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CRIANÇA, ADOLESCENTE E RACISMO São Paulo, 2022 F Editora Casa Flutuante Djalma Lopes Góes Daniela Pinheiro de Oliveira Flávia Abud Luz Mônica Abud Peres de Cerqueira Luz (org.) Criança, Adolescente e Racismo 31 Anos do Estatuto da Criança e do Adolescente Editora Casa Flutuante Rua Manuel Ramos Paiva, 429 - São Paulo - SP Fone: (11) 2936-1706 / 95497-4044 www.editoraflutuante.com.br [2022] Todos os direitos reservados aos Organizadores Copyright © 2022 Organizadores - Todos os direitos reservados. Organização Djalma Lopes Góes Daniela Pinheiro de Oliveira Flávia Abud Luz Mônica Abud Peres de Cerqueira Luz Conselho Editorial Edvaldo Pereira Lima, doutor em Ciências da Comunicação / USP Marcia Furtado Avanza, doutora em Ciências da Comunicação / USP Márcia Neme Buzalaf, doutora em História / UNESP Marcos Antonio Zibordi, doutor em Ciências da Comunicação / USP Maurício Pedro da Silva, pós-doutorado em Literatura Brasileira / USP Vinicius Guedes Pereira de Souza, doutor em Comunicação / UNIP Diagramação capa e miolo / Israel Dias de Oliveira Ilustração capa / Carolina Cristina dos Santos Nobrega Criança, Adolescente e Racismo [livro eletrônico]: 31 Anos do Estatuto da Criança e do Adolescente / organização: Djalma Lopes Góes...et al.]. -- 1. ed. -- São Paulo: Editora Casa Flutuante, 2022. PDF 174p.; il.; fotografias; gráfs.; tabs. Vários autores. Outras organizadoras: Daniela Pinheiro de Oliveira, Flávia Abud Luz, Mônica Abud Peres de Cerqueira Luz. Bibliografia. ISBN 978-65-88595-17-6 DOI 10.36599/cflu-caraeca 1. Direito à educação 2. Direito da criança e do adolescente 3. Direitos fundamentais 4. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - História 5. Racismo I. Góes, Djalma Lopes. II. Oliveira, Daniela Pinheiro de. III. Luz, Flávia Abud. IV. Luz, Mônica Abud Peres de Cerqueira. 22-97873 CDD-370.981 Nota: dado o caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam normas, revisão e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor e autora. Artigos de responsabilidade exclusiva das(os) autoras(es) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380 ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Brasil : Questões étnico-raciais : Educação : Aspectos sociais Pai Tomaz feliz é um menino Clarisbela não acredita que alegria é ter um filho pretinho mais claro, Branquinho escuro, que graça de criança, esse tem futuro. Café com leite o seu primeiro apelido, primeiro xingo foi de branco encardido. Seu cabelo não era igual ao do seu pai, a sua boca não é tão grande, seu beiço não cai? Era isso o que o seu próprio pai te falou, pó de arroz na cara e o black [cabelo afro] ele fritou. Menos identidade com Clarisbela bela, sonhava em ser o vilão em alguma novela na tela. Tinha medo quando viu o “Kiriku”, na peça teatral foi o “Zeca Urubu”. No Parque da Mônica lhe chamaram de “Cascão”, na escolinha o seu apelido era Negão. O moleque chora desesperado, não sou um negro, sou moreno disse ele revoltado. Criança que já carrega uma sina, de ter um pai imbecil e uma mãe sem autoestima. Estrela cadente um pedido: Papai Noel se eu for bonzinho me transforma em um menino mais bonitinho e mais clarinho e talvez eu receba um pouco mais de carinho Eu quero que a minha família tenha orgulho de mim, o que será que eu fiz pra nascer assim? Estão vendo, como é complicado, quando dizem que no Brasil é tudo misturado Presente osso, futuro torto isso é fato, estamos sem história e sem passado Estão vendo, como é complicado, quando dizem que no Brasil é tudo misturado Presente osso, futuro torto isso é fato, estamos sem história e sem passado. (Música Ei Criança - Fantasmas Vermelhos) SUMÁRIO Prefácio ............................................................................................................. 8 Jason Ferreira Mafra 10.36599/cflu-caraeca.000 Apresentação .................................................................................................... 13 Coletivo de Esquerda Força Ativa: pret@s, antirracistas e comunistas!!! ..... 15 Introdução ........................................................................................................ 17 1. Ylê-Educare: memória que alimenta a nossa esperança............................. 19 Neide Cristina da Silva Telma Cezar da Silva Martins /10.36599/cflu-caraeca.001 2. Da Lei do Ventre Livre ao Estatuto da Criança e do Adolescente: uma abordagem de interesse da juventude negra ........................................... 32 Gevanilda Santos /10.36599/cflu-caraeca.002 3. Crianças e adolescentes invisíveis na adoção: racismo velado da família tradicional brasileira ............................................ 45 Wellington Lopes Goes /10.36599/cflu-caraeca.003 4. O racismo na primeira infância: um desafio para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a ser cumprido nas creches municipais da cidade de São Paulo ................................................................. 56 Flávia Abud Luz Monica Abud Perez de Cerqueira Luz /10.36599/cflu-caraeca.004 5. 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e a adultização de meninas pretas ......................................................................... 65 Suilan de Sá do Vale Aline Evellin Santos Silva /10.36599/cflu-caraeca.005 6. Onde o filho chora e a mãe não vê? Ou onde o ECA ainda não chegou!!! ............................................................... 81 Roberta Pereira da Silva /10.36599/cflu-caraeca.006 7. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a questão racial ....................... 95 Djalma Nando Komunista Góes /10.36599/cflu-caraeca.007 8. 30 anos do ECA e a efetivação do direito à leitura ..................................... 109 Washington Lopes Góes Suilan de Sá do Vale /10.36599/cflu-caraeca.008 9. Filosofia Ubuntu e antirracismo: tecendo as possibilidades de dar “eco ao ECA” .............................................. 121 Daniela Pinheiro de Oliveira /10.36599/cflu-caraeca.009 10. Política socioeducativa na Bahia e em São Paulo: um olhar para a questão racial ........................................................................ 134 Marília Rovaron Paulo Cardoso /10.36599/cflu-caraeca.010 11. ECA, medidas protetivas e socioeducativas .............................................. 149 Wagner Silva de Souza /10.36599/cflu-caraeca.011 12. Crianças e adolescentes e o direito à cidade: cidadania ou violência? .... 162 Henrique Nascimento Sertorio /10.36599/cflu-caraeca.012 Prefácio Jason Ferreira Mafra1 Três décadas se passaram desde a promulgação do Estatuto das Crianças e Adolescentes (ECA). Esta é uma data simbólica e de vital relevância para se fazer um balanço sobre a situação da garantia dos direitos humanos de jovens e crianças de nosso País. Dado o tamanho e a complexidade do tema, apenas um trabalho de pesquisa em rede, que envolva um vultoso número de estudiosos, poderá traçar um panorama mais realístico dessa situação. Isto porque, falar das crianças e jovens nesse período tão longo significa realizar uma análise histórica e sociológica da vida e das condições de existência de dezenas de milhões de pessoas no Brasil. Reconhecendo a importância de se realizar um trabalho de fôlego como esse, vale destacar que esta não é a proposta deste livro que ora prefacio. As autoras e autores que se debruçaram nos estudos apresentados em “Criança, adolescente e racismo: 31 anos do ECA”, obra organizada 1 Líder do Grupo de Pesquisas Ylê-Educare: educação e questões étnico-raciais, no CNPq, e docente dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PROGEPE e PPGE), da Uninove. jasonmafra@gmail.com. 10.36599/cflu-caraeca.000 mailto:jasonmafra@gmail.com 9 pelo meu orientando Djalma Góes e por minha orientanda Daniela Pinheiro, no curso de doutorado em Educação da Uninove, o fizeram a partir de um recorte bem específico.Como sugere o título, trata-se aqui de examinar, no contexto do ECA, aspectos relacionados às questões étnico-raciais na presença e na ausência dos direitos humanos de crianças e adolescentes, a partir de realidades localizadas em nosso País. Mas, mesmo considerando esse recorte temático, vale destacar que esse exercício também é gigantesco. Isso porque devemos considerar que as crianças e adolescentes mais vulneráveis em seus direitos, em sua maioria, são pretos e indígenas, grupos que, juntos, compõem a imensa maioria oprimida em nosso País. É que a questão étnico-racial configura o problema mais central de nossa história, incontestavelmente marcada pela estrutura de opressão escravista vigente por cerca de 350 anos e pela estrutura de opressão do racismo, esta última herdeira daquela primeira. De outro lado, o problema mostra-se ainda mais complexo porque precisamos considerar que crianças e adolescentes são as categorias etárias mais vulneráveis e oprimidas de nosso País. Uma realidade que não caracteriza apenas o Brasil, mas de uma forma geral, as sociedades capitalistas, o que significa considerar os contextos de quase todos os estados do Planeta. Os capítulos apresentados neste livro, nitidamente, são abordagens voltadas para as denúncias necessárias à leitura crítica da realidade social brasileira no que se refere ao cumprimento do ECA. Por isso, as leitoras e os leitores desses estudos irão se deparar com temas de nosso cotidiano, como a invisibilidade de crianças e adolescentes no processo de adoção, a adultização de meninas pretas, a negação do exercício da maternidade pelas condições socioeconômicas, o racismo na infância e na adolescência, a negação da qualidade escolar nesse período etário, o abandono social de crianças e jovens, as violências nos sistemas socioeducativos, dentre outros. Tratam-se de abordagens necessárias para se realizar