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JACOB Prefácio O poder das bibliotecas

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JACOB, Cristian. Prefácio. In: BARATIN, Marc; _____ (dir.) O poder das bibliotecas: a 
memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000. p. 9-17 
 
No limiar do terceiro milênio, a França acrescenta a seu patrimônio uma nova 
biblioteca nacional, que deve responder aos desafios do pensamento e da cultura 
contemporânea e, ao mesmo tempo, perpetuar sua missão patrimonial. O vento das 
polêmicas encobriu muitas vezes os verdadeiros objetivos e a necessidade absoluta de um 
projeto inovador e benéfico: oferecer à comunidade intelectual um lugar de leitura e 
trabalho adaptado às novas exigências da pesquisa, assim como aos novos suportes e 
vetores da informação científica. 
Lugar de memória nacional, espaço de conservação do patrimônio intelectual, 
literário e artístico, uma biblioteca é também teatro de uma alquimia complexa em que, sob 
o efeito da leitura, da escrita e de sua interação, se liberam as forças, os movimentos do 
pensamento. É um lugar de diálogo com o passado, de criação e inovação, e a conservação 
só tem sentido como fermento dos saberes e motor dos conhecimentos, a serviço da 
coletividade inteira. 
O recuo da história e o desvio da reflexão nos pareceram permitir lembrar essas 
evidências fundamentais. 
Na encruzilhada da história do livro, e das bibliotecas, desenvolveu-se, de alguns 
anos pra cá, uma nova abordagem das práticas culturais, atenta tanto à sociologia dos meios 
intelectuais, às técnicas da escrita, ao conjunto dos gestos, lugares e modelos do trabalho do 
pensamento, como às dinâmicas da tradição e à memória do saber. O poder das bibliotecas 
se situa no cruzamento desses diferentes caminhos. Aqui se tratará da leitura erudita, de sua 
história, de seu imaginário, mas também de seu quadro institucional e arquitetônico, de suas 
determinações materiais: o trabalho na biblioteca e o recurso aos livros, como depósito e 
instrumento de conhecimentos, como etapa na geração de novos livros e novos saberes; os 
efeitos cognitivos inerentes à acumulação dos livros, a sua materialidade, aos laços que 
tecem entre si e com o mundo. (p.9) 
Ler numa biblioteca é instaurar uma dialética criadora entre a totalidade e suas 
partes, entre a promessa de uma memória universal, mas que ultrapassa o olhar de todo 
indivíduo, e os itinerários pacientes, parciais e atípicos, desenvolvidos por cada leitor. É 
tentar conciliar um desejo de universalidade e a necessidade de escolha, de seleção, até 
mesmo de esquecimento, como as próprias condições da leitura e do pensamento. O 
trabalho na biblioteca é percurso no interior de um livro, em seguida de livros para livros e 
dos livros para o mundo, com suas travessias áridas, suas errânças labirínticas e seus 
momentos de jubilação intelectual, suas caminhadas míopes e seus grandes panoramas. É 
também uma viagem no tempo, uma “anabásis” nas ramificações da memória do saber e a 
criação de um espaço de encontros utópicos e ucrônicos – convergência de ideias, 
perenidade e metamorfoses dos modelos e das lições, afinidades eletivas ou escolhas 
longamente refletidas, em que se reaviva o pensamento e o saber de outrem e de outrora 
através do comentário, da leitura e do jogo livre de digressões. 
A biblioteca é um lugar, uma instituição. É o cruzamento paradoxal de um projeto 
utópico (fazer coexistir num mesmo espaço todos os vestígios do pensamento humano 
confiados à escrita) com as restrições técnicas, ergonômicas, políticas de conservação, de 
seleção, de classificação e de comunicação dos textos, das imagens e, hoje, dos sons. É 
também, e simultaneamente, um desígnio intelectual, um projeto, um conceito imaterial que 
dá sentido e profundidade às práticas de leitura, de escrita e de interpretação. Enfim, é uma 
coleção de livros, o efeito resultante de sua justaposição e interação: uma biblioteca não é 
necessariamente um edifício, como nos mostram as estantes de Alexandria ou os 
provedores informáticos que transmitem hoje, à distância, livros ou artigos digitalizados. 
