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O conceito de Direitos implícitos ( unenumerated rights): se, e como, o precedente Roe v. Wade deve ser revistoNT Ronald Dworkin* O Ministro Posner e eu fomos convidados para debater o tema dos direitos implícitos. Encontro-me em desvantagem já que acredito ser falsa a distinção entre direitos constitucionais expressos e implícitos, uma distinção pressuposta ao convite. Devo explicar porque acredito que essa é uma falsa distinção, de toda sorte, no entanto, não seria correto terminar a minha contribuição para o esperado debate simplesmente com essa explicação. O tópico “direitos implícitos” no programa do encontro induz a audiência a esperar alguma discussão acerca do aborto, a questão constitucional mais calorosamente debatida de nossa era. Devo buscar explicar como essa questão constitucional deve ser resolvida uma vez que a distinção entre direitos expressos e implícitos tenha sido cuidadosamente calada conjuntamente com outros conceitos jurídicos desonrosamente expulsos por expressarem uma má filosofia. I – A Verdadeira Declaração de Direitos (Bill of Rights) Celebramos a declaração de direitos (Bill of Rights), que consideramos também composta pelas emendas resultantes da Guerra Civil. Começo por pedir a vocês que, em sua imaginação, leiam essa parte da Constituição.NT Algumas partes da declaração de direitos são bem concretas, como a vedação da Terceira Emenda contra o aquartelamento de tropas em tempos de paz. Outras são de um nível médio de abstração, como a garantia da Primeira Emenda de liberdade de expressão do pensamento, da liberdade de imprensa e da liberdade de religião. Mas esses dispositivos-chave foram redigidos com os termos mais abstratos possíveis dos padrões de correção política (political morality). A Emenda Quatorze, por exemplo, determina a “igual” proteção das leis, bem como que nem a vida, nem a liberdade, nem a propriedade sejam tomadas sem o “devido” processo legal. Essa linguagem pode parecer, em alguns contextos, preocupada exclusivamente com os procedimentos – a não restringir de modo algum o conteúdo das leis que os governos poderiam promulgar e impor, mas apenas a estipular como o governo poderia promulgar e impor qualquer conteúdo nas leis que viesse a adotar. A história jurídica rejeitou essa interpretação estreita e, no entanto, no momento em que entendemos que os dispositivos constitucionais são tão substantivos quanto procedimentais, o seu âmbito revela-se de uma amplitude espantosa (breathtaking). Pois fica claro então, que a declaração de direitos (Bill of Rights) não ordena nada menos do que a determinação de que o governo trate a todos os sujeitos ao seu domínio com igual respeito e consideração, vedando-o de infringir as suas mais básicas liberdades, as liberdades essenciais, ou como disse o Ministro Cardozo a idéia mesma de “liberdade ordenada”.1 (FORMA E Conteúdo) NT * NT 1 II – A Leitura Natural da Declaração de Direitos (Bill of Rights) Na sua leitura mais natural, portanto, o Bill of Rihts organiza (sets out) uma rede de princípios, alguns extremamente concretos, outros mais abstratos e alguns próximos da abstração ilimitada. Esses princípios tomados conjuntamente, definem um ideal político: eles constroem o quadro constitucional básico (the constitutional skeleton) de uma sociedade de cidadãos tanto livres como iguais. Nessa notável arquitetura três características destacam-se. Primeiramente, esse sistema de princípios é abrangente (NT: ele inclui todos os princípios que podem ser precisos ou relevantes - comprehensive), porque rege tanto a igual consideração quanto a liberdade básica ou a autonomia . Em nossa cultura política essas são as duas maiores fontes de pretensões de direitos individuais. Parece improvável, portanto, que qualquer um que acredite que aos cidadãos livres e iguais seja garantido um determinado direito individual também não pense que a nossa Constituição já não o contemple, a menos que a nossa história constitucional tenha decisivamente recusado esse direito. Esse é um fato e um argumento relevante para a jurisdição constitucional e a ele retornarei adiante. Em segundo lugar, uma vez que liberdade e igualdade se sobrepõem em grande medida, cada um dos dois maiores dispositivos abstratos do Bill of Rights é em si mesmo universal (comprehensive) desse mesmo modo. Os direitos constitucionais determinados que defluem da melhor interpretação do Princípio da Igualdade, da Cláusula da Igual Proteção (Equal Protection Clause), por exemplo, também decorrerão da melhor interpretação da Cláusula do Devido Processo. Assim (como nos recordou o Ministro Stevens em seu pronunciamento de abertura deste evento)2 a Suprema Corte não teve qualquer dificuldade em afirmar que, muito embora a Cláusula da Igual Proteção não se aplique diretamente ao Distrito de Colúmbia, a segregação racial escolar no Distrito era não obstante inconstitucional sob