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Pensamento crítico da subalternidade

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Afro-Ásia, 34 (2006), 105-129 105
PENSAMENTO CRÍTICO DESDE A SUBALTERIDADE:
OS ESTUDOS ÉTNICOS COMO CIÊNCIAS DESCOLONIAIS OU
PARA A TRANSFORMAÇÃO DAS HUMANIDADES
E DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO SÉCULO XXI*
Nelson Maldonado-Torres**
Os Estudos Étnicos nos Estados Unidos são vistos como mais uma
vertente entre os chamados studies ou aproximações interdisciplinares
que encontram sua unidade no tema que estudam e não em uma discipli-
na em particular. A noção de que a universidade moderna deve encon-
trar um lugar não só para as humanidades, as ciências naturais, as ciên-
cias sociais e as distintas profissões (como engenharia ou advocacia),
mas também para estudos interdisciplinares é, em certa medida, uma
* Parte deste trabalho foi apresentado como aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Étnicos e Estudos Africanos, na Universidade Federal da Bahia, Brasil, em 26 de
agosto de 2005. Traduzido do espanhol por Monica Santos. O tema dos Estudos Étnicos como
agente transformador das humanidades e das ciências sociais também tem sido tratado de
outras formas por Johnella Butler e Sylvia Wynter. A noção de “ciências descoloniais” emana,
por um lado, de Aimé Césaire, que fala da ciência do anticolonialismo, e de Laura Pérez, que
tem insistido em várias conversas na importância de conceber os Estudos Étnicos como estu-
dos descolonizadores. Lewis Gordon também tem insistido na relevância dos estudos da
diáspora africana para as ciências humanas. Ver Johnnella E. Butler, “Ethnic Studies as a
Matrix for the Humanities, the Social Sciences, and the Common Good”, in Johnella E. Butler
(org.), Color-Line to Borderlands: The Matrix of American Ethnic Studies (Seattle, University
of Washington Press, 2001), pp. 18-41; Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme, Paris,
Présence Africaine, 1955; Lewis R. Gordon, Fanon and the Crisis of European Man: An
Essay on Philosophy and the Human Sciences, Nova Iorque, Routledge, 1995; Sylvia Wynter,
“On Disenchanting Discourse: ‘Minority’ Literary Criticism and Beyond”, in Abdul
JanMohamed e David Lloyd (orgs.), The Nature and Context of Minority Discourse (Nova
Iorque, Oxford University Press, 1990), pp. 432-69.
** University of California, Berkeley.
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contribuição da academia estadunidense. Alguns vêem esta invenção
com ceticismo, pois pensam que só a unidade disciplinar e o método de
cada disciplina podem oferecer um conhecimento rigoroso e coerente
sobre a realidade. Outros a vêem com menoscabo e a julgam como mais
uma expressão de certo kitsch estadunidense, que tem mais cores e ador-
nos que substância. Apesar destas críticas, a noção de estudos interdis-
ciplinares tem ganhado certa legitimidade e têm-se expandido para áre-
as inusitadas, tais como as ciências naturais (biologia e química) e a
informática. Novas tecnologias e descobertas nas ciências demandam
uma aproximação multi ou interdisciplinar.
A ironia com que os Estudos Étnicos se confrontam é que a legi-
timidade ganha pelos estudos interdisciplinares nos Estados Unidos não
os tem beneficiado quase de nenhum modo. De fato, enquanto os estu-
dos interdisciplinares continuam expandindo-se pela universidade esta-
dunidense, os Estudos Étnicos encontram-se cada vez mais encarcera-
dos em seus respectivos nichos. Estes também se encontram assediados
por uma onda patriótica de direita e pseudo-esquerda que se tornara
forte nos anos oitenta, vigorosa nos noventa, e proativa depois dos ata-
ques de 11 de setembro de 2001. O questionamento dos Estudos Étni-
cos, ao menos nos Estados Unidos, não tem tanto a ver com sua
epistemologia interdisciplinar como por sua agenda de trabalho crítico
em torno dos discursos sobre a nação. Outra razão pela qual se duvida
deles é sua origem. Os Estudos Étnicos nos Estados Unidos foram cria-
dos a partir da pressão de movimentos sociais em finais da década de
1960 e são vistos como resultado direto de políticas de afirmação da
identidade e não como uma expressão de problemas epistemológicos
dentro das ciências. Isto é, sua criação se remete a forças sociais e polí-
ticas e não a mudanças ou questionamentos epistemológicos genuínos.
Portanto, o conhecimento e a investigação que produzem são vistos como
um apêndice injustificado das ciências humanas e, para piorar, como
incapazes de ultrapassar interesses alegadamente reacionários, pela afir-
mação de uma identidade negada. O interessante é que, embora os Estu-
dos Étnicos sejam vistos de tal forma, o establishment estadunidense
milita contra eles muito fortemente. Ainda que os Estudos Étnicos não
contem com recursos como outras áreas e que o que eles possam ofere-
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cer tenha sido sempre visto com desdém ou indiferença, ao mesmo tem-
po eles se revelam como excessivos. Esta relação com programas aca-
dêmicos que foram originados pelas intervenções de grupos racializados
nos Estados Unidos tem uma estrutura racial conhecida: por mais que
tenham, nunca serão nada, mas o pouco que têm já é demasiado. Os
Estudos Étnicos são vistos ao mesmo tempo como completamente
irrelevantes, porém excessivamente ameaçadores.
Fora dos Estados Unidos os Estudos Étnicos tendem a ser vistos
como mais uma invenção da academia estadunidense e, como a acade-
mia estadunidense se tem tornado hegemônica, eles são vistos como
mais uma invenção imperial ou como algo que, precisamente por sua
relação com o império, é digno de ser exportado. Poucas vezes se vêem
os Estudos Étnicos como uma conquista de comunidades racializadas
que roubaram um espaço ao império em um momento em que comuni-
dades marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, jovens, etc.) trans-
grediram a ordem mundial e exigiram mudanças. Em vez de serem vis-
tos como parte de um esforço global contra dimensões problemáticas da
episteme moderna, são vistos como uma produção caprichosa do impé-
rio em sua dinâmica interior com suas minorias, de alguma forma tam-
bém privilegiadas ou muito particulares ao contexto estadunidense.
Gostaria aqui de aclarar a relação dos Estudos Étnicos com outras for-
mas de “estudos interdisciplinares” ou studies e delinear a diferença
entre os mesmos. Depois, na segunda parte da exposição, elaborarei a
idéia dos Estudos Étnicos como ciências descoloniais, que exigem não
só um espaço na universidade, mas uma transformação da mesma e de
suas bases epistemológicas.
Estudos Étnicos, Estudos de Área e Estudos Religiosos
De acordo com Immanuel Wallerstein, os Estudos Étnicos podem ser
vistos como uma conseqüência não intencional dos Estudos de Área.1
Tais Estudos (Estudos Latino-americanos, Africanos, Asiáticos, etc.)
1 Immanuel Wallerstein, “The Unintended Consequences of Cold War Area Studies”, in Noam
Chomsky et al. (orgs.) The Cold War and the University: Toward an Intellectual History of the
Postwar Years (Nova Iorque, The New Press, 1997), pp. 195-232.
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surgiram nos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
quando este país tornou claro que não seria somente um poder hegemô-
nico nas Américas, mas no mundo. A partir de sua independência, em
1776, os Estados Unidos se lançaram em uma empresa imperial na qual
escravizaram e marginalizaram grandes populações, sobretudo negras e
indígenas. Em 1848, depois de uma guerra com o México, tomaram
grande parte do território do norte mexicano. A seguir, em 1898, lança-
ram-se à guerra contra a Espanha e terminaram com várias colônias
espanholas como parte de seus territórios. A partir de então, numerosos
setores da intelectualidade latino-americana, que primeiro viam nos
Estados Unidos um modelo de nação e progresso (isto é, enquanto es-
cravizavam e eliminavam indígenas e afro-descendentes), tornaram-se
muito críticos em relação a eles. A participação dos EstadosUnidos na
Segunda Guerra Mundial colocou o país no centro de tensões geopolíticas
que questionavam a hegemonia européia e abriam o mundo a um estado
de “guerra fria”. Foi em tal contexto, quando eles entraram em guerra
com países na Europa e na Ásia e começavam a se tornar hegemônicos
a nível mundial, que o exército se deu conta da ausência de scholars nos
Estados Unidos com conhecimento aprofundado sobre as distintas áre-
as do mundo com as quais a nação entrava agora em contato direto.
