art. 927, §2º; art. 983, §1º; art. 1.038, II; v.g.), e até mesmo permitir o ingresso de outros personagens que possam colaborar para a realização da justiça, caso do amicus curiae (arts. 138 e 1.038, §2º), são corolários lógicos de uma das formas de cooperação do juiz com o deslinde da causa. Quanto maior for a participação e, portanto, os elementos de informação, maior será a legitimidade democrática da decisão. Tatiana Machado Alves também concorda que, embora o amicus curiae já viesse sendo utilizado no direito brasileiro como instrumento de ampliação do debate democrático, e consequentemente de melhoria de qualidade da prestação jurisdicional, a sua referência expressa no CPC/15 foi medida salutar para reforçar ainda mais essa característica do instituto. 39 Assim, conforme a autora traz: [...] em atendimento ao postulado democrático e ao contraditório participativo, não só as partes adquirem o direito de influir eficazmente na formação do convencimento do magistrado, como terceiros que possam contribuir para as discussões passam a poder requerer a sua intervenção no processo para apresentar informações aptas a auxiliar o juiz. 40 No entanto, a autora adverte que a utilização do amicus curiae deve se dar de forma racional e dentro dos limites fixados, especialmente quanto aos requisitos para a sua intervenção. Torna-se importante que, na decisão que decide o pedido de ingresso do amicus curiae, os juízes analisem e fundamentem efetivamente os requisitos do art. 138, CPC, de modo a evitar que intervenções inúteis, inaptas a colaborar para a resolução da demanda, sejam admitidas e prejudiquem o andamento do feito. 41 38 Ibidem, p. 105. 39 ALVES, Tatiana Machado. Op. cit. p. 115. 40 Idem, ibidem. 41 Idem, ibidem. 12 5. CONCLUSÃO O objetivo do presente estudo foi realizar uma abordagem da figura do amicus curiae - uma das inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 - no que diz respeito à possibilidade de se buscar um processo pautado pela cooperação entre as partes e pela democratização do processo. O novo regramento, trazido no artigo 138, é um reflexo do modelo de cooperação e de democratização processual. Isso, pois, como referido no presente estudo, é um instrumento que valoriza a participação ativa de terceiros que possam auxiliar o juiz, fornecendo subsídios para melhorar a resolução da causa. O CPC/2015 fomenta ainda mais a participação de interessados que tenham condição de fornecer elementos adequados para a tomada de decisões pelo juiz. Entretanto, como dito anteriormente, deve-se ter cautela no momento de avaliar o ingresso de eventual interessado (interesse institucional) na causa, para não termos uma quantidade enorme de pedidos de ingresso de terceiros somente pelo fato de haver um interesse na causa, seja ele meramente econômico, afetivo, etc. Sob a perspectiva processual, o amicus curiae deve contribuir, portanto, para a busca de uma decisão mais justa e mais fundamentada, com atenção especial a eventuais efeitos transcendentes ao campo privado, em decorrência da decisão proferida, principalmente pelo fato do instituto ter sido generalizado, podendo ser admitido em qualquer ação, juízo ou tribunal, caso preencha os requisitos legais para admissão. Posto isso, a verdade é que, dada a crescente relevância da jurisdição constitucional, e a frequência cada vez maior de decisões judiciais capazes de afetar toda coletividade, a admissibilidade do amicus curiae se torna um meio decisivo para o alargamento do debate entre as partes, para a participação processual dos vários segmentos e setores da sociedade e, consequentemente, para garantir a legitimidade democrática e cooperativa da atividade jurisdicional. 13 REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS ALVES, Tatiana Machado. Primeiras questões sobre o amicus curiae no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. vol. 256. ano 41. São Paulo: RT, 2016. BRASIL. Lei n. 13.105/2015. Código de Processo Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro: Um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. LANES, Julio Cesar Goulart. Fato e Direito no Processo Civil Cooperativo. São Paulo: RT, 2014. LOWMAN, Michael K. The litigating Amicus Curiae: When does the party begin after the friends leave? American University Law Review, Summer, 1992. Vol. 41(4). MACIEL, Adhemar Ferreira. Amicus Curiae: Um Instituto Democrático. Revista de Processo. vol. 106/2002. 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