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Introdução à Evolução das Ideias Econômicas

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Introduc¸a˜o a` Evoluc¸a˜o das Ideias Econoˆmicas e Sociais
Alexandre F. S. Andrada
afsa@unb.br
Bras´ılia-DF
2013
Aviso
Este material e´ de cara´ter puramente dida´tico, sendo distribu´ıdos aos alunos da disciplina Evoluc¸a˜o
das Ideias Econoˆmicas e Sociais da Universidade de Bras´ılia (UnB) como material complementar
a`s notas de aula.
1
Contents
1 Introduc¸a˜o 3
2 To´picos em Filosofia da Cieˆncia 4
2.1 O Falsificacionismo de Karl Popper . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
2.2 As Revoluc¸o˜es Cient´ıficas de Thomas Kuhn . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
2.3 Programas de Pesquisa de Imre Lakatos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
3 To´picos em Epistemologia 13
3.1 A Batalha dos Me´todos: Methodenstreit . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
4 Sobre os Problemas relativos ao Me´todo da Economia 15
4.1 A Metodologia de John Stuart Mill (1844) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
4.2 A Metodologia de John Neville Keynes (1890) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
4.3 A Metodologia de Lionel Robbins (1932) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
4.4 A Metodologia de Milton Friedman (1953) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
4.4.1 Robert Lucas (1980) e os Microfundamentos da Economia . . . . . . . . . . . 25
5 Os Mercantilistas 26
5.1 Os Mercantilistas segundo Smith . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
5.2 Os Primeiros Mercantilistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
5.3 Alexander Hamilton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
5.4 Friedrich List . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
6 Os Fisiocratas 31
6.1 Os Fisiocratas segundo Adam Smith . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
7 Adam Smith 35
8 David Ricardo 38
9 Karl Marx 47
10 A Revoluc¸a˜o Marginalista 47
11 John Maynard Keynes 47
11.1 As Teorias Pre´-Keynesianas de Business Cycle . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
11.2 A Teoria Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
11.3 A Leitura Neocla´ssica da Teoria Geral: A S´ıntese Neocla´ssica . . . . . . . . . . . . . . 54
2
1 Introduc¸a˜o
Este trabalho e´ ainda um projeto em construc¸a˜o de elaborac¸a˜o de uma apostila para o curso de
Evoluc¸a˜o das Ideias Econoˆmicas e Sociais do Departamento de Economia da Universidade de Bras´ılia.
Essa disciplina e´ ministrada para os alunos do segundo per´ıodo da graduac¸a˜o, servindo, portanto,
para apresentar as razo˜es de a teoria econoˆmica tradicional a ser vista nos cursos de Macro e Mi-
croeconomia ser como e´. Como se chegou a esta estrutura? Por que os modelos na˜o se parecem com
a “realidade”? Como avanc¸a ou avanc¸ou nosso conhecimento da Economia?
Por ser um trabalho ainda em construc¸a˜o sa˜o inevita´veis os erros, tanto de forma como de
conteu´do. Sugesto˜es, cr´ıticas e correc¸o˜es sa˜o por isso mesmo bem-vindas.
O texto, assim como o curso, e´ dividido em dois blocos.
Primeiro sa˜o apresentados alguns conceitos fundamentais (em nossa opinia˜o) para a compreensa˜o
das cieˆncias. Os alunos sa˜o apresentados a alguns to´picos e autores tanto da Filosofia da Cieˆncia
(Karl Popper, Thomas Kuhn e Imre Lakatos), como questo˜es de Epistemologia (isto e´, sobre como “o
que e´ o conhecimento cient´ıfico? quais as fontes e as condic¸o˜es necessa´rias para sua obtenc¸a˜o? etc.).
A disputa entre a visa˜o racionalista e empirista e´ fundamental para a compreensa˜o da transformac¸a˜o
da Economia, da abordagem de Smith para o me´todo ricardiano e, posteriormente, o neocla´ssico.
Encerra-se esse bloco com algumas considerac¸o˜es metodolo´gicas espec´ıficas da Economia. Os alunos
sera˜o apresentados aos principais textos da a´rea (Stuart Mill, J.N. Keynes, Lionel Robbins e Milton
Friedman) de forma a compreender a evoluc¸a˜o na compreensa˜o do objeto e do me´todo de ana´lise dos
economistas.
No segundo bloco se analisam alguns pontos da Histo´ria do Pensamento Econoˆmico. Comec¸amos
com os mercantilistas (os pioneiros, mas tambe´m os de segunda gerac¸a˜o) e os fisiocratas. Enta˜o e´
hora de estudar os principais autores de nossa disciplina: Smith, Say, Ricardo, Malthus, Sismondi,
Marx, os Marginalistas e Keynes.
Alexandre F. S. Andrada
Bras´ılia, Agosto de 2013
3
“A Science which hesitate to forget its founders is lost” (Alfred Whithead)
“The more perfect the scince, the shorter its history” (Jean Baptiste Say)
2 To´picos em Filosofia da Cieˆncia
Em artigo de 1983 - depois corrigido e ampliado em 1986 - o economista brasileiro Pe´rsio Arida1
apresenta e discute dois modelos de ensino da Economia ao n´ıvel de Po´s-graduac¸a˜o. Esses modelos
refletem duas viso˜es distintas sobre a esseˆncia de nossa disciplina.
De uma lado tem-se o modelo da Economia como hard science a exemplo da F´ısica. Nos centros
que adotam esse modelo as listas de leituras das disciplinas na˜o contam com trabalhos com mais
de dez anos de publicac¸a˜o. A` excec¸a˜o de um ou outro pioneiro - usualmente citado apenas como
forma de revereˆncia ou demonstrac¸a˜o de erudic¸a˜o - trabalhos mais antigos sa˜o vistos como obsoletos.
O conhecimento enciclope´dico da histo´ria da disciplina e´ visto como um saber desnecessa´rio para o
avanc¸o do conhecimento. Assim como um estudante de F´ısica na˜o precisa ler Newton para entender
a mecaˆnica cla´ssica, um estudante de Economia na˜o precisaria ler Smith para entender a teoria do
crescimento econoˆmico, ou ler Ricardo para entender as teorias de come´rcio internacional, ou ler
Walras para entender a teoria do equil´ıbrio geral, e assim por diante. O estudo desses trabalhos
cla´ssicos revelariam ao estudante moderno apenas duas coisas: algum par de erros e antecipac¸o˜es.
As antecipac¸o˜es dizem respeito a`s ideias/teorias/modelos que ainda sa˜o vistos como corretos e que
por isso sobreviveram, e os erros dizem respeito a`quelas ideias que foram abandonadas e que hoje
na˜o encontram respaldo no conhecimento contemporaˆneo.
Essa interpretac¸a˜o sobre a teoria econoˆmica deriva de duas ideias correlatas: (i) que o conhec-
imento cient´ıfico na Economia avanc¸a atrave´s do processo de superac¸a˜o positiva das controve´rsias,
e; (ii) dada a superac¸a˜o positiva, ha´ a cada instante do tempo uma fronteira do conhecimento que
representa o estado-da-arte da disciplina, ou as melhores e mais sofisticadas teorias dispon´ıveis.
Por superac¸a˜o positiva das controve´rsias entende-se aquele processo no qual ha´ pelo menos duas
teorias (α e β) que tentam explicar um determinado fenoˆmeno (Ω). Sendo a Cieˆncia um ramo
livre de preconceitos e de busca pela verdade, o papel dos cientistas envolvidos na poleˆmica e´ o
de realizar experimentos/testes/experieˆncias de forma a demonstrar qual das duas teorias e´ a mais
correta. Apo´s esse processo de experimentos/testes/experieˆncias os defensores da teoria derrotada
aceitam a vito´ria dos adversa´rios e passam a integrar a teoria vitoriosa ao seu conhecimento sobre o
fenoˆmeno de interesse. E´ o´bvio que podem ocorrer processos distintos de surgimento de uma verdade
cient´ıfica amplamente aceita. Pode ser que apo´s os testes e experimentos descubra-se que parte da
teoria α e´ correta e parte da teoria β tambe´m o e´, de forma que uma s´ıntese que gera uma teoria γ
e´ aceita como verdade. Ou mesmo que se descubra que as teorias α e β sa˜o totalmente equivocadas,
de forma que se desenvolve uma nova teoria δ aceita como verdadeira. Em todo caso, a ideia e´ a
mesma: cientistas apresentam suas teorias, essas teorias sa˜o testadas e a partir do surgimento da
teoria mais ”correta”, as demais teorias sa˜o abandonadas e a teoria ”correta” e´ incorporada (ainda
que temporariamente) ao conhecimento da disciplina. Nas palavrasde Arida (1983) o processo de
superac¸a˜o positiva e´ aquele no qual “... a resoluc¸a˜o da controve´rsia faz emergir sua verdade; e que a
verdade, entendida como saldo positivo da controve´rsia e aceita como tal por todos os participantes,
1Pe´rsio Aria e´ um dos grandes economistas brasileiros vivos. Entre suas contribuic¸o˜es a` teoria econoˆmica - ale´m
do trabalho aqui citado - merece destaque o artigo de 1984 em parceria com outro grande economista, Andre´ Lara
Resende, que se tornou conhecido como Proposta Larida, sendo a base intelectual do Plano Real. Ale´m de acadeˆmico,
Pe´rsio Arida trabalhou como policymaker nos governos Sarney e FHC e atualmente e´ um dos so´cios do banco BTG
Pactual
4
incorpora-se ao estudo atual da cieˆncia”.
Entendido o processo de superac¸a˜o positiva, o que se chama de fronteira do conhecimento e´ o
conjunto das melhores teorias existentes em determinado ramo do saber em um determinado instante
do tempo. Essa fronteira e´ usualmente apresentada aos estudantes em Manuais. Como conhecimento
dos erros e´ inu´til, enquanto o conhecimento das antecipac¸o˜es e´ desnecessa´rio, dado que o estudante
na˜o precisa refazer todo o caminho de correc¸a˜o e sofisticac¸a˜o dos modelos originais. Se quer conhecer
o estado atual de nosso conhecimento sobre a teoria do crescimento econoˆmico, basta ter em ma˜os,
por exemplo, o livro de Acemoglu Introduction to Modern Economic Growth.
A partir dessa abordagem o estudo da Histo´ria do Pensamento Econoˆmico (HPE) resume-se a
um passatempo intelectual. Uma mera Histo´ria das Ideias, desnecessa´ria para o avanc¸o da teoria -
da´ı as duas citac¸o˜es iniciais desta sec¸a˜o.
Se a cieˆncia e´ a reunia˜o de fatos, teorias e me´todos reunidos nos textos atuais, enta˜o os
cientistas sa˜o homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se em contribuir com um
ou outro elemento dessa constelac¸a˜o espec´ıfica. O desenvolvimento torna-se o processo
gradativo atrave´s do qual esses itens foram adicionados, isoladamente ou em combinac¸a˜o,
ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a te´cnica cient´ıficos. E a
histo´ria da cieˆncia torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos como
os obsta´culos que inibiram sua acumulac¸a˜o. Preocupado com o desenvolvimento cient´ıfico,
o historiador parece enta˜o ter duas tarefas principais. De um lado deve determinar quando
e por quem cada fato, teoria ou lei cient´ıfica contemporaˆnea foi descoberta ou inventada.
