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8 LEGALIDADE E LEGITIMIDADE DO PODER POLITICO I. 0 principio da legalidade — 2. 0 principio da legitimidade — 3. Como se formou o principio e a especie de legitimidade que esse principio procurou estabelecer — 4. A crise historica da legalidade e legitimidade do poder — 5. A consideracdo jilosofica do problema da legitimidade — 6. Os fundamentos sociologicos da legitimidade: 6.1 A legitimidade como representagdo de uma teoria dominante do poder — 6.2 As Tres formas basicas de manifestacqo da legitimidade: a carismatica, a tradicional e a legal ou racional — 7. 0 aspecto juridico da legitimidade — 8. A legitimidade no exercicio do poder — 9. A legalidade e a legitimidade do poder como temas da Ciencia Politica. 1. 0 principio da legalidade A legalidade nos sistemas politicos exprime basicamente a observancia das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonancia estrita corn o direito estabelecido. Ou ern outras palavras traduz a nogdo de que todo poder estatal devera atuar sempre de conformidade corn as regras juridicas vigentes. Em suma, a acomodagdo do poder que se exerce ao direito que o regula. Cumpre pois discernir no termo legalidade aquilo que exprime inteira conformidade corn a ordem juridica vigente. Nessa acepcdo ampla, o funcionamento do regime e a autoridade investida nos governantes devem reger-se segundo as linhas-mestras tragadas pela Constituigao, cujos preceitos sao a base sobre a qual assenta tanto o exercicio do poder como a competencia dos Orgaos estatais. A legalidade supde por conseguinte o livre e desembaragado mecanismo das instituigOes e dos atos da autoridade, movendo-se em consonancia corn os preceitos juridicos vigentes ou respeitando rigorosamente a hierarquia das normas, que vao dos regulamentos, decretos e leis ordinarias ate a lei maxima e superior, que 6 a Constituigao. 0 poder legal representa por conseqiiencia o poder em harmonia corn os principios juridicos, que servem de esteio a ordem estatal. 0 conceito de legalidade se situa assim num dominio exclusivamente formal, tecnico e juridico. 2. 0 principio da legitimidade Ja a legitimidade tem exigencias mais delicadas, visto que levanta o problema de fundo, questionando acerca da justificacao e dos valores do poder legal. A legitimidade 6 a legalidade acrescida de sua valoracao. 8 o criterio que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequagdo do poder as situacties da vida social que ele é chamado a disciplinar. No conceito de legitimidade entram as crencas de determinada epoca, que presidem a manifestagdo do consentimento e da obediencia. A legalidade de urn regime democratico, por exemplo, é o seu enquadramento nos moldes de uma constituicao observada e praticada; sua legitimidade sera sempre o poder contido naquela constituicao, exercendo-se de conformidade com as crengas, os valores e os principios da ideologia dominante, no caso a ideologia democratica. 3. Como se formou o principio da legalidade e a especie de legitimidade que esse principio procurou estabelecer 0 principio de legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e validas, que fossem obras da razdo, e pudessem abrigar os individuos de uma conduta arbitraria e imprevisivel da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcancar urn estado geral de confianga e certeza na agdo dos titulares do poder, evitando-se assim a chivida, a intranqiiilidade, a desconfianga e a suspeicao, tao usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivencia nao foram previamente elaboradas nem reconhecidas. A legalidade, compreendida pois como a certeza que tern os governados de que a lei os protege ou de que nenhum mal portanto lhes podera advir do comportamento dos governantes, sera entao sob esse aspecto, como queria Montesquieu, sinenimo de liberdade. Autores que escreveram durante o ancien regime, em