a Cláusula do Devido Processo da Quinta Emenda, que a ele se aplicaria.NT Sem dúvida, é muito provável que ainda que não tivesse havido a Primeira Emenda os tribunais norte-americanos de há muito teriam encontrado a liberdade de expressão do pensamento, de imprensa e de religião nas garantias da liberdade básica das Emendas Quatorze e Quinze. Em terceiro lugar, o Bill of Rights parece dar aos juízes, portanto, um poder quase inacreditável. Nossa cultura jurídica insiste que os juízes – e, em última instância, os ministros da Suprema Corte – têm a última palavra sobre a interpretação adequada da Constituição. Uma vez que os grandes dispositivos constitucionais determinam simplesmente que o governo demonstre igual consideração e respeito pelas liberdades fundamentais – sem especificar em maiores detalhes o que isso significa e requer – cabe aos juízes declarar o que a igual consideração efetivamente requer e o que efetivamente são as liberdades fundamentais. Mas o que significa o fato de que os juízes devam responder a questões intrincadas, controversas e profundas acerca dos “padrões de correção política” (political morality) que filósofos, estadistas e cidadãos têm debatido ao longo dos séculos sem qualquer perspectiva de acordo. Isso significa que o resto de nós tem que aceitar os pronunciamentos (deliverances) de uma maioria de ministros cuja visão dessas grandes 2 NT Ver a redação da Emenda Quatorze que é literalmente expressa no que se refere à sua aplicação aos Estados, não se mencionando ali o Distrito de Colúmbia.. questões não é extraordinariamente especial. Parece injusto, até mesmo ameaçador. Muitas pessoas acreditam que os juízes com esse tipo de poder imporão convicções avançadas (liberal convictions) às maiorias menos avançadas (less-liberal majorities). Mas eles são igualmente propensos a impor convicções conservadoras a maiorias nem tão conservadoras, como fez a Suprema Corte em Lochner, e está fazendo agora, por exemplo, em suas decisões sobre ação afirmativa. O ressentimento que a maior parte das pessoas sente sobre juízes não eleitos terem esse tipo de poder é ambivalente (bipartidário). III – O Revisionismo Constitucional Em qualquer caso, muitos doutrinadores constitucionais acadêmicos pensaram por muito tempo que a principal tarefa desses juízes é demonstrar para eles mesmos, para os profissionais do Direito e para o público em geral que a Constituição não quer dizer o que ela diz – ou seja, que ela, adequadamente compreendida, não atribui efetivamente esse poder extraordinário e aparentemente injusto aos juízes. A estratégia revisionista é simples. Ela nega que o Bill of Rights tenha a estrutura que eu disse ser a sua interpretação natural. Essa estratégia busca retratá-lo de forma bem distinta, nãocomo definidor das linhas estruturais básicas de uma concepção geral de justiça (the skeleton of an overall conception of justice), mas apenas como uma antiga lista de exigências específicas que, em termos relativos, alguns poucos homens há muito tempo atrás acreditaram importantes. Ela espera retirar do Bill of Rights a dimensão de uma carta constitucional para fazer dele um documento com a contextura e o tom de uma apólice de seguro ou de um contrato padrão de aluguel comercial. Em um aspecto, esse esforço revisionista coletivo obteve um notável sucesso. Ele alcançou o triunfo de Orwell (NT - George Orwell, o autor de 1984), o sonho do trapaceiro (huckster), o de pintar os seus oponentes com os seus próprios vícios e vergonhas. Ele persuadiu quase todos que fazer da Constituição uma lista ultrapassada (out of date) seria efetivamente proteger esse documento, e que aqueles que obstinadamente lêem a Constituição para dar sentido ao que ela diz são transformados nos que seriam os “verdadeiros” inventores e usurpadores. Mesmo juízes que aceitam a ampla responsabilidade que a Constituição lhes impõe ainda adotam os enganadores rótulos que os seus oponentes revisionistas lhes atribuem. Eles se denominam “ativistas” ou “não interpretativistas” ou defensores dos “direitos implícitos”, aqueles que desejam estar “fora” dos “quatro cantos”, dos limites da Constituição para decidir casos com base em um “direito natural”. Nesse relevante aspecto político, o massivo esforço de revisar e amesquinhar o Bill of Rights obteve sucesso. Mas em todos os modos substantivos ele fracassou, não porque tivesse construído interpretações alternativas coerentes com conseqüências não atrativas, mas porque não foi capaz de construir qualquer interpretação alternativa coerente. Parte do esforço revisionista nem mesmo buscou uma interpretação alternativa. Refiro-me ao que denomino estratégia revisionista “externa”, que não se propõe uma avaliação do que a Constituição mesma efetivamente significa, mas a reescreve para torná- la mais amigável ao que os revisionistas consideram a melhor teoria da democracia. Em sua versão reescrita, a Constituição deixa tanto poder