leituras críticas sobre esse fenômeno e descortinar os elementos responsáveis por tais violências. Mas esta obra, por se tratar do resultado de pesquisas de um conjunto de pesquisadores-militantes, não se limita ao campo necessário, mas insuficiente, das denúncias. As(os) jovens pesquisadoras(es), autoras(es) deste livro, têm essa marca de 10 sujeitos históricos da esperança. Por isso, como profetas do amanhã, não apenas denunciam e anunciam, mas assumem as tarefas de engajamento na mudança do mundo. O lançamento deste livro coincide, também, com um momento especial de nossa história, o Centenário de Paulo Freire, cujas comemorações, iniciadas em setembro de 2021, estender-se-ão por todo o ano de 2022. Mas, leitoras e leitores deste prefácio poderão perguntar: “O que o ECA ou a infância tem a ver com Paulo Freire”? Como estudioso da teoria e da práxis de Paulo Freire, há mais de duas décadas, confesso que já ouvi, de formas diferentes, essa mesma interrogação sobre uma possível lacuna da obra de Paulo Freire em relação à infância. Essa é uma falsa ideia que povoa o imaginário de intelectuais e de leitores/as que conhecem apenas superficialmente alguns aspectos da obra do maior humanista e cientista social brasileiro. Embora apenas na última década tenham surgido estudos sistemáticos sobre o freirianismo e a infância, a presença de Paulo Freire é intensa quando discutimos direitos e educação na infância. A exemplo do depoimento de Djalma Goes, que antes mesmo de se enveredar pelos estudos acadêmicos já trabalhava com os aportes freirianos na educação de crianças e adolescentes no movimento popular, experienciei a proposta freiriana na ação educativa nessa fase, há mais de trinta anos. Ainda como estudante no curso de História, no final dos anos de 1980, trabalhei como educador popular no Movimento de Meninas e Meninos em Situação de Rua, na cidade de Lorena, interior de São Paulo. Já naquele tempo, Paulo Freire era a referência mais significativa para a maioria das educadoras e educadores no trabalho com os jovens e as crianças mais vulneráveis. Nosso método de trabalho com esses grupos baseava-se, sobretudo, nos princípios do círculo de cultura proposto por Freire. Se remontarmos a história de construção do ECA, cujo marco regulatório ocorreu em 1990, com a sua promulgação, veremos que a quase totalidade das pessoas militantes nesse longo movimento era formada por educadoras e educadores freirianos. Na verdade, a história de Paulo Freire na defesa dos direitos da Criança e do Adolescente já começa em seu primeiro trabalho. Falamos aqui do famoso “Método Paulo Freire de Educação de Adultos”, cuja expressão maior ocorreu em 11 1963, com a experiência da alfabetização de cerca de 300 pessoas adultas em aproximadamente 40 horas, em Angicos (RN). De novo, leitoras e leitores podem questionar: “mas não estamos falando de crianças e jovens”? De fato, a radicalidade do compromisso de Paulo Freire com os direitos da infância o fez escolher o trabalho com as pessoas adultas que, em sua fase de infância e adolescência, tiveram os seus direitos negados. Em outros termos, para Freire, tratava-se de engajar-se num trabalho que ajudasse àquelas mulheres e àqueles homens a recuperarem parte dos direitos suprimidos em suas infâncias e adolescências. Como as leitoras e leitoras perceberão, embora os aportes freirianos estejam sempre presentes nas pesquisas apresentadas aqui, outro grupo variado de autoras e autores emergem como antigos e novos suportes das pesquisas. E, aqui, também, destaca-se outra riqueza deste livro. Marcadamente produzido por jovens pesquisadoras e pesquisadores, esta obra traz uma original contribuição por resultar de estudos que dialogam com o que há de mais atual na academia, o movimento de pretos, pretas e indígenas na produção científica brasileira. Aqui não se trata apenas de justiça acadêmica ou social, mas de um movimento de profundas mudanças de paradigmas. Introduzindo novas epistemologias e/ou resgatando antigas personalidades intelectuais e movimentos sociais, notadamente àquelas e àqueles que se situam no quadro da história e da cultura negra brasileira e internacional, esse fenômeno, que venho chamando de “intelectualidade preta militante”, não apenas traz profundas contribuições para a renovação da ciência, mas renova profundamente a nossa esperança. O fundamental que vejo nesse movimento socio-acadêmico, de que expressa esse livro originário de nosso Grupo de Pesquisa Ylê-Educare, é a sua coerência com o princípio do sujeito transindividual. Muito antes das abordagens de Goldmann e Luckács, nossos ancestrais já mostravam como as criações culturais mais significativas, que realmente fazem a humanidade avançar, resultam sempre dos processos coletivos. E, nessa esteira, somos agraciados tanto pelo princípio indígena “Txai”, quanto pela filosofia bantu “Ubuntu”. “Txai”, “companheiro, metade de mim que existe em você/metade de você que existe em mim” e “Ubuntu”, “eu sou porque nós somos”, como explica Daniela Pinheiro, unem-se como um projeto social-civilizatório. 12 Assim, ao percebermos ancestralmente as razões pelas quais numa aldeia indígena brasileira ou numa aldeia bantu africana não há crianças e jovens abandonadas, já que todas as pessoas são responsáveis por todas as pessoas, encontraremos, já nesse momento, pistas seguras para fazermos melhor os próximos trinta anos não apenas do Estatuto das Crianças e Adolescentes (ECA), mas o estatuto de toda a sociedade. Seguramente, para além das valorosas contribuições dos conteúdos aqui desenvolvidos, esse é o espírito que conduz este livro. Jason Ferreira Mafra Verão de 2022 13 Apresentação Esta obra é composta por artigos que abordam temas essenciais para as discussões atuais acerca de um projeto de educação que seja realmente antirracista e inclusivo. Os autores, em sua maioria pertencentes a grupos de pesquisa, movimentos e coletivo sociais, se debruçaram sobre temas como Direitos Humanos, raça, classe social, interligados às análises acercado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), seu cumprimento e reflexos para a vida de crianças e adolescentes em diferentes localidades do nosso País. Em consonância com nossa atuação enquanto grupo de pesquisa e como forma de resistência aos retrocessos observados nas áreas social, educacional e política nos últimos anos, o Grupo Ylê-Educare – Educação e Questões Étnico-Raciais em conjunto com pesquisadores, ativistas e membros do Coletivo Força Ativa apresenta a nossa quinta obra Criança, adolescente e racismo: 31 anos do ECA. O Ylê-Educare é um grupo nasceu do esforço colaborativo entre pesquisadoras/es do Programa Pós-Graduação em Educação (PPGE/ PROGEPE) da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e aquelas/ es engajadas/es na necessária discussão temática acerca das relações 14 étnico-raciais que permeiam a formação do povo brasileiro, assim como sua relação com os povos da diáspora africana. Trata-se de um grupo sem fins lucrativos, cuja força motriz é a busca por caminhos pedagógicos, a fim de compreender as complexas matrizes étnicas de que somos tributários. A Posse Força Ativa, com a denominação de Coletivo de Esquerda Força Ativa tem origem na zona norte de São Paulo em 1989 – pela atuação de pessoas que inconformadas com a democracia racial que permeava as composições de rap, passou a ser reunir em torno de temáticas como questão racial, gênero, ou, ainda, problemas relacionados às questões políticas e econômicas. O coletivo atua nas áreas do combate ao racismo, da cultura, da educação, do hip hop, da ancestralidade africana e afro- brasileira. Enquanto movimento negro tem como objetivo contribuir com a comunidade local acerca da reafricanização, da afirmação da identidade étnico-racial, denunciar o racismo e lutar pelos direitos de cidadania. Em suas ações e atividades utilizam as linguagens do Hip Hop (break, dj, mc e grafite), a leitura, a literatura e valorização das diversidade étnico-racial e de gênero LGBTI+. Desejamos à todas/os uma excelente leitura e momentos de reflexão. Organizadores 15 Coletivo de Esquerda Força Ativa: pret@s, antirracistas e comunistas!!! O Coletivo de Esquerda Força Ativa nasceu da sua antecessora Pos- se Força Ativa. Emergiu da praça que integra a Estação do Metrô San- tana, em outubro de 1989, na zona norte de São Paulo, nas imediações do antigo salão de bailes black, Santana Samba. Os mc’s e dj’s da Posse Força Ativa constantemente eram expulsos do local pelos seguranças do metrô, acabaram se reunindo numa escola do bairro, voltando logo após para a praça. O grupo chegou a se reunir no diretório do Partido dos Trabalhadores (PT) em Santana, posteriormente na Livraria Griô na Galeria Metrópole, na região da Rua Sete de Abril, centro da cidade de São Paulo. Inconformados com a democracia racial que permeava as composições de rap, a Posse se reunia em torno de temáticas como questão racial, gênero, ou, ainda, problemas relacionados às questões políticas e econômicas. O coletivo atua nas áreas do combate ao racis- mo, do Hip Hop, da literatura preta, da cultura, da educação étnico-ra- cial, da ancestralidade africana e afro-brasileira. Enquanto movimento negro tem como objetivo contribuir com a comunidade local acerca da reafricanização, da afirmação da identidade étnico-racial, denunciar o racismo e lutar pelos direitos de cidadania. Em nossas ações e atividades 16 utilizamos as linguagens do Hip Hop (break, dj, mc e grafite), a leitu- ra, a literatura e valorização da diversidade étnico-racial e diversidade de gênero LGBTI+. Os eventos são organizados no formato palestras, cursos, formações, debates e bate-papo, oficinas, saraus, slam e apre- sentações artísticas. Atualmente o Coletivo Força Ativa está sediado na Biblioteca Comunitária Solano Trindade, situada à Rua dos Têxteis, 1050, no distrito de Cidade Tiradentes. Se reúne mensalmente, no primeiro sábado, ocasião em que organiza a execução das atividades. Dentre elas destacamos as seguintes: Biblioteca Comunitária Solano Trindade (1995); Grupo de Estudos Pensamento Preto Revolucionário (1997); Oficinas Sexualidade Rimar pela Prevenção (1998); Hip Hop Minha Voz Está no Ar (2005); Formação sobre Educação Popular (2010); Sarau da Resistência Preta (2013); Programa Letra Preta: subsídios para educação racial segundo à Lei 10.639 (2014); Rede LiteraSampa (2015); Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (2016); Slam Letra Preta (2016); Mediação de leitura em escolas públicas (2017); Curso Educação Popular em leitura e literatura (2017); Turma de Leitura Leitoras Literárias “Raquel Trindade” (2020); Cursinho pré-vestibular para população carente (2017). Djalma ‘Nando Komunista’ Lopes Góes com Coletivo de Esquerda: pret@as, antirracistas e comunistas. Dezembro de 2021. 