Até a Segunda Guerra Mundial, a academia estadunidense seguia
o modelo da universidade moderna kantiana-humboldtiana, cujo mode-
lo tinha sido preparado na Alemanha, depois do Iluminismo, no início
do século XIX.2 Este modelo universitário separava definitivamente a
teologia dos estudos humanísticos e da ciência. As ciências naturais se
tornaram hegemônicas neste modelo de universidade e serviram de ins-
piração para criar novas ciências, já não da natureza, mas da sociedade.
A sociologia, as ciências políticas e a economia foram criadas primordi-
almente para estudar a estrutura da sociedade moderna, que já não se
regia pela revelação divina ou por ditames da Igreja, mas se percebia a
si mesma como um conjunto de esferas autônomas e especializadas que
interagiam: o estado, a economia, a sociedade civil, a cultura, etc. Neste
2 Walter Mignolo, “Globalization and the Geopolitics of Knowledge: The Role of the Humanities
in the Corporate University”, Nepantla: Views from South, vol. 4, no 1 (2003), pp. 97-119.
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contexto, a religião — e particularmente o cristianismo — deixou de ser
um discurso com autoridade pública que definia e outorgava os critérios
de racionalidade em cada uma das esferas do corpo social, e gradual-
mente se transformava em um discurso cuja relevância estava limitada à
esfera privada da decisão pessoal. Se a ciência natural tinha deixado
claro que a teologia não tinha os critérios para entender o mundo natu-
ral, já no século XIX, após o Iluminismo, pensou-se que a teologia tam-
bém não podia prover os critérios para entender o mundo social e nele
interferir efetivamente. As ciências se encarregariam de conhecer e aju-
dar a administrar o mundo moderno diante da ausência da autoridade
divina.
Enquanto a sociologia, as ciências políticas e a economia se en-
carregavam de entender a sociedade moderna (tanto como a psicologia
se encarregava de entender a psique moderna), a antropologia e o
orientalismo se encarregavam de estudar as culturas ou sociedades não
européias. O orientalismo se encarregava de estudar as grandes civiliza-
ções do chamado Oriente, enquanto a antropologia estudava principal-
mente grupos chamados então “primitivos” que ainda existiam no mun-
do.3 Estas disciplinas desempenhavam um papel fundamental para o
mundo europeu moderno. Assim como a sociologia, a economia e as
ciências sociais permitiam entender e predizer o moderno estado-nação
europeu e nele intervir racionalmente, o orientalismo e a antropologia
contribuíam com conhecimento fundamental para poder “manejar” as
novas colônias e para confrontar países inimigos, principalmente no
chamado Oriente e na África. No século XIX, o equivalente dos estudos
afro-orientais teria sido uma mescla de orientalismo e antropologia muito
fortemente norteada pelo espírito colonizador europeu. No século XX,
esta formação sofreria uma mudança pelo surgimento dos Estudos de
Área (em suas origens ao menos, outra forma de estudos colonizado-
res), enquanto no século XXI ela viria a incorporar mais centralmente
os Estudos Étnicos — um exemplo disto seria o recém-inaugurado Pro-
grama de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Estudos Africanos da
Universidade Federal da Bahia, no Brasil. Se esta genealogia geral dos
3 Wallerstein, “The Unintended Consequences”, p. 198.
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estudos afro-orientais é minimamente correta, então talvez possamos
falar de uma transformação destes, de ciências colonizadoras em ciênci-
as descoloniais, muito além dos estudos interdisciplinares e dos estudos
culturais. Pelo menos esta me parece que possa ser a contribuição fun-
damental dos Estudos Étnicos nesta forma de trabalho. Mas agora me
adianto muito em teses que só se entenderão por completo mais adiante.
A genealogia que estamos traçando aponta, assim, primeiro para
transformações que desafiaram a primazia do conhecimento teológico
no século XVIII e que levaram ao predomínio das ciências no novo
modelo de universidade fundado no século XIX. Neste contexto, as ci-
ências se separaram das humanidades, que estavam dedicadas ao estudo
da literatura e ao pensamento clássico, e forneceram o ambiente para o
surgimento das ciências sociais, que se dividiram entre, por um lado, o
estudo do estado, do mercado e da sociedade moderna e o estudo de
sociedades pré-modernas, fossem estas gloriosas ou “primitivas”. Fo-
ram sem dúvida estas culturas e sociedades chamadas pré-modernas que
sofreram o impacto de uma nova onda de imperialismo de sociedades
européias, agora chamadas fundamentalmente para civilizar e não tan-
to, como antes, para cristianizar. Enquanto as ciências naturais permiti-
am ao ideal de Homem moderno intervir racionalmente no mundo físi-
co, as ciências sociais serviram, pois, para fazer o mesmo na ordem
social, mais especificamente no estado moderno e nas colônias. A nova
estrutura epistemológica oferecia simultaneamente a compreensão e o
controle de: 1) a natureza, 2) a sociedade moderna e 3) o mundo coloni-
al. A emergência dos Estudos de Área representou neste contexto uma
mudança relativa às ciências européias, a partir do surgimento de um
contexto em que os Estados Unidos ocupariam um papel principal nas
dinâmicas geopolíticas do mundo moderno.
O problema com as ciências européias, tal como se encontravam
no sistema universitário estadunidense, era que estas não forneciam co-
nhecimento especializado de sociedades modernas não européias. O
preconceito em relação a culturas e sociedades não européias era tal que
as disciplinas que se focavam nas mesmas (o orientalismo e a antropo-
logia) se aproximavam delas como se estivessem congeladas no tempo.
No orientalismo, este enfoque derivava em parte de uma perspectiva
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cristã, que via a evangelização como parte fundamental da colonização.
E a evangelização requeria um conhecimento íntimo dos fundamentos
culturais das culturas não cristãs. Daí a ênfase em valores, idéias e prá-
ticas, algumas antigas, que regulamentavam a vida do não-europeu.
Quanto mais se conhecesse a respeito delas, mais fácil seria a evangeli-
zação dos sujeitos que as cultivavam. Também existia a idéia de que o
momento culminante das civilizações orientais estava no passado, e que
o presente se entendia melhor como o resultado de um processo de de-
cadência interna.4 Enquanto o orientalismo via o “oriental” contempo-
râneo como um fruto não merecido de sua grande cultura antiga, a an-
tropologia se aproximava do “primitivo” como o passado decadente da
civilização moderna. Assim, como havia uma linha descendente do pas-
sado ao presente decadente dos “orientais”, da mesma forma se via uma
linha ascendente do “primitivo” ao homem moderno europeu que, iro-
nicamente, lhe era contemporâneo.
Os Estados Unidos necessitavam definir uma geografia do co-
nhecimento distinta, o que implicava também uma nova forma distinta
de entender o tempo (passado/presente/futuro). Livre de certos precon-
ceitos europeus e, em certa medida, de antigos preconceitos cristãos, os
ideólogos dos Estudos de Área nos Estados Unidos sentiram a necessi-
dade de conhecer o mundo não europeu tal como era no presente. Para
isto, nem o orientalismo nem a antropologia eram de muita ajuda. Por
isto, passaram a ser aplicadas as própriasciências sociais (a sociologia,
as ciências políticas e a economia) para o estudo do não-europeu e do
não-estadunidense. É certo que havia alguma reflexão nas ciências so-
ciais sobre as culturas e as sociedades consideradas não modernas, mas
este não era seu foco principal. E quando as tomavam em consideração,
as ditas ciências reduplicavam a visão geopolítica e temporal com as
quais o orientalismo e a antropologia operavam. Todas elas eram guia-
das por uma filosofia da história eurocêntrica, que as impedia de ver os
não-europeus como contemporâneos.