Por sua arquitetura, definição de seu público, princípios que ordenam suas coleções, 
pelas opções tecnológicas que determinam a acessibilidade e a materialidade dos textos, 
assim como pela visibilidade das escolhas intelectuais que organizam sua classificação, 
toda biblioteca dissimula uma concepção implícita da cultura, do saber e da memória, bem 
como da função que lhes cabe na sociedade de seu tempo. É verdade também que a história 
da cultura e da relação com a memória reside, em grande parte, na subversão dessas regras, 
desses recortes, desses limites, e na invenção de novas ligações, de novos lugares do saber. 
(p.10) 
Pois a história das bibliotecas no Ocidente é indissociável da história da cultura e do 
pensamento, não só como lugar de memória no qual se depositam os estratos das inscrições 
deixadas pelas gerações passadas, mas os limites e as funções da tradição, as fronteiras do 
dizível, do legível e do pensável, a continuidade das genealogias e das escolas, a natureza 
cumulativa dos campos de saber ou suas fraturas internas e suas reconstruções. 
Este livro não é propriamente uma história das bibliotecas. Sob certos aspectos, ele 
poderia esboçar uma arqueologia da biblioteca pública contemporânea, tanto pela evocação 
de certas etapas fundamentais da emergência de seus conceitos, como pelo inventário das 
problemáticas que a atravessam: a ordem, a abrangência e a seleção, a perda e o 
esquecimento, a transmissão, as políticas da memória. Arqueologia, pois as grandes 
bibliotecas neste fim do século XX são obsecadas por sua história e se interrogam acerca de 
sua missão e de sua identidade: que memória, que saberes, e para que sociedade? 
A história das bibliotecas é habitada pelo mito. Babel e Alexandria são dois polos 
fundamentais desse imaginário. De um lado, o império dos signos, com seus jogos de 
espelho e de mise en abyme (narrativa dentro da narrativa), suas ligações hipertextuais que 
se desdobram em labirintos, escapando no fim a todo controle intelectual: a biblioteca como 
metáfora do infinito, do tempo, da imensa sincronia de todas as palavras e pensamentos 
jamais formulados, exposta ao risco final da perda de sentido e de referência. De outro, o 
incêndio, a ruína, o esquecimento, a morte: a biblioteca ou o pesadelo da destruição, a 
obsessão do irremediável, a interrupção brutal da transmissão. 
Uma biblioteca, em última instância, só adquire sentido pelo trabalho de seus 
leitores. À arqueologia dos conceitos e do imaginário, quisemos associar uma antropologia 
das práticas eruditas que se desenvolvem nas bibliotecas no decorrer de sua história. Quais 
são seus leitores? Por que e como se trabalha numa biblioteca? Quais são a situação, a 
finalidade e as etapas de uma atividade intelectual que pressupõe o recurso aos livros? 
Como, do papiro à tela do computador, a própria materialidade dos textos, as condições de 
sua reprodução e de seu acesso induzem formas de apropriação, andamento e interpretação 
específicas? A história das bibliotecas, desde as salas de arquivos dos palácios orientais até 
as bases de dados acessíveis on line pela internet, é também a da metamorfose dos leitores e 
das leituras, das políticas de domínio e de comunicação da informação. E do lento processo 
pelo qual a função arquivológica e as simbólicas da acumulação se tornaram instrumentos 
(p.11) de pesquisa, fundindo o conjunto dos métodos do trabalho intelectual – histórico, 
científico, filosófico, filológico... 
