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Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER Sumário EXPEDIENTE4 APRESENTAÇÃO6 ENTREVISTA 1-) Maria Gorete Marques de Jesus entrevista Paulo Sérgio Pinheiro 9 ARTIGOS 1-) Por uma Outra Criminologia do Terceiro Mundo: perspectivas da Criminologia Crítica no Sul Rodrigo Codino, traduzido por Salo de Carvalho 2-) Provando a tortura: reflexões a partir da análise de acórdãos dos Tribunais de Justiça brasileiros Mayara Gomes, Nathércia Cristina Manzano Magnani, Paula Ramos e Vivian Calderoni 2-) Garantismo e facções criminosas: correlação da teoria Garantista com o surgimento e existência do Primeiro Comando da Capital Julia Rosa Latuf 2-) Maíra Zapater entrevista Danilo Cymrot 3-) Os crimes preterdolosos e a cooperação dolosamente distinta no Código Penal Brasileiro Rafael Santos Soares 4-) Os aspectos da extradição entre Brasil e Portugal sob a ótica da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa Saulo Ramos Furquim 22 ESCOLAS PENAIS 1-) A (re)interpretação do papel da progressão de regime de cumprimento de pena à luz do pensamento de AlessAndro BArAttA Thalita A. Sanção Tozi 85 134 DIREITOS HUMANOS1-) Era das Chacinas: breve discussão sobre a prática de chacinamento na era democrática Camila de Lima Vedovello 2-) Substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes acima do sétimo mês ou em risco, em Habeas Corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo Fernanda Peron Geraldini 3-) Militarização policial e constitucionalidade: compatibilidade do modelo policial militar com um estado democrático de direito Gabriela Sutti Ferreira SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER Sumário 188 INFÂNCIA1-) A regra de tratamento de inocência antes do trânsito em julgado de sentença condenatória na seara da infância e juventude e a execução provisória da medida socioeducativa Giancarlo Silkunas Vay 2-) Remissão e prescrição: Um diálogo necessário entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a sistemática penal Bruno César da Silva e Naiara Volpato Prado PARECER Parecer técnico ao PLS n.º 508/2013 e seu substitutivo Rogério Fernando Taffarello 220 CONTO O mensageiro de Deus Gustavo Samuel 232 CADEIA DE PAPEL Nome de horror Debora Diniz 234 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER EXPEDIENTE Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 4 Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Diretoria Executiva Presidente: Andre Pires de Andrade Kehdi 1º Vice-Presidente: Alberto Silva Franco 2º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna 1º Secretário: Fábio Tofic Simantob 2ª Secretária: Eleonora Rangel Nacif 1ª Tesoureira: Fernanda Regina Vilares 2ª Tesoureira: Cecília de Souza Santos Diretor Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais: Carlos Isa Ouvidor Yuri Felix Colégio de Antigos Presidentes e Diretores Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico Mañas Luiz Flávio Gomes Mariângela Gama de Magalhães Gomes Marco Antonio R. Nahum Marta Saad Maurício Zanoide de Moraes Roberto Podval Sérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira Conselho Consultivo Carlos Vico Mañas Ivan Martins Motta Mariângela Gama de Magalhães Gomes Marta Saad Sérgio Mazina Martins Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências CriminaisExpediente SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER EXPEDIENTE Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 5 Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Coordenador-Chefe Roberto Luiz Corcioli Filho Coordenadores-Adjuntos Alexandre de Sá Domingues Giancarlo Silkunas Vay João Paulo Orsini Martinelli Maíra Zapater Maria Gorete Marques de Jesus Thiago Pedro Pagliuca Santos Conselho Editorial Alexandre Morais da Rosa Alexis Couto de Brito Amélia Emy Rebouças Imasaki Ana Carolina Carlos de Oliveira Ana Carolina Schwan Ana Paula Motta Costa Anderson Bezerra Lopes André Adriano do Nascimento Silva André Vaz Porto Silva Antonio Baptista Gonçalves Bruna Angotti Bruna Rachel Diniz Bruno Salles Pereira Ribeiro Camila Garcia Carlos Henrique da Silva Ayres Christiany Pegorari Conte Coordenação da Revista Liberdades Cleunice Valentim Bastos Pitombo Dalmir Franklin de Oliveira Júnior Daniel Pacheco Pontes Danilo Dias Ticami Davi Rodney Silva David Leal da Silva Décio Franco David Eduardo Henrique Balbino Pasqua Fábio Lobosco Fábio Suardi D’ Elia Francisco Pereira de Queiroz Fernanda Carolina de Araujo Ifan- ger Gabriel de Freitas Queiroz Gabriela Prioli Della Vedova Gerivaldo Neiva Giancarlo Silkunas Vay Giovani Agostini Saavedra Gustavo de Carvalho Marin Humberto Barrionuevo Fabretti Janaina Soares Gallo João Marcos Buch João Victor Esteves Meirelles Jorge Luiz Souto Maior José Danilo Tavares Lobato Karyna Sposato Leonardo Smitt de Bem Luciano Anderson de Souza Luis Carlos Valois Marcel Figueiredo Gonçalves Marcela Venturini Diorio Marcelo Feller Maria Claudia Girotto do Couto Matheus Silveira Pupo Maurício Stegemann Dieter Milene Maurício Nidival Bittencourt Peter Schweikert Rafael Serra Oliveira Renato Watanabe de Morais Ricardo Batista Capelli Rodrigo Dall’Acqua Ryanna Pala Veras Vitor Burgo Yuri Felix SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 6 APRESENTAÇÃO 6 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Apresentação É indiscutível que vivemos um período de intensas transformações políticas e sociais que exigem reflexões em vários níveis. Pensando na atualidade dessas e de outras questões, a presente edição apresenta uma entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro, que fala sobre o cenário político atual no Brasil e os riscos de prováveis retrocessos de direitos conquistados ao longo desses anos pós ditadura civil militar. A presença ainda forte do racismo e do autoritarismo revela que ainda não superamos nossas mazelas culturais, ainda tão latentes em nossa história. “O racismo não se extinguiu no Brasil. E, na verdade, ainda que isso não seja colocado publicamente, quem irá preso caso a redução da maioridade penal passe serão os adolescentes não brancos, afrodescendentes, negros”. Acrescentou que a onda conservadora não é um fenômeno apenas nacional, mas está presente em diversas partes do mundo, especialmente em países da Europa, que estão construindo muros com objetivo de conter a entrada de refugiados. Nesta edição também apresentamos a entrevista com Danilo Cymrot, músico e autor de uma pesquisa sobre a criminalização do funk. Da criminalização dos MC’s, quando são enquadrados por tipos penais como o de apologia ao crime,à elaboração de legislações administrativas que proíbem os bailes funk, o entrevistado narra os processos criminalizadores do funk. Também descreve a variedade de gêneros de funks, do “Funk Consciente” ao “Funk Neurótico”. “O funk vive fases bastante diferentes, dependendo do momento, inclusive, político em que vive a cidade”. Iniciamos a seção de artigos com o excelente texto de Rodrigo Codino, traduzido por Salo de Carvalho: Por uma outra criminologia do terceiro mundo: perspectivas da Criminologia Crítica no Sul. “O artigo refaz o percurso da criminologia crítica na América Latina, enfatizando a construção de um saber teórico autóctone direcionado à denúncia das violências estrutural e institucional. Na sequência, relaciona a criminologia crítica latino-americana com a criminologia africana, problematizando, a partir do relato da tensão entre direito europeu (colonizador) e direito comunitário, seus conceitos, objetos, métodos e, sobretudo, os desafios comuns para resistir às distintas formas de violência e de dominação.” Na sequência, Provando a tortura: reflexões a partir da análise de acórdãos dos Tribunais de Justiça brasileiros, de Mayara Gomes, Nathércia Cristina Manzano Magnani, Paula Ramos e Vivian Calderoni, reflete como os operadores do direito avaliam o valor da palavra da vítima e do acusado, as provas periciais e os obstáculos envolvidos na comprovação da tortura. Esta reflexão faz parte da pesquisa Julgando a tortura, disponível no site: http://www. conectas.org/arquivos/editor/files/Julgando%20a%20tortura.pdf. Rafael Santos Soares, autor de Os crimes preterdolosos e a cooperação dolosamente distinta no Código Penal brasileiro, faz uma discussão sobre o conceito e a conformação histórica do instituto da cooperação dolosamente distinta a partir da disciplina legal do concurso de pessoas no Código Penal do Brasil, com destaque para a Reforma Penal de 1984, e salienta a importância de tal instituto para a concretização da responsabilidade penal subjetiva no ordenamento jurídico. Há, ainda, uma interessante análise crítica da jurisprudência no que diz respeito à aplicação da norma do art. 29, §2º do Código Penal aos partícipes de roubo que não desejaram e tampouco assumiram o risco de produzir a morte da vítima e, portanto, não devem responder por latrocínio. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 7 APRESENTAÇÃO 7 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Ainda na seção Artigos encontraremos Os aspectos da extradição entre Brasil e Portugal sob a ótica da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de Saulo Ramos Furquim, que descreve as possibilidades de extradição entre Brasil e Portugal bem como as pertinentes restrições constitucionais. Na seção Escolas Penais, apresentaremos os trabalhos de Thalita A. Sanção Tozi, com o texto A (re)interpretação do papel da progressão de regime de cumprimento de pena à luz do pensamento de AlessAndro BArAttA, e de Julia Rosa Latuf, autora do artigo Garantismo e facções criminosas – Correlação da teoria garantista com o surgimento e a existência do Primeiro Comando da Capital. O primeiro artigo, de claro viés marxista, visto que inspirado na obra do criminólogo italiano Baratta, desconstrói o mito da ressocialização e analisa de forma crítica a jurisprudência relacionada à progressão de regime de estrangeiros, concluindo que “não há justificativas para a negação ao estrangeiro de seu direito de progressão de regime de cumprimento de pena. Além de afrontar a legislação nacional e internacional, não se vislumbra objetivo além de constranger esses seres humanos a sofrimento excessivo”. O segundo artigo analisa como “a mitigação de direitos dos encarcerados por parte do Estado, mas também do Judiciário, dá ensejo (ou fomento) à necessidade de a comunidade carcerária se organizar em busca da efetivação de seus direitos essenciais”. Na seção de Direitos Humanos, Era das Chacinas – breve discussão sobre a prática de chacinamento na era democrática, de Camila de Lima Vedovelho, descreve como a lógica desse tipo de execução atinge determinados sujeitos. Na mesma seção, o artigo Substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes acima do sétimo mês ou em risco, em Habeas Corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, de Fernanda Peron Geraldini, analisa como o Tribunal de Justiça paulista tem aplicado o art. 138, IV, do CPP, que “permite às mulheres presas provisoriamente que cumpram essa custódia em casa após o sétimo mês ou em caso de risco”. Militarização policial e constitucionalidade: compatibilidade do modelo policial militar com um estado democrático de direito, de Gabriela Sutti Ferreira, encerra a seção Direitos Humanos. Neste artigo, a autora analisa brevemente a construção do espaço público brasileiro e faz uma reflexão “sobre sua implicação a formação normativa policial até 1988 e a compatibilidade desta com o modelo democrático de direito”. Na seção Infância apresentamos os artigos A regra de tratamento de inocência antes do trânsito em julgado de sentença condenatória na seara da infância e juventude e a execução provisória da medida socioeducativa, de Giancarlo Silkunas Vay, e Remissão e prescrição: Um diálogo necessário entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a sistemática penal, de Bruno César da Silva e Naiara Volpato Prado. O primeiro traça “o estado da arte na Jurisprudência acerca da execução provisória das medidas socioeducativas no âmbito dos processos socioeducativos”, buscando “refutar os argumentos centrais para tal proceder, apontando sua incompatibilidade para com o sistema de garantias dos adolescentes, sobre quem recai a regra de tratamento de inocência até o advento de sentença condenatória transitada em julgado”. O segundo analisa “os institutos da remissão e da prescrição na sistemática do direito da criança e do adolescente e como se dá a aplicação de ambos em conjunto, em especial respondendo a questões práticas, como o marco inicial de contagem do lapso prescricional e o prazo em si nos casos das medidas aplicadas em sede de remissão, buscando solucionar a omissão legislativa com a realização de um diálogo com o sistema penal”. Na sequência apresentamos o Parecer técnico ao PLS n.º 508/2013 e seu substitutivo, de Rogério Fernando Taffarello. Este Parecer trata do PLS que “tipifica como crime de vandalismo a promoção de atos coletivos de destruição, SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 8 APRESENTAÇÃO 8 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos”. Na seção de Contos, Gustavo Samuel apresenta O mensageiro de Deus. De acordo com o autor: “A ideia era de que o conto denunciasse como uma hipérbole a realidade, mas ao que parece, os absurdos têm se compatibilizado com o cotidiano brasileiro”. Um instigante e provocativo conto, que não está nada distante do real. Por fim, apresentamos a seção de crônicas da antropóloga Debora Diniz (UnB e Anis), na Cadeia de Papel. “É no conjunto das meninas mais pobres e escuras, da periferia e com pouca escola que se conformam as meninas da cadeia de papel. (...) O gênero conforma o feminino a uma ordem patriarcal de poder; porém, é no cruzamento com outras formas de precarização davida que surgem as meninas da cadeia de papel (Diniz, 2015b)”. Boa leitura! Coordenadores da gestão 2015/2016. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 9 ENTREVISTA 9 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Maria Gorete Marques de Jesus entrevista Paulo Sérgio Pinheiro*1 1) Bom dia, Paulo Sérgio. Uma das propostas para a próxima edição da Revista Liberdades é trazer reflexões sobre o cenário político atual e o risco de prováveis retrocessos de direitos conquistados ao longo desses anos pós ditadura civil militar. Gostaríamos justamente de iniciar esta entrevista com esta questão: qual a sua avaliação sobre o cenário político brasileiro? Resposta: Nos últimos 30 anos, basicamente, o cenário político me interessa em termos da sua ação nos direitos humanos. Se nós olharmos por essa perspectiva, é um momento muito regressivo. Mas para entender isso você tem de ter uma compreensão mais abrangente da situação política. A campanha política foi muito radicalizada; as campanhas ultrapassaram os limites do aceitável em termos de uma convivência política, não considerando o adversário como inimigo, mas os adversários se comportaram como inimigos. Depois houve uma vitória irrecusável. Evidente que as eleições consagraram a eleição da presidenta Dilma, mas como a diferença não foi enorme, as oposições começaram vários esforços para desqualificar a eleição, o que acho totalmente equivocado. As oposições tinham de concluir que perderam e esperar para se organizar para 2018. 2) Qual sua opinião sobre a configuração atual do Congresso Nacional? Resposta: Esse Congresso Nacional, especialmente a Câmara dos Deputados, é a mais retrógrada desde a volta da democracia. Recuso-me a culpar a população, os eleitores. Na realidade, os eleitores foram conformados e influenciados por campanhas totalmente simplistas e assuntos de vários interesses específicos. Um diz mais respeito às políticas de direitos humanos, outros, não relacionados a direitos humanos, levam demandas que contrapõem direitos. Há bancadas que representam diversos interesses: a bancada da bala, financiada por empresas de armamentos; a bancada dos evangélicos, que apresenta uma agenda muito retrógrada em termos dos avanços que se fez na área de direitos humanos no Brasil; a bancada ruralista, ligada aos interesses agrários que, por exemplo, querem rever a definição de trabalho escravo. Os candidatos dessas bancadas tinham muitos recursos, e a campanha deles podia ser simplista, com pautas como a da redução da maioridade penal, porque nessas campanhas os candidatos querem só ser eleitos, não é o momento de diálogo com a população, de esclarecer, de tornar mais adequadas para os interesses da população as políticas públicas. Creio que a tarefa básica desse Congresso é desconstruir a constitucionalidade de 1988, porque a mobilização que houve para a Constituinte de 1988 foi extraordinária. Todos os setores da população passaram pelas consultas na Constituinte, que resultou em uma Constituição bastante progressista, afirmativa no que diz respeito aos direitos e garantias individuais. A melhor Constituição de toda a história brasileira, mesmo que as várias Constituições, até as autoritárias do século XX se referiram aos direitos humanos, nenhuma, evidentemente, foi capaz de inscrever os direitos humanos no horizonte da sua implementação. E mal ou bem, entre 1988 e o presente, houve um avanço enorme nos direitos, a pensar, por exemplo, nas políticas afirmativas que jamais o Brasil tinha lidado com essa questão; o próprio reconhecimento do racismo estrutural pelo governo Fernando Henrique, como, por exemplo, no primeiro censo federal de funcionários públicos por etnia ou raça; até a criação do grupo de repressão ao trabalho escravo. Nenhum governo, antes dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, deram ênfase a perseguir o trabalho escravo no Brasil no século XX. Isso foi possível após a Constituição de 1988. Depois, a Lei Maria da Penha, em termos da violência contra a mulher. E também o avanço das pautas ligadas aos direitos, por exemplo, orientação * Entrevista transcrita por Eduardo Carvalho, graduando em Direito pela Universidade Anhanguera de São Bernardo do Campo. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 10 ENTREVISTA 10 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 sexual que, apesar de que os homossexuais continuassem a ser assassinados em todo o Brasil, houve um progresso muito grande, também, na legislação. Sem falar em uma vertente importante dos direitos econômicos e sociais, que foram o Bolsa-Família e outros programas que tiraram milhões da pobreza. Então, a Câmara dos Deputados é uma Câmara regressista, porque o objetivo deles é, explicitamente, desmontar o que foi conseguido. 