Franca, tiveram a intuicao desse principio. Haja vista Fenelon com respeito ao poder do rei: "Ele pode tudo sobre as pessoas, mas as leis podem tudo sobre ele" (Il peut tout sur les peuples, mais les lois peuvent tout sur lui). Mas foi o seculo racionalista e filosefico — o seculo XVIII — que desenvolvendo as teses do contratualismo social aprofundou na Franca a justificacao doutrinaria do principio da legalidade. Sua explicitacao politica se fez por via revolucionaria, quando a legalidade se converteu em materia constitucional. Assim no texto de 1791: "Nao ha em Franca autoridade superior a da lei; o rei nao reina sendo em virtude dela e é unicamente em nome da lei que podera ele exigir obediencia" (Art. 32, do Capitulo II da Constituicao Francesa de 1791). Alguns anos antes, os ex-colonos de Massachussets, emancipados da dominacao inglesa, gravaram em sua Constituicao (Art. 30) o principio da separacao de poderes a fim de que "pudesse haver um governo de leis e nao de homens". Enfim, o principio da legalidade atende aquele ideal jeffersoniano de estabelecer um governo da lei em substituicao do governo dos homens e de certo modo reproduz tambern aquela maxima de Michelet sobre "o governo do homem por si mesmo", ou seja, le gouvernement de l'homme par lui meme. 4. A crise historica da legalidade e legitimidade do poder Sao quatro os dados que se nos afigurarn altamente elucidativos e indispensaveis para a consideracao da legalidade e legitimidade como temas da teoria politica: o histOrico, o Mosaic°, o sociolOgico e o juridico. Do ponto de vista histOrico, partimos das relacties entre legalidade e legitimidade, cuja distincan a antigiiidade romana e o direito Canemico ignoraram por completo. No Codex Juris Canonici, segundo anota Schmitt, a palavra legitimus aparece corn frequencia, ao passo que legalis somente ocorre em quatro lugares e assim mesmo invariavelmente referida ao direito civil. A cisdo legalidade e legitimidade tornou-se patente ao pensamento europeu desde 1815, quando se fez vivo e agudo, conforme lembra aquele jurista, o antagonismo que a Franca monarquica passou a testemunhar entre a legitimidade histOrica de uma dinastia restaurada e a legalidade vigente do COdigo napoleonico. Liberals e conservadores, progressistas moderados com filiagdo espiritual na Rev°lugdo Francesa e realistas restauradores, de obstinada conviccao monarquica, se repartiam em posicoes adversas, sustentando os liberais a legalidade da monarquia constitucional e os conservadores o requisito de legitimidade da mesma, como forma de poder. 0 auge da crise se situa na deposicao de Carlos X e no advento de Luis Felipe, quando a tese da legalidade se impiie a da legitimidade, nos termos histOricos e tradicionais em que esta Ultima sempre fora tomada. Os dois conceitos dal por diante andam relativamente desacompanhados. A corrente racionalista, proveniente da Revolugdo Francesa, que transitara do racionalismo Mosaic°, abstrato e jusnaturalista para o racionalismo positivista, empirico e relativista operou uma sutil transposigdo de termos, fazendo toda a legitimidade repousar doravante na legalidade e nao como dantes a legalidade na legitimidade. A lei, segundo a expectativa confiante do seculo, representava o maxim° poder da Razao emancipadora. Os juristas de indole liberal fazem-lhe o culto do antipaternalismo, da fe mais ardente na sua capacidade de exprimir o principio civilizador, o governo do homem por si mesmo (le gouuernement de l'homme par lui me me), como refere Michelet, citado por Schmitt. A lei, que principia como autentica deusa das crencas revolucionarias, acaba, segundo Schmitt e Bert Brecht, prostituida nos labios dos gangsters americanos,quando esses ironicamente dao a palavra de ordem de que "o trabalho deve ser legal". 