4 Ver a análise do trabalho de Max Müller e outros teóricos da religião em: John Wolffe (org.),
Religion in Victorian England. Volume 5: Culture and Empire (Manchester, Manchester
University Press, 1997).
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Os Estudos de Área foram um passo mais adiante das ciências
sociais e se anteciparam a elas em conceber a contemporaneidade das
sociedades não européias. Certamente, este passo não pode ser exagera-
do como tampouco se pode esquecer que o objetivo deste ia muito além
do conhecimento e do controle de países não europeus pelo poder esta-
dunidense. A noção de certa contemporaneidade no estudo das socieda-
des não européias e coloniais também vinha muito a propósito do pro-
cesso de descolonização que começou a ocorrer pouco depois do fim da
guerra mundial. Antigas colônias passavam a ser, agora, estados nacio-
nais e, portanto, começavam a ser administrados com as mesmas
tecnologias e idéias que a Europa utilizou na fabricação de seus esta-
dos-nação. Outro fator era a União Soviética, que representava uma
ameaça neste “atual” momento para o mundo, tal como era concebido
pelo estadunidense e pelo bloco ocidental. Os Estudos de Área, conce-
bidos inicialmente antes do começo da Guerra Fria por funcionários da
milícia estadunidense, propunham de antemão uma nova orientação, que
viria muito bem ao confrontar o mundo que lhe caberia “conduzir”.5
Outra contribuição dos Estudos de Área às ciências sociais euro-
péias foi a introdução de uma perspectiva interdisciplinar. Os Estudos de
Área abandonaram o compromisso com a integridade metodológica das
ciências e enfocaram, sobretudo, a suposta integridade da região geopolí-
tica a considerar. Os especialistas em Estudos de Área se apropriavam de
diversas disciplinas (sociologia, geografia, ciência política, etc.) para lan-
çar luz sobre a complexidade do mundo com o qual os Estados Unidos
agora se defrontavam. A especialização disciplinar encontrava limites ao
confrontar-se com a nova tarefa de oferecer conhecimento sobre um mun-
do concebido como cambiante e desafiante. Os Estudos de Área refletiam
esta nova percepção e obedeciam a novos imperativos. Serviam aos pro-
pósitos não de uma Europa que se pensava como o clímax da civilização
humana e que concebia os outros como atados ao passado e à tradição,
mas aos de uma jovem nação que estava muito familiarizada com a possi-
bilidade da mudança (de colônia, a estado-nação, a império) e que se
orientava fundamentalmente para o futuro.
5 Sobre a relação entre os Estudos de Área e a milícia estadunidense, ver Wallerstein, “The
Unintended Consequences”, pp. 195-210.
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Mesmo que os Estudos de Área tenham superado de alguma for-
ma o preconceito cristão sobre as culturas e as sociedades não cristãs,
estavam inspirados, ao menos indiretamente, pelo cristianismo. Os emer-
gentes Estudos Religiosos, forjados em grande medida por evangélicos
brancos, serviram de modelo para os Estudos de Área. E hoje em dia a
oposição à influência dos Estudos Pós-coloniais nos Estudos de Área
tem levado a estabelecer um regresso dos Estudos de Área à sua relação
íntima com o militarismo e com a conservadora agenda cristã evangéli-
ca nos Estados Unidos.6 Com efeito, os Estudos Religiosos precederam
os Estudos de Área na academia estadunidense e, de fato, foram os pri-
meiros tipos de studies nos Estados Unidos.
A relação entre Estudos Religiosos e Estudos Étnicos é relevante
por várias razões. Em primeiro lugar, tal como indiquei, estudos sobre
religiões mundiais serviram de guia para a definição dos Estudos de
Área. Mesmo que em seu princípio estivessem muito orientados pela
teologia cristã, os Estudos Religiosos apregoavam um enfoque interdis-
ciplinar à religião, que em muitos casos era vista como relativa a regi-
ões. A relação entre Estudos Religiosos e Estudos de Área é relevante
também porque ilustra dinâmicas interessantes entre o conhecimento e
o poder, já não somente entre elites na Europa e nos Estados Unidos,
mas entre as elites nos próprios Estados Unidos. Se os Estudos de Área
eram a expressão dos interesses cognitivos de elites estadunidenses em
um momento de auge e reconhecimento a nível mundial, a emergência
dos Estudos Religiosos obedeceu à resposta de elites cristãs nos Esta-
6 Há apenas dois anos, quando ainda era diretor do Departamento de Estudos Internacionais no
Trinity College (Hartford, Connecticut), Vijay Prashad estabeleceu o seguinte: “O establishment
quer trazer de volta os programas de Estudos de Área para seus objetivos originais. Os Estu-
dos de Área emergiram no começo deste século principalmente como parte do evangelismo
estadunidense: K. S. Latourette, em Yale, ajudou a emergência do East Asian Studies (seu
livro de 1929 é History of the Christian Missions in China); H. E. Bolton, em Berkeley, foi o
pioneiro nos Latin American Studies (seu livro de 1936 é The Rim of Christendom: A Biography
of Eusebio Francisco Kino, Pacific Coast Pioneer); A. C. Coolidge, em Harvard, definiu os
contornos dos Slavic Studies (seu grande livro de 1908 é intitulado The United States as a
World Power). Em sua infância, a Igreja e Washington ajudaram a ninar os Estudos de Área.
Nossos evangélicos imperialistas de hoje querem retornar a este período”: Vijay Prashad,
“Confronting the Evangelical Imperialists”, http://www.counterpunch.org/
prashad11132003.html, acessado em 17/10/2005.
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dos Unidos diante do questionamento do controle da educação.7 Quan-
do as bases seculares da universidade moderna se fortaleceram nos Es-
tados Unidos e as elites religiosas foram marginalizadas, estas tentaram
manter sua presença na universidade para, entre outras coisas, continuar
fornecendo uma educação religiosa e moral à nova geração da elite es-
tadunidense. Porém, a base de tal educação já não podia ser teológica
ou confessional, mas secular. Daí o surgimento dos Estudos Religiosos,
que, em sua maioria, eram controlados pelas mesmas elites brancas pro-
testantes que tinham sido deslocadas da universidade. Em alguns casos,
a transição foi óbvia: o estudo confessional da religião foi-se localizan-
do em escolas teológicas e seminários fora da universidade, mas as eli-
tes, no controle das escolas e dos seminários, iam formando, paulatina-
mente, por sua vez, departamentos ou programas de Religião para, as-
sim, assegurar alguma influência na educação liberal das novas elites.8
Por conseguinte, as primeiras formas de studies, ou estudos inter-
disciplinares nos Estados Unidos, estavam diretamente relacionados aos
interesses das elites. Não há nada nos estudos interdisciplinares que os
façam, por exemplo, anti ou pós-positivistas, ou que os façam críticos. Os
chamados Estudos Étnicos (e os Estudos da Mulher) têm uma orientação
e uma origem fundamentalmente distintas. Em vez de darem expressão
aos interesses políticos e cognitivos das elites estadunidenses, eles são
resultados de protestos de movimentos sociais nos Estados Unidos. Aqui,
os protagonistas não eram as elites brancas, mas setores sociais racializados
e marginalizados por elas, primeiro com o genocídio indígena e com a
escravidão negra e, depois, com a colonização do norte do México a par-tir de 1848, e de Guam e Porto Rico a partir de 1898. Também se encon-
travam entres estes grupos de imigrantes da China, do Japão, da Coréia,
do Vietnam e de outros lugares na Ásia e na América Latina, que tinham
vindo trabalhar na jovem nação e que se identificavam com os sujeitos
nela já racializados. A pressão e o protesto de indígenas, negros, chicanos,
porto-riquenhos, chineses e tantos outros, desde os anos cinqüenta e, es-
7 Para um estudo amplo e detalhado sobre o surgimento dos Estudos Religiosos nos Estados
Unidos e sua afiliação com elites cristãs brancas, ver D. G. Hart, The University Gets Religion:
Religious Studies in American Higher Education, Baltimore, The Johns Hopkins University
Press, 1999.