3) O que pode explicar esses retrocessos, especialmente com relação à redução da maioridade penal? Resposta: Creio que no fundo de tudo isso está o racismo brasileiro, ainda que o racismo tenha se tornado crime. O racismo não se extinguiu no Brasil. E, na verdade, ainda que isso não seja colocado publicamente, quem irá preso caso a redução da maioridade penal passe serão os adolescentes não brancos, afrodescendentes, negros. Isso é evidenciado no sistema carcerário. Segundo o Mapa do Encarceramento, lançado pela Secretaria Nacional da Juventude, a população prisional é composta em sua grande maioria por jovens, pobres, negros e semianalfabetos. Contudo, essa população é a que mais morre vítima de homicídios. Em 2012, 77% dos jovens mortos eram negros ou pardos. Ou seja, ou eles são presos, ou eles são mortos. O outro problema diz respeito ao sistema de segurança pública. A segurança pública não foi tocada pela Constituição de 1988, até por uma conciliação entre a Constituinte e a legislação da ditadura. E esse tema não será tocado por esse Congresso, porque, na verdade, quando você tem o lobby de 300.000 policiais militares, contando com os votos de suas famílias, você tem um colégio muito importante para desagradar. E, o que é paradoxal é que, na medida em que não se constrói um novo sistema de segurança pública, a população, aderindo a essas medidas grosseiras de lidar com a questão do crime, vai se colocando em uma posição fragilizada, porque, na realidade, as vítimas do crime ou as vítimas por parte das polícias, principalmente a polícia militar, são, justamente, aquele contingente com menos recursos. Grosso modo, o aparelho de segurança pública do Estado funciona a serviço das classes dominantes. Então, há uma instrumentalização, há uma manipulação dos interesses das classes dominantes no que diz respeito ao funcionamento do aparelho de segurança. 4) Na sua opinião, o que é preciso fazer para mudar esse quadro? O que dá para fazer? Resposta: Bom, não há nenhuma solução mágica. Creio que as mobilizações da sociedade civil sejam um ponto relevante. As mobilizações de maio/junho de 2013 foram importantes, mas parece que não tinham pauta muito definida. A percepção estava certa, em termos da identificação dos problemas, mas sem uma pauta política definida. As últimas manifestações são de desconforto, de desagrado, mas muito colocadas na vertente da posição partidária e até na extrema direita com milhares de pessoas defendendo a volta ao Regime Militar. É evidente que as mobilizações são essenciais. A sociedade civil apresenta uma diversidade de representações, com diversas posições políticase ideológicas. Esses grupos de direita, as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, e as várias organizações ligadas às empresas de segurança, todas estão trabalhando dentro da sociedade civil pela desconstrução da constitucionalidade democrática de 1988. Então, a tarefa dos grupos da sociedade civil que defendem direitos humanos é muito mais difícil hoje do que o foi na transição democrática ou nas primeiras décadas ou na primeira década depois da Constituinte de 1988, que nós achávamos que tínhamos ganhado. Doce ilusão, não ganhamos. Outra vertente importante é a mídia. Hoje alguns veículos de comunicação se colocam numa posição de desconstrução democrática, perdendo um pouco a oscilação que havia logo depois de 1988 de disputa pela consagração dos direitos. Hoje, canais de televisão aberta e os grandes jornais da mídia assumem causas retrógradas como, por exemplo, a SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 11 ENTREVISTA 11 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 redução da maioridade penal. Então essa é uma nova frente de enfrentamento que precisa ser levada em conta, mas a situação é enormemente mais difícil. Acredito que talvez os jovens e mais pessoas se informem através das redes sociais e outros canais da internet, mídias alternativas, enfim, essas são possibilidades de acesso a outras fontes de notícias, não apenas aquelas das grandes mídias. Essa é uma nova frente de enfrentamento que precisa ser levada em conta. Este retrocesso não é algo que apenas nós estamos enfrentando, isso está acontecendo no mundo. Você tem a Europa construindo muros. Agora, a última novidade é que o Reino Unido pretende fazer um muro em Calais para os migrantes não passarem para o Reino Unido através do trem, uma coisa totalmente delirante. Temos o retrocesso da questão palestina, acirradas após a agressão a Gaza. Hoje o Estado de Israel tem o governo mais de extrema-direita que já houve. Então, o mundo também está complicado, não é só o Brasil. Ao mesmo tempo, no mundo, você também tem avanços. A vitória do casamento gay nos Estados Unidos recentemente, quer dizer, são contradições que estão presentes hoje no mundo e no Brasil. Então, para não convidar quem lê esta entrevista para a depressão profunda, nós temos que viver dentro desta contradição. Porque há um Congresso, há uma Câmara de Deputados regressista, não quer dizer que nós vamos cruzar os braços e esperar o seu Cunha acabar o mandato dele. Até porque, haverá substitutos para ele, é uma ilusão achar que é só ele que comanda o espetáculo. Então, é uma conjuntura muito difícil, mas com virtualidades que não existiam há 20 anos. 5) O que o senhor acha do ativismo judicial, que muitas vezes precisa agir para suprir os vazios deixados pelo Executivo e Legislativo? Resposta: Se você olhar para outras democracias na América Latina e nos Estados Unidos, vai ver que alguns avanços, como esse do casamento gay nos Estados Unidos, só foi possível por causa da Suprema Corte. Alguns constitucionalistas como Joaquim Falcão e Oscar Vilhena mostram todo um elenco de decisões modernas progressistas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal. Os temas que o Supremo Tribunal Federal assume, tem enfrentado de uma maneira moderna as novas pautas. E também hoje há juízes que são aliados da sociedade civil e também a Procuradoria da República e as diversas procuradorias estaduais. É uma situação muito mais favorável do que no período da Ditadura, ou mesmo de antes da Ditadura. Não me sinto desconfortável com esse ativismo jurídico, o que não pode acontecer é que esse ativismo jurídico venha substituir a mobilização e a organização político-partidária. O ativismo jurídico não dá sozinho para compensar a desconstrução da constitucionalidade de 1988. 6) Na sua opinião, há legitimação de parte da sociedade civil em relação a posicionamentos conservadores dos parlamentares? Resposta: A sociedade, a população em geral tende a ser conservadora, e o espantoso seria se não fosse assim depois de você ter séculos de escravidão e de discriminação de boa parte da população. O surpreendente seria achar que seria diferente. A democracia não tem esse efeito imediato. Nós temos um legado racista e discriminatório no Brasil, ele persiste na cultura política da população, ainda que seja difícil generalizar. Mas, evidentemente que você não vai definir a legislação de um Estado através das pesquisas de opinião, mesmo que 99% da população seja a favor da pena de morte. A democracia é importante, e muitas das legislações brasileiras são muito avançadas. Nós temos uma lei contra o castigo corporal que a maioria dos países do mundo não tem. Mesmo que 99% da população seja a favor de tortura, não quer dizer que o Estado brasileiro agora vá legalizar a tortura. Na mesma esteira, essa questão da redução da maioridade penal. Mas a população conservadora, em que o racismo está presente, ela é submetida a SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 12 ENTREVISTA 12 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 muitos riscos, como eu digo, o precário funcionamento do aparelho de Estado, ou da segurança pública, e o avanço da criminalidade. Quer dizer, o Estado, apesar de alguns progressos, é incapaz de enfrentar a criminalidade organizada. É um pouco desconcertante dizer isso em um momento em que o Brasil, pela primeira vez na sua história, está enfrentando a elite que manteve o poder político desde o retorno da Ditadura, que são as empreiteiras, que continuaram a fazer seus esquemas sem nunca terem sido arranhadas. Hoje você tem empreiteiro na cadeia. Eu sou contra a cadeia, não tenho nenhum entusiasmo com a cadeia, mas a minha posição é isonômica. Se você quer o cumprimento estrito do Processo Penal que, a meu ver, não está sendo arranhado, porque tudo está sendo corroborado pelo Ministro Teori Zavascki, do STF, então tudo deve valer para os 600.000 presos. Quer dizer, se os empreiteiros da Lava Jato podem beber água Envian ou Perrier, eu não vejo por que os 600.000 presos brasileiros têm de beber uma água contaminada. E, enquanto a prisão existir, a execução da pena deve ser igual para todos (não há coisa mais estúpida do que prisão especial para universitários). A maioria