1 Igualmente "legal", conforme referiremos adiante, foi tambem a ascensao de Hitler ao poder na Alemanha e a implantacao da ditadura socialista na Tchecoslovaquia pelo Partido Comunista. E, no entanto, a lei axiologicamente fundara ha pouco mais de um seculo o prestigio de uma nova ordem social exageradamente confiante nos poderes da Razao abstrata e libertadora. Com a lei dos cOdigos burgueses, verdadeiros talismas juridicos da exaltacao revolucionaria de 1789, fora possivel banir da jovem sociedade burguesa o culto incomodo e respeitoso do passado, a inviolabilidade dos costumes, a soberania da tradicao, o acatamento dogmatic° de toda a autoridade, bases sobre as quais assentava alias o poder das antigas ordens privilegiadas sob a egide das realezas onipotentes. Mas duas crises histOricas de consideraveis proporcOes vieram ainda abater-se sobre o principio da legalidade e legitimidade. Com o Manifesto de Marx e os desenvolvimentos ulteriores da teorizacao de Lenin, Trotski e Lukacs, a lei, que fora o Coroamento doutrinario do racionalismo europeu, aparece agora degradada a instrumento da sociedade de classes, como a superestrutura social da opressao burguesa, como Orgao de permanencia dos privilegios econiimicos, nao sendo bons revolucionarios, segundo o conselho de Lenin, reproduzido por Schmitt, aqueles que nao souberem unir os meios ilegais de luta a todas as formas legais de tomada do poder. Despreza-se a lei como fim e dela se serve como meio. A legitimidade do ordenamento juridico burgues é atacada a fundo nessa tomada de posicao dos pensadores revolucionarios marxistas, que alargam cada vez mais o hiato separando a legalidade da legitimidade, cuja ruptura tern exemplos de antecedencia histarica na polemica dos liberais coin os tradicionalistas conservadores do seculo XIX. Durante o nacional-socialismo a crise chega ao maxim° grau de intensidade. Aqui temos concretizado o exemplo histarico supremo de uma corrente de opiniao, de uma ideologia, de urn partido politico, cujos chefes, sem quebra da legalidade, tomaram o poder a sombra do regime estabelecido e dele se serviram do modo que se nos afigura mais ominoso em toda a histOria do genero humano, e cuja legitimidade, vista ou apreciada pelos criterios do racionalismo imperante na doutrina juridica dos movimentos liberais e positivistas do seculo XIX, pareceria irrepreensivel. 0 mesmo se passou na Tchecoslovaquia corn a tomada do poder por uma revolucao aparentemente pacifica, de teor parlamentar, que instaurou ali a nova legalidade proletaria. 5. A consideracdo filosOfica do problema da legitimidade Exemplos como aqueles que acabamos de citar nos convidam de imediato a retomar o problema mediante um segundo ponto de partida: o filosafico. Do ponto de vista filosafico, a legitimidade repousa no piano das crengas pessoais, no terreno das conviccees individuais de sabor ideolOgico, das valoragees subjetivas, dos criterios axiolOgicos variaveis segundo as pessoas, tomando os contornos de uma maxima de carater absoluto, de principio inabalavel, fundado em nocao puramente metafisica que se venha a eleger por base do poder. A legitimidade assim considerada nao responde aos fatos, ordem estabelecida, aos dados correntes da vida politica e social, segundo o mecanismo ern que estes se desenrolam — o que seria ja. do ambito da legalidade — mas inquire acerca dos preceitos fundamentais que justificam ou invalidam a existencia do titulo e do exercicio do poder, da regra moral, mediante a qual se ha de mover o poder dos governantes para receber e merecer o assentimento dos governados. Quando entramos a fazer reflexees acerca das razOes que regem a necessidade ou inevitabilidade do poder politico na sociedade, e indagamos por que uns obedecem e outros mandam, ou figuramos o carater de permanencia ou temporariedade do poder estatal como ordem coativa, estamos na verdade levantando proposicoes de cunho filosofico pertinentes a legitimidade do poder no seu aspecto de finalismo