8 Hart, The University Gets Religion.
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pecialmente, nos finais da década de sessenta, tiveram como resultado a
criação dos Estudos Étnicos.9 Mas a pergunta é saber qual é a sua base
epistemológica. É aqui que a idéia de Wallerstein, de que os Estudos Étni-
cos são uma conseqüência não intencional dos Estudos de Área, se faz
relevante, mas também onde se mostra muito problemática.
Segundo esse autor, a academia estadunidense em grande medida
deve aos Estudos de Área a legitimação dos estudos interdisciplinares.
Mesmo que sempre tenham existido seus céticos, estes continuaram pro-
pagando-se e hoje em dia é claro que não há volta atrás. No final dos anos
sessenta e princípios dos setenta, os Estudos de Área estavam bem estabe-
lecidos na academia estadunidense. E em um contexto onde distintos gru-
pos étnicos reclamavam representação acadêmica, tanto de professores
como em termos de matéria, estes serviram como modelo para a incorpo-
ração de tais demandas à universidade secular e moderna estadunidense.
Os Estudos Étnicos, como os Estudos de Área, eram interdisciplinares,
mas em vez de adquirirem coerência a partir da região do mundo à qual se
dedicavam, tomavam como objetos de pesquisa as distintas comunidades
étnicas de cor nos Estados Unidos, isto é, assim como os Estudos de Área
se aproximavam de distintas regiões do mundo (África, Ásia, América
Latina, etc.), os Estudos Étnicos tomam como objeto distintos grupos
minoritários dentro de um estado-nação. No caso dos Estados Unidos,
estes grupos são afro-americanos, asiático-americanos, povos indígenas e
latinos. A diferença entre Estudos de Área e Estudos Étnicos também es-
tava na natureza de sua origem e, por isto, também, de certa maneira, em
sua missão: os Estudos de Área se orientavam pela idéia de prover conhe-
cimento sobre regiões estrangeiras para poder avaliar seu perigo e deter-
minar qual tipo de resposta e ação haveria por parte dos Estados Unidos
(desde econômica até bélica), enquanto os Estudos Étnicos estavam fun-
damentalmente orientados pela tarefa de “empoderamento” (empowering)
das comunidades despojadas de recursos de forma sistemática. Enfim, a
meta do primeiro estava altamente ligada com um projeto neocolonial de
uma nação que se tornava hegemônica, enquanto o segundo se orientava
por uma agenda de descolonização interna.
9 Wallerstein, “The Unintended Consequences”, pp. 227-8.
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No entanto, a divisão do trabalho acadêmico dos Estudos Étnicos
com base em distintos grupos étnicos na nação encarnava um duplo peri-
go: acréscimo de políticas sectárias de identidade e certo compromisso
com o que Lisa Lowe denomina de ontologia nacional.10 O primeiro peri-
go criava dissensão e luta por recursos por parte dos diferentes programas
de estudo ou departamentos vinculados aos Estudos Étnicos, e o outro
ajudava a legitimar a idéia de certo excepcionalismo estadunidense, que
levava a soslaiar o tema do caráter amplo da racialização e da colonização
no mundo moderno/colonial.11 Por conseguinte, poder-se-ia dizer que,
embora os Estudos de Área tivessem uma origem imperial, podiam tor-
nar-se, através de reflexões críticas sobre as ambições dos Estados Uni-
dos, fonte do pensamento descolonizador; os Estudos Étnicos, cuja ori-
gem tinha sido inspirada por lutas da descolonização interna da sociedade
estadunidense, podiam tornar-se ineficazes ou às vezes cúmplices, com
um ponto de vista não necessariamente colonizador, porém ao menos con-
servador. Os Estudos Étnicos por vezes se tornavam superparticularistas,
ou seja, estabeleciam que o que se aplicava a um grupo étnico não se
aplicava a outros. Cada grupo era visto como um bastião a proteger e só
um especialista que ao mesmo tempo pertencesse ao grupo em questão
teria a autoridade para produzir conhecimento sobre o mesmo. Outras
vezes, os Estudos Étnicos esboçavam-se em termos da aplicação e expan-
são mínima de disciplinas estabelecidas. Existia a idéia de que as ciências
sociais tinham limitações, mas ao mesmo tempo se tinha a impressão de
que não se podia afastar delas. Isto tinha tanto a ver com a preparação
acadêmica de seus professores como com questões de legitimação. Além
10 Lisa Lowe, “Epistemological Shifts: National Ontology and the New Asian Immigrant,” in
Kandice Chuh e Karen Shimakawa (orgs.), Orientations: Mapping Studies in the Asian Diaspora
(Durham, Duke University Press, 2001), pp. 267-76.
11 Para uma explicação da concepção de “mundo moderno/colonial”, ver Walter Mignolo, “José de
Acosta’s ‘Historia Natural y Moral de las Indias’: Occidentalism, the Modern/Colonial World,
and the Colonial Difference”, in Jane E. Mangan (org.), Natural and Moral History of the Indies
by José de Acosta (Durham, Duke University Press, 2002), pp. 451-518. A idéia de modernida-
de/colonialidade é inspirada pelo trabalho de Aníbal Quijano sobre a colonialidade do poder.
Ver, entre outros, Aníbal Quijano, “Colonialidad del poder y clasificación social”, Journal of
World-Systems Research, vol. 6, no 2 (2000), pp. 342-386; Idem, “Colonialidad del poder, cultu-
ra y conocimiento en América Latina”, in Santiago Castro-Gómez, Oscar Guardiola-Rivera e
Carmen Millán de Benavides (orgs.), Pensar (en) los intersticios: teoría y práctica de la crítica
poscolonial (Bogotá, Centro Editorial Javeriano/Instituto Pensar, 1999), pp. 99-109; Idem,
“Colonialidad y modernidad/racionalidad”, Perú indígena, vol. 13, no 29 (1991), pp. 11-20.
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disto, seria preciso acrescentar que foram certas disciplinas, como a soci-
ologia, a história, a literatura e os estudos culturais, que dominaram o
campo. Hoje em dia, a interdisciplinaridade aumenta e se somam novas
disciplinas, como a filosofia e os estudos religiosos, às ofertas dos Estu-
dos Étnicos. Mas tal enriquecimento e expansão ainda não calam os céti-
cos que consideram os Estudos Étnicos como um “resultado não intenci-
onal dos Estudos de Área” ou como um agente meramente político dentro
da academia que, ao mesmo tempo, está obcecado por visões identitárias
e que participa de uma ontologia nacional.