desses 600.000 presos brasileiros envolvidos em crimes não violentos como furto ou consumo de droga são brincadeira de criança perto dos fundos que esses senhores, alegadamente, se apropriaram. E, no entanto, eles estão tendo um tratamento VIP, como eu gostaria que todos os presos tivessem. A prisão preventiva, eu gostaria que fosse igual para todos os presos em prisão preventiva no Brasil. Não é nada e ninguém se importa. Todo mundo se lixa. Não se pergunta a opinião de nenhum jurista sobre a defesa deles e de que maneira são tratados: não há nenhum artigo na imprensa escrita a respeito. Certamente, para falar bem do IBCCRIM, há entidades como este Instituto que, certamente, se preocupam com esse descompasso, mas a maioria da intelectualidade brasileira, quero dizer, os que pensam o mundo e o Brasil estão pouco se importando. Agora, é um ai Jesus, Deus nos acuda, por que o Marcelo Odebrecht tem que limpar a sua cela, isso é uma graça. A faxina das penitenciárias brasileiras, como você sabe, está nas costas dos presos. Então, essa indignação diária com o que acontece com os presos brancos faz parte dessa tolerância com as elites, mesmo pelas classes médiasbaixas. Essas classes na questão da diminuição da maioridade penal, não se dão conta de que os pilotos de prova dessa mudança vão ser boa parte daquelas classes mais exploradas que estão apoiando entusiasmadamente a diminuição da idade penal, quer dizer aquelas classes cujos membros hoje estão dentro dos presídios. Os adolescentes que vão ser jogados nas masmorras com 8 ou 10 anos de pena não serão, necessariamente, os meus filhos ou os filhos dos meus colegas ou dos meus amigos. Essa classe média alta, branca que, em geral, jamais vai ter problemas com a justiça, porque os filhos são educados; os escolarizados têm acesso preferencial ao mercado de trabalho, à universidade e não é o caso desses jovens entre 18 e 24 anos, que constituem a maioria dos presos. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 13 ENTREVISTA 13 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Maíra Zapater entrevista Danilo Cymrot*1 P: Você é autor de um conhecido trabalho de pesquisa a respeito do que chamou de “criminalização do funk”. Como você vislumbrou essas conexões entre o funk e a criminologia? R: Bom, eu sou músico. Isso acho que foi determinante na escolha do tema, porque eu sou uma pessoa que gosta muito de música. Toco, canto e acompanho. Gosto de funk, de ouvir, de dançar, mas a ideia surgiu, na verdade, quando eu estudei criminologia ainda na graduação e estudei, principalmente, a teoria [criminológica] da subcultura delinquente. Eu vi que havia toda uma corrente na criminologia, que, ainda na década de 1950, se ocupava em estudar as culturas juvenis; o impacto do cinema, dos meios de comunicação, enfim, na dinâmica criminal, e esse tipo de coisa me causou muito interesse. Depois, quando eu estudei [a teoria criminológica d]o Labeling Approach, também tive acesso à pesquisa do Howard Becker junto a músicos de jazz, eu vi que existia essa ponte entre música e criminologia e era justamente essa parte da criminologia que mais me interessava. Quando eu estava, enfim, pensando em um projeto de mestrado, no primeiro momento eu pensei até em ver algo que muita gente, inclusive, já pesquisou, que é esse tipo de articulação entre a criminologia e o samba. Mas depois eu pensei: bom, isso é uma coisa que já foi feita, assim, há tanto tempo e em vez de trabalhar com sambas das décadas de 1930 e 1940, por que eu não pego uma coisa que está acontecendo agora no momento, um tema do momento; até achei que teria uma função social, digamos assim, estudar algo que pudesse, inclusive, contribuir no sentido de fornecer argumentos em uma luta política mesmo, que acontece e tal. Não é à toa que já fui até apelidado de “intelectual orgânico”, não sei se de forma pejorativa ou não, mas eu sempre tomo como uma... Pois é, e aí eu pensei, bom, por que o funk? Por que eu vi, bom, se já existia essa ligação entre o samba e a marginalidade, no funk isso era mais claro ainda. A primeira vez que eu ouvi proibidão, eu tinha quatorze, treze, quatorze anos. P: O proibidão carioca? R: O proibidão carioca. Aquilo não me chamou muita atenção [na época]. Ficou, assim, um pouco esquecido. Mas depois, quando eu estava pensando no tema eu me lembrei desse funks que são acusados de fazer apologia ao crime, às facções criminosas e tal, e comecei a ver que existia, de fato, uma associação muito grande entre o funk e a criminalidade, o tráfico, a violência. Em alguns episódios, isso ficava mais evidente ainda, como o próprio assassinato do Tim Lopes. Quando eu comecei a estudar, na verdade, e fiz o projeto, eu nem tinha conhecimento do funk de São Paulo. Na verdade, foi um pouco contemporâneo, porque eu comecei o meu mestrado em 2009 e o funk chega de São Paulo, vindo da Baixada Santista, e aporta na Cidade Tiradentes mais ou menos nessa época, um pouquinho antes. Mas o funk começa realmente a tomar a cidade de São Paulo, por Cidade Tiradentes, em 2009. Quer dizer, então não deu nem tempo... O fenômeno estava acontecendo no mesmo momento [da elaboração da dissertação de mestrado]... Eu só vim a descobrir o funk de São Paulo quando eu estava prestes a depositar já a dissertação. Eu depositei [a dissertação] em 2011. E aí foi que eu comecei a descobrir a cena de São Paulo e o assassinato dos MC’s, como o Daleste. Os crimes, então, ocorreram depois, eu já tinha depositado [a dissertação]. Por isso, a desvantagem de escrever sobre o funk é essa. Não é um fenômeno que está acontecendo agora. Você tem que acompanhar sempre, né? Eu tenho sempre que atualizar. Agora, quer dizer, para se ter uma ideia, na minha pesquisa eu não abordo funk * Entrevista transcrita por Eduardo Carvalho, graduando em Direito pela Universidade Anhanguera de São Bernardo do Campo. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 14 ENTREVISTA 14 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ostentação. P: Que está super rolando agora, não é? R: Não. O funk ostentação nem está rolando mais. Já é decadente agora. O MC Guimê, por exemplo, já está muito pop. O que faz sucesso agora é o funk ousadia. É uma vertente do funk putaria, mas esse tem outro nome, que é o funk cantado por esses MC’s adolescentes. Mas, enfim, a minha pesquisa, basicamente, foi centrada no funk do Rio de Janeiro da década de 1990. Eu não fiz pesquisa de campo no mestrado, até porque eu não teria condições de fazer. Demandava um preparo, um conhecimento. Entre fazer malfeito, ter essa pretensão, e não fazer, eu preferi recolher o depoimento de outros pesquisadores que fizeram essa incursão, inclusive etnográfica em bailes funk do Rio de Janeiro na década de 1990. A primeira grande obra na referência bibliográfica e talvez a mais importante até hoje é o mestrado do Hermano Vianna, que estudou os bailes funk no Rio de Janeiro ainda na década de 1980. P: Ainda da época do charme do funk? R: Isso. Ainda antes da nacionalização do funk carioca, em 1987, se não me engano, 1987, 1988. Eu digo isso, porque em 1989 ocorre a nacionalização do funk, quando é gravado o primeiro LP de funk carioca com letras em português. P: Até então o que chegava era o funk norte-americano, a chamada black music? R: Isso. Era o funk norte-americano, que ou era instrumental ou era com letras em inglês que as pessoas acabavam, pela sonoridade, criando refrões em português, mas pela sonoridade. E o too much virava tomate, esse tipo de coisa. P: O que você pegou de legislação e jurisprudência, referente a que situações? R: No caso do Rio de Janeiro, legislação estadual principalmente. Municipal também, mas principalmente estadual, porque o funk foi objeto de uma CPI estadual no Rio de Janeiro. De uma CPI municipal também. E no Rio de Janeiro houve uma série de leis que tentaram disciplinar o funk. A última delas é de 2009, de autoria do Marcelo Freixo e do Wagner Montes, que reconhecem o funk como manifestação cultural. Se bem que o que eu defendo é que essa lei, na prática, não é obedecida, não é seguida, é desrespeitada, porque existe uma instrução normativa da Secretaria de Segurança Pública que, na prática, inviabiliza, hoje, os bailes funk no Rio de Janeiro, porque faz uma coisa que uma lei anterior estadual já fazia: impõe uma série de requisitos burocráticos para que o baile possa ser realizado. Então você tem que ter autorização do batalhão de polícia militar da área, com tantos dias de antecedência... Quer dizer, você dá uma margem de arbitrariedade muito grande, inclusive,que enseja práticas de corrupção. Se você paga propina, libera; se você não paga, não libera. Você precisa ter câmera de vigilância, detector de metal, ambulância, isolamento acústico, quer dizer... É claro que o funk se profissionalizou, as equipes de som bastante estão consolidadas, mas muitos bailes são realizados de forma tremendamente precária. P: E que faz um pouco parte da cultura do funk, eu acho. De fazer na rua, de fazer com o carro aberto, então, me corrija se a minha percepção do seu trabalho estiver equivocada, mas quando você fala de criminalização do funk, é uma criminalização às vezes por essa via, não criminalização propriamente dita de legislação, mas tem uma normativa administrativa que, na prática, impede que ele seja praticado. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 15 ENTREVISTA 15 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 R: Exatamente, até porque eu trabalho muito com o conceito de infrapenalidade de Foucault, quer dizer, é você criminalizar por meio do Direito Administrativo. Até porque quem mais se ocupa em regulamentar o funk é a Câmara Municipal e as Assembleias Legislativas no Rio e em São Paulo. E até por uma questão de competência constitucional, eles não podem legislar sobre Direito Penal, então se faz uso de tipos penais bastante abertos. P: Como contravenção penal de perturbação da paz pública, essas coisas? R: Isso. Exatamente! E do Direito Administrativo. Por que eu sustento que existe uma criminalização do funk? Bom, por um lado, existe uma criminalização no sentido estrito mesmo, porque, apesar de o funk não ser criminalizado, alguns MC’s acabam sendo enquadrados por tipos legais como de apologia ao crime, caso do Proibidão. Mas no caso dos bailes: na maioria das vezes é a legislação administrativa que acaba proibindo a sua realização e aí vem a força policial, muitas vezes de forma violenta ou fazendo uso de armamento não letal, bombas de gás lacrimogênio para proibir, fechar. P: Eu acho que valeria a pena explicar, Danilo, que a gente está falando aqui bastante de Proibidão e talvez não necessariamente o leitor esteja totalmente familiarizado com o termo. O que é o “Funk Proibidão”? R: Os produtores, os cantores de funk dizem que quem criou essa terminologia, mesmo, foi a imprensa. P: Eles não se autoidentificam com o termo? R: Hoje em dia sim, mas muitos não gostam. Eles preferem chamar de “Funk Neurótico” ou “Funk Consciente”. O problema é o seguinte: existe um limite tênue entre o Funk Proibidão e outros gêneros, como o próprio Funk Consciente, o que faz com que haja essa confusão. O Funk Consciente, digamos assim, é aquele funk que faz crítica social, que retrata a realidade, denuncia o racismo, a violência policial, e o funk apelidado de Funk Proibidão, o Funk Neurótico, é aquele funk de facção, acusado de fazer apologia ao crime, principalmente apologia às facções criminosas. Então é o funk em que o cantor canta que pertence a uma facção e, no funk, ele esculacha, digamos assim, os inimigos, sejam membros das facções rivais. Por exemplo: tem o funk do Comando Vermelho, que fala mal do Terceiro Comando e do Terceiro Comando Puro; expõe, na letra, o poderio bélico, e não só bélico, da facção. Quer dizer, enaltece, dizendo que eles têm armas e têm poder e que eles têm AK 47 [tipo de fuzil cujo porte a lei brasileira restringe às Forças Armadas]. A polícia também tem AK 47. Quer dizer, esses enaltecem. Tem uns funks proibidões que narram práticas criminosas mesmo, sequestro, roubo. P: Em geral esses crimes narrados nas letras são relacionados ao patrimônio e tráfico de entorpecentes? R: Exatamente. E até fiz um artigo em que eu brincava com isso, foi publicado em um livro organizado por Carlos Bruce Batista. No Rio de Janeiro, foi editado pelo Instituto Carioca de Criminologia. O artigo se chamava “Proibidão Classe A”, em que eu brincava justamente com isso. Eu escrevo músicas também, e escrevi o que seria o Proibidão, que, ao invés de falar sobre roubo, sequestro, fala sobre crime de colarinho branco. Mas “Proibidão” também é um guarda-chuva que engloba outros estilos. Existe um Proibidão que não fala sobre crime nem tráfico, mas fala sobre putaria, então tem palavrão e esse tipo de coisa. Geralmente esses funks têm duas versões: a versão proibida e a versão “família”, que é cantada nos grandes meios de comunicação. Mas esse funk proibidão que eu analiso, principalmente, não é tanto esse. O que eu analiso e o que eu estudo é, SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 16 ENTREVISTA 16 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 principalmente, o funk que fala e faz apologia ao crime. E aí, o que os MC’s dizem? “Olha, veja, eu não estou fazendo apologia ao crime. Na verdade, existe guerra de facção na favela e eu estou, simplesmente, retratando essa realidade, então não é porque eu incorporo um eu-lírico traficante que eu sou um traficante ou que eu acho isso legal, que eu apoio”. É uma forma até de denúncia, por isso que muitos se recusam a usar a terminologia funk proibidão. Eles falam: “O que nós fazemos é funk consciente, então, quando a gente critica a polícia, a gente fala mal da polícia, a gente xinga a polícia, é porque a polícia exerce no imaginário social da favela aquilo que todos nós conhecemos”. Claro, há funks que falam abertamente em matar policial, mas outros, não, simplesmente criticam a polícia – e aí a polícia diz que eles estão incitando a desordem ao criticar a polícia. P: Aí depende de quem está narrando para que se possa identificar se aquilo é um retrato crítico da realidade, ou se a pessoa está, de fato, pregando, realmente, a morte de um policial. Quem tem o poder de deter a narrativa é que vai predominar. R: Claro. E o que eles falam também é que, na verdade, o problema não é tanto a mensagem, o conteúdo das letras, mas a pessoa que canta. Se for um cantor de MPB que canta uma música com um eu-lírico traficante, claro, caso de um Chico Buarque ou de um Caetano Veloso criticando a polícia, eles não vão ser presos. P: Se o Caetano e o Gil cantarem Haiti... R: É, Haiti, inclusive tem um episódio interessante. Essa música foi citada quando, em 1993, eu vi um show no Anhangabaú dos Racionais [grupo paulistano de RAP] e de um outro grupo de rap. Eles foram presos depois do show, porque eles cantavam uma música chamada Homens da Lei, que criticava a polícia e a polícia, injustamente, levou os músicos para a delegacia sob o argumento de que estavam incitando a revolta do público contra a polícia, que estavam fazendo apologia ao crime. E a declaração do cantor foi justamente essa: “mas o Caetano e o Gil, eles podem cantar Haiti. Por que nós não podemos?” Isso depende muito de quão institucionalizado o músico está no próprio cenário da música brasileira. Os Titãs, por exemplo, no final da década de 1980, cantaram [a música] Polícia. Hoje em dia eles podem cantar, estão superinstitucionalizados, são considerados, inclusive, já abraçados pela MPB. Não são considerados marginais, nada disso, já são senhores de meia-idade, mas a gente não pode esquecer que eles compuseram Polícia justamente porque dois dos integrantes, o Arnaldo Antunes e não sei se o Tony Bellotto, foram presos, assim como o próprio Gilberto Gil foi preso. Hoje em dia é difícil alguém imaginar isso acontecendo. E acontece. A Rita Lee foi detida e processada pela polícia, mas é uma coisaque causa escândalo, as pessoas saem em defesa da Rita Lee, ainda que um ou outro saia em defesa da polícia. P: Tem um ponto ao qual eu vou querer voltar: você começou dizendo que tinha interesse de falar do samba do começo do século XX. Você vê uma relação paralela ao funk, nessa inter-relação de arte, representação de situações criminógenas e classe social? O samba tinha esse caráter meio transgressor, na minha leitura muito semelhante com o que o funk tem hoje. Isso foi apropriado por uma intelectualidade de classe média e foi alçado a um outro patamar e hoje me parece muito improvável pensar em um sambista falando de crime, ou pensar em samba como uma música periférica. Eu não tenho essa visão mais do samba como uma música das populações periféricas, e o funk, me parece, ocupa um pouco esse lugar agora. Você vê uma apropriação do funk por elites quando, às vezes, se vê bairros nobres de São Paulo abrigando cantores de funk? É possível identificar um processo semelhante ao SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 17 ENTREVISTA 17 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 que ocorreu com o samba? R: Em termos. No caso do samba, é uma questão de identidade, institucionalização e mediação social. O que eu quero dizer com isso? Em 1890, quando foi promulgado o Código Criminal da República, a Capoeira foi criminalizada. Por quê? A escravatura havia sido abolida há dois anos e havia um medo muito grande – quem fala bastante desse medo da população negra na cidade do Rio de Janeiro é a Vera Malagutti Batista. E havia um medo de que os negros pudessem causar insurreições, cobrando reformas mais profundas, uma democratização real da sociedade. Isso vinha desde 1835, quando houve a Revolta dos Malês. O haitianismo também, sempre pairando como um fantasma aqui, uma ameaça para as elites brancas do Brasil. Fizeram com que qualquer ajuntamento de negros num espaço público fosse regulado e visto com desconfiança e, portanto, interditado. Os capoeiras eram vistos nessa lógica ameaçadora e, portanto, foram criminalizados. O samba também, no começo do século XX era identificado ainda com a população negra. Há várias piadas racistas sobre isso, por exemplo: “negro toca cavaquinho, porque é um samba que dá para tocar algemado”. O que acontece, como você bem lembrou e o Hermano Vianna estudou na tese de