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Aula 01 democracia particip cidadania FINAL

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Movimentos Sociais e Educação
1° encontro: 
Democracia, participação e cidadania: aspectos históricos e atuais
I - Introdução
Nos nossos dias, a palavra “democracia” se tornou bastante familiar. Embora 
a história brasileira venha sendo feita de longos períodos de ditaduras, desde a 
promulgação da Constituição Federal de 1988 temos vivido um tempo de 
normalidade democrática, com eleições regulares, Congresso Nacional funcionando, 
imprensa livre (sem censura oficial) e Judiciário independente. 
É claro que sempre podemos questionar até que ponto a regra democrática 
formal funciona efetivamente em várias áreas da vida nacional. Também podemos 
nos perguntar se é realmente democrática uma nação com tamanho grau de 
desigualdade na distribuição da riqueza, dos bens e das condições de bem-estar 
(DAHL, 1989). Mas o fato é que o critério democrático se tornou para nós mais ou 
menos consensual. Quando ocorre um procedimento não democrático, logo o 
acusamos de ser injusto, o que demonstra que pelo menos como ideal a democracia 
se tornou habitual entre nós. 
II - Democracia grega
Mas não foi sempre assim. Em outros tempos e lugares, a democracia não 
era um princípio sequer cogitado, muito menos compartilhado por todos. A primeira 
experiência democrática de que se tem notícia ocorreu na Grécia antiga, cerca de 
500 anos antes de Cristo. Foi uma experiência historicamente curta, ocorrida nos 
séculos V e IV a.C. Entre o fim da experiência de Atenas antiga, por volta do século 
IV a.C., e o século XVIII da nossa era praticamente não se falou em democracia no 
Ocidente (HELD, 1987). O modelo de Atenas, uma cidade-Estado grega, inspirou 
teóricos democráticos, mas isto principalmente depois da aparição do filósofo 
Rousseau, no século XVIII.
Mesmo hoje, podemos perceber que em alguns âmbitos o princípio 
democrático não é o mais aceito. Por exemplo, em boa parte das organizações 
religiosas o modelo de autoridade não está baseado em uma suposta vontade da 
maioria, como preveria o método democrático, mas sim na crença em verdades 
reveladas. Na Igreja Católica, por exemplo, todos reconhecem a primazia do 
papa e dos bispos, mas de onde vem a sua autoridade? Em linhas gerais, 
pode-se dizer que a autoridade do papa vem de uma tradição que o identifica 
como sucessor do apóstolo Pedro, que recebeu de Jesus de Nazaré, segundo 
várias passagens bíblicas, a incumbência de liderar o grupo dos primeiros 
seguidores, os apóstolos. 
A dominação baseada na tradição é um dos três tipos ideais propostos 
pelo sociólogo Max Weber (WEBER, 1998), ao lado da dominação 
carismática (fundamentada no carisma de um líder) e da dominação racional-
legal (fundada em regras racionais e estabelecidas segundo procedimentos 
aceitos, como por exemplo as leis criadas pelo Poder Legislativo).
Talvez você imagine que uma autoridade não baseada no critério democrático 
devesse ser motivo de escândalo, mas não é bem assim. Imagine, por exemplo, 
alguma religião promovendo uma votação para definir quais deveriam ser, de agora 
em diante, seus dez mandamentos... Provavelmente ela seria ridicularizada por 
todos, inclusive pelos maiores entusiastas do princípio democrático. Também na 
universidade, esta instituição tão importante para a vida coletiva e da qual você faz 
parte como estudante, há princípios estruturantes mais valorizados do que a regra 
puramente democrática, a exemplo da meritocracia (poder que vem do mérito). No 
meio universitário, em tese quem sabe mais deve ter mais poder. Por isso a Lei de 
Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), embora 
estabelecendo o “princípio da gestão democrática”, prevê, em seu artigo 56, que “em 
qualquer caso, os docentes (professores) ocuparão setenta por cento dos assentos 
em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos que tratarem da elaboração e 
modificações estatutárias e regimentais bem como da escolha de dirigentes”. Em 
outras palavras: um número relativamente pequeno de professores tem mais poder 
de decisão do que um número relativamente grande de estudantes, e isto, embora 
possa ser discutido, está longe de ser considerado um escândalo.