A pergunta-chave aqui é a seguinte: quais são as problemáticas que
confrontam os Estudos Étnicos que lhes são intrínsecas e quais emanam
de sua afiliação com os Estudos de Área? Mas, se os Estudos Étnicos são
um “resultado não intencional dos Estudos de Área”, então não haveria
base para fazer tal distinção. Faltaria, no entanto, explorar outra alternati-
va: não que os Estudos Étnicos sejam um “resultado não intencional dos
Estudos de Área”, mas que estes tenham servido como modelo para
institucionalizar, na estrutura acadêmica existente, o tipo de demandas e
intervenções que os grupos minoritários étnicos nos Estados Unidos fize-
ram à universidade. Wallerstein não faz esta distinção. A idéia aqui con-
siste em que não foi que os Estudos de Área tivessem um resultado impre-
visto, mas que, sem nunca pretendê-lo ou tê-lo em seu horizonte de possi-
bilidades, facilitaram e ao mesmo tempo canalizaram (e, portanto, pude-ram ter limitado) a incorporação de demandas de grupos políticos subal-
ternos à academia. Wallerstein assinala a origem particular dos Estudos
Étnicos, mas fica satisfeito em identificar uma epistemologia comparti-
lhada com os Estudos de Área. Assim, esquece tanto a dimensão episte-
mológica das intervenções políticas como aquelas formas de “Estudos
Étnicos” que precederam os Estudos de Área e se tornaram desde o come-
ço parte fundamental destes. Daí que Wallerstein não possa notar seu po-
tencial epistemológico nem as implicações para a forma com que o co-
nhecimento está estruturado na academia ocidental. Por isto, nos seus
escritos sobre “des-pensar” as ciências sociais e nas suas explorações so-
bre como articular uma ciência social para o século XXI, toma as ciências
naturais como modelo de mudança epistemológica inovadora, mas nunca
lhe ocorre considerar as formas de conhecimento que se tornaram cen-
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trais nos Estudos Étnicos e que atualmente continuam a evoluir, como
fundamentais para um processo de descolonização epistêmica e de trans-
formação da divisão do conhecimento na universidade.12
A subordinação dos Estudos Étnicos aos Estudos de Área por
parte de Wallerstein, assim como sua fascinação pelas ciências naturais
e a impossibilidade de observar inovações epistemológicas genuínas
fora deste âmbito, o faz parecer ao mesmo tempo antiquado e inconsis-
tente. Antiquado porque é claro que ainda toma as ciências naturais como
modelo de conhecimento (embora o que toma delas é a forma como se
adaptaram à mudança), e inconsistente porque sua forma preferida de
análise (análise de sistema-mundo) foi inspirada por mudanças
epistêmicas que também podem ser vinculadas à origem dos Estudos
Étnicos: a sociologia da dependência latino-americana, que nasceu jun-
to com os Estudos Étnicos na década dos sessenta. Em resumo,
Wallerstein liga excessivamente os Estudos Étnicos com os Estudos de
Área, quando poderia, ao invés, explorar as bases comuns entre os Estu-
dos Étnicos e a análise do sistema-mundo. Com toda a justiça devida a
Wallerstein, é preciso assinalar que ele merece todo o crédito por estar
aberto a este tipo de trabalho e por ajudar a difundi-lo.13
Outra visão dos Estudos Étnicos
Tentemos então dar outra perspectiva aos Estudos Étnicos, não mais
ancorados em outras formas de studies nem distanciados delas somente
por sua origem.
12 Immanuel Wallerstein, The End of the World as We Know It: Social Science for the Twenty-
First Century, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1999; Idem, Unthinking Social
Science: The Limits of Nineteenth-Century Paradigms, Cambridge, Polity Press, 1991. Para
aproximações críticas desta dimensão do trabalho de Wallerstein, ver: Ramón Grosfoguel,
“Colonial Difference, Geopolitics of Knowledge, and Global Coloniality in the Modern/Co-
lonial World-System”, Review, vol. 25, no 3 (2002), pp. 203-24; Idem, Colonial Subjects:
Puerto Ricans in a Global Perspective, Berkeley, University of California Press, 2003; Idem,
“Subaltern Epistemologies, Decolonial Imaginaries and the Redefinition of Global Capitalism”,
Review, vol. 28, no 4 (2005); Nelson Maldonado-Torres, “Post-imperial Reflections on Crisis,
Knowledge, and Utopia: Transgresstopic Critical Hermeneutics and the ‘Death of European
Man’”, Review, vol. 25, no 3 (2002), pp. 277-315.
13 Exemplos deste são Grosfoguel, Colonial Subjects; Ramón Grosfoguel, Nelson Maldonado-
Torres e José David Saldívar (orgs.), Latin@s in the World System: Decolonization Struggles
in the 21st Century U.S. Empire (Boulder, Paradigm Press, 2005).
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1) Os Estudos Étnicos estão chamados erroneamente.
Tomo como partida aqui a idéia já discutida sobre o paralelo fundamental
entre os Estudos Étnicos e os Estudos de Área. Segundo este ponto de
vista, a diferença entre eles é que, enquanto os Estudos de Área tomam
como objeto de indagação distintas áreas geopolíticas dentro de um âmbi-
to internacional, a “área” em questão para os Estudos Étnicos estaria com-
posta por minorias étnicas dentro de uma nação. O interessante neste caso
é que os Estudos Étnicos têm tendido a utilizar em suas análises mais a
linguagem de raça que a linguagem de “etnicidade”. Isto é, apesar do seu
nome, “etnia” nunca se converteu na categoria central dos Estudos Étni-
cos tal como se produzem nos Estados Unidos. Por que tal coisa? Em
primeiro lugar, a razão foi que a mesma onda de movimentos de protesto
que deu origem aos chamados Estudos Étnicos respondia criticamente a
uma realidade que estabelecia um caráter diferencial entre umas etnicidades
e outras. Os europeus tinham sido e continuavam sendo integrados à na-
ção muito mais rápida e efetivamente que grupos provenientes de outras
regiões, particularmente no sul e no “leste”. A integração era muito mais
fácil para sujeitos de pele clara provenientes da Europa, e mais difícil para
os considerados de cor e que eram provenientes de outros lugares. Entre-
tanto, a população negra e a indígena, que tinham sido constitutivas do
estado-nação, continuavam em posição subordinada.
E, de fato, uma estratégia para legitimar a subordinação era a
identificação com algum destes grupos. Os irlandeses e os chineses, por
exemplo, eram chamados nigger, ou eram considerados como negros,
mas à medida que se diferenciaram da comunidade negra foram reco-
nhecidos como brancos ou, no caso dos chineses, Asian-Americans (ou
seja, uma identidade à parte dos negros, que podiam reclamar sua con-
dição de imigrantes).14 O mesmo ocorreu com outros grupos étnicos,
isto é, mesmo que os Estados Unidos se declarassem um melting pot,
era claro que existiam grupos aos quais não era permitido dissolver-se
na sopa étnica, eram algo assim como elementos indissolúveis na parte
14 Jonathan W. Warren e France Winddance Twine, “White Americans, the New Minority?: Non-
Blacks and the Ever-Expanding Boundaries of Whiteness”, Journal of Black Studies, vol. 28,
no 2 (1997), pp. 200-18. Grosfoguel também fala da “afro-americanização” de porto-riquenhos
em Nova Iorque. Ver Grosfoguel, Colonial Subjects.
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de baixo do caldeirão. Tanto a estrutura do poder como o caráter das
razões apontadas indicavam uma continuidade do legado do racismo
nos Estados Unidos. Isto é, havia etnias que eram tratadas e continuam
sendo tratadas como raças. A noção de Estudos Étnicos pode muito bem
oferecer à universidade uma forma de aceitar e situar os estudos que se
encarregam de analisar o racismo na modernidade, mas não corresponde
à análise que freqüentemente se faz neste espaço de trabalho.
A noção também corre o perigo de invisibilizar as relações de
poder que continuam produzindo um mundo estruturado pela idéia de
raça ou por atitudes raciais. Quando me refiro à idéia de raça, não digo
com isto que estas existam como entidades biologicamente determina-
das, e sim como social e politicamente criadas. Ainda que, já raramente,
se justifiquem formas de dominação racial utilizando o conceito de raça,
não se deve esquecer que, quando uma idéia ou conceito tem sido regu-
lador em uma sociedade, mostrar sua falsidade não é suficiente para
alterar a estrutura de poder nem o comportamento dos sujeitos. Pierre
Bourdieu falava da noção de habitus para referir-se a idéias e conceitos
já incorporados ao nível corporal, ritual e comportamental dos sujeitos
e que continuam funcionando mesmo quando o conceito já não é legíti-
mo.15 Quando falamos de racismo, falamos de padrões de conduta e
atitudes, assim como de uma infra-estrutura social que continua e disse-
mina o preconceito racial de distintas formas.