doutorado dele [intitulada] “O Mistério do Samba”, é que, na década de 1930, há uma aproximação entre o sambista de morro e intelectuais, que estavam preocupados em pensar uma identidade nacional e isso, inclusive, foi incorporado visando um projeto político de integração nacional varguista, nacionalista, que adotou o samba. E poderia ter sido outro, poderia ter sido o baião, poderia ter sido a chula no Rio Grande do Sul. No entanto, adotaram o samba como símbolo nacional. E a partir desse momento que o samba é alçado, de marginal ele passa a ser motivo de identidade nacional, de orgulho nacional, símbolo de identidade nacional, enfim, ele é institucionalizado. É claro que sempre existiu, ainda, um quê de marginalidade aí. O próprio Bezerra da Silva compunha o “sambandido”. Ele fazia essa crônica da malandragem, da bandidagem, teve problema com a polícia também. Não é à toa ele ser tão idolatrado pela nova geração do rap. O Marcelo D2 gravou um CD só cantando Bezerra da Silva. Mas de uma forma geral, o samba, apesar de ainda estar muito identificado com a negritude, passou a ser abraçado como uma cultura brasileira, um patrimônio cultural nacional. E o funk, realmente, principalmente a partir da década de 1970, quando ele é confinado nos subúrbios e nas favelas do Rio de Janeiro, passa a ser associado com a população negra, pobre, suburbana e favelada do Rio de Janeiro. Não é à toa, também, que um dos grandes sucessos do funk, no comecinho dos anos 2000, fala exatamente que era “um som de preto e de favelado”. Havia sempre essa associação. Então, o problema – e é o que eu falo – não é com a batida em si. Se bem que há estudos em que falam que a batida ela pode acabar, digamos assim, incentivando comportamentos mais ou menos violentos. Os chamados bailes de corredor, em que as pessoas brigavam. Mas além do o Pancadão, tem o punk, não é? Que é uma batida violenta também. O que eu quero dizer é que dificilmente alguém vai brigar ao som de Beethoven, a não ser no [filme de Stanley Kubrick] “Laranja Mecânica” (risos). Mas, enfim, o que eu quero dizer é que o problema não é a música. Então se tiver uma festa que toque funk, em uma discoteca fechada, em um bairro nobre do Rio de Janeiro ou de São Paulo, frequentada por jovens de classe média alta, brancos, a polícia não vai entrar, não vai proibir. Não tem problema. O problema é com uma música que é associada à juventude negra e pobre e esse é o problema, então eu digo que o funk pode seguir o mesmo caminho do samba. Hoje em dia o que a gente vê é que o funk anda em uma corda bamba, porque, por um lado, ele foi incorporado pela indústria cultural, chegou na trilha sonora da novela, artistas de funk gravaram em grandes gravadoras multinacionais, estão nos programas de TV, enfim, mas ele preserva um quê de originalidade. Porque quando o funk atinge um público maior, ele também se modifica, ele fica mais pop, então, tem muita gente que não considera a Anita, por exemplo, funkeira. A Anita é SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 18 ENTREVISTA 18 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 vista como se fosse traidora do movimento, muito mais pop do que funkeira. Aí vem a Valesca [Popozuda, cantora de funk] e fala: “eu, sim, sou funkeira”. Ou melhor, a Tati Quebra-Barraco, falando: “não! Esse negócio de diva pop não é comigo, eu sou funkeira mesmo e tal”. Às vezes, a gente vê um mesmo artista transitar por ambientes diferentes e, ao transitar por ambientes diferentes, ele assume uma postura outra, dependendo do lugar onde ele está. Vamos citar o exemplo do Mr. Catra: quando o Mr. Catra está na TV, ele canta um tipo de repertório, ele faz um tipo de declaração. Quando ele vai fazer um show na favela, ele canta outro tipo de repertório, ele faz outro tipo de declaração, até porque ele sabe que aquelas pessoas da favela têm um repertório simbólico, cultural compartilhado, que outras pessoas em uma festa universitária não têm. Então não adianta, se você começar a falar de gírias do crime em uma festa universitária aqui de São Paulo, é capaz de ninguém entender, porque os funkeiros, eles jogam muito com a ironia, com a ambiguidade, o discurso é bastante ambíguo, irônico. E mantém essa espécie de corda bamba: tem que se popularizar, mas sem perder as raízes. P: O rap é um gênero musical mais a São Paulo do que ao Rio de Janeiro. E também costuma ser muito associado, mais do que a populações periféricas, à população carcerária. O funk também tem essa associação com a população carcerária? Há aproximações, distanciamentos, os dois estilos? R: Sim. Durante muito tempo, o funk e o rap tiveram um conflito. Muitos falavam que o Rio de Janeiro era a terra do funk e São Paulo era a terra do rap, o que não é verdade, porque no Rio de Janeiro sempre teve rap e em São Paulo cada vez mais tem funk. A grande disputa era a seguinte: eu costumo dizer que muitas vezes se afirma uma identidade pela negação do outro, e quanto mais próximo você for do outro, maior é a necessidade de você demarcar as fronteiras. Mas, também,estão cada vez mais próximos, há misturas. O comprometimento é com a diversão e com o deboche. Essa é uma das coisas, inclusive, que fez com que o funk e o rap entrassem em conflito, porque o funk, no começo, ele surge muito influenciado pelo rap: no começo, os funks eram chamados de raps, como “O rap da felicidade”, “O rap do Salgueiro”. Compartilhavam, inclusive, a mesma terminologia, e os cantores de funk, chamados de MC’s, que nem os rappers. E principalmente os rappers, que tinham essa preocupação um pouco purista de marcar território, se incomodavam muito, porque eles diziam que não queriam ser confundidos com funkeiros, porque, enquanto o modelo ideal deles, purista, os rappers seriam pessoas comprometidas com a conscientização social, politizados; o funkeiro seria uma pessoa alienada, debochada, enfim. Inclusive o rap sempre foi muito mais respeitado pela intelectualidade, pela MPB, como uma pessoa consciente que faz letras elaboradas, com rimas ricas, do que o funkeiro, que é um cara semianalfabeto que faz letras pobres, enfim, o que não é verdade, como o exemplo do funk consciente. Com a chegada do funk na periferia de São Paulo, o rap foi perdendo cada vez mais espaço, isso acabou causando um desconforto, também, muito grande. No primeiro momento, portanto, não só por questões identitárias, mas até por questões financeiras, de sobrevivência, os rappers se opunham ferozmente à entrada do funk aqui em São Paulo, porque eles estavam perdendo espaço, inclusive, trabalho. Mas, de uns tempos para cá, o que se tem visto é um diálogo cada vez maior entre o funk e o rap de São Paulo, porque eles compartilham o mesmo espaço social, que é a periferia de São Paulo. Muitas vezes, são amigos e sofrem dos mesmos problemas, as mesmas questões, mas o funk ainda não foi institucionalizado como o rap. Ele é ainda mais respeitado, visto como um gênero politizado consciente conseguiu, inclusive, criar pontes com a militância política e partidária. O PT e o PCdoB, mas principalmente o PT, sempre valorizam muito o rap como cultura popular – como se o funk não fosse – e criou pontes com os rappers a ponto de rappers fazerem campanha para o PT. Agora SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 19 ENTREVISTA 19 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 que o funk está começando a se organizar e se aproximar de partidos de esquerda, principalmente, então aqui em São Paulo, por exemplo, tem o vereador Reis, do PT, que é o maior defensor do funk na Câmara Municipal; na Assembleia Legislativa é a Leci Brandão. E é curioso porque a Leci Brandão é do samba, mas muito antenada com o pessoal do rap e do funk. É o que eu digo, é a identidade negra que acaba congregando esses três estilos, que convivem no mesmo espaço social, o samba, o rap e o funk. P: Danilo, para a gente fechar, queria só uma reflexão sua sobre as realidades culturais de São Paulo e do Rio de Janeiro, como você vê isso? R: Essa divisão eu não conto muito, porque geralmente essas divisões são simplificadoras. No caso do Rio de Janeiro, de fato, qual o cenário hoje em dia, não é? Diz o MC Leonardo, que é da APAFUNK, Associação dos Profissionais Amigos do Funk, que, na prática, o funk está proibido no Rio de Janeiro, que acabaram os bailes, eles foram fechados, muitos por causa das UPPs, da política de UPP: onde tem UPP não tem baile. Até se tentou fazer o baile pacificado, tem algumas experiências, uma ou outra, mas por causa dessa instrução normativa da Secretaria de Segurança Pública, na prática o funk do Rio de Janeiro está proibido. O funk do Rio de Janeiro já teve vários momentos: no começo da década de 1990, em que nas letras o tom hegemônico era da apologia à paz, porque, justamente, como o funkeiro foi muito associado à violência, à briga, ao quebra-quebra, arrastão, os funkeiros começaram a dar essa resposta. P: Foi a época do refrão “eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente na favela onde eu nasci”? R: Isso. Rocinha pede a paz. Se você for pegar 1994, 1995, praticamente só se vê esse tipo de funk, pedindo paz, paz nos bailes, contra