Fizemos toda esta reflexão para frisar que a palavra “democracia” é um 
conceito em disputa, ou seja, pode ter significados diferentes conforme o contexto. 
Mesmo se for tomado como uma ideia vaga de justiça e de respeito à vontade da 
maioria, o termo não é válido universalmente. Na democracia ateniense, por 
exemplo, nem todas as características poderiam hoje ser chamadas de “realmente” 
democráticas. Por um lado, as decisões coletivas importantes eram tomadas por 
maioria em grandes assembleias com pelo menos 6 mil cidadãos presentes. Quando 
a assembleia escolhia alguém para desempenhar qualquer tarefa em nome de 
todos, em geral os mandatos eram curtos e se proibia a recondução, exceto em 
funções de guerra. Às vezes os mandatários eram eleitos, mas também havia sorteio 
e grande rotatividade entre os escolhidos. Mas, por outro lado, a cidadania era 
restrita aos homens adultos e nativos, sendo negada às mulheres, aos estrangeiros 
e aos escravos. 
Escravos? Sim, a vida econômica e social baseada no trabalho escravo é que 
permitia ao cidadão voltar-se completamente para as questões públicas, sem se 
preocupar tanto com o seu trabalho e com as questões privadas. A democracia 
grega, que o filósofo Platão rejeitava por basear a autoridade na popularidade e não 
no conhecimento, veio a sofrer ainda a crítica de propiciar uma interminável luta de 
facções e uma crônica instabilidade política. Maiorias ocasionais poderiam ser 
constituídas a cada assembleia e mudar o rumo de decisões que tinham acabado de 
ser tomadas. 
III - Democracia “protetora”: proteger o cidadão dos excessos da maioria
Este temor quanto ao poder ilimitado de uma maioria eventual iria marcar o 
ressurgimento do ideal democrático no Ocidente depois de mais de dois mil anos 
adormecido. Foi por volta do século XVIII, sobretudo em movimentos como a 
Revolução Francesa, que a democracia voltou a ser uma questão relevante. Já não 
se tratava de uma democracia direta como a ateniense, circunscrita a uma cidade-
Estado com população relativamente pequena (contendo entre 30 mil e 45 mil 
cidadãos, fora escravos, mulheres, crianças e estrangeiros). Agora estamos no 
contexto do fortalecimento dos Estados nacionais, mas igualmente inspirado no 
princípio de prevalência da vontade da maioria. Estes movimentos, em grande 
medida violentos, suscitaram um temor sobre os riscos de uma democracia baseada 
no poder avassalador da maioria. Como ficam as minorias em tal contexto? Quais 
seriam os limites necessários ao exercício do poder pela maioria? 
Daí nasceu uma concepção de democracia que alguns chamam de 
“protetora”: trata-se, aqui, de impor limites ao poder da maioria e do Estado. Esta 
corrente ganhou força nos séculos XVIII e XIX. Um de seus representantes é James 
Madison (1751-1836), um dos principais formuladores da constituição norte-
americana. Madison era um crítico da ideia clássica de democracia de Atenas por 
ver nela um regime intolerante, injusto, instável, passional e com tendência a 
sacrificar o partido ou o indivíduo mais fraco. Madison considerava inevitável a 
formação de facções (grupos adversários entre si), em virtude de vários fatores: (a) a 
existência de diferentes capacidades, habilidades e modos de enxergar o mundo 
resultaria necessariamente em visões diferentes e eventualmente opostas sobre 
uma mesma questão; (b) o julgamento seria sempre sujeito a falhas e portanto a 
diferenças; (c) muitos zelariam por uma opinião rápida e superficial; e (d) os 
diferentes líderes induziriam a formaçãode diferentes grupos. Mas, para o autor, se 
não era possível evitar a formação das facções, seria necessário pelo menos conter 
o seu poder. De que maneira? Por meio da criação de um sistema de representação 
política baseado em um grande corpo eleitoral. 