quanto possível ao governo, o que seria consistente com o verdadeiro governo da maioria (genuine majority rule) e com o que o texto da Constituição proíbe de forma incontroversa. Acadêmicos de peso sustentaram uma versão dessa teoria,3 e John Hart Ely é o autor da sua forma mais elaborada.4 A estratégia revisionista externa postula diretamente a sua questão. A “democracia” mesma seria a denominação de uma abstração: há muitas concepções diversas de democracia, e os filósofos políticos debatem qual seria a mais atraente. A concepção americana de democracia é a forma de governo, qualquer que seja ela, que a Constituição, segundo a melhor interpretação do documento, estabelece. Eles postulam então essa questão para sustentar que a Constituição deveria ser emendada para que se a aproximasse de uma forma de democracia supostamente mais pura.5 Em sua maior parte, no entanto, os revisisonistas de fato tentaram distinguir o seu revisionismo como as “únicas” melhores leituras da efetiva Constituição. Eles argumentaram que a interpretação natural que descrevi – a de que a Constituição garante os direitos requeridos pelas melhores concepções dos ideais políticos da igual consideração e da liberdade básica – não seria de fato a interpretação mais acurada. Afirmam que essa interpretação natural negligencia um fato semântico crucial, uma propriedade da linguagem, da comunicação ou da interpretação lingüística que, uma vez apreendido, demonstraria-nos que a linguagem abstrata dos grandes dispositivos constitucionais não significaria o que parece significar. Os constitucionalistas reviraram os escaninhos da filosofia lingüística para encontrar limites semânticos a essa natureza e a esse poder. Eles encontraram nesses escaninhos, por exemplo, a relevante idéia segundo a qual o que os filósofos denominam “o sentido do locutor” de um enunciado pode se distinguir do sentido que uma audiência provavelmente atribuiria ao enunciado se ignorasse alguma informação específica acerca do locutor. Alguns constitucionalistas buscam transformar esse aspecto na denominada teoria da interpretação constitucional da “intenção dos pais fundadores”. Eles defendem que os grandes dispositivos constitucionais deveriam ser entendidos, não para declarar exigências abstratas de conteúdo moral, como parece à primeira vista se lidos de forma não contextualizada, mas no sentido muito menos amplo e supostamente diverso que um grupo de “constituintes” presumivelmente teria “desejado”. Esse caminho é autodestrutivo, como, de resto, o demonstra a fracassada tentativa de Robert Bork de defendê-lo em sua última obra, terminando, em grande medida, por abandoná-lo.6 Devemos ter o cuidado de procedermos a uma distinção de que a idéia filosófica de “sentido do locutor” depende crucialmente: a distinção entre o que uma pessoa quer dizer e o que ela espera ou acredita serão as conseqüências para o Direito do que ela disse. Muitos dos constituintes indubitavelmente tinham crenças diversas das minhas acerca do que a igualdade ou o devido processo requerem, precisamente como as minhas crenças sobre isso diferem das de vocês. Eles pensaram que seus comandos abstratos sobre a igualdade e o devido processo teriam implicações jurídicas para os casos concretos bem distintas das conseqüências que você ou eu acreditamos devam ter. Mas isso não significa que eles pretenderam dizer algo distinto do que você ou eu gostaríamos de dizer se usássemos as mesmas palavras que eles usaram. Usualmente nós, enquanto locutores, empregaríamos essas palavras não para dizer que ao governo fosse vedado agir contrariamente às nossas próprias concepções de igualdade e de justiça, mas que é proibido 3 4 5 6 ao governo atuar contra a concepção mais plausível dessas virtudes. Todas as evidências (e o bom senso) sugerem que foi também o seguinte o que pretenderam dizer: eles quiseram empregar palavras abstratas com a sua significação abstrata normal. Se assim é, portanto, a atenção estrita sobre a significação do locutor apenas reforça a ampla responsabilidade judicial que os revisionistas esperam restringir. IV – Direitos Expressos e Implícitos A distinção que devo discutir aqui, entre os direitos expressos e os implícitos, é apenas mais um instrumental semântico equivocado. Os constitucionalistas usam a expressão “direitos implícitos” como um termo coletivo para designar um conjunto determinado de direitos constitucionais reconhecidos ou controversos, incluindo aí o direito de ir e vir; o direito de livre associação; e o direito à privacidade do qual o direito ao aborto deriva, se é que exista um tal direito. Eles consideram que essa classificação demarca uma distinção relevante, como as expressões “direitos expressos”, “direitos implícitos” claramente sugerem. Se o Bill of Rights apenas elenca, expressa, enumera, alguns dos direitos necessários a uma sociedade de igual consideração e respeito a cada um de seus membros e de reconhecimento