social. Formula-se determinada doutrina acerca do fundamento do poder e da obediencia, e, mediante o criterio perfilhado nessa doutrina, mede- se a seguir a legitimidade de uma ordem politica qualquer, seu teor de veracidade ou erro, que ha de variar consoante a tabua dos valores estabelecidos subjetivamente. Busca-se entao menos o poder que é do que propriamente o poder que deveria ser. 6. Os fundamentos sociolOgicos da legitimidade 0 conceito de legitimidade expresso por Vedei, segundo o qual "chama-se principio de legitimidade o fundamento do poder numa determinada sociedade, a regra em virtude da qual se julga que um poder deve ou nao ser obedecido" nos leva assim sem nenhuma intermitencia a compreensao sociolegica do termo. 2 A esse respeito, vale ressaltar a importancia que tem o entendimento sociologico da legitimidade, a qual implica sempre numa teoria dominante do poder. Suscitando o problema da autoridade, em termos sociolegicos, distingue Max Weber, conforme veremos, tres formas basicas de manifestagao da legitimidade, que sao capitais para a explicacao de todos os fenennenos do poder observados em qualquer tipo de organizacao social: a carismatica, a tradicional e a legal ou rational. 6.1 A legitimidade como representactio de uma teoria dominants do poder A observagao nos mostra, segundo Duverger, que numa certa epoca e num certo pais, ha sempre uma teoria dominante do poder, qual adere a massa dos governados. 0 governo, erguido a base dessa doutrina, que impera no assentimento da populagdo, sera do ponto de vista sociolegico o govern() legitimo. Nao cabem aqui, assevera o jurista trances, as digressOes ideolegicas, metafisicas e doutrinarias relativamente a natureza do poder. Em conseqiiencia, desde que o estudioso nada afirma de falso ou verdadeiro sobre o carater do principio de legitimidade socialmente imperante e apenas considera as doutrinas propagadas atraves dos povos e das epocas como meros fatos sociolegicos, que cumpre ter em conta e averiguar, pela adesdo neles refletida de parte das consciencias individuais, pondera e conclui o publicista frances que assim considerada, "a legitimidade se torna uma nogdo puramente relativa e contingente, cujo conteiido depende das crengas efetivamente espalhadas num certo momento, em determinado pals". 3 Gragas a esse criterio, fez-se possivel, segundo o mesmo autor, compreender os pontos de transigao historica por que ha passado no curso da civilizagdo politica ocidental o principio da legitimidade, o conflito travado entre o direito divino dos reis e o direito dos povos, entre a legitimidade teocratica e a legitimidade democratica, do mesmo modo que hoje se contraptie, num duelo de preponderancia, a legitimidade burguesa do povo encarnada no abstrato conceito de nagao e a legitimidade proletaria corn assento no dogma de classe soberana e predestinada que o proletariado resume.4 6.2 As tres formas bdsicas de manifestacd o da legitimidade: a carismatica, a tradicional e a legal ou racional Debaixo do mesmo prisma sociolOgico, Max Weber faz que a legalidade repouse sobre tres formas basicas de manifestacao da legitimidade: a carismatica, a tradicional e a legal ou racional. Esses tres tipos de poder legitimo abrangido no classic° esquema de Max Weber tem resumidamente a explicagao que se segue, segundo as palavras mesmas do celebrado sociOlogo. A autoridade carismatica assenta sobre as "crencas" havidas em profetas, sobre o "reconhecimento" que pessoalmente alcangam os herOis e os demagogos, durante as guerras e as sedigOes, nas ruas e nas tribunas, convertendo a fe e o reconhecimento em deveresinviolaveis que lhes sao devidos pelos governados. 0 poder carismatico se baseia, segundo o sociOlogo, na direta lealdade pessoal dos seguidores. A autoridade carismatica, acrescenta Max Weber, a despeito de haver sido uma das potencias mais revolucionarias da HistOria, transformadora dos sentimentos e destinos de povos e civilizagOes inteiras conserva nas suas formas mais puras o carter autoritario e imperativo. 