De outro lado, deve descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstic¸o˜es
que inibiram a acumulac¸a˜o mais ra´pida dos elementos constituintes do moderno texto
cient´ıfico. (KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluc¸o˜es Cient´ıficas, 2006 [1962], p. 20).
Note-se tambe´m que ao se aceitar essa visa˜o da Economia, torna-se imposs´ıvel a aceitac¸a˜o de que
todas as escolas de pensamento sa˜o igualmente corretas. Se existe um conjunto de fenoˆmenos (Σ)
que sa˜o explicados por um conjunto de escolas (marxista, neocla´ssica, po´s-keynesiana, neoricardiana,
etc.) essas teorias devem ser confrontadas e apenas uma delas deve emergir como verdadeira (ou,
caso duas ou mais teorias se mostrem igualmente corretas, ha´ outros fatores que podem ser utiliza-
dos na selec¸a˜o de uma ou outra, como o princ´ıpio da parcimoˆnia sugerido pela chamada navalha de
Ockham2).
Ja´ no modelo soft science ha´ uma clara prefereˆncia pelo conhecimento constru´ıdo a partir do
estudo dos cla´ssicos da disciplina, mesmo que isto envolva o sacrif´ıcio do conhecimento dos trabalhos
mais recentes. Esse modelo se sustenta a partir de dois princ´ıpios: (i) a ideia de reconciliac¸a˜o prob-
lema´tica das matrizes teo´ricas, e; (ii) que as obras cla´ssicas dos grandes pensadores da disciplina sa˜o
intraduz´ıveis em seu vigor original.
A defesa do princ´ıpio (ii) e´ bastante comum. Diz-se, por exemplo, que para ser keynesiano e´
indispensa´vel a leitura cuidadosa (e repetida) da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Ou
que e´ inconceb´ıvel a ideia de um marxista que na˜o tenha dedicado horas e horas ao estudo cuida-
doso d’ O Capital. E o motivo seriam o seguinte; todos os trabalhos que buscam “traduzir” - isto
e´, apresentar uma versa˜o simplificada e sucinta - acabam inevitavelmente apresentando uma visa˜o
2Princ´ıpio segundo o qual - grosso modo - havendo duas teorias corretas sobre um determinado fenoˆmeno, deve-se
preferir aquela que seja mais simples
5
superficial do pensamento daquele autor. Entenda-se, na˜o e´ que um trabalho do tipo A Guide to
Keynes de 1953 de autoria de Alvin Hansen seja inu´til ou totalmente equivocado3, mas sim que a
leitura de uma obra desse tipo na˜o permite que o estudante conhec¸a o pensamento de Keynes em
toda a sua profundidade e meandros, mas uma simples caricatura. Voceˆ pode comec¸ar sua jornada
lendo “A Guide to Keynes”, mas adiante voceˆ tera´ que ler Keynes!
Em relac¸a˜o ao ponto (i), relativo a` chamada reconciliac¸a˜o problema´tica das matrizes teo´ricas, o
que se quer dizer e´ o seguinte: as matrizes teo´ricas existentes na Economia (marxista, po´s-keynesiana,
neocla´ssica, etc.) na˜o podem ser comparadas de forma a determinar qual delas e´ a melhor. Isto por
dois motivos. Primeiro pelo fato de essas escolas serem viso˜es de mundo bastante distintas. Isto e´,
na˜o se trata simplesmente de uma controve´rsia sobre a melhor explicac¸a˜o sobre um fenoˆmeno (Θ)
isolado, mas sim uma discordaˆncia fundamental sobre o entendimento, ana´lise e compreensa˜o do todo
da disciplina. O segundo motivo diz respeito ao fato de a Economia ser uma cieˆncia social e de na˜o
haver nessas cieˆncias alguma espe´cie de experimento final a exemplo do que ocorre nas cieˆncias natu-
rais que seja capaz de encerrar “definitivamente”4 uma determinada poleˆmica. Por exemplo, imagine
dois grupos de F´ısicos, uns defendem que a velocidade da luz e´ constante e outros que ela varia a
depender do meio no qual ela se propaga. Essa controve´rsia pode ser “definitivamente” encerrada,
por exemplo, a partir da construc¸a˜o em laborato´rio de algum aparelho que simule e calcule o tempo
de propagac¸a˜o da luz nos diversos meios poss´ıveis. Apo´s a construc¸a˜o desse aparelho, da divulgac¸a˜o
dos resultados obtidos e da replicac¸a˜o do experimento pelo mais diverso conjunto de cientistas, todos
os cientistas aceitam a teoria correta e descartam a equivocada.
Voceˆ consegue imaginar um exerc´ıcio ana´logo para os grandes problemas da Economia? Por exem-
plo: Para ter um melhor desempenho econoˆmico, o Estado deve ser forte/grande ou fraco/pequeno?
Essa e´ uma controve´rsia pol´ıtica-econoˆmica das mais tradicionais. Se sou um liberal eu afirmo que
um Estado pequeno e´ a estrate´gia o´tima. E obtenho essa conclusa˜o a partir da mais imparcial ana´lise
dos “fatos”. E como forma de corroborar minha resposta posso dar inu´meros exemplos: os EUA teˆm
um Estado pequeno e sa˜o o pa´ıs mais rico do mundo, a Coreia do Norte tem um estado enorme e e´
pobre. Se sou um nacionalista (leia-se um defensor do Estado forte) afirmo que a estrate´gia o´tima e´
a de um Estado grande. Afirmo que os EUA so´ se tornaram ricos e poderosos grac¸as a intervenc¸a˜o
estrate´gica do governo, ou que o Brasil foi um dos pa´ıses que mais cresceu no po´s II Guerra exata-
mente por ter um Estado atuante, dirigente. E posso citar a Soma´lia - no qual o governo virtualmente
inexiste hoje - como um exemplo do caos e da impossibilidade de se ter um Estado omisso.
Qual das duas viso˜es esta´ correta? Como desenhar um “experimento final” para essa controve´rsia?
Os economistas na˜o podemos criar pa´ıses em laborato´rios. E ainda que pude´ssemos, quantos os anos
necessa´rios de uma ou outra pol´ıtica para que ela se mostre acertada ou equivocada, 10, 20, 50 ou
100 anos? E as dificuldades na˜o param por ai.
Ou seja, na Economia e nas demais disciplinas sociais na˜o existe nenhum experimento pro´ximo
aquelehipote´tico da F´ısica, especialmente quando se debate questo˜es mais amplas. Mas mesmo em
questo˜es bastante espec´ıficas e´ comum na˜o haver consenso. Por exemplo, desde a crise de 2008 ha´
um debate entre os economistas americanos sobre a melhor forma de tirar aquele pa´ıs da recessa˜o.
De um lado autores como Paul Krugman defendem mais gastos e maior endividamento do governo.
De outro, autores como Greg Mankiw defendem medidas de austeridade como a melhor forma de
recuperar a atividade. E essa controve´rsia esta´ longe de ser uma novidade na histo´ria da disciplina.
3E´ fato que para alguns keynesianos na˜o so´ esse trabalho e´ uma versa˜o grosseira, como ate´ mesmo completamente
equivocada do pensamento de Keynes. Mas esse ponto na˜o e´ relevante por ora.
4As aspas sa˜o necessa´rias pelo fato de na˜o haver nas cieˆncias naturais verdades absolutas e eternas que jamais
podera˜o ser questionadas.
6
E qual o motivo dessa poleˆmica perdurar? Uma raza˜o simples e´ a seguinte, quando se analisa as
variac¸o˜es nos gastos do governo e o desempenho futuro da Economia, ha´ um conjunto de varia´veis
que na˜o podem ser perfeitamente controladas - isto e´, mantidas fixas, de forma que toda variac¸a˜o
no PIB seja devido a` variac¸a˜o nos gastos do governo - de forma que por mais sofisticado que seja
o modelo matema´tico/econome´trico utilizado, o resultado pode variar fortemente devido ao uso de
uma ou outra hipo´tese.
Neste modelo, portanto, o conhecimento da Histo´ria do Pensamento Econoˆmico e´ muito mais do
que um passatempo intelectual, ele e´ parte fundamental na decisa˜o racional entre uma e outra escola
de pensamento, bem como para a potencial contribuic¸a˜o teo´rica a uma ou outra corrente.
Os dois modelos aqui discutidos sa˜o, obviamente, caricaturas - no sentido de exagero de algumas
caracter´ısticas da realidade - ainda que na˜o sejam representac¸o˜es falsas do mundo acadeˆmico. E
ambos sa˜o pass´ıveis de cr´ıticas detalhadas (como o pro´prio Arida o faz). Mas este ponto na˜o nos
interessa aqui. O que podemos afirmar e´ que o modelo de superac¸a˜o positiva estrita, no sentido
de emergeˆncia de uma verdade “inquestiona´vel” ou “totalmente” aceita entre os participantes na˜o
parece via´vel na Economia. E na˜o so´ pelo fato de haver escolas de pensamento muito desiguais. O
debate entre Mankiw e Krugman, por exemplo, ocorre entre dois expoentes do Novo Keynesianismo
dos anos 1980, dois praticantes da economia do tipo neocla´ssica. Mas isso na˜o significa, obviamente,
que o conhecimento na˜o avanc¸a no interior de cada uma dessas escolas. Isso na˜o significa que a partir
da visa˜o marxista, por exemplo, na˜o se tenha evolu´ıdo nenhum cent´ımetro desde o lanc¸amento do
Capital em 1867.
Mas afinal, qual dos dois modelos de Economia e´ o correto?
Quando temos esse tipo de du´vida a melhor alternativa e´ nos voltarmos para a Filosofia. Se
Keynes (1936) afirmava que todo homem de nego´cios que se veˆ como um pragma´tico e´ escravo de
algum economista defunto, todo cientista (social ou natural) e´ invariavelmente escravo de um filo´sofo
defunto.
A questa˜o de como se desenvolve o conhecimento cient´ıfico (e o que e´, afinal, “Cieˆncia”) e´ um
dos pontos fundamentais da Filosofia da Cieˆncia. Uma ana´lise exaustiva sobre os meandros dessa
disciplina esta´ ale´m do nosso escopo, mas alguns pontos e autores merecem ser discutidos.
Na Economia treˆs sa˜o os filo´sofos defuntos que influenciam o mais anti-filoso´fico dos autores.
Karl Popper e sua teoria racionalista do falsificacionismo, Thomas Kuhn e a hipo´tese de revoluc¸o˜es
cientificas e Imre Lakatos e sua metodolodia dos programas de pesquisa.
Vejamos.
2.1 O Falsificacionismo de Karl Popper
O primeiro problema fundamental da filosofia de Karl Popper (ver A Lo´gica da Pesquisa Cient´ıfica
de 1934) diz respeito ao chamado crite´rio de demarcac¸a˜o, isto e´, a busca por um crite´rio objetivo
que determine o cara´ter cient´ıfico de uma teoria. Em palavras mais simples, o que Popper busca e´ um
crite´rio objetivo a partir do qual seja poss´ıvel separar aquilo que e´ Cieˆncia daquilo que na˜o o e´ (ou
seja, que e´ Metaf´ısica). A exemplo do que ocorre com tantos outros complexos e insolu´veis problemas
filoso´ficos, aos olhos dos que desconhecem o assunto a resposta parece bastante simples e intuitiva,
e so´ o gosto por rococo´s e jogos intelectuais infrut´ıferos por parte dos filo´sofos explica sua persisteˆncia.