Já Fanon havia falado de mutações no discurso racial: de um ra-
cismo biológico a um cultural.16 Da mesma maneira, pode-se falar de
umracismo epistemológico, que milita contra a integração de sujeitos
de cor aos sistemas universitários e ao florescimento de formas de pen-
samento que dão expressão a suas perguntas, inquietudes e desejos. Em
um contexto onde sujeitos racializados mal começam a encontrar apoio
para ter acesso à educação universitária, os Estudos Étnicos têm muito a
oferecer para ajudar a descolonizar as estruturas institucionais e episte-
mológicas no modelo universitário existente. Por isto, seguindo a inte-
lectual chicana Laura Pérez, sugiro que sejam denominados Estudos
15 Pierre Bourdieu, The Logic of Practice, Standford, Stanford University Press, 1990.
16 Frantz Fanon, Toward the African Revolution: Political Essays, Nova Iorque, Grove Press, 1988.
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Descolonizadores ou Descoloniais. Assim também, pode-se referir às
perspectivas que trabalham dentro deste espaço acadêmico como ciên-
cias descoloniais.
2) Estudos Étnicos ou uma nova instituição e estrutura epistemológica
Outro ponto interessante a respeito da origem dos Estudos Étnicos é que
os movimentos sociais que os impulsionaram demandavam não um de-
partamento ou programa de ensino e pesquisa, mas uma Universidade
do Terceiro Mundo.17 Isto implica em primeiro lugar que estes grupos
tinham uma visão de transformação epistemológica e institucional am-
pla e que sabiam que tal transformação não podia ocorrer dentro das
instituições educativas já estabelecidas. Portanto, o problema que os
Estudos Étnicos enfrentam não é só que seu próprio nome milita contra
o tipo de intervenção que propõe, mas também que claramente sua adap-
tação ao nível departamental ou de programa na universidade é uma
expressão limitada para as ambições que lhes deram origem. As inter-
venções políticas e epistemológicas de grupos sociais demandavam uma
nova universidade e não só um nicho dentro da universidade existente.
Por conseguinte, ainda que os Estudos Étnicos tenham sido tomados
como exemplo por alguns de uma aventura interdisciplinar, suas ori-
gens apontam para algo mais radical ainda, que sugere a transgressão e
a transcendência das disciplinas, isto é, uma perspectiva transdisciplinar
orientada, neste caso, por uma perspectiva descolonizadora e desraci-
alizadora. A Universidade do Terceiro Mundo teria de converter-se em
17 Para uma revisão da história e das metodologias principais nos Estudos Étnicos nos Estados
Unidos, ver Ramon A. Gutierrez, “Ethnic Studies: Its Evolution in American Colleges and
Universities,” in David Theo Goldberg (org.), Multiculturalism: A Critical Reader (Malden,
Blackwell, 1995), pp. 157-67; Evelyn Hu-DeHart, “The History, Development, and Future of
Ethnic Studies”, Phi Delta Kappan, vol. 75, no 1 (1993), pp. 50-55; Philip Q. Yang, Ethnic
Studies: Issues and Approaches, Albany, State University of New York Press, 2000. Para uma
análise da relação entre Estudos (de área) Latino Americanos e Estudos (étnicos) Latinos,
veja-se Agustín Lao Montes, “Latin American Area Studies and Latino Ethnic Studies: From
Civilizing Mission to the Barbarian’s Revenge”, Newsletter on Hispanic/Latino Issues in
Philosophy, 2 (2001); Walter Mignolo, “The Larger Picture: Hispanics/Latinos (and Latino
Studies) in the Colonial Horizon of Modernity”, in Jorge J. E. Gracia e Pablo de Greiff (orgs.),
Hispanics/Latinos in the United States (Nova Iorque/London, Routledge, 2000); Walter
Mignolo, “Latin American Social Thought and Latino/as American Studies”, Newsletter on
Hispanic/Latino Issues in Philosophy, 2 (2001).
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uma máquina de conhecimento que desmontaria as estruturas epistemo-
lógicas postas pelo racismo e pelo colonialismo e por outras formas de
subordinação e hegemonia e, ao mesmo tempo, abriria lugar à articula-
ção sistemática de distintas formas de conhecimento.
3) Movimento internacional
Este item está articulado com o anterior. O movimento social que exigia
a criação de uma Universidade do Terceiro Mundo também se denomi-
nava um movimento do Terceiro Mundo. Isto significava, por um lado,
que sua consciência era internacionalista e não nacionalista. Esta di-
mensão internacionalista do movimento vinha, por um lado, de uma
experiência prévia do movimento negro nos Estados Unidos e no Caribe,
que já tinha adquirido uma perspectiva ampla do problema racial e o
havia relacionado ao problema colonial na modernidade. Du Bois,
Césaire e Fanon foram três figuras que haviam defendido este ponto de
vista. A visão internacionalista também era própria a chicanos, porto-
riquenhos, descendentes de chineses, japoneses e outros, pois claramente
a forma com que estes eram percebidos nos Estados Unidos estava alta-
mente relacionada à posição que seus países de origem ocupavam no
imaginário moderno e na ordem internacional da guerra fria, isto é, a
racialização social nos Estados Unidos estava relacionada a uma racia-
lização mais ampla em nível geopolítico.18 E, em muitos casos, as elites
de alguns países do Terceiro Mundo que vinham aos Estados Unidos
chegavam a experimentar pela primeira vez na própria carne o estigma
racial associado ao seu país de origem, que, por sua vez, estava relacio-
nado ao racismo que estas mesmas elites sustentavam em relação aos
sujeitos de cor em seus países, ou seja, com poucas exceções, qualquer
sujeito do Terceiro Mundo, elite ou não, encontraria racismo nos Esta-
dos Unidos. A experiência migratória para o norte não podia deixar de
fazer referência a um espaço geopolítico mais amplo.
Outra razão, ainda mais óbvia, para que o movimento de protes-
to, cujas petições deram origem aos Estudos Étnicos nos Estados Uni-
18 Esta perspectiva tem adquirido mais vigor nos últimos anos. Ver Kandice Chuh e Karen
Shimakawa (orgs.), Orientations: Mapping Studies in the Asian Diaspora (Durham, Duke
University Press, 2001); Grosfoguel, Maldonado-Torres, e Saldívar, Latin@s in the World System.
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dos, tivesse um caráter internacionalista é que este era um entre tantos
outros movimentos de protesto no mundo, durante a década dos sessenta.
A experiência do movimento de direitos civis estava muito presente. Em
tal luta, alguns de seus representantes, como Martin Luther King Jr., apren-
diam do movimento pela descolonização da Índia, impulsionado por
Mahatma Gandhi. O chicano César Chávez, dirigente de camponeses no
sudoeste dos Estados Unidos, por sua vez, se reunia com Martin Luther
King e também lia vorazmente os escritos de Gandhi. O movimento
chicano e o negro radical leram Fanon. Mesmo que Fanon tenha escrito
na Martinica e na Argélia, falava-lhes claramente, tal como ainda conti-
nua falando a muitos hoje.19 É certo que existiam movimentos ultranaci-
onalistas nos Estados Unidos ou com visões muito estreitas da identidade.
Contudo, facções do movimento negro e do chicano, primordialmente,
junto com grupos indígenas, porto-riquenhos e minorias racializadas de
outra procedência, se uniram em um movimento com uma forte tendência
internacionalista e transétnica, indo além das políticas da identidade e do
nacionalismo e, por isto, pediam uma Escola do Terceiro Mundo. Tudo
isto indica que, embora haja diferenças entre grupos e descontinuidades
na forma com que se exerce o poder, também existem elementos em co-
mum e continuidades, cujo reconhecimento tem servido de plataforma
para uma intervenção política e epistemológica radical.