a violência. Depois houve um momento em que os bailes ficaram muitos violentos: era a época dos bailes de corredor em que a tônica do funk no Rio de Janeiro era a briga. Essa época passou e foi substituída por uma nova fase, que é a do funk sensual, o funk putaria. Nesse momento surgem as MC’s mulheres. Elas ganham destaque nessa fase do funk, como a Tati Quebra-Barraco, a Deize Tigrona. E, por fim, também teve a fase do proibidão, que foi muito forte quando os bailes de clube, onde ocorriam essas brigas, foram proibidos. Os funks foram confinados mais uma vez nas favelas, na ilegalidade, na informalidade. Também coincidiu com uma época no Rio de Janeiro em que as disputas pelo tráfico entre as facções criminosas do Rio estavam bastante intensas e toda essa história foi narrada em funks proibidões. Tem um trabalho muito interessante do Thiago Vieira, do Rio de Janeiro, que ele fala justamente isso, como você consegue entender muito da história não oficial do Rio de Janeiro, que não está nos livros didáticos, mas se pode conhecer por meio das letras dos proibidões. O funk vive fases bastante diferentes, dependendo do momento, inclusive, político em que vive a cidade. No caso de São Paulo, de fato havia uma diferença muito grande com o Rio de Janeiro, porque a ostentação é um fenômeno típico de São Paulo. Quando o funk surge em São Paulo, ele não era simplesmente uma imitação do Rio de Janeiro. Em um primeiro momento até era, mas ele ganha personalidade, ele ganha identidade própria, o funk paulista, com a ostentação. Isso também não é à toa, porque o que aconteceu no fim dos anos 2000? Uma época de euforia, de otimismo, euforia econômica, o fim do segundo Governo Lula. Muito se falou em ascensão da nova classe média, aumento do consumo, do crédito. Não que essas pessoas consumissem tudo aquilo que elas cantavam, elas não tinham todas carros importados, enfim, mas era uma realidade que não estava tão distante assim, você conseguia ver um outro carro luxuoso nas favelas. O funk ostentação incomodava as pessoas. Não é à toa que os rolezinhos também foram criminalizados, não era tão SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 20 ENTREVISTA 20 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 reprimido e tão criminalizado quanto o proibidão, que em São Paulo fala sobre o PCC. Mas tinha um momento em que as pessoas não queriam, no momento de lazer delas, falar sobre PCC, sobre crime, sobre assuntos pesados; elas queriam celebrar a vida, alegria. Então elas preferiam falar sobre o consumo a falar sobre a realidade do cárcere. Respondendo, inclusive, a sua pergunta anterior, que eu tinha deixado escapar, o funk está nas prisões, fortíssimo. Existem concursos de funk lá, falando a realidade do cárcere, e eu não sei avaliar a correlação de forças, quem está mais forte, hoje, dentro da cadeia, se é o funk ou se é o rap. Mas se a correlação de forças na cadeia seguir a mesma lógica do que ocorre, hoje, na periferia – que é de onde vem a maioria dos presidiários, em geral pessoas negras, pobres, com baixa escolaridade, muitos vindos de bairros periféricos –, o funk estaria mais forte. É uma percepção, não posso afirmar com segurança. Mas o fato é que a ostentação ganha força em detrimento do funk proibidão, que fala sobre o PCC. Esses MC’s que foram assassinadosna baixada santista, o próprio MC Daleste, eram, justamente, MC’s que surgiram cantando proibidão, falando de PCC, e depois mudaram para a ostentação. Mas eu também não gosto dessa divisão rígida de estilos, eu sempre digo que ostentação e proibidão se conversam, não são gêneros estanques. Eles jogam muito com ambiguidade, com a sugestão, em algum momento ele fala que ele é do crime, mas ele não deixa a par de onde vem o dinheiro que ele está ostentando. Agora, o que acontece em São Paulo hoje é que o ostentação, que nunca foi muito forte no Rio de Janeiro, também perdeu força, também por razões... Existe um pesquisador chamado Renato Barreiros, que ele estuda bastante o funk de São Paulo, e na análise dele, com a qual concordo, ele diz: não só houve uma saturação, porque é natural, o gênero faz sucesso e daí todo mundo começa a copiar, todo mundo faz naquele estilo. Chega uma hora que satura. Não só houve uma saturação do gênero ostentação, mas a própria realidade econômica mudou de 2008 para cá. Não faz mais sentido ficar falando de gastos milionários com carros de luxo. E aí que, em São Paulo, ganha força essa nova vertente do funk, que é o funk ousadia. É um funk que fala sobre putaria ou é um funk debochado. O foco sai e volta para a dança. A própria repressão fez com que alguns desses funkeiros abraçassem, voltassem os seus olhos para o pop, para outros estilos. Assim como no Rio, aqui em São Paulo a gente está vivendo uma situação parecida, que é a repressão dos bailes funk de rua, os chamados “fluxos”, justamente sob o argumento de que nesses espaços ocorre o consumo de drogas, inclusive por menores, não há isolamento acústico, o trânsito fica prejudicado, as pessoas não entram em suas casas, o som é alto. Tudo isso aconteceu no Rio de Janeiro. Existia uma política repressiva e o que eu estou estudando no momento é exatamente isso, como que chegou na Assembleia Legislativa, na Câmara Municipal, como que o Poder Público tem tentado compatibilizar o direito ao lazer e à cultura, por um lado, e o direito do sossego da vizinhança, esse tipo de coisa. No meu doutorado eu estudei os deputados policiais militares, que mais propõem projetos de repressão ao funk. Tem, por exemplo, um projeto do Conte Lopes no sentido de permitir a realização de bailes funk apenas no Anhembi. Mas isso depois de ele já ter feito um projeto junto com o coronel Camilo no sentido de proibir geral, a não ser que sejam espaços fechados, com isolamento acústico. Foi vetado pelo prefeito esse projeto, feito em parceria do Conte Lopes com o coronel Camilo no âmbito municipal. Depois o coronel Camilo se elegeu agora para a Assembleia Legislativa, e junto com o coronel Telhada propuseram agora um novo projeto, na Assembleia Legislativa, no sentido de restringir o máximo possível a realização dos bailes ou tentar regulamentar isso. É esse que está em trâmite agora [maio de 2015]. É um tema que eu tenho que estar o tempo todo de olho e a cada semana acontece... Em São Paulo, na cidade de São Paulo, pelo menos a gente tem uma prefeitura, uma secretaria municipal de cultura. Eu não sei agora com o Nabil Bonduki, mas com o Juca Ferreira havia um espaço de diálogo, eu sentia que havia boa vontade SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER 21 ENTREVISTA 21 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 no sentido de reconhecer o funk como manifestação cultural, isso claramente. No âmbito estadual isso não está muito claro, mas isso, muito em virtude do próprio perfil do Juca Ferreira, que foi ministro e é um ministro, assim como o Gilberto Gil, que valoriza outras manifestações culturais, não apenas aquelas associadas à cultura erudita nem à cultura popular folclórica, mas à cultura de massa mesmo. P: Alguma consideração final que você gostaria de fazer, algo a acrescentar, algo que você gostaria de ter falado e acabou não sendo contemplado nas questões? R: Não. Acho que já deu para traçar um perfil. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER ARTIGOS 22 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 Por uma outra criminologia do terceiro mundo: perspectivas da Criminologia Crítica no Sul1 For another third world criminology: perspectives from the South’s Critical Criminology Rodrigo Codino Professor e Coordenador do Programa de investigação em Criminologia da Universidade Nacional de San Martín, Buenos Aires, Argentina. Traduzido por Salo de Carvalho (Faculdade Nacional de Direito, UFRJ). Resumo: O artigo refaz o percurso da criminologia crítica na América Latina, enfatizando a construção de um saber teórico autóctone direcionado à denúncia das violências estrutural e institucional. Na sequência, relaciona a criminologia crítica latino-americana com a criminologia africana, problematizando, a partir do relato da tensão entre direito europeu (colonizador) e direito comunitário, seus conceitos, objetos, métodos e, sobretudo, os desafios comuns para resistir às distintas formas de violência e de dominação. Palavras-chave: Criminologia crítica; criminologia africana; criminologia latino-americana. Abstract: This article retraces the critical criminology route in Latin America, emphasizing the construction of an autochthonous theoretical knowledge directed to the complaint of structural and institutional violence. In addition, the paper relates the Latin American critical criminology with the African criminology, debating – from the report of the tension between European law (colonizer) and Community law – its concepts, objects, methods and, above all, common challenges to resist to different forms of violence and domination. Keywords: Critical criminology; african criminology; latin american criminology. Sumário: 1. A primeira criminologia autóctone em nosso continente. O marco teórico. O compromisso político – 2. Uma outra criminologia terceiro-mundista: aproximações. A etnocriminologia na África negra. As normas sociais tradicionais – 3. A lei penal do “outro” – 4. A criminologia terceiro-mundista em jardins arrasados. 