7
Figure 1: Karl Popper (1902-1994)
E´ prova´vel que a resposta de um homem pra´tico a este problema seja a seguinte: e´ cient´ıfico aquilo
que pode ser corroborado pelos dados/experimentos/observac¸o˜es. A teoria da evoluc¸a˜o e´ cient´ıfica
pois observac¸o˜es (paleontolo´gicas, de campo ou laboratoriais) mostram que ela e´ correta, ao passo
que a teoria criacionista na˜o e´ cient´ıfica pois na˜o ha´ dados que a confirme. Em resumo, e´ verdade
aquilo que e´ verifica´vel. Posso verificar que ha´ evoluc¸a˜o e selec¸a˜o natural, mas na˜o posso verificar
que Deus criou o ce´u e a terra.
Parece razoa´vel e suficiente, correto? Errado. Ainda que intuitiva essa visa˜o, conhecida como
verificacionismo, tem uma se´rie de problemas. E e´ exatamente a essa visa˜o que Popper ira´ se opor.
A princ´ıpio esse crite´rio parece ser bastante trivial. Pode-se utilizar de alguma variante do seguinte
argumento: e´ cient´ıfica aquela teoria que encontra corroborac¸a˜o nos dados emp´ıricos. Isto e´, ha´ um
fenoˆmeno que o cientista busca explicar, ele desenvolve uma teoria, e testa essa teoria contra os dados
da realidade, sendo corroborada, tem-se uma teoria cient´ıfica. Ocorre que esse argumento esta´ longe
de ser suficiente como crite´rio de demarcac¸a˜o. Karl Popper notou esse problema a partir de seu
crescente descontentamento com treˆs importantes teorias cient´ıficas que - segundo seus entusiastas -
eram repetidamente corroboradas pelos fatos: (i) a teoria marxista da histo´ria; (ii) a psicana´lise de
Freud, e; (iii) a psicologia individual de Alfred Adler. Em contraste a essas teorias Popper estava
impressionado com a teoria de Albert Einstein, amplamente especulativa, abstrata e afastada daquilo
que conhec´ıamos como ”realidade” dos fatos observa´veis. E o espanto com a teoria de Einstein cresceu
a partir do seguinte episo´dio narrado pelo autor:
A teoria gravitacional de Einstein havia conduzido a` conclusa˜o de que a luz deveria ser
atra´ıda pelos corpos pesados (como o Sol), precisamente do mesmo modo que os corpos
materiais. Em consequeˆncia, podia ser calculado que a luz de uma estrela fixa distante,
cuja aparente posic¸a˜o era pro´xima do Sol, alcanc¸aria a Terra vinda de uma direcc¸a˜o tal
[sic] tal, que essa estrela parecia estar levemente desviada do Sol. Ou, por outras palavras,
que as estrelas pro´ximas do Sol pareceriam ter-se afastado um pouco dele e umas em
relac¸a˜o a`s outras. Este e´ um feno´meno [sic] que na˜o pode, normalmente, ser observado,
na medida em que o brilho ofuscante do Sol torna as estrelas invis´ıveis durante o dia.
Mas durante um eclipse e´ poss´ıvel fotografa´-las. Se a mesma constelac¸a˜o for fotografada
de noite, podemos medir a distaˆncia nas duas fotografias e verificar o efeito previsto.
Essa previsa˜o da teoria de Einstein fora confirmada em 1919 pelo F´ısico Arthur Eddington.
O que espantou Popper foi o risco envolvido nesse tipo de previsa˜o. Trata-se de uma teoria que
faz uma previsa˜o muito espec´ıfica sobre um fenoˆmeno igualmente espec´ıfico e que pode ser testada
contra os dados. Esse mesmo processo na˜o era verificado - segundo Popper - nas treˆs teorias citadas
anteriormente. Vejamos a teoria marxista da histo´ria e sua tese do colapso do capitalismo nos pa´ıses
desenvolvidos apo´s uma crise econoˆmica. Ora, o que ocorreu na˜o foi o previsto por Marx, os lugares
8
nos quais houve revoluc¸a˜o foram exatamente nos pa´ıses atrasados. Da´ı surge a necessidade da teoriado “elo mais fraco”. Outra previsa˜o do marxismo; a classe opera´ria sofrera´ um processo constante
e secular de pauperizac¸a˜o. O que se observou inicialmente nos pa´ıses da vanguarda do capitalismo
como a Inglaterra foi exatamente o oposto, a renda me´dia de toda a classe opera´ria elevou-se signi-
ficativamente, e os trabalhadores tornaram-se “ricos” quando comparados aos seus colegas do in´ıcio
da revoluc¸a˜o industrial, e a desigualdade de renda na˜o atingiu n´ıveis catastro´ficos. Da´ı surge a neces-
sidade de se desenvolver a teoria do imperialismo, que explica o enriquecimento do proletariado nos
pa´ıses ricos ao custo da mise´ria crescente dos trabalhadores nos pa´ıses pobres. Quando a qualidade
de vida dos trabalhadores nos pa´ıses pobres comec¸a a se elevar, e´ preciso uma outra teoria para
explicar esse fenoˆmeno...
Ou seja, enquanto a teoria de Einstein fazia previso˜es bastante espec´ıficas e que facilmente pode-
riam ser declaradas falsas no caso de na˜o serem corroboradas pelos dados, a teoria marxista da histo´ria
fazia previso˜es de cara´ter extremamente amplo e que eram quase imposs´ıveis de serem declaradas
falsas, ja´ que na˜o haveria nenhum experimento que pudesse testa´-las contra a realidade.
Pense no caso de um moderno profeta do apocalipse com o seu cartaz “O fim esta´ pro´ximo”.
A cada novo nascer do sol algue´m pode questiona´-lo sobre sua teoria, provada falsa mais uma vez,
mas o profeta pode sempre afirmar que o fato de o sol ter nascido hoje na˜o anula a correc¸a˜o de sua
hipo´tese de que o fim esta´ pro´ximo e que em determinado instante do futuro o sol na˜o mais nascera´.
Retomando. A partir destes pontos Popper conclui basicamente o seguinte: (i) E´ fa´cil obter
confirmac¸a˜o ou verificac¸o˜es para quase todas as teorias; (ii) As confirmac¸o˜es so devera˜o ser tidas em
conta se forem o resultado de previso˜es arriscadas (no sentido de terem ex ante uma baixa proba-
bilidade de estarem corretas); (iii) Toda ”boa” teoria cient´ıfica e´ uma interdic¸a˜o, isto e´, ela pro´ıbe
que determinada coisa acontec¸a. Quanto mais a teoria proibir, melhor;(iv) Uma teoria que na˜o
seja refuta´vel por nenhum acontecimento conceb´ıvel sera´ uma teoria na˜o-cient´ıfica, e; (v) todo teste
genu´ıno de uma teoria se constitui em uma tentativa de falsificar/refutar essa teoria.
Sobre o ponto (iii) o que Popper quer dizer e´ que existem graus de falsiabilidade nas teorias
cient´ıficas, e - grosso modo - quanto mais restrita/especifica sua previsa˜o, maior seu grau de falsi-
abiidade. Um exemplo. A afirmac¸a˜o “amanha˜ ira´ chover no Distrito Federal” e´ falsea´vel, pode-se
observar o ce´u do DF amanha˜ e checar se choveu ou na˜o. Mas uma afirmac¸a˜o do tipo “amanha˜, as
14:32, chovera´ na Asa Norte do Plano Piloto” e´ ainda mais ousada, mais espec´ıfica e, assim, tem
um maior grau de refutabilidade que a anterior. Esse racioc´ınio pode ser facilmente estendido a`s
concluso˜es de uma teoria cient´ıfica.
A partir dessa hipo´tese de falsificacionismo das teorias cient´ıficas, Karl Popper conclui que tudo
aquilo que for realmente Cieˆncia, deve se caracterizar pelo progresso cont´ınuo. Isto e´, a Cieˆncia
evolui a partir do eterno movimento de refutac¸a˜o de teorias e sua substituic¸a˜o por outras mel-
hores/superiores. Essa visa˜o e´ compat´ıvel com o modelo hard science da Economia, por exemplo.
Nesse processo de conjecturas e refutac¸o˜es, ha´ a cada instante do tempo uma fronteira do conheci-
mento cient´ıfico que pode ser apreendida nos Manuais, sem que se conhec¸a detalhadamente o processo
de emergeˆncia das teorias ali apresentadas.
2.2 As Revoluc¸o˜es Cient´ıficas de Thomas Kuhn
Thomas Kuhn em seu livro de 1962 A Estrutura das Revoluc¸o˜es Cient´ıficas - um dos mais famosos
e citados trabalhos das Humanidades - apresentam uma visa˜o distinta a de Karl Popper.
9
Figure 2: Thomas Kuhn (1922-1996)
Thomas Kuhn acredita que a Cieˆncia e´ formada a partir de dois blocos: os paradigmas e a
cieˆncia normal. Por paradigmas Kuhn refere-se aqueles trabalhos que servem por algum tempo para
definir implicitamente os problemas e me´todos leg´ıtimos para as gerac¸o˜es posteriores de praticantes
da Cieˆncia. Esses paradigmas se caracterizam a partir dos seguintes pontos: (i) sa˜o realizac¸o˜es
suficientemente sem precedentes e por isso capaz de atrair um grupo duradouro de partida´rios, e;
(ii) essas contribuic¸o˜es sa˜o suficientemente abertas de forma a deixar toda espe´cie de problemas para
serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes. Ou seja, os paradigmas sa˜o aqueles trabalhos
cient´ıficos de grande impacto, capazes de atrair um grupo duradouro de entusiastas, e que define em
linhas gerais os problemas, o me´todo e os instrumentos a serem utilizados nas investigac¸o˜es cient´ıficas
posteriores.
Em Economia um caso claro de surgimento de um paradigma se da´ atrave´s da publicac¸a˜o da
Teoria Geral de Keynes em 1936. Na˜o e´ que Keynes tenha sido o primeiro a tratar do problema
dos ciclos econoˆmicos, mas sim que no per´ıodo anterior ao seu trabalho havia um sem nu´mero de
explicac¸o˜es rivais sobre a causa dos ciclos, e cada uma utilizava um determinado linguajar, diferentes
me´todos, utilizavam-se dos mais distintos instrumentos. De forma que havia a ”liberdade” para que
cada autor que quisesse pudesse construir uma ana´lise dos ciclos econoˆmicos a partir dos conceitos
mais triviais ate´ os mais complexos. Com o surgimento do trabalho de Keynes - e tambe´m por causa
de outros tantos fatores a serem discutidos em momento oportuno - cessa o caos. Keynes atra´ıra um
grupo duradouro de entusiastas, boa parte das ”escolas” existentes comec¸a a definhar e desaparece
em poucos anos, e se define uma linguagem, um me´todo e um escopo claro para a disciplina que
chamamos de Macroeconomia.
Um ponto interessante levantado por Kuhn e´ que apo´s a emergeˆncia de um paradigma muda a
forma como os cientistas se comunicam entre si e com o pu´blico. Na fase pre´-paradigma os autores
preferem escrevem livros e tratados de grande foˆlego, tentando apresentar uma explicac¸a˜o completa de
todos os aspectos da disciplina. Quando surge um paradigma, os cientistas passam a se comunicar
entre si a partir de artigos breves, tratando de temas bastante espec´ıficos e escritos partindo do
princ´ıpio que os demais conhecem aquele paradigma.