As ciências sociais tendem a dividir o mundo em pedaços (o po-
lítico, o econômico, o social); estes grupos, no entanto, demandavam a
articulação de tendências similares e de continuidades nas formas mo-
dernas de poder que os continuam oprimindo e marginalizando. As ci-
ências sociais nos tempos da pós-modernidade se recusam a generali-
zar: mas, como não aludir a generalidades, quando o quefaz o racismo
é precisamente isto, a saber, impor generalidades? Eliminar a referência
a generalidades e a padrões de poder levaria, por um lado, a tornar o
racismo invisível e, por outro, a eliminar a possibilidade de uma luta
conjunta contra o mesmo. O mundo não é tão dicotômico como a mo-
19 Sobre o tema da relevância de Fanon hoje, ver Lewis R. Gordon, “Through the Zone of Nonbeing:
A Reading of ‘Black Skin, White Masks’ in Celebration of Fanon’s Eightieth Birthday”, The
C.L.R. James Journal, vol. 11, no 1 (2005), pp. 1-43, e Homi K. Bhabha, “Framing Fanon”, in
Frantz Fanon, Wretched of the Earth, Nova Iorque, Grove/Atlantic, 2004, pp. vii-xii.
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dernidade o queria fazer ver, mas também não é tão fragmentado como
os pós-modernos o anunciam. O desafio para as ciências descoloniais
consiste em poder reconhecer a diversidade sem atropelar a unidade,
reconhecer a continuidade sem menosprezar a mudança e a desconti-
nuidade. Também estas têm que reconhecer que a mudança e a unidade
são relativas aos olhos de quem vê e que, para sujeitos racializados, o
mundo, ao fim e ao cabo, não mudou tanto. Aos condenados ao inferno
da modernidade/colonialidade não lhes toca gozar demasiado de mu-
danças na terra ou no céu. As ciências descoloniais são as que tentam
dar sentido e precisão a tal impressão.
Finalmente, cabe perguntar-se por que, se os mal denominados
Estudos Étnicos têm uma raiz tão profundamente internacionalista, es-
tes se consideram nacionalistas, identitários ou particularistas. Tal opi-
nião não deve resultar estranha, pois uma conseqüência peculiar do le-
gado racista é que sujeitos de cor não podem articular generalidades ou
pontos de vista que ultrapassem seu contexto ou subjetividade. É como
os debates que têm ocorrido em alguns lugares na América do Sul sobre
se um indígena pode ter uma posição de liderança em um país.20 Argu-
mentos esgrimidos contra este incluem a idéia de que um indígena não
pode representar todos os setores da sociedade. Um indígena representa
os indígenas e só pode expressar seus interesses. Um mestiço, no entan-
to, é visto como alguém que pode representar os interesses de todos.
Por outro lado, é certo que os chamados Estudos Étnicos, por
vezes, têm contribuído para tal concepção. Este padrão também é co-
nhecido nas relações raciais: às vezes o sujeito racializado oferece como
resposta um ponto de vista que, no final das contas, legitima ou reforça
a perspectiva dominante sobre grupos racializados. A este respeito é
preciso dizer que os Estudos Étnicos têm mostrado duas limitações par-
ticulares em sua história (que estão ligadas em parte à sua origem e à
sua forma de acomodação na universidade moderna): o imediatismo
político e a necessidade de reconhecimento da identidade. O problema
tem sido que as dimensões teóricas profundas dos movimentos que de-
ram origem aos Estudos Étnicos têm sido postas em questão, às vezes
20 Penso principalmente no caso do Equador nos últimos anos.
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não só por eurocêntricos brancos, mas também por sujeitos de cor, que
demandavam ingerência política concreta imediata ou que viam os Es-
tudos Étnicos como um serviço terapêutico para minorias que busca-
vam saber mais de sua identidade. Estes são problemas internos aos
Estudos Étnicos, que foram exacerbados por sua localização na estrutu-
ra universitária dominante. A universidade dominante abre um espaço
aos Estudos Étnicos para que haja representação étnica e não para que
haja revolução epistêmica. O motivo principal para a universidade é
que os Estudos Étnicos se convertam em um espaço para acomodar in-
telectuais de cor e, depois, que estes a sirvam com conhecimento sobre
sua história e cultura para os estudantes de cor.
Para as ciências descoloniais o assunto central é muito diferente,
suas preocupações mais centrais têm a ver com a pergunta sobre o que
significa que o sujeito racializado se converta em sujeito de conheci-
mento, isto é, o que ocorre quando alguém que é considerado objeto se
torna sujeito? Que sentido de subjetividade surge desde a experiência
de ser objeto? Que se pode dizer sobre estruturas materiais e epistemo-
lógicas que legitimaram a produção de uns sujeitos como objetos? Cla-
ramente daí nasce uma nova teoria crítica e um novo sentido do huma-
no. Por aí vem o quarto e último ponto.
4) As fontes intelectuais das ciências descoloniais
Já dissemos que a caracterização que faz Wallerstein dos Estudos Étni-
cos explica melhor os mecanismos de sua incorporação à academia, e
não sua inspiração nem bases fundamentais epistemológicas. Para ter
uma noção destas, devemos procurar figuras-chave nos Estudos Étni-
cos, agora denominados, junto com outras perspectivas críticas nas dis-
tintas disciplinas acadêmicas, de ciências descoloniais. A noção de ci-
ências descoloniais surge quando as formas de conhecimento crítico e
de construção de alternativas próprias dos Estudos Étnicos são entendi-
das como centrais a um processo de descolonização material e epistêmica.
Enquanto as ciências sociais serviam à nação, as ciências descoloniais
servem ao processo de descolonização, que começou no exato momen-
to em que também se iniciou a colonização moderna. As ciências
descoloniais encontram sua primordial inspiração não no assombro di-
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ante do mundo, mas no grito do colonizado ante uma realidade
desumanizadora. Elas respondem ao escândalo que significa a morte, o
genocídio e a racialização de humanos por outros.
O escândalo diante do mundo da morte colonial se transforma no
grito e o grito gradualmente se torna pranto, amor, teoria e ciência.21 O
grito e o pranto gradualmente se tornam uma atitude crítica, cognitiva e
prática que se pode chamar “atitude descolonial”.22 Pois bem, a atitude
descolonial serve de inspiração e orientação a uma forma de conheci-
mento que interrompe a estrutura das ciências estabelecidas. Du Bois
deixou isto claro em seu texto The Souls of Black Folk (As almas da
gente negra): ele atravessou o véu imposto pelo racismo para, pela pri-
meira vez, ter uma idéia de como se via o mundo na perspectiva dos
sujeitos racializados.23 Desde este posicionamento, o que ele identifi-
cou como problema não era a gente negra, mas o que chamou a “linha
de cor” ou o racismo. Du Bois também percebeu o que denominou de
“dupla consciência” do negro, que consistia em se ver, em primeiro lu-
gar, a partir da perspectiva do branco ou do sujeito em uma posição
hegemônica.
Lewis Gordon tem destacado que também há um segundo estado
da dupla consciência: o momento quando o cientista nota as contradi-
ções entre as promessas e as afirmações da visão hegemônica em torno
do humano e a realidade que confrontam os sujeitos racializados.24 O
primeiro momento é o do engano, mas também o do escândalo diante da
realidade que conduz a tal auto-engano. O segundo momento é o da
crise (a chamada a uma decisão) e o da crítica. Parece-me também que
21 Ver Gordon, “Through the Zone of Nonbeing”; Nelson Maldonado-Torres, “The Cry of the
Self as a Call from the Other: The Paradoxical Loving Subjectivity of Frantz Fanon”, Listening:
Journal of Religion and Culture, vol. 36, no 1 (2001), pp. 46-60.
22 Outras formas de referir-se a ela é “atitude quilombola”, tal como se trabalha no movimento
afro-brasileiro da Bahia, chamado da mesma forma. Outras concepções parecidas, surgidas
mais recentemente, incluem a noção da “atitude cimarrona” trabalhada por Edizon León, do
Equador.
23 W. E. B. Du Bois, The Souls of Black Folk. Authoritative Text, Contexts. Criticisms, Nova Iorque,
W. W. Norton & Co, 1999 (edição crítica de Henry Louis Gates Jr. e Terri Hume Oliver).
24 Tomo a idéia das exposições de Gordon em seus seminários no Curso Fábricade Idéias, orga-
nizado por Livio Sansone no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da
Bahia, Salvador, Brasil, de 22 a 26 de agosto de 2005.