17 Introdução Criança, adolescente e racismo: 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente Em 2021, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei nº 8069/1990, completou 31 anos. Resultado de lutas e mobilizações dos movimentos sociais, especialmente durante os anos 80 do século passado, é considerado por especialistas, lideranças mundiais e órgãos internacionais como uma lei moderna e avançada que traz denúncias e anúncios sobre essa realidade. De um lado, ele expõe o grau de desumanidade com que a sociedade brasileira trata crianças e adolescentes, etnicamente, determinando atendimento e locais de confinamentos à população infanto-juvenil tida como inconveniente. Nele, também, encontram-se mecanismos de proteção, conselhos paritários, espaços comunitários, dentre outras ferramentas importantes para exercer o controle social das políticas públicas e a afirmação das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Se os direitos são enunciados no ECA a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação, principalmente de raça, etnia ou cor, por que as crianças e adolescentes pretos e pretas são alvo da violência, 18 crueldade, opressão e desigualdade racial? Estas situações de violações e insuficiência de políticas de igualdade racial, bem como as possibilidades de enfrentamento e superação serão tematizadas nesta publicação do Ylê-Educare, que focaliza, especialmente, as implicações do racismo na infância e na adolescência. Eixos Temáticos I. Racismo na infância; II. Educação básica e relações étnico-raciais; III. ECA e racismo: gênero, relações raciais, etnia, cor, combate ao racismo, encarceramento de adolescentes, branqueamento, educação étnico-racial, etc. Ylê-Educare: memória que alimenta a nossa esperança Neide Cristina da Silva1 Telma Cezar da Silva Martins2 O que é o tempo? Pensar sobre o tempo requer tempo... requer memória... Memória de um tempo que já passou, memória do tempo presente. Telma Cezar Em meados de 2014, um grupo de estudantes e pesquisadoras(es) dos Programas de pós-graduação em Educação (PPGE/PROGEPE), da Universidade Nove de Julho (Uninove), sentiu a necessidade de se organizar para discutir questões referentes à educação étnico-ra- cial e o combate ao racismo. Até então, os mencionados Programas mantinham outros grupos de pesquisas registrados no CNPQ, mas nenhum formado a partir da iniciativa de um grupo de estudantes, e, tão pouco, dedicados, especificamente, aos estudos e pesquisas sobre a população negra. Esta iniciativa também foi motivada pelo número expressivo de alu- nas(os) que adentraram neste mesmo ano para os referidos Programas de pós-graduação, com projetos de pesquisa sobre a educação étnico-racial, 1 Doutora em Educação pela Uninove. Docente da Unib e Uni-Drummond. Pesquisadora sobre questões étnico-raciais, educação e gênero. Integrante do Ylê-Educare. neidesilva87@hotmail.com 2 Doutora em Educação pela Uninove, pesquisadora sobre o branqueamento na infância da criança negra. Pedagoga, Mestre em Educação pela Umesp. Integrante do Ylê-Educare. telma.cezar@uol.com.br 1 10.36599/cflu-caraeca.001 mailto:neidesilva87@hotmail.commailto:telma.cezar@uol.com.br 20 YLÊ-EDUCARE: MEMÓRIA QUE ALIMENTA A NOSSA ESPERANÇA as Leis nº 10.632/09 e nº 11.645/08, ações afirmativas e outras temáticas ligadas à população negra, indígena e ribeirinhos. Foram realizadas várias reuniões, encontros para estudos e, com apoio das coordenações e docentes dos Programas, em 2015, nasceu o grupo de pesquisa Ylê-Educare: educação e questões étnico-raciais. Em novembro do mesmo ano, foi organizado o I Encontro Ylê-Educare, com o tema: “A estética afro-brasileira na construção da cidadania”. Em 2016, foi publicado o livro Vozes emergentes: Educação e questões étnico-raciais (SILVA; MARTINS; OLIVEIRA, 2016), com nove artigos sobre educa- ção e questões étnico-raciais. Nessa publicação, encontra-se, também, a memória das atividades do Ylê até 2016, registrando, assim, sua gênese e resistência nos espaços da academia. A partir de então, a irmandade foi se alargando e se firmando como Ylê-Educare, chegando a ter um número expressivo de pesquisadoras(es) e colaboradoras(es), totalizando 54 participantes. A criação do Grupo se deu por uma série de objetivos, dentre os quais, destaca-se: Apoiar e acompanhar a institucionalização das diretrizes para a educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana, entre outras ações, tais como a oferta de pesquisas, reuniões científicas em que se apresente, discuta e analise os interesses da população negra, tecendo caminhos peda- gógicos acerca das questões étnico raciais, assim como, o fomento da produção de conhecimento sobre a experiência de africanas/os, afrodescendentes, ao combate da discriminação e do preconceito ra- cial, elucidando a memória, a história e a cultura da população negra e de outras diásporas. (YLÊ-EDUCARE, 2021, p. 2). Na direção deste objetivo, o grupo vem atuando, tanto no ambiente acadêmico como no “chão da escola”. No ano de 2017, foi publicado o segundo livro intitulado Educação e o empoderamento da mulher negra (SILVA; LIMA; SILVA, 2017), no qual a interseccionalidade entre raça e gênero é o eixo principal. São dez artigos que contribuem com as dis- cussões sobre mulheres transgêneros, a solidão da mulher negra, mulhe- res negras no ensino superior, mulheres negras que sobrevivem nas ruas. NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS 21 Apresenta ainda dois artigos, um sobre a vida e obra de Virginia Bicudo e um sobre a loucura e racismo na vida de Carolina de Jesus. Nessa publica- ção, o último capítulo foi dedicado ao registro dos caminhos e memórias do Ylê nos anos de 2016 e 2017. Com esta Memória que alimenta a nossa esperança, o desafio é, mes- mo que de forma resumida, apresentar um registro das atividades do Ylê, de 2017 a 2021. Sim, essa memória alimenta nossa esperança porque, frente a tantos outros maiores e mais complexos desafios que temos en- frentado neste período, somos chamadas(os) a renovar as forças e a cora- gem, a militância e a resistência dos corpos. Falamos da resistência de corpos adoecidos, vulneráveis, invisibili- zados ou visibilizados negativamente por um projeto de sociedade que discrimina, minimiza e exclui a diversidade, “esquecendo-se” de determi- nados corpos humanos, em prol de manter produtiva a hegemonia capi- talista contemporânea. Neste sentido, e em meio à comemoração dos 30 anos do ECA, firmamos nosso compromisso em continuar munidos da esperança-esperançosa que persiste se aninhar em nossos corpos. 2017-2019: Período pós-golpe da presidenta Dilma Rousseff Após o episódio da política brasileira, que em 31 de agosto de 2016 afastou definitivamente Dilma Rousseff da Presidência da República, o Brasil passou por um período muito crítico e de desamparo, com o en- tão vice-presidente Michel Temer assumindo a presidência no período de 2016 a 2018. Na sequência, o presidente Jair Bolsonaro, desde que as- sumiu o maior cargo do executivo, vem agindo e apoiando planos e po- líticas neoliberais em detrimento do bem-estar, da segurança alimentar e física da população brasileira. Destaca-se aqui a população negra e os povos indígenas como os mais afetados, com a eliminação de políticas públicas e investimentos em áreas prioritárias como saúde, educação, acesso à terra e habitação. Apesar deste contexto, seguimos acreditando que a educação é um importante instrumento no processo de tomada de consciência crítica e na luta contra a alienação; por isso, o Ylê prossegue com os estudos, pesquisas e eventos, tanto na esfera acadêmica como na prática formativa http://brasil.elpais.com/tag/dilma_rousseff/a/ 22 YLÊ-EDUCARE: MEMÓRIA QUE ALIMENTA A NOSSA ESPERANÇA de docentes e discentes dos diferentes segmentos da escola secular e mo- vimentos sociais. Assim, fazemos aqui a memória de momentos impor- tantes desta nossa história. Em setembro de 2017, foi feita a leitura do livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon (2008), e, inspirado no vídeo Introdução ao pen- samento de Fanon, de Deivison Nkosi (2016), sob a mediação da profa. Dra. Neide Silva, foi realizado um profícuo debate sobre a teoria de bran- queamento, o colonialismo e os efeitos psíquicos do racismo. Em novembro de 2017, realizou-se o IV Encontro Ylê-Educare: Edu- cação e o empoderamento da Mulher Negra3. O evento contou com duas Mesas, a primeira, com convidadas representantes da União de Negros pela Igualdade (Unegro), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde (SindSaúde-SP); a segunda, com autoras(es) do segundo livro elabora- do pelo grupo, intitulado Educação e o empoderamento da Mulher Negra (SILVA; LIMA; SILVA, 2017). Em outubro de 2017, foi