Esses trabalhos espec´ıficos sa˜o a materializac¸a˜o do que Kuhn chama de cieˆncia normal. Em
sua definic¸a˜o esse termo diz respeito a`s pesquisas firmemente baseadas em uma ou mais realizac¸o˜es
cient´ıficas do passado, as quais sa˜o aceitar como fornecedoras dos fundamentos para a pesquisa
posterior.
Ja´ por revoluc¸o˜es cient´ıficas o autor entende aqueles processos nos quais um paradigma e´ sub-
stitu´ıdo por um outro. O exemplo cla´ssico e´ o da F´ısica, quando da substituic¸a˜o do sistema de
Newton pelo de Einstein.
Thomas Kuhn apresenta uma visa˜o distinta do processo de mudanc¸a nas Cieˆncias. Sa˜o dele, por
exemplo, os conceitos de “paradigma” e “revoluc¸a˜o”. O autor questiona a visa˜o de ocorreˆncia de
acu´mulo linear do conhecimento cient´ıfico.
10
Uma definic¸a˜o importante no pensamento de Kuhn e´ o de cieˆncia normal, que diz respeito a`
atividade rotineira de validac¸a˜o, refutac¸a˜o, s´ıntese e sofisticac¸a˜o de pontos da teoria estabelecida e
percebida pelos cientistas como o modo correto de de se abordar determinado ramo do saber. E´
a cieˆncia apresentada nos manuais, os quais expo˜em o corpo da teoria aceita, ilustram muitas (ou
todas) as suas aplicac¸o˜es bem sucedidas (KUHN, 2009[1962], P. 29). Essas maneiras vistas como
corretas de se abordar determinado ramo do saber e´ o que o autor define como paradigma:
A F´ısica de Aristo´teles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e O´ptica de Newton, a
Eletricidade de Franklin, a Qu´ımica de Lavoisier e a Geologia de Lyell - esses e muitos
outros trabalhos serviram, por algum tempo,para definir implicitamente os problemas e
me´todos leg´ıtimos de um campo de pesquisa para gerac¸o˜es posteriores de praticantes da
cieˆncia. Puderam fazer isso porque partilhavam de duas caracter´ısticas essenciais. Suas
realizac¸o˜es foram suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de
partida´rios, afastando-os de outras formas cient´ıficas dissimilares. Simultaneamente, suas
realizac¸o˜es foram suficientemente abertas para deixar toda a espe´cie de problemas para
serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da cieˆncia. Daqui por diante deverei
referir-me a`s realizac¸o˜es que partilham essas duas caracter´ısticas como “paradigmas”...
Homens cuja pesquisa esta´ baseada em paradigmas compartilhados esta˜o comprometidos
com as mesmas regras e padro˜es para a pra´tica cient´ıfica. Esse comprometimento e o
consenso aparente que produz sa˜o pre´-requisitos para a cieˆncia normal, isto e´, para a
geˆneses e a continuac¸a˜o de uma tradic¸a˜o de pesquisa determinada. (KUHN, 2009 [1962],
p.30)
E o que sa˜o as “revoluc¸o˜es cient´ıficas”? Sa˜o aqueles eventos associados ao surgimento de uma
nova obra paradigma´tica, que altera os pilares fundamentais de uma determinada cieˆncia. Relegando
o paradigma superado ao esquecimento. E e´ atrave´s dessas revoluc¸o˜es que ocorre o desenvolvimento
das cieˆncias maduras. Quando da inexisteˆncia de um paradigma, os autores de um determinado
ramo do saber sentem-se livres (ou obrigados) a construir aquele ramo desde seus fundamentos mais
prosaicos, ate´ suas concluso˜es mais ousadas.
Quando um cientista pode considerar um paradigma como certo, na˜o tem mais necessi-
dade... de tentar construir seu campo de estudo comec¸ando pelos primeiros princ´ıpios e
justificando o uso de cada conceito introduzido. Isso pode ser deixado para os autores
de manuais. Mas, dado o manual, o cientista criador pode comec¸ar sua pesquisa onde o
manual a interrompe e desse modo concentrar-se exclusivamente nos aspectos mais sutis
e esote´ricos dos fenoˆmenos naturais que preocupam o grupo. Na medida em que fizer
isso, seus relato´rios de pesquisa comec¸ara˜o a mudar... Suas pesquisas ja´ na˜o sera˜o habit-
ualmente incorporadas a livros como Experieˆncias... sobre a Eletricidade de Franklin, ou
a Origem das Espe´cies de Darwin, que eram dirigidos a todos os poss´ıveis interessados
no objeto de estudo do campo examinado. Em vez disso, aparecera˜o sob a forma de ar-
tigos breves, dirigidos apenas aos colegas de profissa˜o, homens que certamente conhecem
o paradigma partilhado e que demonstram ser os u´nicos capazes de ler os escritos a eles
enderec¸ados. (KUHN, 2009[1962], p. 40).
Os paradigmas se estabelecem quando determinada obra e´ percebida como (pelo menos poten-
cialmente) superior aos esquemas rivais na resoluc¸a˜o de problemas e explicac¸a˜o de um maior nu´mero
de fenoˆmenos. Segundo Kuhn as revoluc¸o˜es (isto e´, as mudanc¸as de paradigmas) ocorrem quando
do acu´mulo de anomalias, que sa˜o, descobertas, eventos e resultados observados incompat´ıveis ou
inexplica´veis pelo paradigma ate´ enta˜o utilizado. A` medida que ocorre esse acu´mulo, diz-se que o
paradigma entra em um per´ıodo de crise. Mas Kuhn rejeita a ideia falsificacionista de Popper.
Nenhum processo descoberto ate´ agora pelo estudo histo´rico do desenvolvimento cient´ıfico
assemelha-se ao esterio´tipo da falsificac¸a˜o por meio de comparac¸a˜o direta com a natureza.
11
Essa observac¸a˜o na˜o significa que os cientistas na˜o rejeitam teorias cient´ıficas ou que a
experieˆncia e a experimentac¸a˜o na˜o sejam essenciais ao processo de rejeic¸a˜o, mas que... o
ju´ızo que leva os cientistas a rejeitarem uma teoria previamente aceita baseia-se sempre
em algo mais do que essa comparac¸a˜o da teoria com o mundo. Decidir rejeitar um
paradigma e´ sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o ju´ızo que conduz a essa
decisa˜o envolve a comparac¸a˜o de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua
comparac¸a˜o mu´tua...
2.3 Programas de Pesquisa de Imre Lakatos
Figure 3: Imre Lakatos (1922-1974)
Imre Lakatos em sua obra Falsificac¸a˜o e a Metodologia dos Programas de Pesquisa coloca-se em
uma espe´cie de meio termo entre o positivismo de Karl Popper e o aparente pluralismo de Thomas
Kuhn. A ideia aqui e´ que os programas de pesquisa sa˜o basicamente formados por duas estruturas.
De um lado tem-se um conjunto de regras que nos indicam os “caminhos a serem evitados” chamado
de heur´ıstica negativa. Aqui se tem o nu´cleo duro (hardcore) do programa de pesquisa que e´ aceito por
seus participantes como axiomaticamente correto e incontesta´vel. Ale´m desse nu´cleo ha´ um “cintura˜o
protetor” de hipo´teses auxiliares que sa˜o rotineiramente ajustadas, alteradas e substitu´ıdas de forma
a fazer com que a teoria em questa˜o de conta dos fatos observados. O processo de modificac¸a˜o dessas
hipo´teses auxiliares pode obedecer a dois movimentos. Um e´ progressivo, de forma que a cada nova
rodada de investigac¸a˜o o programa e´ capaz de lidar com mais fatos - inclusive aqueles que antes eram
anomalias - sugere outros tantos novos problemas. Outra forma e´ a chamada degenerativa, de forma
que a medida que as anomalias se acumulam um novo conjunto de hipo´teses aad hoc sa˜o adicionadas
na tentativa de fazer com que o programa de pesquisa seja capaz de explicar os fenoˆmenos observados.
Sob esta interpretac¸a˜o no´s podemos entender as correntes do pensamento econoˆmico como grandes
agendas de pesquisa, cada uma com seu nu´cleo de regras inquestiona´veis e uma se´rie de hipo´teses aux-
iliares. No caso de haver alguma discrepaˆncia entre a realidade observada e o programa de pesquisa,
isso na˜o implica na refutac¸a˜o dessa agenda, de forma que ela deve ser abandonada. Pelo contra´rio,
ao surgir uma anomalia os pesquisadores buscam alterar/adicionar o cintura˜o protetor de forma a
conseguir explica´-la a partir do seu aparato anal´ıtico tradicional.
Isso explica, por exemplo, os motivos de a agenda de pesquisa marxista na˜o ter sido abandonada
apesar do colapso do sistema sovie´tico ou da sobreviveˆncia do modo de produc¸a˜o capitalista. Como
tambe´m explica os motivos de os macroeconomistas na˜o terem abandonado seus modelos por conta
da crise financeira de 2008, mas sim buscarem novas hipo´teses e modelos ainda mais sofisticados
dentro daquela tradic¸a˜o como forma de explicar essa anomalia.
12
3 To´picos em Epistemologia
O diciona´rio de Filosofia da Universidade de Stanford5 define epistemologia nos seguintes termos:
“Definida em termos restritos, epistemologia e´ o estudo do conhecimento e das crenc¸as
justificadas (justified belief ). Como estudo do conhecimento a epistemologia esta´ in-
teressada nas seguintes questo˜es: Quais sa˜o as condic¸o˜es necessa´rias e suficientes para
o conhecimento? Quais suas fontes? Qual sua estrutura e qual seu limite? (http:
//plato.stanford.edu/entries/epistemology)
Aqui nos interessaremos pela segunda questa˜o, isto e´, quais sa˜o as fontes do conhecimento? A
partir de que me´todo, modo ou maneira eu posso obter informac¸o˜es sobre um determinado fenoˆmeno?
Em Economia ha´ duas viso˜es fundamentais sobre o problema. De um lado temos os racionalis-
tas, de outro os empiristas.
Os racionalistas, seguindo ainda o diciona´rio de Filosofia de Stanford, adotam a seguinte tese:
(1) Tese sobre intuic¸a˜o/deduc¸a˜o segundo a qual “algumas proposic¸o˜es em uma suba´rea par-
ticular do conhecimento sa˜o conhecidas apenas pela intuic¸a˜o, enquanto outras sa˜o conhecidas por
serem deduzidas de proposic¸o˜es derivadas da intuic¸a˜o”.
Ou seja, para os racionalistas e´ poss´ıvel obter conhecimento a partir de intuic¸o˜es sobre um deter-
minado fenoˆmeno, e essas intuic¸o˜es na˜o precisam ser verificadas a partir dos fatos concretos. E mais,
a partir dessas intuic¸o˜es eu posso derivar concluso˜es que sera˜o necessariamente verdadeiras dadas as
premissasutilizadas.