5 Ja a autoridade tradicional se apOia na crenca de que os ordenamentos existentes e os poderes de mando e direcao comportam a virtude da santidade. 0 tipo mais puro, prossegue Max Weber, 6 o da autoridade patriarcal, onde o governante é o "senhor"; o governado, o "sficlito" e o funcionario, o "servidor". Afirma o sociOlogo: presta-se obediencia a pessoa por respeito, em virtude da tradicao de uma dignidade pessoal que se reputa sagrada. Todo o comando se prende intrinsecamente a tradicao, cuja violacao brutal por parte do chefe podera eventualmente pOr em perigo seu pr6prio poder, cuja legitimidade se alicerca tao-somente na crenca acerca de sua santidade. A criacao de um novo direito em face das normas oriundas da tradiflo é em principio impossivel. 6 Conseqilentemente, a direcao politica do meio social goza de uma solidez e estabilidade que se acha sob a dependencia imediata e direta do aprofundamento da tradicao na consciencia coletiva. Quanto ao ultimo tipo, o da autoridade "legal", que informa toda a epoca do racionalismo ocidental, temos o poder fundado no estatuto, na regulamentagao da autoridade. Aqui assevera Max Weber: o tipo mais puro e o da autoridade burocratica. Sua concepgao fundamental se resume na postulacao de que qualquer direito pode ser modificado e criado ad libitum, por elaboracao voluntaria, desde que essa elaboracao seja formalmente correta. A obediencia se presta nao a pessoa, em virtude de direito prOprio, mas a regra, que se reconhece competente para designar a quem e em que extensao se ha de obedecer. 7 Demais, o poder racional ou legal cria ademais em suas manifestacties de legitimidade a nocao de compete ncia, o poder tradicional a de privilAgio e o carismatico, desconhecendo esses conceitos, dilata a legitimacao ate onde alcance a missao do chefe, na medida de seus atributos carismaticos pessoais, conforme observa aquele pensador. 8 7. 0 aspect° juridico da legitimidade Ultimando a transicao do sociolOgico ao juridico, Carl Schmitt, o mais conspicuo jurista da Alemanha comprometido com o nacional- socialismo, intenta demonstrar que a posse do poder legal em termos de legitimidade requer sempre uma presuncao de juridicidade, de exeqUibilidade e obedi6ncia condicional e de preenchimento de clausulas gerais, cuja importancia pratica e teOrica nao deve ser ignorada pela teoria constitucional nem pela filosofia do direito, visto que tanto servem de criterio de controle da constitucionalidade da legislagao como de ponto de partida a uma doutrina do direito de resistencia. 8 Foi justamente a falta de tal consciencia alimentada na formagao do povo alemao, cultivada entre os seus magistrados, disseminada na massa de servidores pUblicos, implantada no espirito da diregao politica do pais, referida tambem aos partidos politicos de lideranca democratica e republicana, aquilo que na hora fatal da conspiragdo nazista entregou a ordem juridica da Alemanha a ditadura inescrupulosa, desarmando depois o sentimento de resistencia da nacao as praticas criminosas e violentas do nacional-socialismo. Schmitt mesmo foi vitima dessa emboscada histOrica da legalidade hitlerista, tendo raziies pessoais de sobra, por experiencia doutrinaria, para acrescentar como corretivo democratico e constitucional a postulagdo de limites juridicos eficazes a legitimidade invocada pelos titulares do poder legal. A doutrina mais recente dos autores franceses, ja em parte examinada, conforme vimos, se distribui, quanto ao problema da legalidade e legitimidade dos governos, nas seguintes posicoes: 1) a legalidade e tao-somente questa° de forma; a legitimidade, questao de fundo, substancial, relativa a consonancia do poder com a opiniao publica, de cujo apoio depende (Burdeau); 2) a legitimidade é nocao