de suas liberdades fundamentais, deixando de elencar outros direitos básicos para tanto, seria defensável afirmar então que os juízes só poderiam impor à observância dos direitos efetivamente expressos. Alguns juristas acolhem a distinção, mas negam essa inferência relativa ao poder dos juízes. Afirmam que os juízes podem e devem impor a observância dos direitos implícitos e argumentam que os tribunais frequentemente assim procederam no passado. Mas os juristas que assim argumentam antecipadamente, em grande parte, já se renderam aos argumentos de seus oponentes que negam esse tipo de poder aos juízes. Seus oponentes podem agora dizerque os juízes não têm autoridade para acrescentar direitos àqueles expressos, aos elencados. Se permitirmos aos juízes ultrapassar livremente os limites do texto constitucional (If we allow judges to roam at will the “four corners” of the Constitution), acrescentam eles, abandonaremos qualquer esperança de limitar o poder judiciário. É esse o argumento do Ministro White em Bowers v Hardwick, por exemplo, para explicar porque o tribunal não deveria reconhecer o direito à sodomia homossexual.7 Ele afirma que o direito constitucional criado pelo juiz (judge made constitutional law) seria particularmente suspeito quando tivesse “pouco ou nenhum enraizamento reconhecível na linguagem ou delineamento da Constituição”;8 ele provavelmente pensava no possível direito ao aborto, tanto quanto no direito à sodomia homossexual. Assim é que a distinção entre direitos expressos e implícitos é amplamente compreendida como a postulação de uma relevante questão constitucional: a questão de se saber se e quando os tribunais têm autoridade para impor a todos a observância (enforce) de direitos efetivamente não elencados, implícitos, na Constituição, como verdadeiros direitos constitucionais. No entanto, eu considero essa questão ininteligível porque, como já de início afirmei, essa pretensa distinção não tem sentido. É claro que a distinção entre o que está em uma lista e o que não está nela frequentemente é uma diferenciação verdadeira e relevante. Uma portaria pode vedar, por exemplo, que se porte armas, facas ou explosivos ainda que nas bagagens de mão em um avião. Suponhamos que as autoridades do aeroporto 7 478 US 186 (1086). 8 Id. p. 193-94. interpretem essa portaria para considerar vedado o porte de frascos de gás lacrimogêneo, com base em que a estrutura geral da portaria e da intenção óbvia a ela subjacente é proibir tudo que possa ser levado a bordo e usado como arma para realizar atos de seqüestro ou terrorismo. Teríamos razão em afirmar que gazes não se encontravam na lista do que fora vedado, e que seria legítima a indagação acerca da titularidade dessas autoridades para acrescentar armas “não-elencadas” à lista. Mas essa distinção entre as autoridades não permitirem que se leve consigo revólveres, navalhas e granadas de mão, por um lado, e admitirem o porte de gás lacrimogêneo, por outro, dependeria de um suposto semântico: o de que o gás lacrimogêneo não recairia no que os filósofos denominam a referência de nenhum dos termos empregados na norma “armas”, “facas” ou “explosivos.” Nenhum suposto comparável pode explicar ou justificar a alegada distinção entre direitos constitucionais expressos e implícitos. O Bill of Rights é constituído, como disse, por princípios universais, amplos e abstratos, de correção política (political morality), que conjuntamente envolvem, de forma excepcionalmente abstrata, todas as dimensões de correção política (political morality) que em nossa cultura política possa fundar um direito constitucional individual. A questão-chave na aplicação desses princípios abstratos às controvérsias políticas particulares não é da ordem da referência mas da interpretação, que é coisa bem distinta. Consideremos três argumentos constitucionais, cada um deles muito controverso. O primeiro defende que a cláusula da igual proteção cria um direito à igual consideração e respeito, do qual decorre que as mulheres têm um direito oponível às discriminações de gênero, a menos que discriminações desse tipo sejam requeridas por relevantes interesses públicos. O segundo defende que a Primeira Emenda assegura um direito de protesto simbólico, do qual se segue que os indivíduos têm o direito de queimar a Bandeira Americana. O terceiro defende que a Cláusula do Devido Processo protege as liberdades fundamentais centrais para o conceito mesmo de “liberdade ordenada”, incluindo aí o direito à privacidade, do qual deflui o direito constitucional das mulheres ao aborto. Os dois primeiros argumentos (pertinentes ou não), por convenção, são considerados de direitos expressos: cada um deles pretende que algum direito – o direito contra a discriminação de gênero ou o direito de queimar a Bandeira – seja um exemplo de algum direito mais geral estabelecido, de forma adequadamente abstrata, no texto da Constituição. O terceiro