Essa visa˜o e´ amplamente aceita entre os economistas. Por exemplo, em Introduc¸a˜o a` Economia
somos apresentados ao modelo de concorreˆncia perfeita da microeconomia. E o que e´ concorreˆncia
perfeita? Essa categoria e´ sustentada em um par de hipo´teses, por exemplo: ha´ livre entrada e
sa´ıda do setor, os produtos sa˜o homogeˆneos e nenhum produtor ou consumidor isolado e´ capaz de
determinar o prec¸o do produto. Existe algum mercado que opera sob essas regras? Os professores
normalmente citam o exemplo da agricultura como uma boa aproximac¸a˜o. Mas essa aproximac¸a˜o
esta´ muito longe do desenho hipote´tico de concorreˆncia perfeita, simplesmente porque na˜o existe
nenhum mercado real que opere sob todas aquelas caracter´ısticas. A hipo´tese de concorreˆncia per-
feita, portanto, na˜o pode ser observada, verificada ou testada a partir da ana´lise da realidade.
E se aceito a hipo´tese de concorreˆncia perfeita - e dada outros pontos que na˜o nos interessam aqui
- eu concluo que o prec¸o dessa mercadoria homogeˆnea sera´ igual ao custo marginal de produzi-la.
Ou seja, deduzi um conclusa˜o que e´ necessariamente verdadeira dada minha premissa. Novamente,
essa condic¸a˜o de (P = CMg) na˜o e´ derivada da realidade, dos fatos, da histo´ria, mas sim deduzida
a partir de uma premissa derivada da intuic¸a˜o dos pesquisadores.
Aqui surge a questa˜o-chave: sera´ que e´ poss´ıvel obter conhecimento a partir daquela premissa/intuic¸a˜o
e daquelas deduzidas a partir dela? No nosso exemplo da Microeconomia, e´ poss´ıvel obter algum
conhecimento sobre o funcionamento da economia a partir da hipo´tese de concorreˆncia perfeita e
daquelas deduzidas dela?
5Esse diciona´rio pode ser consultado no seguinte enderec¸o: http://plato.stanford.edu/. Trata-se de uma fonte
de pesquisa de primeira qualidade, principalmente para obtermos o conhecimento introduto´rio sobre temas da Filosofia
13
Essa tese esta´ associada a outra, chamada “Tese da superioridade da raza˜o, segundo a qual o
conhecimento que obtemos em uma determinada do conhecimento atrave´s da intuic¸a˜o e da deduc¸a˜o
sa˜o superiores aquele conhecimento obtido atrave´s da experieˆncia.
Isso parece contra-intuitivo mas e´ amplamente aceito entre os economistas. Por exemplo, os
economistas usualmente supo˜e que os agentes sa˜o racionais. Na Microeconomia o conceito de racional-
idade esta´ associado, grosso modo, a dois pontos: (i) o consumidor e´ capaz de comparar (em termos
de utilidade) todas as cestas de consumo, e; (ii) as escolhas do consumidor sa˜o consistentes, de tal
forma que se prefiro a cesta (A) em relac¸a˜o a` cesta (B), e que prefiro a cesta (B) a` cesta (C), logo, o
consumidor prefere (A) a (C). Em termos mais concretos, se eu prefiro 1kg de arroz a 1kg de feija˜o,
e prefiro 1kg de feija˜o a 1 kg de gra˜o-de-bico, logo, por consisteˆncia das minhas escolhas, eu prefiro
1kg de arroz a 1kg de gra˜o de bico. Parece uma hipo´tese razoa´vel, na˜o? Parece, mas ela nem sempre
e´ observada na realidade, na˜o ha´ nada no comportamento humano observado que me garanta que
as escolhas sera˜o sempre assim consistentes, especialmente quando a cesta de consumo diz respeito
a va´rias mercadorias. Mas se eu for a`s ruas, e fizer esse teste com as pessoas de carne e osso e veri-
ficar que na˜o vale a hipo´tese de racionalidade nestes termos, os microeconomistas ira˜o abandonar sua
hipo´tese de racionalidade? Certamente na˜o. Na Macroeconomia o conceito de racionalidade em geral
diz respeito a chamada hipo´tese das expectativas racionais (HER), elaboradas por John Muth nos
anos 1960 e popularizadas por Robert Lucas nos anos 1970. Essa hipo´tese afirma, de modo simplifi-
cado, que os agentes econoˆmicos na˜o cometem erros sistema´ticos nas suas previso˜es, de tal forma que
na me´dia eles acertam o valor da varia´vel esperada. Em termos pra´ticos, a partir da HER eu afirmo
que os agentes na˜o cometem erros sistema´ticos nas suas previso˜es de inflac¸a˜o, o que significa que eles
na˜o subestimam o valor da varia´vel ou superestimam o valor da varia´vel sistematicamente, meˆs apo´s
meˆs. E se eu por acaso descobrir atrave´s da experieˆncia pra´tica que o que ocorre na realidade na˜o
e´ exatamente isso, que os agentes, por exemplo, sempre acham que a inflac¸a˜o tera´ um valor inferior
aquele que sera´ observado, isso fara´ com que os macroeconomistas abandonem a HER? Mais uma
vez, na˜o.
E os exemplos que estamos dando aqui na˜o sa˜o heresia ou invenc¸o˜es. Os microeconomistas sabem
que na pra´tica na˜o se pode garantir que as escolhas dos agentes sera˜o sempre consistentes. Assim
como os macroeconomistas sabem que a HER (ao menos em sua forma mais simples) na˜o e´ obser-
vada nas previso˜es dos agentes econoˆmicos. E se eles sabem, qual o motivo de na˜o abandoarem
essas hipo´teses, quais os motivos de na˜o usarem outra mais “reais”? Ou pior, isso significa que os
economistas vivem no mundo da fantasia, trabalhando com modelos e hipo´teses que esta˜o em de-
sacordo com a realidade observada? Para alguns a resposta e´sim, para outros - a maioria - a resposta
e´ na˜o.
Ja´ na abordagem Empirista a tese fundamental e´ exatamente oposta a`quela do racionalismo:
Tese Empirista. No´s na˜o temos outra fonte de conhecimento sena˜o atrave´s da experieˆncia.
Ou seja, em vez de termos um conhecimento a piori o que temos e´ simplesmente o conhecimento
a posteriori, obtido atrave´s e apo´s a realizac¸a˜o de “experieˆncias” (em sentido amplo). Os adeptos
desta abordagem, obviamente, rejeitam a tese da superioridade da superioridade da raza˜o.
Na economia uma forma radical de empirismo e´ o historicismo. Para os autores adeptos dessa
abordagem e´ somente atrave´s do escrut´ınio da histo´ria econoˆmica que se pode chegar ao verdadeiro
conhecimento sobre a Economia. Ou seja, como os economistas na˜o podem realizar experimentos em
laborato´rio, e´ a histo´ria que desempenha esse papel. Para os adeptos do historicismo...
14
3.1 A Batalha dos Me´todos: Methodenstreit
No final do se´culo XIX ocorreu entre autores de l´ıngua alema˜ o mais famoso debate metodolo´gico da
Economia. De um lado havia os seguidores da Escola Histo´rica Alema˜ (EHA daqui em diante), lider-
ada por Wilhem Roscher e Gustav Schmoller. De outro, os austr´ıacos liderados por Carl Menger. A
chamada batalha dos me´todos (Methodenstreit em alema˜o) comec¸a em 1883, quando Menger publica
um trabalho intitulado Untersuchungen uber die Methode der Socialwissenschaften und der Politis-
chen Oekonomie insbesondere (Investigac¸a˜o sobre o me´todo das Cieˆncias Sociais) no qual apresenta
algumas cr´ıticas a` abordagem historicista dos alema˜es, o que gerou a reac¸a˜o de Schmoller. A re´plica
de Menger veio com o texto de 1884 The Errors of Historicism in German Economics.
Essa batalha, ainda que o ı´mpeto inicial do debate tenha se reduzido, arrastou-se por de´cadas (e
podemos afirmar que existe ainda hoje, de forma residual), sendo imposs´ıvel (ou inu´til) determinar
um ponto final. Ao longo dos anos ficou clara a derrota da EHA, o que na˜o significou exatamente
um vito´ria do me´todo austr´ıaco, como veremos.
Os seguidores da EHA representam a corrente realista-historicista-indutiva 6 da ana´lise econoˆmica,
enquanto os Austr´ıacos a na˜o-realista-teo´rica-abstrata-dedutiva 7. Desse debate na˜o emergiu um
consenso aceito por ambos os lados, pelo contra´rio, cada lado recolheu-se sem se importar com as
cr´ıticas. Mas do ponto de vista do amainstream da disciplina, a visa˜o metodolo´gica de Menger foi a
que se perpetuou.
Segundo Bostaph (1976) as questo˜es discutidas entre Menger e Schmoller dizem respeito aos
seguintes pontos: (1) o crite´rio para designar histo´ria econoˆmica, teoria econoˆmica, pol´ıtica econoˆmica,
financ¸as pu´blicas e estat´ıstica como “ramos” da Economia; (2) o escopo e os objetivos de cada um
desses “ramos”; (3) a utilidade
4 Sobre os Problemas relativosao Me´todo da Economia
Normalmente aprendemos que foi Adam Smith em 1776 quem deu in´ıcio a` Economia, quando da
publicac¸a˜o de sua obra A Riqueza das Nac¸o˜es. Isso significa que antes dele nenhum autor havia
abordado temas econoˆmicos? E´ certo que na˜o. O estudo do que conhecemos hoje por Economia
- uma disciplina autoˆnoma, distinta das demais a´reas das Humanidades (ainda que com pontos de
intersecc¸a˜o) - e´ ta˜o antigo quanto o pensamento humano. Os filo´sofos gregos - como de costume -
ja´ abordavam temas econoˆmicos. O que ocorre e´ que como tantas outras disciplinas, a Economia
lentamente vai se desprendendo da Filosofia Moral, de forma a se tornar um objeto autoˆnomo. E
para a maioria dos autores, e´ com Smith que esse processo se encerra.
O que queremos entender nesta sec¸a˜o sa˜o os seguintes problemas: o que e´ Economia? E qual a
forma apropriada de apreender o funcionamento dos fenoˆmenos econoˆmicos? Essas questo˜es devem
nos responder o que os economistas estudam, e como o economistas abordam essas questo˜es.
4.1 A Metodologia de John Stuart Mill (1844)
6O indutivismo cla´ssico propo˜e, simplificadamente, que as teorias devem ser baseadas nas observac¸o˜es emp´ıricas, a
partir das quais se derivam afirmac¸o˜es que podem ser provads corretas
7a lo´gica dedutiva e´ aquele processo de racioc´ınio que parte de premissas generalistas que garantem a validade das
proposic¸o˜es
15
Figure 4: John Stuart Mill (1806-1873)
Stuart Mill.jpg
No per´ıodo cla´ssico da Economia - de Smith ate´ a revoluc¸a˜o marginalista - a nossa disciplina era
chamada Political Economy e sua definic¸a˜o e objeto de estudo eram diferentes dos de hoje.
Na introduc¸a˜o ao livro IV da Riqueza das Nac¸o˜es Adam Smith define a Economia nos seguintes
termos:
A economia pol´ıtica, considerada como ramo da cieˆncia do estadista ou legislador, propo˜e
dois objetivos distintos: primeiro, proporcionar uma renda abundante ou subsisteˆncia
para o povo, ou, mais propriamente, permitir-lhe proporcionar tal renda ou subsisteˆncia
para si mesmos; e segundo, suprir o Estado ou a comunidade com uma renda suficiente
para os servic¸os pu´blicos. Propo˜e-se a enriquecer o povo e o soberano.