ideolOgica, a legalidade, nocao juridica; do ponto de vista, porem, da ordem constitucional positiva as duas novies coincidem ou se confundem: "um governo e legal, conseqiientemente legitimo, sob o aspecto do direito, desde que se estabeleca de modo regular, conforme as regras da ordem estatutaria nacional", a saber, ao instituir-se de acordo com a Constituicao em vigor; 10 caso porem venha a contrariar essas regras, que deverao presidir igualmente ao seu funcionamento, semelhante governo deixard de ser legal, perdendo tambem sua condicao de legitimo; 11 3) legalidade é a conformacao do governo com as disposiciies de um texto constitucional precedente, ao passo que a legitimidade significa a fiel observancia dos principios da nova ordem juridica proclamada; a legalidade sera assim urn conceito formal, a legitimidade, um conceito material, de maneira que, segundo essa posicao, um governo de fato far-se-a eventualmente legitimo se proceder segundo as regras por ele mesmo estabelecidas, fundamentando uma nova ordem politica ou constitucional (Duverger). De acordo porem corn a doutrina de Hauriou, mais antiga, "o principio de legitimidade nao e ern si outra coisa sena) o principio da transmissao do poder conforme a lei." 12 Alude o publicista frances aos governos como meros depositarios de urn poder, cuja sede legitima se acha na lei, na autoridade, na competencia juridicamente definida, da qual sao instrumentos ou servidores obedientes, sendo a legitimidade a feel observancia dos mecanismos de transmissao do poder. 13 Quanto ao poder de fato, o poder revolucionario, o poder que emerge das crises ou rupturas violentas da ordem legal vigente, a doutrina de Hauriou conserva o mesmo carater juridico formal, recusando a esses poderes legitimidade, que so se adquire eventualmente na medida em que os mesmos, uma vez estabelecidos, facam "a autoridade e a competencia prevalecerem sobre o poder de dominacao". A observancia e adocao da ordem juridica é a via aberta para a legitimaedo dos governos ou poderes de fato. 14 8. A legitimidade no exercicio do poder A legitimidade abrange por ultimo duas categorias de problemas distintos. 0 primeiro problema se relaciona corn a necessidade e a finalidade mesma do poder politico que se exerce na sociedade atraves principalmente de uma obediencia consentida e espontanea, e nao apenas ern virtude da compulsao efetiva ou potencial de que dispee o Estado — instrumento maxim() de institucionalizacao de todo o poder politico. Vista debaixo desse aspecto, a legitimidade do poder s6 aparece contestada nas doutrinas anarquicas, nomeadarnente no marxismo, ao passo que as demais escolas conhecidas se empenham ern dar-lhe por fundamento ora os impulsos naturals, organicos e biologicos do homem, ora o consentimento Iivremente expresso por uma associagdo de vontades, como nas teorias do contrato social, reconhecendo-se ern qualquer das Ultimas posigOes mencionadas, por legitima, a existencia na sociedade de urn poder politico imposto as vontades individuais. Se a existencia do poder politico na sociedade se acha legitimada corn rara ou nenhuma discrepancia (sendo a Unica excegao a dos anarquistas) o problema da legitimidade, ao contrario, se complica quando a questao versada entra a ser a do exercicio legitimo do poder. Trata-se aqui de indicar o fundamento de legitimidade do governo ou dos governantes, manifestado como urn dado histOrico e relativo, consoante as doutrinas ou as crengas geralmente aceitas e que lhes servem de esteio, modificaveisconforme a epoca ou o pais. Na Idade Media, essa crenga-suporte da legitimidade foi Deus, a o sobrenatural, ao passo que contemporaneamente ela vem sendo o povo, a democracia, o consentimento dos cidadaos e a adesdo dos governados. Mas nao se exaure nisso o problema da legitimidade governativa. Cumpre passar ao segundo problema, o de saber se todo governo é legal e