realizada uma roda de conversa sobre a leitu- ra do livro O pensamento negro em educação no Brasil, com apresentação das dissertações. As relações étnico-raciais e as TIC na Educação Física escolar: possibilidades para o ensino médio a partir do currículo do Estado de São Paulo, de Dandara de Carvalho Soares, e O combate ao trabalho infantil no Brasil de Leonardo Raphael Carvalho de Matos. No início de 2018, surgiu uma outra demanda para as (os) pesquisa- doras(es): realizar um estudo crítico sobre uma coleção de livros didáti- cos adotados pela Secretaria Municipal de Educação de Santo André (SP). A coleção intitulada Ler faz bem: descobrindo os grandes autores, de Gus- tavo Tomazin (2015), apresentava-se, em um primeiro momento, racista e sexista; contudo, não era possível realizar tais afirmações sem um estudo mais analítico. Houve muita polêmica no grupo, receio de uma retaliação política e jurídica, uma vez que se tratava de um material didático que custou mais de três milhões de reais aos cofres públicos e que estava ini- 3 As demais atividades e encontros realizados pelo grupo foram registrados nos livros Vozes emergentes: Educação e questões étnico-raciais (SILVA; MARTINS; OLIVEIRA, 2016) e Educação e o empoderamento da mulher negra (SILVA; LIMA; SILVA, 2017). NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS 23 ciando seu uso na rede municipal de Santo André. Após algumas rodas de conversa, o Ylê-Educare aceitou o desafio e suas(seus) pesquisadoras(es) iniciaram o estudo, que resultou no livro Análise do material didático na perspectiva da educação para diversidade, organizado por Telma Martins e Neide Silva, publicado em 2019. Em maio de 2018, realizou-se o V Encontro Ylê-Educare, com o tema “Questões étnico-raciais, conjuntura e atualidades: reflexões sobre o 13 de Maio”. Nesse período, o PPGE/PROGEPE mudou sua sede, do campus Barra Funda para o campus Vergueiro, o que levou à necessidade de se fazer um evento com a participação apenas das(os) integrantes do grupo e não aberto ao público externo, como nos eventos anteriores. Os livros O escravismo colonial, de Jacob Gorender (1985), Uma história de bran- queamento ou o negro em questão, de Andreas Hofbauer (2006), Dialética radical do Brasilnegro, de Clóvis Moura (2014), O marxismo e a questão racial, de Carlos Moore (2010), e O genocídio do negro brasileiro, de Ab- dias Nascimento (1978), foram os escolhidos para o estudo ao longo do ano, ampliando o debate sobre racismo, branqueamento, modo de produ- ção colonial e marxismo. No mesmo período do ano seguinte, maio de 2019, foi promovido o Ciclo de Debates “13 de Maio e os outros dias: questões negras em debate”, compreendendo o “13 de maio” como um dia de reflexão crítica sobre a história e a cultura africana e afro-diaspórica, conscientes de que o trabalho acadêmico é, ao mesmo tempo, descoberta científica e luta social. Neste evento, foram apresentadas quatro pesquisas, sendo duas concluídas e duas em andamento: Presenças e Ausências do bran- queamento no cotidiano escolar, de Telma Cezar S. Martins; A presença negra no material didático de história, de Neide Cristina da Silva; Me- ninas negras em mulheres negras: identidade étnico-racial na escola, de Anne C. dos Santos; Cultura... culturas: tensões pentecostais no ensino da religiosidade afro-brasileira, de José Walter S. Silva, seguido por um círculo de diálogo. O ano de 2019 transcorreu com as(os) pesquisadoras(es) realizando a análise do material didático denominado Ler faz bem (TOMAZIN, 2015), que, como citado, resultou no terceiro livro do grupo, Análi- se do material didático na perspectiva da educação para diversidade 24 YLÊ-EDUCARE: MEMÓRIA QUE ALIMENTA A NOSSA ESPERANÇA (MARTINS; SILVA, 2019), lançado em duas versões: e-book no final de 2019, impresso em 2020. Destaca-se que esta publicação foi dedica- da ao professor mestre Antônio Germano, grande irmão e integrante do Ylê, que em outubro de 2019 partiu desta existência, deixando-nos sua militância, coragem e exemplo de homem negro, que nunca se calou frente ao racismo e sexismo estrutural. O livro foi dividido em duas partes: a primeira, com seis artigos dedi- cados exclusivamente à análise crítica da coleção Ler faz bem, e a segun- da, com cinco artigos sobre cultura, raça e gênero em outros materiais didático-pedagógicos. 2020 e 2021: Período de pandemia e o desafio da educação online Em 2020, tivemos muitos e desconhecidos desafios, devido à pande- mia do Covid-19 e à necessidade de distanciamento social; com isso, a educação passou por um período de muitas (re) adaptações. As escolas e universidades iniciaram o ano letivo com a suspensão de suas atividades presenciais, mas, frente a tantas inseguranças e incertezas sobre o tem- po necessário para a quarentena, logo veio a necessidade de remodelar o ensino, transformar as aulas e encontros presenciais em virtuais. Diante da necessidade de sair do formato tradicional de ministrar aulas, estudar, encontrar professoras(es), amigas(os), o sistema de educação teve que se reinventar. Equipe gestora, docentes, discentes, família e outros segmen- tos que sustentam a educação precisaram se unir para minimizar os im- pactos negativos que uma pandemia e suas consequências causam na vida das pessoas e no processo de ensino e aprendizagem. Outro desafio para essa “nova” forma de ser escola e de apresentar um ensino a distância foi o uso das tecnologias, da internet e das diferentes plataformas educativas digitais e de videoconferências para a concretiza- ção dos encontros e aulas online. Mesmo a educação a distância (EaD) sendo uma proposta utilizada há tempos, ainda são poucos os espaços universitários que têm recursos técnicos e humanos com habilidades para, de fato, realizarem um proje- to de ensino a distância. Neste sentido, a ressignificação dos espaços de aprendizagem foi um importante passo para que novas aprendizagens e NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS 25 competências emergissem em meio às inúmeras demandas que a transi- ção das aulas e encontros presenciais para as virtuais exigiram. É neste cenário social e educacional que os grupos de estudos e pesqui- sas, também, se fortalecem ou emergem, criando seus espaços virtuais de reuniões e encontros entre pesquisadoras(es). Com o Ylê-Educare não foi diferente. Em meados de 2020, o grupo reforça sua presença e resistência, atualizando seu cadastro no CNPq, seus conteúdos no site https://yle-edu- care.wixsite.com/educare e nas redes sociais (Ylê Educare (@yleeducare)). Sobreviver em tempos de pandemia tem sido muito difícil e assus- tador. Perdemos muitas vidas, desenvolvemos muitos medos e insegu- ranças, limitamos nossos relacionamentos presenciais. Por outro lado, a possibilidade do encontro virtual abriu fronteiras. A distância geográfica entre os(as) integrantes no grupo foi minimizada pela acolhida e possibi- lidade de ser um espaço de partilha de experiências, oferecendo a oportu- nidade para a chegada de novos integrantes. Assim, adentramos em 2020 com reuniões, encontros de formação e eventos virtuais. Em julho de 2020, foi realizada uma reunião para definições de agen- da, e roda de conversa sobre o livro Racismo Estrutural, de Silvio Almeida (2019), com o destaque de que este jovem autor tem despontado como um dos novos intelectuais brasileiros, que tem contribuído com as dis- cussões e construções conceituais sobre o racismo e como este tem estru- turado as relações humanas, sociais e institucionais. Em setembro de 2020, houve o evento de lançamento do livro Análise do material didático na perspectiva da educação para diversidade (MAR- TINS; SILVA, 2019). Este evento contou, pela primeira vez, com a partici- pação de intérpretes de Libras, o que permitiu que toda a programação fos- se acessível à comunidade surda. Na programação, tivemos a participação de autoras(es) apresentando seus artigos, do Coral Educantus, com a in- terpretação da música Senzenina, e a exposição artística de Carol Nóbrega. Em outubro de 2020, foi feita a chamada para artigos do IV Livro do Ylê, com a temática: Educação e inclusão: gênero, etnia e justiça so- cial. Apontamos que “a diversidade tem sido tratada de maneira desigual, colaborando com ações discriminatórias pelas políticas de Estado e nos currículos escolares”. Os artigos visavam fomentar debates sobre a inclu- são da diversidade cultural e epistemológica na educação e na sociedade https://yle-educare.wixsite.com/educare https://yle-educare.wixsite.com/educare https://www.instagram.com/yleeducare/ 26 YLÊ-EDUCARE: MEMÓRIA QUE ALIMENTA A NOSSA ESPERANÇA como um todo, tendo como eixos temáticos: I. Educação e população ne- gra carcerária; II. Educação Superior e cotas raciais; III. Educação e inclu- são: gênero, etnia, necessidades educacionais especiais, terceira idade etc. Em novembro de 2020, realizamos o VI Encontro Ylê-Educare, com o tema: “Um diálogo sobre teorias e práticas pedagógicas antirracistas e as epistemologias da resistência no atual cenário social, histórico, político e educacional”. Em dezembro de 2020, sob a convocação e coordenação do prof. Dr. Jason Mafra, aconteceu a primeira reunião da equipe organizadora do Dicionário da Cultura Antirracista. Decidiu-se, então, que a chamada de autoras(es) para a escrita dos verbetes seria feita através de convites a pesquisadoras(es), levando-se em consideração a importância do “lugar de fala” das pessoas protagonistas das situações de luta e de opressão, ao mesmo tempo. Assim, na composição da equipe de autoras(es), foi leva- do em consideração a prática social e/ou de pesquisa com a temática da cultura antirracista, somando-se ao “esforço coletivo de jovens militantes e pesquisadoras(es) do Ylê-Educare, com vistas a contribuir para a