David Ricardo no prefa´cio dos seus Princ´ıpios de Economia Pol´ıtica de 1817 nos diz:
O produto da terra - tudo aquilo que se obte´m de sua superf´ıcie pela aplicac¸a˜o combinada
de trabalho, maquinaria e capital - se divide entre treˆs classes da sociedade, a saber: o
proprieta´rio da terra, o dono do capital necessa´rio para seu cultivo e os trabalhadores
cujos esforc¸os sa˜o empregados no seu cultivo.
Em diferentes esta´gios da sociedade... as proporc¸o˜es do produto total da terra destinadas
a cada uma dessas classes, sob o nome de renda, lucro e sala´rio, sera˜o essencialmente
diferentes...
Determinar as leis que regulam essa distribuic¸a˜o e´ a principal questa˜o da
Economia Pol´ıtica...
Para Smith a Economia Pol´ıtica e´ uma mate´ria eminentemente pra´tica, que deve servir ao obje-
tivo de tornar o povo e o soberano (por analogia o Estado) ricos. Para Ricardo a Economia Pol´ıtica
e´ um ramo do saber preocupado em entender (e na˜o em alterar) como o produto nacional e´ dividido
entre as classes econoˆmicas em diferentes instantes do tempo e do espac¸o.
Essas definic¸o˜es na˜o eram satisfato´rias ou claras o suficiente. Por isso outro grande economista
cla´ssico, John Stuart Mill, escreve em 1844 um texto intitulado Da Definic¸a˜o de Economia Pol´ıtica
e do Me´todo de Investigac¸a˜o Pro´prio a Ela, a qual poderemos considerar o primeiro grande ensaio
em metodologia econoˆmica.
16
Mill comec¸a por nos apresentar uma espe´cie de genealogia das Cieˆncias, explicando em termos
infinitamente superiores aquilo que abordamos no primeiro para´grafo dessa sec¸a˜o:
A definic¸a˜o de uma cieˆncia quase invariavelmente na˜o precedeu a criac¸a˜o da pro´pria
cieˆncia, mas a seguiu. Como o muro de uma cidade, que comumente foi constru´ıdo
na˜o para ser um recepta´culo para aqueles edif´ıcios que poderiam mais tarde levantar-se
mas para circunscrever um agregado ja´ existente. A humanidade na˜o mediu o terreno
para o cultivo intelectual antes de comec¸ar a planta´-lo; na˜o dividiu o campo de inves-
tigac¸a˜o humana primeiro em compartimentos regulares, para em seguida comec¸ar a colher
verdades que foram sucessivamente acumuladas aderiam e tornavam-se aglomeradas de
acordo com suas afinidades individuais. Eles se tornam associados na mente, de acordo
com suas semelhanc¸as gerais e o´bvias: e os agregados assim formados, tendo que ser que
ser frequentemente indicados como agregados, acabam por ser denotados por um nome
comum. qualquer corpo de verdades que adquire assim uma denominac¸a˜o coletiva foi
chamado uma cieˆncia
Esse fato permite que Adam Smith tenha sido um grande economista, mesmo sem ter sido capaz
de definir o assunto que tratava de forma apropriada. E sera´ exatamente pela definic¸a˜o de Smith
que Mill ira´ comec¸ar suas criticas.
Segundo Mill, a definic¸a˜o de Smith confunde dois conceitos pro´ximos, mas distintos: o de “arte”
e o de “cieˆncia”. Pois “A cieˆncia e´ uma colec¸a˜o de verdades; a arte, um corpo de regras ou direc¸o˜es
para a conduta. A linguagem da arte e´, fac¸a isto; evite aquilo. A cieˆncia toma cognic¸a˜o de um
fenoˆmeno, e se esforc¸a em descobrir sua lei ; a arte propo˜e para si um fim e procura meios para
efetua´-lo” (MILL, 1974 [1844], p. 299). Sendo uma cieˆncia a Economia Pol´ıtica na˜o se confunde
com a “arte”, ainda que essas regras de ac¸a˜o o´tima possam ser derivadas dos resultados obtidos
pela cieˆncia. “Portanto, as regras para fazer uma nac¸a˜o aumentar em riqueza na˜o constituem uma
cieˆncia, mas sa˜o os resultados da cieˆncia. Por exemplo, pelos resultados de Smith sabemos que a
liberdade de alocac¸a˜o dos fatores produtivos, a liberdade comercial, o aumento da produtividade do
trabalho, as invenc¸o˜es, a poupanc¸a, o respeito a` propriedade,entre outros, sa˜o fatores fundamentais
para a riqueza das nac¸o˜es.
Em relac¸a˜o a definic¸a˜o de Ricardo - a mais comumente aceita entre os especialistas, segundo Mill
- tem que a vantagem de na˜o tratar a economia pol´ıtica como arte, mas sim como cieˆncia, “que e´
versada nas leis da natureza, na˜o com ma´xima de conduta, e nos ensina como as coisas acontecem
em si mesmas, na˜o de que maneira e´ u´til para no´s forma´-las de modo a atingir algum fim particular
(MILL, 1974 [1844], p. 299-300).
Para Mill (1844) a Economia Pol´ıtica e´ “A cieˆncia das leis que regulam a produc¸a˜o, distribuic¸a˜o
e consumo da riqueza”, sendo riqueza definida como “todos os objetos u´teis ou convenientes a` hu-
manidade, com excec¸a˜o daqueles que podem ser obtidos em quantidade indefinida sem trabalho...”.
Ainda assim a definic¸a˜o na˜o esta´ clara o bastante. O que podemos dizer, por exemplo, das leis
que regulam a produc¸a˜o. Mill cita os exemplos do trigo, do gado, dos mine´rios e da manufaturas. Sa˜o
todos objetos u´teis a` humanidade e requerem trabalho para serem obtidos. Mas as leis que regulam
a produc¸a˜o desses bens, ale´m das questo˜es econoˆmicas, envolvem as leis da biologia, da agricultura,
da f´ısica, da geologia, etc. Desta forma e´ preciso ser mais claro quando nos referirmos a`s leis da
produc¸a˜o. Tampouco se pode afirmar que a Economia Pol´ıtica trata das leis da produc¸a˜o comuns
a todas as mercadorias, pois, novamente, as leis da F´ısica/Qu´ımica esta˜o igualmente presentes na
produc¸a˜o de todos os bens u´teis e inu´teis, existentes ou imagina´rios.
17
Segundo Mill os conhecimentos humanos se dividem em dois blocos: de um lado ha´ a cieˆncia
f´ısicas (ou naturais) e de outro a cieˆncia moral ou psicolo´gica. Em todos os fenoˆmenos haveria a
operac¸a˜o conjunta das leis da mate´ria e das leis da mente humana. “Assim a produc¸a˜o de trigo pelo
trabalho humano e´ o resultado de uma lei da mente e de muitas leisda mate´ria. As leis da mate´ria
sa˜o aquelas propriedades do solo e da vida vegetal que causam a germinac¸a˜o da semente na terra,
e aquelas propriedades do corpo humano que fazem a alimentac¸a˜o necessa´ria ao seu sustento. A lei
da mente e´ que o homem deseja apoderar-se da subsisteˆncia e consequentemente determina os meios
necessa´rios para obteˆ-la”.
Logo, “As cieˆncias f´ısicas sa˜o aquelas que tratam das leis da mate´ria e de todos os fenoˆmenos com-
plexos enquanto dependentes das leis da mate´ria”. Segundo Mill va´rios sa˜o os fenoˆmenos que depen-
dem apenas das leis f´ısicas/da mate´ria (terremotos, movimento dos planetas, por exemplo), mas na˜o
haveriam aqueles que dependessem apenas das leis morais/psicolo´gicas (“ate´ mesmo os fenoˆmenos
da pro´pria mente sendo dependentes das leis fisiolo´gicas do corpo”). Essas cieˆncias morais assumem
como dados os resultados f´ısicos. Assim a Economia Pol´ıtica ao tratar das leis da produc¸a˜o, aceita
como dadas as leis materiais/f´ısicas da produc¸a˜o, interessando-se, pois, nas leis morais/psicolo´gicas;
[A Economia Pol´ıtica] Investiga, pois, quais sa˜o os fenoˆmenos da mente que dizem respeito
a` produc¸a˜o e distribuic¸a˜o daqueles mesmos objetos empresta da pura cieˆncia da mente as
leis daqueles fenoˆmenos, e investiga que efeitos se seguem dessas leis mentais que agem
em conjunto com as leis f´ısicas.
Das considerac¸o˜es acima o que se segue parece sugerir como definic¸a˜o correta e completa
de economia pol´ıtica: “A cieˆncia que trata da produc¸a˜o e da distribuic¸a˜o da riqueza na
medida em que elas dependem das leis da natureza humana”. Ou assim: “A cieˆncia
relacionada a`s leis morais ou psicolo´gicas da produc¸a˜o e distribuic¸a˜o de riqueza” (MILL,
1974[1844], p. 303-4. Grifos nossos)
A definic¸a˜o acima ainda na˜o possui o rigor demandado pelo esp´ırito de Stuart Mill. Pois: “A
economia pol´ıtica na˜o trata da produc¸a˜o e da distribuic¸a˜o da riqueza em todos os estados da hu-
manidade, mas somente no que e´ denominado o estado social; nem na medida em que ela depende
das leis da natureza humana, mas somente na medida em que depende de uma certa parte dessas leis
(MIIL, p. 304). E que parte e´ esta a qual Mill se refere? Segundo o autor as leis que dizem respeito
ao comportamento do ser humano isoladamente, sem levar em conta a necessidade de existeˆncia de
outros seres humanos, e´ objeto da filosofia mental pura. “Aquelas que dizem respeito aos sentimentos
de um ser humano exigido por outros seres humanos ou inteligentes, individuais, enquanto tais -
notadamente as afecc¸o˜es, a conscieˆncia... - formam o objeto de outro parte da filosofia moral pura,
notadamente aquela parte dela na qual a moral e a e´tica esta˜o fundadas”.
Por fim ha´ aquelas leis da natureza humana que derivam do fato do homem viver “num estado de
sociedade, isto e´, por tomar parte de uma unia˜o ou agregados de seres humanos com um propo´sito
ou propo´sitos comuns”. A essas leis da natureza humana no estado social, Mill chama economia so-
cial, que surgia tambe´m com outras nomenclaturas, a saber,pol´ıtica especulativa ou cieˆncia da pol´ıtica
Para Mill a Economia Pol´ıtica e´ uma frac¸a˜o desse grande ramo das leis derivadas dos homens
vivendo em um estado de sociedade, isto e´, uma frac¸a˜o da Pol´ıtica Especulativa. Assim;
...o que comumente se entende pelo termo “economia pol´ıtica” na˜o e´ a cieˆncia da pol´ıtica
especulativa, mas um ramo daquela cieˆncia. Na˜o trata do todo da natureza humana
enquanto modificada pelo estado social, nem da conduta global do homem em sociedade.
Diz respeito ao homem somente enquanto um ser que deseja possuir riqueza e que e´ capaz
de julgar a efica´cia comparativa dos meios para obter aquele fim. Prediz unicamente
18
aqueles fenoˆmenos do estado social que ocorrem em consequeˆncia da busca de riqueza.