legitimo ao mesmo tempo e quais as hipOteses configurativas de desencontro desses dois elementos: legalidade e legitimidade. Corn efeito, concebe-se perfeitamente urn governo legal que seja ilegitimo. Haja vista o exemplo frances, muito citado, do governo de Petain, que, investido legalmente no poder, cedo patenteou seu inteiro desacordo corn os sentimentos e esperangas e votos do povo frances. Dai resultou negar-lhe o pais adesao e consentimento, bases da legitimidade politica. Ja o governo trances de De Gaulle no exilio, que emergira das lutas da libertagdo nacional, foi ern 1944, como governo provisOrio da RepUblica francesa, o governo ilegal porem legitimo do povo frances. Via de regra, os governos que nascem das situacoes revolucionarias, dos golpes de Estado, das conspiracties triunfantes, sao governos ilegais mas eventualmente legitimos, se abracados logo pelo sentimento nacional de aprovagdo ao exercicio do seu poder. Confirmada a viabilidade desses governos, a legitimidade fundard entao corn o tempo a nova legalidade. E esta ha de perdurar, conciliada no binamio legalidade-legitimidade, ate que ulteriores comociies da consciencia nacional tragam corn a intervengdo sithita de crises imprevistas e profundas para a conservagdo do poder a perda do equilibrio politico dos sistemas legais e sua conseqUente destruica.o. 9. A legalidade e legitimidade do poder como temas da ciincia politica 0 espinhoso terra legalidade e legitimidade do poder politico abrange uma literatura juridica diminuta, apesar de tratar-se de materia controvertida, que sempre reponta na consciencia dos legisladores, dos politicos e dos pensadores sociais nas horas de crise do poder, quando se abre o inquerito das revoluyies, das ditaduras e dos golpes de Estado, quando se questiona acerca de estremecimentos no principio de autoridade, de quebra e afrouxamento dos lacos de obediencia que prendem os governados aos governantes. Dentre os estudos esparsos que compOem a pequena contribuicao classica sobre o assunto, faz-se mister ressaltar o livro de Ferrero, pertinente ao antigo principio de legitimidade 15 e o de Lenin (Esquerdismo, Doenca Infanta do Comunismo), obra capital cujo desconhecimento tornaria "anacronica" toda a discussao acerca do problema da legalidade, conforme ja advertiu um constitucionalista alemao, bem como os estudos de Max Weber" e a intervencao de Carl Schmitt sobre o assunto, em 1932, no ano crucial de sua polemica corn os constitucionalistas da Reptiblica de Weimar. 17 Dos escritos mais antigos ainda conserva algum interesse nos dias presentes o de autoria de Benjamin Constant sobre o espirito de conquista e usurpacaols e mais alguns discursos politicos de Wilson, quando o Presidente dos Estados Unidos sustentou a doutrina americana da legitimidade democratica. 1. Carl Schmitt, Legalitaet and Legitimitaet, e Das Problem der Legalitaet. 2. Georges Vedei, Introduction aux Etudes Politiques, Fasciculo I, p. 28. 3. Maurice Duverger, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, p. 39. 4. Idem, ibidem, p. 39. 5 Max Weber, Staatssoziologie, p. 106. 6. Idem, ibidem, p. 101. 7. Max Weber, ob. cit., p. 9. 8. Idem, ibidem, p. 105. 9. Carl Schmitt, "Das Problem der Legalitaet", in: Verfassungsrechtliche Aufsaetze, pp. 440-451. 10. Julien Laferriere, Manuel de Droit Constitutionnel, r ed., p. 838. 11. Idem, ibidem, p. 838. 12. Maurice Hauriou, Principios de Derecho Public() y Constitucional, traducao espanhola, 2' ed., s/d, p. 198. 13. Idem, ibidem, p. 198. 14. Idem, ibidem, p. 200. 15. G. Ferrero, Potere. 16. Max Weber. No celebre capitulo IX "Wirtschaft and Gesellschaft" parte segunda, sobre sociologia do poder, da obra Economia e Sociedade. ed., pp. 551-558. 17. Carl Schmitt, ob. cit. 18. Benjamin Constant. "De l'espirit de Conquete et de Pusurpation", in: Oueures, p. 983 e s. 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