inces- sante luta contra o racismo e o necessário trabalho na construção de uma cultura antirracista”. Iniciamos o ano letivo de 2021, ainda sob as demandas e muitas in- seguranças ocasionadas pela pandemia, mas com grandes desafios pela frente. Foram retomados os encontros formativos, com uma proposta de roda de conversa, sendo um em fevereiro, com o tema “Educação Indí- gena”; outro em abril, com o tema “Mulherismos:resistência e reflexos à educação”. Neste último, a programação transcorreu a partir dos temas “Mulherismo Africano”, com a ativista Dai Sombra, e “Mulherismo Islâ- mico”, com a pesquisadora Flávia Abud. Paralelamente, o grupo de pesquisadoras(es) do Ylê se debruçou, também, na escrita dos artigos, editoração do livro Educação para inclu- são: Gênero, etnia e justiça social. Após edital de chamada para envio de artigos, foi contemplada, em sua equipe de autoras(es), uma diversidade representada pela participação, por exemplo, de pesquisadoras(es) dos povos Pankararu e Xokleng e de uma adolescente de 13 anos. Outro grande desafio neste ano de 2021 tem sido a elaboração do Di- cionário da Cultura Antirracista. Destacamos que, ao se produzir um di- NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS 27 cionário, tomamos como base inicial algumas possíveis características para essa obra, considerando a importância do “cuidado tanto com o conteúdo quanto com a forma da linguagem antirracista, e o entendimento de que a cultura antirracista incorpora a linguagem, e vai além dela, expandindo-se para o espaço amplo da cultura”. Neste sentido, conforme texto coletivo elaborado para a apresentação do projeto do Dicionário em construção, [...] o objetivo desta publicação é disponibilizar definições, expli- cações e conceituações de verbetes, termos e expressões de uma linguagem antirracista, mas, igualmente, o seu contrário, ou seja, àquelas que, sendo produtos e reproduzindo o racismo, necessitam ser compreendidas para serem combatidas. Como também, biogra- fias de personalidades negras, fatos históricos, aspectos da arte e da cultura negra, centralmente, a brasileira. Após três encontros virtuais com a equipe de autoras(es) para a defi- nição dos verbetes e demais encaminhamentos para a pesquisa, escrita e cronograma do processo editorial, o grupo de pesquisadoras(es) se com- prometeu com a escrita, inicialmente, de aproximadamente 500 verbetes, com previsão de publicação, na versão digital, em 2022. De forma de- mocrática, e partindo da aderência de pesquisadoras(es) aos temas, cada integrante pode sugerir a lista de verbetes, bem como, escolher quais ver- betes ficarão sob sua responsabilidade a pesquisa, a escrita e o envio do texto final à Comissão Organizadora. Em maio de 2021, frente aos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei nº 8.069/1990, o Ylê-Educare fez uma chamada para artigos sobre as demandas que envolvem as crianças e adolescentes e a relevância das temáticas que compõem esse Estatuto. O objetivo é, também, apontar as múltiplas implicações do racismo na infância e na adolescência, tendo como eixos temáticos: I. Racismo na in- fância e na adolescência; II. Educação básica e relações étnico-raciais; III. ECA e racismo: gênero, relações raciais, etnia, cor, combate ao racismo, encarceramento de adolescentes, branqueamento, educação étnico-racial etc. A chamada foi tão bem acolhida pelas(os) pesquisadoras(es) do Ylê e outras pessoas convidadas que, ao somarem esforços acadêmicos e mili- tância, fecharam esta publicação com quinze artigos. 28 YLÊ-EDUCARE: MEMÓRIA QUE ALIMENTA A NOSSA ESPERANÇA Em junho e agosto de 2021, foram realizados mais dois encontros virtuais, no formato de roda de conversa, para reflexão e debate sobre o livro Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Ki- lomba (2019). Para mediar a roda de conversa, foram abertas inscrições através do Google Formulários4 e tivemos dez pesquisadoras(es) assu- mindo a mediação dos catorze capítulos do referido livro. Finalizamos o mês de agosto de 2021 com o livro Educação para in- clusão: gênero, etnia e justiça social (no prelo), com lançamento previsto para novembro de 2021 – mês da consciência negra. Este livro é compos- to de artigos que contribuem com os debates sobre a educação inclusiva da população negra, da comunidade surda, dos povos indígenas brasilei- ros, do corpo-negro-velho, da comunidade LGBTQIA+, pessoas encarce- radas, entre outros temas que dialogam com a educação para a diversi- dade e o respeito a todas as pessoas. Trata-se de uma obra interseccional que revela as profundas contradições e desafios que a educação precisa enfrentar para cumprir sua missão fundamental, que é a promoção das condições pedagógicas para que todas, todos e todes digam autentica- mente suas palavras, conforme Jason Mafra descreve na apresentação do referido livro. Concluímos esta Memória, reconhecendo a importância de se fazer um levantamento sobre as dissertações e teses, concluídas ou em constru- ção, das(os) pesquisadoras(es) que compõem o Ylê-Educare, que dialo- gam com as demandas das nossas crianças e adolescentes brasileiras(os). Engrossar o debate político, socioeducacional sobre o Estatuto da Crian- ça e do Adolescente (ECA), e apontar caminhos para garantir os direitos nele previstos é de suma importância para a não reprodução de ações que oprimem as crianças e adolescentes. Através de uma educação que problematiza a realidade, somos chamadas(os) a assumir o compromisso com a vida digna para todas as pessoas. Finalizamos o ano de 2021 com o índice de mais de 600 mil mortes provocadas pelo Covid-19 em terras brasileiras. Vivenciamos uma forte crise econômica, política e social, alavancada pela pandemia, contribuin- do com a prevalência das vulnerabilidades vivenciadas pelas crianças e 4 Grupo de Leitura Ylê-Educare Inscrições para Mediadores (google.com) https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSdXFRHGknx9iKT0RJ027NEZyqMclDXaRcvOfV8BKFZrE0Hbww/closedform NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS 29 adolescentes. De acordo com a pesquisa Inquérito Nacional sobre Insegu- rança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil5, 116,8 milhões de brasileiras(os) conviviam com a insegurança alimentar – o que corresponde a 55,2% dos domicílios brasileiros e 19 milhões (9% da população) estavam passando fome. Diante desse cenário, o Ylê-Educare quer somar esforços na produ- ção acadêmica de estudos e pesquisas que apontam possíveis soluções para minimizar o impacto negativo que a não garantia dos direitos essen- ciais à vida tem para as crianças e adolescentes. Uma discussão que, com certeza, perpassa pela interseccionalidade de raça e gênero. Neste sentido, esse levantamento sobre as dissertações e teses con- cluídas ou em construção, das (os) pesquisadoras (es) do Ylê-Educare que dialogam com as demandas da infância e da juventude brasileira pode contribuir com a formação docente, de familiares e da sociedade como um todo, para que as nossas crianças e adolescentes sejam atendidas em suas necessidades e tenham os direitos estabelecidos no ECA garantidos, não somente no papel, mas de fato vivenciados. Referências ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Feminismos Plurais, 2019. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4. ed. São Paulo: Ática, 1985. HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: UNESP, 2006. KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo coti- diano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 5 Realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) em dezembro de 2020. http://olheparaafome.com.br/ http://olheparaafome.com.br/ 30 YLÊ-EDUCARE: MEMÓRIA QUE ALIMENTA A NOSSA ESPERANÇA MAFRA, Jason. Quarta capa. In: SILVA, Neide Cristina da; LIMA, Fran- cisca Mônica Rodrigues de; LUZ, Mônica Abud Perez de Cerqueira (org.). Educação para inclusão: gênero, etnia e justiça social. São Paulo: Casa Flutuante, 2021. MARTINS, Telma Cezar da Silva; SILVA, Neide Cristina da (org.). Aná- lise do material didático na perspectiva da educação para diversidade. São Paulo: Casa Flutuante, 2019. MATOS, Leonardo Raphael Carvalho de. 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Educação e o empoderamento da mulher negra. São Paulo: Casa Flutuante, 2017. https://www.travessa.com.br/Nandyala/editora/083b4fe8-9a76-475a-9ca2-35b49e265010 NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS 31 SILVA, Neide Cristina da; MARTINS, Telma Cezar S.; OLIVEIRA, Cláu- dia Cristina de (org.). Vozes emergentes: Educação e questões étnico-ra- ciais. São Paulo: Casa Flutuante, 2016. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves; BARBOSA, Lucia Maria de Assunção O pensamento negro na educação no Brasil. São Paulo: EdUfscar, 1997. SOARES, Dandara de Carvalho. As relações étnico-raciais e as TIC na Educação Física escolar: possibilidades para o ensino médio a partir do currículo do Estado de São Paulo. 2017. 161 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Humano e Tecnologias) – Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2017. TOMAZIN, Gustavo. Ler faz bem: descobrindo os grandes autores. Campinas: Brasileirinho Educacional, 2015. YLÊ-EDUCARE. Sobre nós. Disponível em: https://yle-educare.wixsite. com/educare/pesquisadores. Acesso em: 15 ago. 2021. Da Lei do Ventre Livre ao Estatuto da Criança e do Adolescente: uma abordagem de interesse da juventude negra Gevanilda Santos1 Chega de festejar a desvantagem E permitir que desgastem a nossa imagem Descendente negro atual meu nome é Brown Não sou complexado e tal Apenas racional É a verdade mais pura Postura definitiva A juventude negra Agora tem voz ativa Racionais MC’s Este artigo resume um conjunto de informações sobre a legislação brasileira, da Lei do Ventre livre até o Estatuto da Criança e do adolescen- te, considera a abordagem sociológica para observar o impacto sobre a juventude, particularmente, a juventude negra. Ele traz o olhar de quem foi jovem há mais tempo e quer deixar registrada mais uma experiência. A riqueza da experiência da juventude em luta e resistência pela vida é um fenômeno que se repete em muitos países. A juventude brasileira ao denunciar e combater o racismo também tem essa importância histórica. 