Faz total abstrac¸a˜o de toda outra paixa˜o ou motivo humano, exceto aqueles que podem
ser vistos como princ´ıpios perpetuamente antagonistas ao desejo de riqueza, notadamente
a aversa˜o ao trabalho e o desejo da satisfac¸a˜o presente de indulgeˆncias dispendiosas... A
economia pol´ıtica considera a humanidade enquanto ocupada unicamente em adquirir ou
consumir a riqueza; e aspira a mostrar qual e´ o curso de ac¸a˜o no qual a humanidade.
vivendo num estado de sociedade, seria impelida se aquela causa, exceto na medida em
que e´ refreada pelos dois motivos perpe´tuos acima observados, que se lhe contrapo˜em,
fosse a regra absoluta de todas as suas ac¸o˜es... A cieˆncia procede enta˜o investigando as
leis que governam essas va´rias operac¸o˜es, sob a suposic¸a˜o de que o homem e´ um ser que
e´ determinado, pela necessidade de sua natureza, a preferir uma maior porc¸a˜o de riqueza
ao inve´s de uma menor em todos os casos, sem qualquer outra excec¸a˜o ale´m daquela
constitu´ıda pelos dois motivos... ja´ especificados. Na˜o porque todo economista pol´ıtico
seja sempre ta˜o rid´ıculo a ponto de supor que a humanidade realmente assim se constitui,
mas porque este e´ o modo pelo qual a cieˆncia deve necessariamente proceder.(MILL, 1974
[1844], p. 306-7. Grifos nossos)
Apo´s essas considerac¸o˜es sobre o escopo da Economia Pol´ıtica, Mill tenta explicar outra questa˜o
fundamental (e ainda duradoura) de nossa disciplina: por que os economistas pol´ıticos discordam?
Para Mill a explicac¸a˜o esta´ numa diferenc¸a de suas concepc¸o˜es filoso´ficas da cieˆncia.
A primeira diferenc¸a filoso´fica esta´ na disputa entre “teoria” e a “pra´tica ou experieˆncia”, e entre
autores que se entendem como “pra´ticos” e os “teo´ricos”.
...aqueles que sa˜o chamados homens pra´ticos requerem uma experieˆncia especifica e ar-
gumentam totalmente para cima dos fatos particulares a uma conclusa˜o geral; enquanto
aqueles que sa˜o chamados teo´ricos aspiram a abrac¸ar um campo maior de experieˆncias, e,
tendo argumentado para cima dos fatos particulares a um princ´ıpio geral que inclui um
capo muito mais extenso do que aquele d questa˜o em discussa˜o, argumentam enta˜o para
baixo daquele princ´ıpio geral a uma variedade de concluso˜es especificas (MILL, 1974[1844],
p. 309).
Para deixar essa diferenc¸a mais clara Mill apresenta um exemplo: Suponha “que a questa˜o fosse
a de saber se os reis absolutos estavam propensos a empregar os poderes de governo para o bem-
estar ou para a opressa˜o de seus su´ditos”. Como devemos proceder para responder a esta questa˜o?
Os investigadores pra´ticos se esforc¸ariam em determinar esta questa˜o por uma induc¸a˜o completa
da conduta de monarcas despo´ticos particulares, tal como e´ testemunhado pela histo´ria. Em outras
palavras, o pra´tico/empiricista na˜o faria nenhuma considerac¸a˜o aprior´ıstica, baseada em hipo´teses
comportamentais dos homens, mas sim iria analisar os casos concretos de como reis de carne e osso se
portaram diante de seus su´ditos ao longo da histo´ria. Feito esse levantamento de casos particulares,
o pra´tico/empirista se sentiria conforta´vel em apresentar sua resposta. Por exemplo, suponha que
analisando o comportamento dos reis europeus entre o se´culo X e o se´culo XV eu concluo que
em 99% dos casos os reis se utilizaram do poder para oprimir seus su´ditos. A partir desses casos
particulares eu posso generalizar meu resultado, postulando que “os reis absolutistas tendera˜o a usar
seus poderes para oprimir seus su´ditos”. Ja´ os investigadores “teo´ricos”, “remeteriam a questao
a ser julgada ao teste na˜o somente de nossa experieˆncia dos reis, mas de nossa experieˆncia dos
homens. Discutiriam que uma observac¸a˜o das tendeˆncias que a natureza manifestou na variedade
de observac¸a˜o daquilo que passa por nossas mentes, nos autoriza a inferir que um ser humano na
situac¸a˜o de um rei despo´tico faria um mau uso do poder; e que esta conclusa˜o na˜o perderia nada de
sua certeza mesmo se os reis absolutos nunca tivessem existidos ou se a historia na˜o nos fornecesse
nenhuma informac¸a˜oacerca da maneira pela qual eles se conduzriam”. Ou seja, a partir de minhas
19
hipo´teses generalistas sobre o comportamento humano, eu como autor teo´rico, na˜o preciso - ainda
que na˜o tenha que necessariamente dispensar - a ana´lise dos casos concretos para emitir uma opinia˜o
de cara´ter universal ou atemporal.
(MILL, 1974, p. 309)
O primeiro desses me´todos e´ simplesmente um me´todo de induc¸a˜o; o segundo e´ uma
mistura do me´todo de induc¸a˜o e de racioc´ınio. O primeiro pode ser chamado o me´todo
a posteriori, o u´ltimo, me´todo a priori... Pelo me´todo a posteriori significamos aquele
que requer, como base de suas concluso˜es, na˜o simplesmente a experieˆncia, mas uma
experieˆncia especifica. Pelo me´todo a priori significamos... o racioc´ınio a partir de uma
hipo´tese assumida; a qual na˜o e´ uma pra´tica confinada a` matema´tica mas pertence a`
esseˆncia de toda cieˆncia que admite a raza˜o geral.
[...]
Na definic¸a˜o que tentamos construir da cieˆncia da economia pol´ıtica, a caracterizamos
como essencialmente uma cieˆncia abstrata e seu me´todo como o me´todo a priori... Ela
raciocina e...deve necessariamente raciocina a partir de assunc¸o˜es, na˜o a partir de fatos.
E´ constru´ıda sobre hipo´teses estritamente ana´logas a`s que sob o nome de definic¸o˜es sa˜o
o fundamento das outras cieˆncias abstratas. A geometria pressupo˜em uma definic¸a˜o ar-
bitra´ria de uma reta... De modo ana´logo a economia pol´ıtica pressupo˜e uma definic¸a˜o
arbitra´ria do homem como ser que invariavelmente realiza aquilo atrave´s do que pode obter
a maior soma de coisas necessa´rias, de convenieˆncias e de luxos com a menor quantidade
de trabalho e abnegac¸a˜o f´ısica exigida para poder obteˆ-los no estado existente do conhec-
imento... Ora, ningue´m que seja versado em tratados sistema´ticos de economia pol´ıtica
questionara´ que, sempre que um economista pol´ıtico tenha mostrado que um trabalhador,
agindo de uma maneira particular, pode obter maiores sala´rios, o capitalista maiores lu-
cros ou um proprieta´rio de terras maior rendimento, ele conclui como algo esperado que
eles certamente agira˜o daquela maneira. A economia pol´ıtica, portanto, raciocina a partir
de premissas assumidas.... As concluso˜es da economia pol´ıtica, consequentemente, como
as da geometria, sa˜o verdadeiras somente enquanto a expressa˜o comum e´ no abstrato,
isto e´, elas somente sa˜o verdadeiras sob certas suposic¸o˜es nas quais nenhuma a na˜o ser
as causas gerais... sa˜o levadas em conta. (MILL, 1974[1844], p 309-10)
Para Mill o u´nico me´todo atrave´s do qual a verdade pode ser alcanc¸ada nas cieˆncias sociais e´ o
chamado a priori. Mas e´ preciso estar atento sobre as dificuldades de se levar as concluso˜es obtidas
a partir de um modelo ideal de hipo´teses aprior´ısticas para a ana´lise dos casos concretos. Nos casos
concretos e um sem nu´mero de varia´veis podem causar a divergeˆncia entre o resultado ideal do modelo
e o resultado concreto observado. Mas e´ isso um problema? Mill responde a essa questa˜o com o
seguinte exemplo:
As concluso˜es da geometria na˜o sa˜o estritamente verdadeiras para aquelas linhas, aˆngulos
e figuras que as ma˜os humanas podem construir. Mas ningue´m sustentaria, por con-
seguinte, que as concluso˜es da geometria na˜o teˆm nenhuma utilidade ou que seria mel-
hor fechar os Elementos de Euclides e contentar-nos com a “pra´tica” e a “experieˆncia”.
(MILL, 1974 [1844], p. 311)
A existeˆncia de fricc¸o˜es entre a teoria ideal e os casos concretos na˜o significa, pois, a faleˆncia da
teoria abstrata. E a partir do momento que essas fricc¸o˜es sa˜o conhecidas e podem ser tratadas a
partir dos princ´ıpios e ferramentas de nossa cieˆncia, elas devem ser incorporadas ao nosso modelo
ideal. E´ assim que se procede o desenvolvimento dos modelos econoˆmicos. Parte-se de um modelo o
mais simples poss´ıvel e nota-se o quanto ele consegue explicar do fenoˆmeno e o quanto ele na˜o con-
segue. Enta˜o somos capazes de perceber varia´veis e dimenso˜es que precisam ser levadas em conta,
20
adicionamos essa varia´vel ao modelo e ele se torna mais complexo e com maior poder explicativo.
Ja´ o me´todo a posteriori, segundo Mill, na˜o e´ capaz de ser o fundamento da Economia Pol´ıtica,
ainda que seja um complemento indispensa´vel de sua estrutura. Ou seja, o estudo sistema´tico dos
casos concretos da teoria (isto e´, aquilo que e´ objeto de estudo da histo´ria econoˆmica) na˜o e´ suficiente
para erguer o edif´ıcio da teoria econoˆmica, mas e´ uma parte fundamental e indispensa´vel, ja´ que de
pouco adiantaria uma teoria pura inaplica´vel aos casos concretos.
Mill destaca ainda dois graves problemas das cieˆncias sociais e, por consequeˆncia, da economia
pol´ıtica. A saber: (i) inexisteˆncia do chamado experimento crucial (experimentum crucis), e; (ii) a
impossibilidade de um controle perfeito das varia´veis analisadas.
O primeiro ponto ja´ foi discutido anteriormente nesta apostila. Os cientistas sociais quase nunca
teˆm condic¸o˜es de realizar experimentos similares aqueles das cieˆncias da natureza (f´ısica, qu´ımica,
biologia, etc.). Isso dificulta seriamente o estabelecimento de verdades incontestes. Isso esta´ intima-
mente relacionado ao ponto (ii). O exemplo que Mill nos apresenta e´ particularmente dida´tico:
Como, por exemplo, podemos obter um experimento crucial sobre o efeito de uma pol´ıtica
comercial restritiva na riqueza nacional? Devemos encontrar duas nac¸o˜es semelhantes
em todos os outros aspectos ou pelo menos possuidoras de um grau exatamente igual
de tudo que conduz a` opuleˆncia nacional e adotando exatamente a mesma pol´ıtica em
todos os seus outros assuntos, mas diferindo somente que uma delas adota um sistema de
restric¸o˜es comerciais e outra adota o livre come´rcio. Este seria um experimento decisivo,
similar a`queles que quase sempre podem ser usados na f´ısica experimental... Mas deixe-
se algue´m considerar qua˜o infinitamente numerosas ou variadas sa˜o as circunstaˆncias
que diretamente ou indiretamente influenciam ou podem influenciar a soma da riqueza
nacional; e enta˜o se pergunte quais sa˜o as probabilidades de que sejam encontradas duas
nac¸o˜es que no mais extenso ciclo das eras concordem, e se possa mostrar que concordam,
em todas aquelas circunstaˆncias, exceto uma. (MILL, 1974[1844], p. 312
Esse problema e´ dos mais fundamentais da Economia. E os econometristas o conhecem muito
bem. E´ o que eles chamas de “controlar” as varia´veis. E esse problema emerge na˜o so´ para questo˜es
macroeconoˆmicas, lidando com toda a complexidade dos pa´ıses ao longo de um dado intervalo de
tempo. Imagine dois irma˜os geˆmeos, um fez faculdade e ganha 100 e outro na˜o fez e ganha 90. Posso
afirmar que a diferenc¸a de renda entre eles e´ determinada pela escolaridade? Na˜o posso. E´ certo
que a escolaridade afeta a renda, mas digamos que um e´ um workaholic enquanto o outro prefere o
descanso. E se um for um empreendedor, um sujeito ativo, enquanto o outro e´ acomodado? Enfim,
existem milho˜es de exemplos concretos sobre a dificuldade de se isolar o efeito de uma varia´vel so-
bre um determinado fenoˆmeno, exemplos que va˜o desde as mais complexas e obscuras questo˜es da
Economia, passando por aquelas mais prosaicas.