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se pode somar um terceiro momento a esta dinâmica, que fica sugerido
quando Du Bois fala de articular uma nova unidade que supere o enga-
no e forneça uma solução à crise. Ele fala de construir uma nova unida-
de subjetiva, um novo eu e, definidamente, um novo mundo. Este ter-
ceiro momento não é um momento hegeliano de síntese. Como em Fanon,
Du Bois também difere da concepção hegeliana da dialética entre se-
nhor e escravo.25 Em primeiro lugar, o senhor não busca reconhecimen-
to do escravo, mas lhe impõe seu esquema interpretativo para que o
escravo aspire a imitá-lo. Assim, o senhor não necessita utilizar a força
para dominá-lo, pois o escravo se escraviza a si mesmo. Também distin-
to de Hegel, nesta proposta o escravo não se reconhece no produto de
seu trabalho. Na visão de Du Bois, o escravo adentra em sua subjetivi-
dade e continua olhando o senhor para articular as contradições no dis-
curso deste. O escravo não se contenta em apenas trabalhar, mas se tor-
na teórico-crítico. O ímpeto da teoria crítica descolonial se encontra
aqui, e isso a faz distinta das formulações mais tradicionais de crítica
que se remetem mais exclusivamente à resistência do burguês europeu
frente à ordem absolutista. A teoria crítica descolonial parte, sobretudo,
da idéia de que a crítica que o burguês fazia ao absolutismo era, ela
mesma, objeto de indagação crítica por parte do escravo. Finalmente, o
escravo supera o momento da crítica e tenta produzir uma nova visão do
humano, onde já não existam nem senhores nem escravos. Não se trata
de uma síntese de momentos anteriores, mas de um paradoxo, onde o
escravo suspende seus próprios interesses identitários com vistas à arti-
culação de um novo mundo de significado que permita adentrar-se em
um outro mundo, muito além das dinâmicas de colonização e racializa-
ção material, epistêmica e espiritual.
É este terceiro momento de construção de um novo ideal do hu-
mano o que Frantz Fanon propõe na conclusão dos Condenados da ter-
ra.26 Propõe a transformação da consciência nacional em um novo hu-
manismo. Quando Fanon fala de um novo humanismo, não se refere a
um novo liberalismo, mas à sua superação. Tal como Sylvia Wynter tem
25 O reconto hegeliano da dialéctica do senhor e do escravo aparece em G. W. F. Hegel,
Phenomenology of Spirit, Oxford, Oxford University Press, 1977.
26 Frantz Fanon, Los condenados de la tierra, México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 2001.
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insistido por longo tempo, para entender a intervenção fanoniana é ne-
cessário remontar-se às origens do discurso humanista nos séculos XIV
ao XVI.27 Assim, poder-se-ia notar que o problema da “linha de cor” de
que falava Du Bois não era o resultado ou a expressão de uma sociedade
norte-americana em particular, mas se referia a uma dimensão constitutiva
do humanismo moderno, que marcava suas distintas produções: desde o
estado-nação secular até a concepção das próprias ciências sociais.28 O
discurso de Fanon expressou as contradições do discurso humanista e
propôs sua superação mediante uma práxis descolonizadora que ia acom-
panhada de um novo pensar. Este tipo de perspectiva provê uma orien-
tação mais precisa aos chamados Estudos Étnicos, propostos aqui como
Estudos e ciências descoloniais.
Conclusão
Em um painel especial sobre a sociologia pública de Du Bois, na reu-
nião anual da Associação Americana de Sociologia em 2004, a feminis-
ta negra Patrícia Hill Coyillas desafiou os presentes a pensar numa re-
formulação contemporânea da reconhecida opinião de Du Bois: “O pro-
blema do século vinte é o problema da linha de cor”. Ela mesma ofere-
ceu talvez sua melhor versão: o problema do século XXI é o problema
da aparente invisibilidade da linha de cor e da negação de sua existên-
cia.29 Tanto como nos tempos de Du Bois, a sociologia e aquilo que se
passa como sendo a ciência social mais avançada tendem a se tornar
cúmplices de tal invisibilidade. Por isto, é necessário continuar uma
27 Sylvia Wynter, “1492: A New World View,” in Vera Lawrence Hyatt e Rex Nettleford (orgs.),
Race, Discourse, and the Origin of the Americas: A New World View (Washington, D.C.,
Smithsonian Institution Press, 1995), pp. 5-57; Idem, “Columbus and the Poetics of the Propter
Nos”, Annals of Scholarship, vol. 8, no 2 (1991), pp. 251-86; Idem, “Towards the Sociogenic
Principle: Fanon, Identity, the Puzzle of Conscious Experience, and What it is like to be
“Black”,” in Mercedes F. Durán-Cogan e Antonio Gómez-Moriana (orgs.), National Identities
and Sociopolitical Changes in Latin America (Nova Iorque, Routledge, 2001), pp. 30-66;
Idem, “Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After
Man, Its Overrepresentation — An Argument”, The New Centennial Review, vol. 3, no 3 (2003),
pp. 257-337.
28 Ver Wynter, “Unsettling”.
29 Parafraseio aqui e traduzo de acordo com o exposto por Collins na reunião anual da Associa-
ção Americana de Sociología, que teve lugar de 14 a 17 de agosto de 2004, em São Francisco,
California.
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prática incessante de descolonização das ciências e das perspectivas se-
culares, nacionalistas e modernas, que estão quase invariavelmente
marcadas também por perspectivas raciais brancas e crioulas, que re-
gem nossos exercícios disciplinares e interdisciplinares na universidade
atual. Neste contexto, a tarefa para o intelectual descolonizador e para
os estudantes de Estudos Étnicos (ou melhor, Estudos Descolonizadores)
é clara: trazer à luz as novas formas sob as quais a linha de cor se mani-
festa em nossos dias e abrir caminhos conceituais e institucionais para
sua superação. Para isto, há que saber teorizar as continuidades no pa-
drão de poder colonial que marca a experiência dos sujeitos modernos,
ao mesmo tempo em que é necessário reconhecer as novas formas e
expressões sutis que este toma. Simultaneamente, há que superar as li-
mitações históricas do modelo dos Estudos de Área, assim como pro-
blemas internos aos Estudos Étnicos, tais como os da exacerbação da
identidade e o imediatismo político. É necessário reconhecer a autono-
mia relativa dos Estudos Descolonizadores diante dos movimentos po-
líticos e de afirmação identitária que lhes deram origem, mas também
sua relação indispensável com eles. Daí que seja necessário também
reformular e reforçar a relação entre trabalho acadêmico e ativismo so-
cial e político descolonizador, desracializador e “desgenerador”.30 Tudo
isto se deve fazer tendo um horizonte amplo que inclua referência à
necessidade de criar um novo humanismo e aceder a uma realidade trans-
moderna.31
30 Des-gener-ação refere-se à ação de transformar as concepções e as relações de gênero e sexu-
alidade. Devo o conceito a Laura Pérez.
31 Sobre a transmodernidade, veja-se Enrique Dussel, “Modernity, Eurocentrism, and Trans-
Modernity: In Dialogue with Charles Taylor,” in Eduardo Mendieta (org.), The Underside of
Modernity: Apel, Ricoeur, Rorty, Taylor, and the Philosophy of Liberation (Atlantic Highlands,
NJ, Humanities, 1996), pp. 129-59; Idem, “Transmodernity and Interculturality: An
Interpretation from the Perspective of Philosophy of Liberation,” in Ramón Grosfoguel, Nel-
son Maldonado-Torres e José David Saldívar (orgs.), Unsettling Postcolonial Studies:
Coloniality, Transmodernity, and Border Thinking, (no prelo); Idem, “World System and
‘Trans’-Modernity”, Nepantla: Views from South, vol. 3, no 2 (2002), pp. 221-44.
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