1 Mestre em Sociologia Política – PUC São Paulo, pesquisadora das relações sócio raciais e integrante das diretorias da Soweto Organização Negra e da Associação Brasileira de Pesquisadores. gevanilda@yahoo.com.br 2 10.36599/cflu-caraeca.002 GEVANILDA SANTOS 33 Soweto Organização Negra2 No dia 16 de junho de 1976, no bairro de Soweto, 20 mil estu- dantes sul-africanos protestavam contra o governo de minoria branca (17%), denominado apartheid. O regime de apartheid proibiu os estu- dantes do bairro de Soweto de continuarem estudando na sua língua “bantu”. O protesto legítimo foi recebido com muita violência. A polí- cia sul-africana investiu contra estudantes desarmados matando cerca de 600 jovens. O levante de Soweto, na África do Sul, marcou o início de uma série de revoltas. A reação da população negra (80%) intensificou a luta pela libertação nacional e o fim do regime de apartheid. No dia 16 de junho comemora-se o dia da Juventude Sul - Africana. A organização e resistên- cia da população foram um passo importante para o fim do apartheid e conquista dos direitos de cidadania da maioria negra, da população sul- -africana. Soweto tornou-se um símbolo internacional da luta contra o racismo. É por isso que hoje, aqui no Brasil, a Soweto Organização Negra, faz uma homenagem aos heróis que tombaram em Soweto, procurando sempre lembrar a grande participação da juventude, a sua resistência e a luta em prol da sua vida. Falar da Lei do Ventre livre, instituída, em 1871 na época do Im- pério até o Estatuto da Criança e do adolescente, instituído em 1990, época da abertura política brasileira é um esforço para, neste debate, historicizar o comportamento da sociedade brasileira junto às crianças e adolescentes brasileiros. Quais as lições da História que nos interessa? • Identificar o quanto a sociedade valoriza ou não a dignidade, a iden- tidade, a integridade física, psicológica e moral de crianças e adolescentes. • Como negros e indígenas têm sido alvo desta política. 2 Soweto Organização Negra é uma entidade fundada no ano de 1991 na cidade de São Paulo. O nome da entidade é uma homenagem aos heróis do levante de Soweto, que simboliza o esforço coletivo para garantir dignidade e direito social para a população negra. 34 DA LEI DO VENTRE LIVRE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE • Como a lei é utilizada para impor uma cultura política que crimi- naliza a criança e ao adolescente, particularmente os de identidade racial de origem negra e indígena, na condição social de filhos da classe traba- lhadora e protege apenas os filhos da elite. • Afirmar a juventude como sujeitos históricos e políticos do que hoje denominamos direitos das crianças e adolescentes, antes era deno- minado de “menores” como simbologia de delinquência. O período histórico entre a Lei do Ventre Livre, em 1871, e o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, instituído em 1990 nos faz lembrar o caráter elitista do Estado brasileiro decorrente do colonialismo portu- guês, da escravidão e do autoritarismo, o que nos faz hoje revisitar essa história para verificar o quanto à sociedade valorizou ou não a dignidade, a identidade, a integridade física, psicológica e moral das nossas crianças e adolescentes. Um outro aspecto importante decorrente da legislação em questão é a cultura política da criminalização da criança e do adoles- cente, particularmente os de identidade racial de origem negra e indíge- na, na condição social de filhos da classe trabalhadora. Período Colonial Desde o período colonial as crianças e adolescentes conheceram a violência a partir da colonização portuguesa, quando a Igreja, através da ação de jesuítas, impõe a evangelização às crianças indígenas, e desta for- ma cruel provoca a perda da sua identidade. O professor Kabengele já apontou neste seminário os efeitos nocivos da política denominada ideo- logia do embranquecimento, ou seja, o mito da democracia racial. Com o tráfico e a escravização dos africanos, as crianças negras tam- bém conheceram a violência, principalmente, com a separação dos fa- miliares, o trabalho forçado, os castigos e as humilhações. As crianças negras eram tidas como brinquedos e animais de estimação das crianças brancas. Quem estiver em São Paulo e for visitar o Museu Afro Brasil verá na seção de castigos as iconografias, fotos e lembranças que nos remetem ao tempo dos maus tratos às crianças negras durante o período colonial. A simbologia negativa do “abandono” das crianças vem desde a época colonial quando em 1521, as Câmaras Municipais e as Casas de Miseri- GEVANILDA SANTOS 35 córdia recolhiam as crianças órfãs e abandonadas no sistema de roda das Casas de Misericórdia, um cilindro giratório na parede, onde as pessoas abandonavam as crianças chamadas ilegítimas, assim surgiu às casas de assistência ou de orfandade. Esse não é o momento para uma análise das relações de gênero na colônia, mas cabe lembrar que as crianças denomi- nadas ilegítimasforam fruto do estupro das mulheres indígenas e negras. Legislação Penal do Império No período do Império brasileiro tem início a organização das leis penais, cujo alvo punir as crianças, jovens e adultos que ficavam indis- tintamente em prisões comuns. O Código Criminal de 1830 estabelecia a primeira preocupação legal com os chamados “menores”. O artigo 10 deste Código Penal diz: “Também não se julgarão criminosos os menores de quatorze anos”. “Se provar que os menores de quatorze anos tiverem cometido crimes e que fizeram com discernimento, então deverão ser re- colhidos à Casa de Correção pelo tempo que o juiz determinar, contanto que o recolhimento não exceda a idade de dezesseis anos” (SILVA, 2001; SILVA JR, 2003). Aprisionar as crianças desde sua mais tenra idade, porque viam neles potenciais de criminalidade é uma cultura política cunhada desde o pe- ríodo colonial. Com a Lei do Ventre Livre (1871) essa situação agrava-se. Uma rápida leitura do processo abolicionista no Brasil nos permite com- preender que essa é legislação que marginaliza a criança negra porque de- termina que a criança poderia estar livre da escravidão, mediante prévia indenização oferecida ao senhor por sua mãe. Esta lei trouxe um debate jurídico de como denominar o filho livre da mãe escrava e acabaram considerando-o “ingênuo”. Assim, o filho de ven- tre livre não adquiriu a liberdade jurídica e estava impedido de frequentar a escola e participar da vida política. Pela Lei do Ventre Livre, o senhor que ficava com a criança liberta não eram obrigados a oferecer instrução primária. É isso que provocou a situação do abandono de milhares e mi- lhares de crianças. Mais à frente, em 1888, a chamada Lei Áurea determina o fim da escravidão. Uma abolição inacabada. E passados 120 anos da abolição o 36 DA LEI DO VENTRE LIVRE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE dia 13 de maio é consagrado o Dia Nacional de Denúncia contra o Racis- mo, porque a abolição da escravatura, não foi acompanhada de nenhu- ma proteção social ou reparação aos quase 400 anos de trabalho forçado. Essa data marca o início da situação de desproteção da juventude negra. A situação de abandono da juventude negra tem que ser contraposta às experiências de combate a esse tipo de situação. Há dois conceitos muito rico e importante para compreendermos esta reação: o conceito de ances- tralidade e o conceito de resistência. A vida de Luiz Gama ilustra aqueles conceitos por ser uma experiência marcante no período abolicionista a ser ensinada a todas as crianças em pe- ríodo escolar. 3 Sua biografia marca o autodidatismo, a importância da esco- larização, da profissionalização e resistência contra as formas de opressão e violência da escravidão. Relembrar o nome de Luiz Gama é fortalecer a sua memória e a ancestralidade de uma luta que não começa agora, mas vem desde o tempo do Quilombo de Zumbi dos Palmares e ainda hoje continua. A situação de abandono e a prática de penalizar a criança e o adoles- cente avança pelo período republicano. Pós-abolição, com o crescimento das cidades ocorreu uma associação entre infância e delinquência. Ao se consolidar um modelo de desenvolvimento urbano industrial, capitalista e excludente, intensifica a visão dominante da criminalização das crian- ças e adolescentes quando questão da infância sai pouco a pouco da esfera do assistencialismo, ou da assistência das casas religiosas praticada pela Igreja Católica, e passa para a área jurídica. Logo após a Proclamação da República duas legislações merecem destaque. O Código Penal de 1890, o primeiro da República, dispunha 3 Quem foi Luiz Gama? Ele foi filho de Luiza Mahin, uma africana livre de nação Nagô, da região da Costa do Marfim, uma liderança ativa nas insurreições baianas do século XIX. Seu pai, um português baiano do comércio, decadente, acabou vendendo seu próprio filho, Luiz Gama, ainda uma criança de dez anos, para um traficante de escravos paulista. Luiz Gama viveu em Santos, Campinas e em São Paulo, e conseguiu estudar. Fugiu do cativeiro aos 18 anos e conseguiu provas de que havia nascido livre e que estava sendo mantido ilegalmente no cativeiro. De escravo a um advogado, ou rábula, como se diz, autodidata, ele fez do Direito uma arma na luta contra a escravidão. Libertou mais de 500 escravos, e