argumento, por outro lado, acredita-se ser diferente e mais suspeito, porque é visto como a defesa de um direito não elencado, implícito. O direito que esse argumento pretende – o direito ao aborto – acredita-se guardar uma relação mais tênue com a linguagem constitucional ou ser dela distante. Diz-se que ele seria, na melhor das hipóteses, insinuado, sugerido, pela linguagem constitucional e não afirmado por ela. Mas essa distinção não é sustentável. Cada um dos três argumentos é interpretativo de um modo que excluí o tipo de limites semânticos que a distinção pressupõe. Ninguém pensa que a permissão ou a vedação quanto a queimar bandeiras decorra apenas da significação dos termos “liberdade de expressão”. Ninguém pensa que decorra apenas do sentido das palavras “igual proteção” a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de leis que excluam a possibilidade de mulheres trabalharem em determinados empregos. Em nenhum desses casos o resultado decorre da significação das palavras do modo como o significado de “arma” (“gun”) refere-se a revólver, mas não a tubos de gás. Nem os três argumentos se diferem pelo modo como são interpretativos. A conclusão em cada caso resulta, não de alguma esperança, crença ou intenção histórica de um “Pai Fundador”( framer), mas porque o princípio político que apóia aquela conclusão melhor se integra à estrutura geral e à história do direito constitucional. Alguém que acredite que essa forma de argumentação constitucional é inadequada – alguém que acredite, por exemplo, que as expectativas dos “framers” (dos “pais fundadores”) deveriam exercer um papel mais decisivo do que o permitido por essa visão do argumento constitucional – terá reservas acerca de todos os três argumentos, e não apenas especificamente acerca do terceiro. Se essa pessoa acredita que o terceiro argumento é equivocado, porque ele abomina a idéia do devido processo substantivo, ele rejeitará esse argumento porque acredita que ele seja equivocado e não porque o direito que ele levanta como pretensão não seja expresso. O Juiz Posner, em sua resposta às minhas observações, construiu um diálogo socrático em que o homem comum (straight man) é levado a ver que o termo “speech” na Primeira Emenda inclui a queima de bandeiras, muito embora Posner admita que o argumento pudesse ter sido desenvolvido no sentido oposto.9 Ele não constrói um diálogo paralelo no qual um outro ingênuo (another dupe) seja induzido a concordar que a distinção de gênero seria uma categoria suspeita sob a Cláusula da Igual Proteção, conquanto seja fácil ver como esse segundo diálogo se desenvolveria. E seria igualmente fácil construir um terceiro diálogo que terminasse pelo homem comum reconhecendo, com espanto, que o aborto é, afinal, uma liberdade fundamental protegida pela Cláusula do Devido Processo. Posner não sugere que esse argumento pudesse nos levar a “nos afastarmos” do texto. Mas a metáfora da distância é totalmente opaca neste contexto, aqui ela não significa ou sugere nada. Posner não mais pode querer dizer que um direito ao aborto distancia-se mais da linguagem constitucional do que, por exemplo, um direito contra a discriminação por gênero, no mesmo sentido em que a expressão “gás Lacrimogêneo” é mais distante do significado de “arma” do que a palavra “revólver”. O termo “revolver” é mais próximo porque o termo “arma” refere-se a revolver e não a gás lacrimogêneo. Mas uma vez que nem o direito ao aborto nem um direito contra a discriminação por gênero defluem(diretamente) dos sentidos das palavras textuais, não podem tampouco, nesse sentido, ser cada um deles mais próximo ou mais distante do texto do que o outro. Algumas vezes afirma-se que a Constituição não “menciona” o direito de locomoção ou o de associação, ou ainda, à privacidade, como se isso explicasse porque esses direitos são usualmente classificados como implícitos. Mas a Constituição tampouco “menciona” a queima da bandeira ou a discriminação de gênero. O direito de queimar a bandeira e o direito contra a discriminação de gênero apoiam-se na melhor interpretação de um direito mais geral ou abstrato que é “mencionado”. É verdade que a frase “direito à privacidade” é, em si, mais abstrata do que a frase “direito de queimar a bandeira como um protesto”, e que a primeira comparece mais do que a segunda no discurso e na escrita dos constitucionalistas. Mas esses fatos refletem acidentes (ou características altamente contingentes) de uso. Os acadêmicos, os doutrinadores, o consideraram útil a criação de um termo para designar um grau de abstração intermediária (middling abstrction) – o direito à privacidade – descrevendo um estágio no processo de derivação de direitos concretos determinados a partir de direitos ainda mais abstratos nomeados no texto constitucional. Mas daí dificilmente decorre que esses direitos concretos – inclusive o direito ao aborto – sejam mais distanciados de suas bases textuais do que os