Mas ainda que o me´todo a posteriori na˜o possa ser a base da cieˆncia, Mill faz questa˜o de destacar
sua importaˆncia. Diz;
As discrepaˆncias entre nossas antecipac¸o˜es e o fato real sa˜o frequentemente a u´nica cir-
cunstaˆncia que teria atra´ıdo nossa atenc¸a˜o para alguma importante causa perturbadora
que negligenciamos. Mais do que isso, frequentemente revelam-nos erros do pensamento
ainda mais se´rios do que a omissa˜o do que pode com propriedade ser denominado uma
causa perturbadora. Revelam-nos com frequeˆncia que a pro´pria base de todo nosso ar-
gumento e´ insuficiente, que os dados a partir dos quais raciocina´vamos compreendem
somente umaparte, e nem sempre a mais importante, das circunstaˆncias pela quais o
reultado e´ realmente determinado
21
O que Mill esta´ argumentando e´ que a partir da comparac¸a˜o entre a predic¸a˜o do modelo abstrato
e o caso concreto, revelam-se na˜o so´ varia´veis que na˜o haviam sido levadas em conta no nosso modelo
inicial mas que sa˜o parte fundamental da explicac¸a˜o (o que ele chama de causa perturbadora, mas
esse exerc´ıcio e´ capaz de nos mostrar que nosso modelo abstrato como um todo e´ equivocado.
Diz Mill que isso na˜o obriga o “teo´rico” a ter que analisar os casos concretos observados das
predic¸o˜es de seus modelos, mas isso o coloca em uma posic¸a˜o que requer mode´stia. Sobre o “abstrato”
que ignora o concreto, diz:
Ele esta´ na mesma relac¸a˜o para o legislador que o simples geo´grafo esta para o navegador
pra´tico, dizendo-lhe a latitude e longitude de todas as espe´cies de lugares, mas na˜o como
encontrar onde ele pro´prio esta´ navegando. Se, entretanto, na˜o faz mais do que isto, deve
ficar satisfeito em na˜o tomar nenhuma parte na pol´ıtica pra´tica; em na˜o ter opinia˜o ou
sustenta´-la com extrema mode´stia, nas aplicac¸o˜es que devam ser feitas de suas doutrinas
a`s circunstaˆncias existentes (MILL, p. 316).
4.2 A Metodologia de John Neville Keynes (1890)
4.3 A Metodologia de Lionel Robbins (1932)
Figure 5: Lionel Charles Robbinns (1898-1984)
Robbins.jpg
E´ de Lionel Robbins, de seu trabalho Um Ensaio sobre a Importaˆncia da Cieˆncia Econoˆmica a
mais usual definic¸a˜o da Economia, aquela a qual somos apresentados ja´ nos manuais de Introduc¸a˜o
a` Economia; “A Economia e´ a cieˆncia que estuda o comportamento humano como uma relac¸a˜o entre
fins e meios escassos que teˆm usos alternativos (p. 15)
4.4 A Metodologia de Milton Friedman (1953)
Talvez o trabalho sobre Metodologia mais conhecido, influente e citado na Economia nos u´ltimos
cinquenta anos sejaThe Methodology of Positive Economics de Milton Friedman (1953). A base
teo´rica da metodologia de Friedman e´ o instrumentalismo, entendido como a abordagem daa Filosofia
da Cieˆncia para qual as teorias na˜o sa˜o (necessariamente) “verdadeiras”, no sentido de descreverem
a esseˆncia dos fenoˆmenos de interesse, mas simplesmente instrumentos para a realizac¸a˜o de previso˜es
ou para se atingir um determinado propo´sito pra´tico.8
8Ver http://www.socsci.uci.edu/~stanford/bio/publications/InstrumentalismRev3.pdf
22
Figure 6: Milton Friedman (1912-2006)
Friedman (1953), citando o trabalho de J.N. Keynes, inicia sua exposic¸a˜o apresentando duas
categorias de ana´lise. De um lado ha´ a economia positiva, que nas palavras de J.N. Keynes e´ um
corpo de conhecimento sistematizado preocupado com “o que e´”, sendo independente de considerac¸o˜es
e´ticas, ideolo´gicas, normativas, etc. E´ uma cieˆncia objetiva como a F´ısica, que simplesmente observa
e explica os fenoˆmenos econoˆmicos. Como um astrof´ısico explica a o´rbita dos planetas, o economista
explica, por exemplo, o processo inflaciona´rio. Ainda sobre a economia positiva, diz Friedman:
Sua tarefa e´ fornecer um sistema de generalizac¸o˜es que possa ser usado para fazer pre-
viso˜es corretas sobre as consequeˆncias de quaisquer mudanc¸as nas circunstaˆncias. Seu
desempenho deve ser julgado a partir da precisa˜o, escopo, e conformidade com a ex-
perieˆncia resultantes de suas previso˜es. Em suma, a economia positiva e´, ou pode ser,
uma cieˆncia “objetiva”, precisamente no mesmo sentido que qualquer uma das cieˆncias
naturais. (FRIEDMAN, 1953, p.4)
Ja´ a economia normativa refere-se a`quilo que Stuart Mill denominava “arte”, isto e´, a busca por
um resultado pra´tico derivado da economia positiva. Por exemplo, e´ papel da economia positiva
determinar os fatores responsa´veis pela riqueza dos pa´ıses. A partir desses resultados, e´ papel da
economia normativa aplica´-los a um determinado pa´ıs de forma a torna´-lo rico.
Voltando a economia positiva. Segundo Friedman:
O objetivo fundamental de uma cieˆncia positiva e´ o desenvolver uma “teoria” ou “hipo´teses”
que geram predic¸o˜es va´lidas e significativas (isto e´, na˜o tru´ısticas) sobre fenoˆmenos ainda
na˜o observados. Tal teoria e´, em geral, um mistura complexa de dois elementos. Em parte
ela e´ uma “linguagem” designada para promover um “me´todo de racioc´ınio sistema´tico
e organizado”. Em parte e´ um corpo de hipo´teses substantivas designadas para resumir
as caracter´ısticas fundamentais da realidade complexa
Por linguagem Friedman se refere a`s categorias anal´ıticas utilizadas pelos especialistas de uma
determinada disciplina. Em Economia, por exemplo, os conceitos de oferta, demanda, equil´ıbrio,
racionalidade sa˜o todos partes da linguagem econoˆmica. E´ a partir desse tipo de categorias teo´ricas
que o economista observa os fatos de seu interesse. Friedman apresenta alguns crite´rios para julgar
essas categorias como, por exemplo; (i) Elas sa˜o definidas de modo preciso? (ii) Elas sa˜o exaustivas.
Mas esse na˜o e´ o cerne da questa˜o.
Em relac¸a˜o ao corpo de hipo´teses substantivas diz Friedman:
Vista como um corpo de hipo´teses substantivas, a teoria deve ser julgado pelo seu poder
preditivo em relac¸a˜o a classe de fenoˆmenos que ela pretende “explicar”. Apenas evideˆncias
factuais podem mostrar se uma teoria e´ “certa” ou “errada”, ou melhor, se deve ser
aceita como va´lida ou se deve ser rejeitada... Uma hipo´tese e´ rejeitada e sus predic¸o˜es
23
sa˜o contraditas (“frequentemente” ou maior frequeˆncia que as predic¸o˜es de hipo´teses
alternativas)... A evideˆncia factual nunca pode “provar” uma hipo´tese; ela pode apenas
falhar em refuta´-la, que e´ o que geralmente queremos dizer quando falamos que a hipo´tese
foi “confirmada” pela experieˆncia
O que Friedman chama de previso˜es/predic¸o˜es na˜o dizem respeito necessariamente a eventos que
ainda ira˜o ocorrer, isto e´, uma previsa˜o na˜o precisa se dar sobre um evento futuro. A teoria pode
gerar predic¸o˜es sobre o comportamento de um determinado sistema em um instante do passado.
Por exemplo, a teoria econoˆmica nos diz que a quantidade demandada e a quantidade ofertada se
equilibram atrave´s das variac¸o˜es de prec¸os (tudo o mais constante). Se os prec¸os na˜o puderem se
ajustar ou a oferta ou demanda na˜o estara˜o satisfeitas. Sabemos que se o prec¸o estiver abaixo do
prec¸o de equil´ıbrio havera´ excesso de demanda, o que provocara´ alguma espe´cie de racionamento de
forma a equilibrar oferta efetiva e demanda. A partir disso posso fazer uma previsa˜o que se o prec¸o
do trigo foi fixado abaixo do valor de mercado no ano 1500 na regia˜o norte de Portugal, ocorreu
alguma forma de racionamento. Ao checar os dados histo´ricos fico sabendo que era preciso entrar em
um fila para comprar trigo, e que nem todos os que queriam consumi-lo tinham acesso a` mercadoria.
Pronto, minha teoria gerou uma predic¸a˜o correta.
Se as hipo´teses sa˜o apenas instrumentos para a gerac¸a˜o de predic¸o˜es, qual o crite´rio para escolher-
mos uma ou outra? Segundo FRIEDMAN (1953, p. 10) e´ poss´ıvel ordenar as hipo´teses, preferindo
aquelas que sa˜o mais simples e mais frut´ıferas. Uma hipo´tese e´ dita mais frut´ıfera que outra quanto
“mais precisas suas previso˜es, mais ampla a a´rea na qual a hipo´tese gera previso˜es e mais pesquisas
futuras ela sugere. Ja´ a simplicidade esta´ associada a ideia da “navalha de Ockham”, isto e´, se duas
teorias sa˜o capazes de explicar um mesmo fenoˆmeno, deve-se optar por aquela mais simples.
Como adiantamos no comec¸o da sessa˜o, a abordagem de Milton Friedman e´ conhecida na Filosofia
da Cieˆncia como instrumentalismo. Segundo Popper (1956) pode-se entender o instrumentalismo a
partir do seguinte esquema:
Fenoˆmeno Realidade Representac¸a˜o simbo´lica da realidade
a A α
b B β
E (= propriedades essenciais (relacionais) de A e B ε (= Teoria que descreve E)
Ou seja, (a) e

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