o instrumento legal que utilizava era a lei de novembro de 1831, que declarava livre todos os africanos desembarcados no país após aquela data. Esta lei regulamentava o tratado entre Portugal e Inglaterra, de 1818, que punha fim ao tráfico de escravos. GEVANILDA SANTOS 37 sobre as crianças que perturbam a ordem, a tranquilidade e a segurança pública, e altera a idade de responsabilidade criminal das crianças para nove anos. Dizia que os infratores entre nove e quatorze anos eram indi- cados ao recolhimento das casas de correção, inaugurando uma política de institucionalizar e criminalizar os jovens. O Decreto 145, de 1893, determina a necessidade de isolar os vadios, os vagabundos e capoeiras na Colônia de Correção. Desde então a legis- lação passa a perseguir a arte e a cultura de resistência dos capoeiristas, considerada uma situação de vagabundagem e passível prisão. Controle e repressão do Estado sobre a infância: da Casa dos Expostos a Febem Vários autores especialistas em literatura jurídica afirmam ser o período republicano, o momento de maior controle e repressão do Es- tado sobre a infância4. O jurista Candido Mota é nome bastante refe- rido nesse momento. É ele quem determina a criação de uma institui- ção específica para crianças e adolescente, que até então ficavam em prisões comuns. Seguindo essa determinação no ano de 1896 surgiu em São Paulo Casa dos Expostos na região de Perdizes, no bairro do Pacaembu. Mais à frente, a Lei 947 de 1902, determina que os deno- minados “menores”, acusados criminalmente, e órfãos abandonados encontrados em vias públicas, se assim considerados por um juiz, de- veriam ser internados nas colônias correcionais, permanecendo lá até os dezessete anos. O Decreto 4242, de 1921, fixa a idade da responsa- bilidade penal em 14 anos. No Rio de Janeiro surgiu, nesse período, o primeiro Juizado de Meno- res do Brasil, capitaneado pelo magistrado Mello Mattos que define junto ao Juizado fosse construído um abrigo destinado ao jovem abandonado e infrator. Daí surgiu o primeiro Código de Menores que regulamentou medidas especificas para adolescentes entre 14 e 18 anos, alterando a ida- de penal agora para 18 anos. 4 Nota da autora: A legislação apresentada neste artigo foi resultado de uma pesquisa virtual na Internet sobre o assunto. 38 DA LEI DO VENTRE LIVRE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Os decretos, leis e códigos foram definidos a partir da visão de mun- do apenas de juízes com um olhar preconceituoso diante da pobreza e da cultura negra, principalmente acerca do biótipo da ascendência africana. Surge assim a ideia de que negro é suspeito. Consolida também a ideia de assistência e controle das crianças e adolescentes como um novo me- canismo de intervenção sobre a população. A partir deste momento a palavra “menor”, passa a simbolizar a infância pobre e negra como algo potencialmente perigoso e não era feita qualquer distinção entre a situa- ção de abandono e infração. No período da Constituição de 1937, na época da era Vargas, o Códi- go Penal de 1940 define a responsabilidade penal dos jovens de 14 passa aos 18 anos de idade. No início da década de 40, no Estado Novo, destaca- -se a ideia da assistência social, e criam-se as escolas de Serviço Social do país em resposta ao abandono dos adolescentes. Ocorreu aí à separação entre a situação do “menor” e a criança. A palavra “menor” passa a desig- nar os filhos dos trabalhadores, dos pobres, de origem negra e indígena, e a palavra “criança” define os filhos da elite. O Decreto Lei 3799 de 1941 cria o Serviço de Assistência ao Menor, chamado SAM com a finalidade de fiscalizar as casasde serviço assisten- cial, público ou privado, e investigar razões da anomia social dos delin- quentes e oferecer tratamento psíquico.5 Por quase duas décadas é mantido esse serviço público repressivo ao menor para conter a situação de pobreza dos adolescentes e o silencio do Estado quanto à defesa do direito a infância. Somente na partir da década 5 Alguns autores afirmam começar nesse período o desenvolvimento de uma mentalidade racista, que está no interior da ciência e busca responsabilidade pelo abandono das crianças diante da situação de pobreza da população negra, dentro de uma visão funcionalista, somente na criança e na família negra e não na sociedade e no Estado. Na década de 50, nos Estados Unidos difundiu-se a teoria da chamada Criminologia Positivista e defende a concepção que a delinquência é patológica e é determinada por causas biológicas, psicológicas e sociais. Na teoria da anomia de Durkheim, o conceito sociológico explica a divisão do trabalho, o declínio da solidariedade social e o acirramento do conflito entre os grupos e as classes sociais a partir de consequências patológicas e busca-se resposta no comportamento dos indivíduos e não da sociedade. GEVANILDA SANTOS 39 de 60 num momento de comoção nacional diante da violência urbana é que a ordem dos fatos é alterada.6 Período Ditadura Militar No contexto da Ditadura Militar de 64 nasceu a Política Nacional de Bem-Estar do Menor com da Lei 4413/64, e a partir daí é instituída a Fun- dação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), com o objetivo de coordenar as entidades estaduais que lidavam com a criança e adolescen- tes. O caráter dessa política pública continuava repressor e controlador da vida de crianças e adolescentes, principalmente a juventude negra. Vale a pena lembrar mais uma vez que a alteração da legislação brasileira sem- pre ocorre diante de uma comoção nacional, quando a violência urbana atinge familiares da elite. É preciso estar atento para essa cultura política autoritária que muito sensibiliza os representantes conservadores do Es- tado e muitos segmentos da sociedade brasileira. Em São Paulo, o Decreto de 29 de dezembro de 1967 criou a Secretaria da Promoção Social do Estado de São Paulo e, posteriormente, a Coorde- nadoria dos Estabelecimentos Sociais do Estado (CESE). Em 1974 ocorreu à criação da Fundação Paulista de Promoção Social do Menor (PRÓ-ME- NOR), a ela foram agrupadas todas as unidades de atendimento aos jovens. Entre essas unidades estava a Chácara do Belém, que desde 1910 atendia crianças no mesmo endereço da unidade Tatuapé da FEBEM. Em 1976, a Secretaria de Promoção Social mudou o nome da PRÓ-MENOR para Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FE- BEM), para adaptar-se a uma política federal de atuação na área do ado- lescente em situação de conflito com a lei e consolida o modelo repres- sivo antes praticado pelo chamado SAM. Hoje há um consenso por que o FEBEM não deu certo? Muitos fato- res devem ser levados em conta nesta análise. O seu caráter mais repres- 6 Diante do assassinato do filho do jornalista Odilon Costa Filho, o pai, transtornado pela perda de seu filho, foi até o reformatório conhecer de perto o responsável pela tragédia e saiu de lá convencido de que grande parte da responsabilidade pelo fim trágico de seu filho cabia aos responsáveis por organizar e manter precariamente um lugar como aquele, que era o chamado SAM. 40 DA LEI DO VENTRE LIVRE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE sivo que educativo já foi anunciado. Ela não incorporou a as disposições do estatuto e das normas internacionais das Nações Unidas para jovens privados de liberdade. A superlotação, a inadequação dos espaços e as condições precárias de higiene e limpeza criaram ambientes desumanos e, principalmente, sem nenhuma proposta pedagógica capaz de ressocia- lizar os jovens. Predominou a visão da criminologia positivista impregna- da de preconceito de classe e raça. Na década de 50, do século XX, os Estados Unidos estão dominados pela teoria criminologia positivista, segundo a qual a delinquência era patológica e determinada por causas biológicas, psicológicas e sociais. Estava se falando da teoria da anomia de Durkheim, o conceito socioló- gico que buscou explicar a divisão do trabalho, do declínio da solidarie- dade social e do conflito entre as classes sociais, a partir de consequên- cias patológicas. A anomia é concebida como uma ruptura na estrutura cultural. Quando há uma separação entre os valores da sociedade e a capacidade dos membros do grupo de agir de dentro das normas sociais dominantes. Quando a estrutura social e cultural não está integrada, a primeira exigindo um comportamento que a outra dificulta, há uma tensão rumo ao rompimento das normas ou ao seu completo desprezo e busca-se resposta no comportamento dos indivíduos e não na socie- dade. Segundo esta maneira de pensar o indivíduo que ocupa posição marginal na sociedade não age de acordo com os valores ditados. E muito comum este tipo de pensamento criminalizar os jovens por sua situação de pobreza. Mais crítico, um outro enfoque influenciou autoridades intelectuais, médicas e jurídica. Eles passaram a explicar a delinquência juvenil como um problema da estrutura das classes que impõe frustrações aos jovens, na medida em que são pobres, os filhos da classe trabalhadora, por um lado não tem os seus direitos respeitados, e por outro acabam incorpo- rando valores pequenos burguês ou da classe média. Na Europa, a expli- cação sobre a situação dos jovens em sociedade moderna admitiu, entre os anos 60 e 70, novos preceitos como a antipsiquiatria e o marxismo. A partir do último quarto do século XX a pressão dos segmentos democráticos da sociedade - movimentos sociais, partidos políticos de- mocráticos e instituições progressistas - contribui para o fim do regime GEVANILDA SANTOS 41 autoritário e o fim do modelo FEBEM - FUNABEM. A pressão dos movi- mentos sociais exigia criação de um novo Código de Menores. O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua Desde a década de 70 aumentou a participação no Movimento So- cial pela criação de um novo código de menores. Nos anos 80, o fim do regime autoritário possibilitou aos diversos segmentos da sociedade reivindicar o fim do modelo Febem-Funabem. A pressão do Movimento dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) impulsionou a articulação de vários grupos em defesa dos direitos da criança e do adolescente7. Este amplo apoio em defesa do direito à infância culmina com as mobilizações constituintes de 1988, que em seu artigo 227 atribui à família, a sociedade e ao Estado o dever de assegurar às crianças e aos adolescentes os seus direitos fundamentais. Desta concepção nasceu o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a Lei 8069 de 13 de junho de 1990, afetuosamente denominado ECA. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1990). Considerações Nos anos 1980 foi concebida uma Constituição Federal voltada para as questões, mundialmente debatida, dos direitos humanos de todos os cidadãos, a conhecida “Constituição Cidadã”, de 1988, destacando-se, nesse contexto, o movimento denominado “A Criança e o Constituinte”, voltado para a defesa dos direitos da criança. Com a promulgação no Brasil do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990 - que, nos moldes da Constituição Federal de 88, consagrou a Doutrina da Proteção Integral, foi revogada a arcaica concepção tutelar do menor em situação irregular. Reconheceu-se que a criança e ao adoles- cente são sujeitos de direito abandonando o conceito de menor. 7 O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, uma organização não-governamental existente desde 1985 e presente hoje em 24 estados brasileiros, se originou de uma articulação de educadores e outros profissionais da área, que tinham uma nova concepção de agir com os meninos de rua, considerando os jovens portadores de direitos e que devem ser respeitados como cidadãos. 42 DA LEIDO VENTRE LIVRE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O ECA incorporou princípios da legislação internacional afirmada des- de os anos 1950 na Declaração dos Direitos do Homem e na Declaração dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil; incorporou a influência de teóricos da antipsiquiatria e do marxismo reunindo intelectuais, médicos e juristas mais críticos que afirmam estar a raiz do problema na estrutura das classes da sociedade moderna que impõe relacionamento desigual aos jovens e incorpora os princípios dos direitos humanos de todos os cidadãos. O ECA põe um ponto final na concepção de que a criança deve ser tu- telada pelo Estado e rejeita o conceito de “menor” porque ele é empregado até hoje, principalmente, pela imprensa para criminalizar a juventude ne- gra e pobre. Marca uma ruptura com a tradição conservadora dos códigos anteriores. Origina um amplo processo de revisão legislativa com a parti- cipação de diversos setores da sociedade e não uma produção legislativa de ocasião feita a toque de caixa para oferecer uma resposta repressiva aos jovens da classe trabalhadora e proteção conservadora a elite, a exemplo da Lei dos Crimes Hediondos, nascida no mesmo ano da promulgação do ECA, mas motivada por um caso específico, o assassinato brutal de uma atriz de novelas. A palavra “menor”, abolido da ECA pela conotação estigmatizaste que recebeu ao longo de décadas, continua sendo empregado pela imprensa con- tribuindo para a criminalização da juventude negra e pobre. O ECA resgatou debates e discussões sobre os fundamentos da lei para aumentar a compreen- são da tensão entre os que a concebem como um direito e uma problemática social que diz e respeito a toda a sociedade e sua dinâmica de promover qua- lidade de vida a todos e não apenas a uma classe social dominante. Nenhuma lei pode garantir mudanças reais na ordem das coisas, porém, quando ela começa a sofrer constantes ataques de parlamentares conserva- dores, a exemplo da redução da idade penal, devemos estar atentos e organi- zados para barrar retrocessos. A contribuição do movimento social negro ao fortalecimento do direito da criança e do adolescente cabe aqui destacar, surgiu na década de 1990, com a Campanha “Não mate as nossas crianças”.8 O Conselho Tutelar foi 8 A história de vida de Evanir dos Santos, à época um jovem negro que cria a associação de ex-alunos da FUNABEM, para acompanhar a integração na sociedade de seus companheiros de GEVANILDA SANTOS 43 outra contribuição importante trazida pelo ECA, na medida em que esse é um órgão público municipal de caráter autônomo e permanente, cuja função é zelar pelo direito a infância e a juventude, conforme os princípios estabele- cidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.9 Por fim, é importante afirmar o protagonismo da juventude diante de uma movimentação conservadora da elite para a redução da maioridade penal. O posicionamento favorável da elite a redução da maioridade pe- nal para 16 anos não é algo novo, como vimos ao longo desse texto, sig- nifica a tomada de posição dos conservadores para retroceder conquistas do direito à infância. Eles pretendem impedir a organização dos setores democráticos na busca de um outro modelo de sociedade. Para concluir, é importante destacar que somos contra ao genocídio da juventude negra e contra a alteração da legislação para criminalizar a juventude. É importante denunciar em âmbito nacional e internacional o conservadorismo diante das políticas de interesse e proteção à juven- tude negra, porque elas estão sendo alvo da repressão do Estado. Basta ver a reação conservadora a política de imigração da África à Europa, a reação às políticas de ação afirmativas que ampliam o acesso à educação pública no Brasil. É importante compreender que o Movimento Negro no geral, e o Movimento Hip Hop em particular desde os anos 1980 tem conseguido colocar na agenda política brasileira que o combate ao racismo em todas as fases da vida é uma condição necessária e funda- mental para a democratização da sociedade brasileira. instituição. Fundou mais tarde o Centro de Articulação das Populações Marginalizadas, CEAP, uma instituição do movimento negro do Rio de Janeiro que vem se destacando na luta contra o racismo, a violência policial e o extermínio de menores. O CEAP engajou-se na campanha do Movimento Brasileiro “Não mate nossas crianças”, lançada em 1989, que focalizava o extermínio de crianças e adolescentes, para aprofundar o debate público da ação policial e a sua vítima preferencial, a população negra e residente em morros, favelas e periferias. 9 Aos conselheiros tutelares cabe atender as crianças, adolescentes, pais ou responsáveis, em situação de ameaça ou violação de direitos, e aconselhar e encaminhar para programas de tratamentos, podendo, para isso, requisitar serviços públicos. Ele é composto por cinco membros, eleitos pela comunidade, para fiscalização dos direitos das crianças e dos adolescentes perante o Estado, a comunidade e a família. 44 DA LEI DO VENTRE LIVRE AO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Referências FILGUEIRA JR, A. Código criminal do Império do Brasil. Anotado. 1876. GOMES, J.B.B. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualda- de: o direito como instrumento de transformação social: a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990. RACIONAIS, MC’s. Escolha o seu caminho: música Voz Ativa. São Pau- lo: RDS Fonográfica, 1992. SANTOS, G. (co-org.). Racismo no Brasil: percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2005. SANTOS, G. et al. A juventude Negra. Retratos da Juventude Brasileira: análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. SILVA, K.E.O. O papel do direito penal no enfrentamento da discrimi- nação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SILVA JR., H. Direito de igualdade racial: Aspectos constitucionais, ci- vis e penais. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. Crianças e adolescentes invisíveis na adoção: racismo velado da família tradicional brasileira Wellington Lopes Goes1 O meu perfil afro só é da hora pra elite, em companhia da Madona ou do Brad Pitt. Só sirvo pra ser o anexado no projeto, que angaria verba pública no Congresso. Ninguém se importa se eu me cubro com farinha de trigo, tentando me clarear pra atender racista rico. Eduardo Taddeo. Música “Depósito dos rejeitados” No dia 13 de julho de 2021 o Estatuto da Criança e do Adolescente completou trinta e um anos de existência desde o decreto em 1990, porém, analisando essa trajetória de implementação percebemos que ainda não foi devidamente colocado em prática e talvez, não o será, não se trata de pessimismo, mas dos limites do Estado burguês e da democracia capitalista e no momento em que vivemos com essa onda conservadora assistimos há muitos retrocessos no campo dos direitos sociais, civis e políticos, quando destacamos a situação da infância e juventude a situação é bem mais complexa no campo da proteção aos direitos, a “prioridade 1 Ativista do Coletivo de Esquerda Força Ativa e Pós-Graduando pelo programa de Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. wellington.komunist@gmail.com 3 10.36599/cflu-caraeca.003 mailto:wellington.komunist@gmail.com 46 CRIANÇAS E ADOLESCENTES INVISÍVEIS NA ADOÇÃO absoluta” preconizada no art. 04 do Estatuto da Criança e do Adolescente está bem longe de ser atendida conforme a lei. Percebemos que a infância e adolescência dos ambientes mais ricos levam grande vantagem por não serem afetadas pela falta das condições materiais de existência, acessam as melhores escolas e espaços de lazer e entretenimento, além de terem boa alimentação. Por outro lado, habitando nas periferias e nas regiões mais pobres as crianças e adolescentes primeiramente, já são vítimas de violação
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