direitos concretos – tal como o direito de queimar a bandeira – derivados mediante argumentos que não empregam nomes para direitos de abstração intermediária. Os constitucionalistas poderiam muito bem ter adotado, para designar as abstrações intermediárias, as expressões “direito de protesto 9 simbólico” ou “direito de igualdade de gênero” do mesmo modo como adotarm o “direito à privacidade”. E o fato de não o terem feito, dificilmente pode ser considerado como um elemento profundo da estrutura constitucional. . Devo ser claro. Não estou defendendo aqui que a Suprema Corte deva impor a observância de direitos implícitos tanto quanto dos expressos, do mesmo modo que não defendo, em minhas observações acerca da significação do locutor, do falante, que o tribunal estaria correto ao ignorar ou ao modificar o que disse o constituinte (framer). Defendo que a distinção entre direitos expressos e implícitos, tal como usualmente empregada na teoria constitucional, não faz qualquer sentido, porque ela confunde referência com interpretação. Devo acrescentar, para completar esse exercício de provocação, que eu assumo em grande parte a mesma visão de uma variedade de outras distinções populares entre os constitucionalistas, inclusive as que Posner discute em sua resposta a mim. Ele diferencia dois métodos de raciocínio jurídico, denominando um de método “de cima para baixo” e o outro de “de baixo para cima”, bem como entre um enfoque “dispositivo a dispositivo” e outro “holístico”. Aparentemente ele considera as segundas hipóteses dessas distinções mais relevantes do que as primeiras. Conquanto Posner afirme que concorda comigo em que “não há muito no raciocínio de baixo para cima,”10 ele acredita que eu me engane ao criticar o enfoque “dispositivo a dispositivo” de Bork,11 e que seria melhor para os meus próprios argumentos acerca do aborto se os formulasse de uma forma mais explicitamente “holística.”12 No entanto, nenhuma dessas duas distinções tem qualquer sentido para mim. Não podemos compreender um determinado precedente, por exemplo, a não ser ao construir essa decisão como parte integrante de um empreendimento mais geral, e sempre uma tal interpretação construtiva deve, como argumentei exaustivamente no Law’s Empire, envolver o tipo de hipótese teorética característica do que Posner denomina raciocínio de “cima para baixo”.13 Assim é que o raciocínio “de baixo para cima” é também automaticamente raciocínio “de cima para baixo.” O mesmo aspecto erode também a distinção entre a interpretação constitucional “dispositivo a dispositivo” e a “holística.” A interpretação jurídica é essencialmente holística, ainda quando o alvo aparente da interpretação seja um determinado dispositivo ou expressão e não o documento como um todo. Qualquer intérprete tem que aceitar limites interpretativos – supostos acerca do que faz uma interpretação melhor do que outra- e qualquer conjunto plausível de limites inclui um requisito de coerência. Uma interpretação do Bill of Rights que pretenda que um princípio moral enraizado em um dispositivo seja efetivamente rejeitado por um outro é um exemplo não de flexibilidade pragmática, mas de hipocrisia. (p. 11 de 52 no original) V – A Integridade do Direito Até onde chegamos? A interpretação mais natural do Bill of Rights, como já disse, parece dar os juízes um poder imenso e amedrontador. É compreensível que os constitucionalistas 10 11 12 13 e os acadêmicos tenham buscado domar o Bill of Rights (shoul strive to tame), para lê-lo de um modo menos amedrontador, para transformá-lo de uma concepção sistemática abstrata de justiça em uma lista de dispositivos isolados que se relacionam entre si por pedigree e não por princípio. Esses esforços, contudo, fracassaram e encontram-se fadados ao fracasso, porque o texto e a história do Bill of Rihts não aceitam essa transformação. Eles estão fadados ao fracasso, sobretudo, de um modo desastroso e paradoxal. E isso porque as distinções semânticas em que esses esforços se baseiam não têm qualquer sentido como são empregadas, elas são destituídas de todo poder para definir qualquer conjunto específico de direitos constitucionais. Como a história recente da Suprema Corte amplamente demonstra, um juiz que pretenda se fundar no sentido do “locutor”, na “enumeração” e na preferência por uma interpretação cláusula a cláusula deve efetivamente escolher quais direitos constitucionais tornará oponíveis com base em fundamentos que nada têm a ver com esses dispositivos semânticos, mas que o recurso a esses dispositivos oculta. A busca por limites ao judiciário termina por permitir aos juízes o poder incontrolado do arbitrário. A resposta de Posner reconhece esse fato, com uma candura típica. Ele afirma que os dispositivos semânticos amados pelos juristas conservadores “podem eliminar um documento que só forneceu respostas a questões que não são mais formuladas,”14 e que os juízes que dizem que são limitados