1. A primeira criminologia autóctone em nosso continente Há mais de 40 anos era realizado evento de enorme transcendência para a criminologia da América Latina. A reunião de criminólogos europeus e latino-americanos na Venezuela, nos anos 70, com o objetivo de analisar a violência,2 marcou o início de uma nova etapa no desenvolvimento do pensamento criminológico regional.3 As investigações 1 Apresentação realizada no III Congresso Latino-americano de Direito Penal e Criminologia, ALPEC, 18-20 de novembro de 2014, Tegucigalpa, Honduras. 2 Algumas comunicações da reunião no XIII Congresso Internacional de Criminologia foram recompiladas por Lola Anyiar de Castro e publicadas sob o título “Los rostros de la violencia”, Centro de Investigações Criminológicas, Maracaibo: Universidade de Zulia, 1974. 3 Referimo-nos à rejeição sem precedentes e ao abandono do pensamento criminológico positivista que acompanharam, durante todo o SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER ARTIGOS 23 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 que se desdobraram logo após este encontro e que se realizaram durantedécadas delinearam uma criminologia local, ou seja, de corte latino-americano, distinta daquela formulada nos países centrais: uma criminologia do terceiro mundo ou terceiro-mundista. Muito se discutiu sobre a possibilidade de realmente falar de uma criminologia própria ou apenas de uma proposta diferente na forma de fazer criminologia em nosso continente, notadamente depois do reinado do positivismo criminológico. Quem colocou em dúvida as características próprias deste movimento, entendeu-o como manifestação de uma atitude voluntarista, isto é, de uma proposição de como os autores gostariam que fosse a criminologia;4 mas, em realidade, não teria sido nada além de uma transnacionalização do saber criminológico de acordo com os modelos impostos pelos centros de poder localizados nos países centrais. Tratava-se, portanto, para esta posição, de uma repetição exagerada do discurso criminológico europeu.5 Outros sustentaram que nesta época a criminologia na América Latina estava estreitamente ligada à discussão sobre o compromisso político-intelectual (o “dever ser” do criminólogo crítico) e que isto havia obstruído a capacidade do “ser” da criminologia crítica. A criminologia crítica na América Latina aparecia como uma “grande narrativa” ou uma “importação cultural”, sem um desenvolvimento que permitisse considerá-la autônoma da europeia. Inclusive houve aqueles que a assinalaram como “teoricamente subdesenvolvida” ou de “escasso nível científico”.6 Esta primeira criminologia autóctone teve dois momentos: um teórico e outro sangrento. O marco teórico. Nossos criminólogos se ocuparam dos elementos centrais da vida política latino-americana, que eram temas estranhos aos europeus. Entre eles, a ingerência do primeiro mundo nas guerras civis centro-americanas e a sua manipulação ideológica nos meios de comunicação, a doutrina de segurança nacional, a existência de modelos econômicos diversos no Primeiro e no Terceiro Mundos etc.7 Além disso, realizaram investigações sobre a violência na América Latina, sobre a criminalidade de colarinho branco e sobre a corrupção administrativa, cujo conteúdo foi examinado em seminários em distintos países.8 Esta criminologia local levou em consideração tanto as peculiaridades étnicas, linguísticas e culturais dos países da região, como a injusta desigualdade no campo econômico. Para alcançar um enfoque mais adequado da realidade social latino-americana e os fins de controle social, afirmava-se que deveriam ser colocados em evidência a dominação sofrida pelo nosso continente e o poder despótico de grupos, famílias ou indivíduos que, em conivência com grupos século XX, a criminologia regional e a sua substituição pelo pensamento criminológico crítico. 4 DEL OLMO, Rosa. Criminología y derecho penal: aspectos gnoseológicos de una relación necesaria en la América Latina actual. Doctrina Penal, ano 10, n. 37, Buenos Aires, 1987, p. 36. 5 DEL OLMO, Rosa. Un reencuentro con América Latina y su Criminología. Segunda ruptura criminológica. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1990, p. 137. 6 Ver SOZZO, Máximo. Traduttore traditore: traducción, importación cultural e historia del presente de la criminología en América Latina. Reconstruyendo las criminologías críticas. Buenos Aires: Ad Hoc, 2006, p. 404-406. 7 Sobre o tema, ANIYAR DE CASTRO, Lola. Historia no contada de la Criminología Latinoamericana. Criminología de la Liberación, Maracaibo: Universidad de Zulia, 1976, p. 3-18; ANYIAR DE CASTRO, Lola. CODINO, Rodrigo. Manual de criminología sociopolítica. Buenos Aires: Ediar, 2013. 8 Sobre violência na América Latina: seminários de Quito (1976); Lima (1977) e Bogotá (1978); sobre a criminalidade de colarinho branco: seminários do Rio de Janeiro (1979); sobre corrupção administrativa: seminários do Panamá (1972) e Costa Rica (1983). SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CONTO CADEIA DE PAPEL EXPEDIENTE Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 ARTIGOS 04030201 0201 ENTREVISTA 0201 INFÂNCIA 030201 DIREITOS HUMANOS 0201 ESCOLAS PENAIS PARECER ARTIGOS 24 Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Edição nº 20 setembro/dezembro de 2015 de poder internacionais, haviam produzido totalitarismos homicidas9 contra a vida de indígenas, campesinos e trabalhadores. A criminologia não poderia seguir esquecendo que era um setor da política criminal geral e uma parte do conjunto concreto de cada povo com sua geografia e com sua história.10 Qualquer aproximação com uma criminologia na nossa margem deveria contar a nossa própria história. Na América Latina, referir-se ao Estado Providência ou benfeitor não fazia sentido, tal como na criminologia europeia ou americana, pois não se compartilhava esta forma de Estado. Nossa região estava ameaçada por outras ideologias estatais perigosas como a do capitalismo de Estado, a do Estado tecnocrático ou a do Estado de segurança nacional.11 O compromisso político. As páginas escritas pelos nossos criminólogos não passaram inadvertidas por alguns governos autoritários de ocasião. Pertencer a um movimento de criminologia crítica foi perigoso na América Latina.12 Vários membros deste movimento latino-americano caíram nas mãos dos regimes autoritários, alguns foram obrigados ao exílio13 e outros tiveram menos sorte. Vale lembrar os assassinatos – ainda impunes – de Jorge Palacios Mota e Guillermo Monzón Paz em 1981, na Guatemala, professores da Universidade de San Carlos (Guatemala), que professavam uma criminologia e um direito penal críticos. Monzón Paz havia apresentado um trabalho no congresso da Venezuela de 1974, cujo título era significativo e representava o pensamento crítico da época: “a imprensa dos países da América Latina nas mãos das oligarquias criollas14 é uma forma de violência institucionalizada”. É provável que não exista apenas um fator determinante para a queima do Palácio da Justiça na Colômbia em 1985, mas a morte de Alfonso Reyes Echandía e Emiro Sandoval Huertas, Presidente e Ministro da Suprema Corte deste país, ambos criminólogos críticos, deixa suspeitas sobre o incômodo que as suas ideias produziram no poder político da época. Estes autores haviam denunciado a formação de pessoal militar e policial nos Estados Unidos e no Panamá e a ingerência norte-americana em assuntos internos da Colômbia com a presença de tropas em território latino- americano; assinalavam que a Justiça Militar havia suplantado a Justiça ordinária ao assumir o poder de administrar a 9 BERGALLI, Roberto. Hacia una criminología de la liberación en América Latina. Capítulo Criminológico, n. 9/10, Universidad de Zulia, Maracaibo, 1981/1982. 10 BERISTAIN IPIÑA, António. La criminología comparada y su aportación a la política criminal: una reflexión tercermundista. Colóquio Internacional “A Comparação como Método Científico no Direito Penal e Criminologia”, Freiburg, 1978. 11 ZAFFARONI, E. Raúl. Criminología y derecho. Anuário da Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Rosário. Rosário: Universidad Católica Argentina, 1981, p. 532 e ss. Igualmente em ZAFFARONI, E. Raúl. Política criminal latinoamericana. Buenos Aires: Hammurabi, 1982, p. 31 e ss. 12 Nesse sentido, SZABO, Denis; RICO, José Maria. Criminología y represión en América Latina. Capítulo Criminológico, n. 8/10, Universidad de Zulia, Maracaibo, 1981/1982. 13 Tiveram de deixar a Argentina, entre outros: Luis Marcó del Pont, Emilio García Mendez, Juan Pegoraro, Roberto Bergalli (que, além de tudo, foi preso e torturado). Em El Salvador, Atilo Ramírez Amaya. 14 São designadas “oligarquías criollas” as elites econômicas latino-americanas, sobretudo aquelas cujo capital deriva diretamente da expropriação de terra dos povos autóctones e que deu origem aos grandes latifúndios rurais. (N.T.) 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