A ideia é que havendo uma base social ampla, extensa e populosa (diferente 
da democracia direta grega, típica de pequenas cidades-Estado), supostamente 
haveria uma seleção mais rigorosa de representantes e uma dificuldade para o 
domínio de pequenos grupos. Em síntese, Madison propôs um Estado forte contra a 
tirania das facções, sujeito ao julgamento regular de todos os cidadãos (por meio de 
eleições diretas). Segundo este ponto de vista, a diversidade social, própria das 
sociedades modernas, ajudaria a criar uma fragmentação política e uma maior 
divisão do poder, prevenindo o surgimento de uma facção com poderes 
concentrados. É de se notar que, neste modelo, o cidadão se volta basicamente 
para a satisfação de seus interesses privados, em completo contraste com o típico 
cidadão da democracia ateniense. Na democracia “protetora”, é o Estado quem está 
a serviço de garantir a dedicação do cidadão a seus interesses particulares. Não é 
difícil perceber que esta concepção guarda muita afinidade com uma noção de 
Estado a serviço dos mais abastados, zelando pela segurança e defendendo 
radicalmente o direito à propriedade. 
Dois outros autores (o inglês Jeremy Bentham e o escocês James Mill) 
desenvolveram teorias semelhantes sobre a democracia. Eles pensavam em base 
utilitarista: segundo esta visão, a motivação básica dos seres humanos é a 
satisfação de seus desejos, a maximização da sua satisfação ou utilidade e a 
minimização de seu sofrimento. Também para estes autores a ideia central é 
proteger os cidadãos da opressão por parte dos que governam e garantir que 
indivíduos possam se dedicar a seus interesses sem risco de políticas arbitrárias. 
Esta concepção tem afinidade com a defesa de um Estado mínimo na economia, 
mas forte e repressor nas transgressões, com ênfase na implantação de sistemas 
penitenciários.
IV – Outras visões sobre democracia
Outras concepções de democracia viriam a surgir, mostrando que o termo 
pode ter vários significados. Por exemplo, para Schumpeter (1984) — um 
economista do século XX que fez muito sucesso nos seus escritos sobre política, 
embora com muitas críticas — a função do eleitorado seria apenas constituir um 
governo e derrubá-lo ou renová-lo nas eleições seguintes. Em sua visão, seria um 
erro o cidadão acompanhar de perto as decisões tomadas pelo seu representante 
político e tentar influenciar suas decisões, já que o eleitor não entende 
profundamente dos problemas do país. Schumpeter dizia não acreditar na existência 
de um “bem comum”, pois as concepções do que é o bem são muito diversificadas. 
Mesmo se fosse considerado um indivíduo isoladamente, alegava Schumpeter, sua 
concepção de bem seria muito “manufaturada”, ou seja, fortemente influenciada pela 
propaganda ou por outros meios de persuasão. O ponto de vista schumpeteriano é, 
como se diz, minimalista, pois concebe um mínimo de conteúdo realmente 
democrático no modelo que constrói.
Outros autores consideram visões diferentes da democracia, como os 
pluralistas, que veem a ação dos governos como resultado da ação de minorias 
(grupos de pressão) articuladas dinamicamente em ambiente de liberdades 
individuais, direitos de cidadania, voto, liberdade de expressão e de organização, 
bem como sistemas de barreiras e equilíbrios entre Legislativo, Executivo, Judiciário 
e burocracia. Um dos expoentes desta corrente é Robert Dahl (DAHL,1989), que 
prefere usar o termo poliarquia para se referir a esta realidade.
Contemporaneamente, uma das preocupações centrais dos teóricos da 
democracia é entender a crescente fragilização da legitimidade dos mecanismos de 
representação. Como fazer para que os políticos eleitos sejam controlados pela 
população que os elegeu? Será que basta votar em um candidato e, depois de 
quatro anos, votar em um nome diferente caso a atuação tenha sido insatisfatória? 
Como fica a participação social entre as eleições?
Estas são perguntas que nortearão o nosso próximo encontro. Até lá!
Referências bibliográficas:
DAHL, Robert. (1989). Um Prefácio à Teoria Democrática, Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Ed. 
HELD, David. (1987). Modelos de democracia. Tradução: Alexandre Sobreira 
Martins. Belo Horizonte: Editora Paideia Ltda. 
SHUMPETER, Joseph A. (1984). "Capitalismo, socialismo e democracia." Editado 
por George Allen e Unwin Ltd.
WEBER, Max. (1998). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia 
compreensiva. Universidade de Brasília.

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