por esses inúteis mecanismos necessariamente decidirão segundo seus próprios “valores pessoais”15 – segundo, afirma ele, o que os faz “vomitar”16 (according to what make them “puke”). São os seus próprios valores pessoais que endossam o “alargamento” da Cláusula do Devido Processo para acolher Griswold, e, se bem compreendi o dito entre linhas, também Roe v. Wade. Mas Posner sabe que outros juízes têm estômagos mais fortes acerca de a sociedade ditar a moral sexual: no teste de vômito deles não passarão, ao contrário, os programas de ação afirmativa.17 A idéia de que a Constituição não pode querer dizer o que ela diz termina na indesejável conclusão de que ela não significa nada de todo. O que pode ser feito? Podemos finalmente, após os duzentos anos que celebramos neste Congresso (symposium), crescer e assumir seriamente a nossa efetiva Constituição, como muitas nações agora ansiosas por nos imitar já fizeram. Podemos aceitar que a nossa Constituição determina, como uma questão de direito fundamental, que os nossos juízes façam o melhor coletivamente para construir, reexaminar e revisar, geração após geração, o quadro básico (skeleton) da igual consideração liberal (progressista) que os grandes dispositivos, em sua majestosa abstração,requerem. Nós então abandonaremos a busca inútil por limites mecânicos ou semânticos, e buscaremos limites genuínos no único lugar em que efetivamente eles podem ser encontrados: no bom argumento. Aceitaremos que juristas, juízes e acadêmicos honestos inevitavelmente discordarão, algumas vezes 14 15 16 Id p. 447. Posner toma essa frase – a qual dá um novo sentido à velha tese realista de que o Direito é apenas o que o juiz tomou no café da manhã – de Holmes. Devo dizer que embora compreenda a admiração hagiographic de Posner por esse jurista, dela não compartilho. Holmes escreveu como um sonho. A sua conversa pessoal a partir da visão de a Primeira Emenda dever se limitar a uma condenação blackstoniana (NT – de Blackstone) do prior restraint (His personal conversation from the view that the First Amendment must be limited to a Blackstonian condemnation of prior restraint to the radically different view that it must be understood as much as more abstract and general principle, was an epochal event in American constitutional history). A nota continua. 17 profundamente, acerca do que o igual respeito e consideração requer, bem como acerca de quais direitos são centrais e quais apenas periféricos para a liberdade. Reconheceremos, então, no processo político de nomeação e de confirmação dos juízes federais o que já é evidente para qualquer um que olhe: que os prestadores da jurisdição constitucional não podem ser neutros acerca das grandes questões e que o Senado deve se recusar a confirmar os indicados cujas convicções sejam por demais idiossincráticas ou que se recusem a revelar honestamente quais são as suas convicções. O segundo estágio das audiências de confirmação do Juiz Tomas foi, segundo a maior parte das pessoas, fisicamente revoltante. Mas o primeiro estágio foi intelectualmente revoltante, porque o candidato e os senadores conspiraram para fingir que filosofia nada tinha a ver com o julgar, que um indicado que afirmasse haver abandonado convicções como um corredor que se livra das roupas seria adequado para o cargo por ele almejado.18 O processo constitucional de indicação e confirmação é uma parte importante do sistema de freios e contrapesos mediante o qual a efetiva Constituição disciplina o espantoso poder judicial que ela declara. No entanto, os principais mecanismos de disciplina são mais os intelectuais do que os políticos, e o ramo acadêmico da profissão tem a responsabilidade de proteger essa disciplina intelectual, que agora se encontra ameaçada de várias direções. Não podemos, é claro, encontrar uma fórmula que nos garantirá que todos os juízes alcançarão a mesma resposta nos casos constitucionais cruciais, novos ou complexos. Nenhuma fórmula pode nos proteger de um Lochner, que Posner nos diz feder, ou de um Bowers. O mau cheiro dessas decisões não reside em qualquer vício de jurisidição ou excesso do poder judiciário. Após quase um século tratando Lochner como um uma espécie de saco de pancadas (whipping-boy), ninguém produziu um teste mecânico plausível (sound) em que ele não passe. O vício das más decisões está nos maus argumentos e nas más convicções; tudo o que podemos fazer acerca dessas más decisões é indicar como e porque os argumentos são ruins. Não devemos perder mais tempo com a indulgência tola da vida jurídica acadêmica norte-americana: a pretensão filosoficamente juvenil, uma vez que uma tal fórmula não existe, nenhuma concepção de igualdade e de liberdade constitucionais é melhor que outra, e a prestação jurisdicional é apenas poder ou responsabilidade viscerais.19 Devemos insistir, ao invés, em um princípio do genuíno poder: a idéia, o instinto presente no próprio conceito de Direito, segundo a qual quaisquer que sejam as suas visões de justiça e de correção normativa (fairness), os juízes devem também aceitar o limite independente e superior da integridade.20 A integridade no Direito tem várias dimensões. Primeiramente, ela insiste que a decisão judicial seja uma questão de princípio, não um compromisso ou uma estratégia de acomodação política. Essa aparente banalidade é freqüentemente ignorada: a atual posição da Suprema Corte sobre a questão politicamente sensível das ações afirmativas, por exemplo, não pode ser justificada com base em qualquer conjunto coerente de princípios, não importa quão conservadora e pouco atraente (unappealing).21 Em segundo lugar, a integridade restringe (holds) verticalmente: um juiz que pretenda que um determinado direito de liberdade seja fundamental deve demonstrar que essa pretensão é consistente com 18 19 Ver DWORKIN, Ronald, Pragmatismo, Right Answers and true Banality,in Michael Brint , ed., Pragmatism and Law (forthcoming 1992. Ver Posner, 59 U Chi L Rev. p. 447 (citado na nota 9). 20 21 a maioria (bulk of precedent) e com as estruturas centrais de nossa organização constitucional. E, em terceiro lugar, a integridade limita (holds) horizontalmente: um juiz que adote um princípio deve dar pleno peso a esse princípio em outros casos que ele decida ou endosse (endorses). É claro que nem mesmo a mais escrupulosa atenção à integridade por parte de todos os nossos juízes em todos os nossos tribunais produzirá decisões judiciais uniformes ou poderá garantir decisões que você aprove ou o protegerá das que você detesta. Nada pode fazer isso, A proteção da (the point of) integridade é ao princípio, não à uniformidade. Não somos regidos por uma lista, mas por um ideal, e a controvérsia encontra-se portanto no âmago (heart) de nossa história. Somos invejados por nossa ventura (adventure) constitucional, e cada vez mais imitados por todo o mundo democrático: em Delhi, em Estrasburgo e em Ottawa, mesmo talvez, no Palácio de Westminster, e quem sabe amanhã em Moscou e em Johanesburgo. Em todos esses lugares as pessoas parecem prontas a aceitar o risco e a elevada promessa de um governo pelo ideal, uma forma de governo que criamos no documento que celebramos. Nós nunca confiamos plenamente nessa forma de governo. Mas a menos que abandonemos tudo de uma vez, o que certamente não faremos, devemos parar de fingir que essa não é a nossa forma de governo. A energia de nossos melhores juristas acadêmicos seria melhor gasta em fazer, testar e avaliar as diferentes concepções de igualdade liberal, para ver qual concepção melhor se enquadra em nossa história e prática. Eles deveriam buscar guiar e limitar nossos juízes pela crítica, pelo argumento e pelo exemplo. Esse é o único modo de honrar a nossa grande criação constitucional, ajudá-la a prosperar.22 VI – Aborto: acerca do que é a discussão? Na prometida discussão acerca do aborto buscarei ilustrar o papel que a integridade deve exercer no argumento jurídico. Começo por uma breve síntese das pretensões ao natureza constitucional dessa questão que já tive ocasião de discutir anteriormente23, e a respeito da qual já sintetizar brevemente 22 Posner descreve a minha avaliação do raciocínio constitucional fundado na integridade como “holística” e “de cima-para-baixo.” Ele afirma que ela é “por demais ambiciosa, arriscada e contenciosa.” Posner, 59 U Chi L Rev. p. 446 (citado na nota 9). Ele afirma que quando os juízes são chamados a interpretar os grandes dispositivos abstratos fundamentais (moral – NT: de conteúdo moral) eles deveriam atuar (react) como a sua “consciência” exigir: eles deveriam citar a linguagem moral abstrata desses dispositivos para derrubar apenas o que eles instintivamente acharem “terrivelmente injusto.” Id. p. 477. Ele não requereria que um juiz fornecesse muito, se é que requer algo, por meio de uma explicação principiológica de como e porque ele acredita queuma lei é injusta, ou para visar a consistência de um princípio mesmo para ele próprio, de um dia para o seguinte, o deixa só com as decisões que outros juízes tomaram em outros dias. Suas percepções, como sempre, são striking e poderosas. Mas como ele pensa que esse mecanismo menos “arriscado” ou menos propenso a produzir decisões “contenciosas” (do que o mecanismo mais familiar de que os juízes deveriam pelo menos fazer o melhor que o seu tempo e o seu talento permitam) possa disciplinar suas reações iniciais ao aceitar essas responsabilidades? Posner teria razão, pelo menos, em afirmar que as suas propostas são menos “ambiciosas” porque menos “holísticas”? Ele diz que os juízes só devem declarar a inconstitucionalidade de leis, com base nos grandes princípios (on moral grounds), quando houver um “compelling practical case” para fazê-lo. Id p. 477. O termo “prático” é um familiar mecanismo obscurecedor na filosofia pragmatista: 23
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