As práticas de leitura erudita, indissociáveis da escrita (notas de leitura, 
comentários, redação de novos textos, produção de conhecimentos globais por adição e 
síntese de informações parciais etc.) refletem a organização da biblioteca e resultam 
diretamente de seus recursos, bem como da dinâmica das conexões que ela permite entre os 
livros e com os objetos do mundo, por seus princípiosde classificação, pelos critérios de 
constituição de suas coleções, por seus catálogos. Cada leitor é levado a desenvolver 
estratégias de apropriação e de memorização, através das quais o saber extraído dos livros é 
reelaborado, classificado, pronto para ser novamente mobilizado na escrita de novos textos, 
instrumentos de pesquisa, de reflexão e de compreensão do mundo. As notas de leitura, as 
coletâneas de “lugares-comuns” da Renascença, as referências bibliográficas, as anotações 
marginais e as sinalizações hipertextuais facultadas pela escrita eletrônica são outros tantos 
procedimentos mnemontécnicos que impõem uma ordem quase cartográfica aos percursos 
nos livros, tornam cumulativo e reativável o saber assim colhido, fundam uma pragmática e 
uma economia da leitura. Todo novo livro mantém uma relação de homologia com a 
biblioteca que o tornou possível e pensável: resume-lhe o saber adquirido, traça um 
percurso em suas coleções e desdobra em torno de si uma rede de alianças, anterioridades e 
autoridades por intermédio das citações, da exegese, até mesmo da polêmica. Pode também 
aspirar a tornar os saberes da biblioteca móveis, sinóticos, ou mesmo a substituir a 
biblioteca, opondo às vertigens da acumulação e do labirinto as certezas intelectuais de uma 
saber fechado, delimitado e estruturado (os dicionários, as enciclopédias). 
Cada um dos textos deste volume, a partir de um lugar, de uma época, de uma 
cultura particular, apresenta um ponto de vista sobre esse conjunto de proposições, a o 
leitor está sensível aos jogos e ecos e aos efeitos de espelhos que as ligam. As normas 
sociais, os cenários políticos da leitura e do acesso aos livros; as práticas mnemotécnicas 
que fazem frutificar o saber recolhido nos livros e os esforços desenvolvidos para chegar a 
formas de apropriação sinótica no meio dos oceanos infinitos da textualidade; as tentativas 
para pensar a função e a organização da biblioteca ideal, entre a arqueologia e a utopia; o 
papel do livro e da biblioteca na transmissão cultural: eis os temas recorrentes 
compartilhados pelas quinze contribuições aqui reunidas, que, no entanto, nos pareceu 
possível reagrupar em torno de três questões essenciais. (p.12) 
 
 Da ordem dos livros à carta dos saberes: utopias e inquietudes 
 
A acumulação de livros não é uma mecânica sem consequências. E a biblioteca que 
os concentra está longe de ser um lugar inerte. Ela é exemplar desses lugares onde a 
convergência das informações sobre o mundo, dados locais e parciais, fragmentos de saber 
e de real, é produtora de efeitos intelectuais: generalização, síntese, totalização, 
estabelecimento de tipologias e taxionomias, tradução das diferenças qualitativas numa 
ordem homogênea de comparação e de cálculo, de medida e seriação, processos de 
mediação fundamentando o conhecimento do que está distante no tempo e no espaço. 
Bruno Latour propõe uma descrição geral desses dispositivos e de sua dinâmica intelectual, 
sublinhando o papel central da biblioteca, ao lado dos museus de história natural e dos 
laboratórios científicos, como condição de possibilidade de um saber sobre o mundo, pela 
acumulação das inscrições e dos signos. 
Christian Jacob, David McKitterick e Salvatore Settis mostram de que maneira a 
biblioteca é também uma arquitetura do saber: tanto sua organização interna como os 
critérios de constituição de suas coleções são escolhas intelectuais fortes, e a história da 
biblioteconomia é atravessada pela busca dos princípios da classificação ideal, capaz de 
conciliar a arrumação material das obras com a divisão dos saberes, ou até mesmo pelo 
sonho de contiguidades significantes em que a proximidade física dos livros nas prateleiras 
traçaria itinerários intelectuais e heurísticos. De Alexandria à biblioteca de Aby Warburg, 
passando pela gênese das bibliotecas modernas e de suas políticas de catalogação, assiste-se 
aos conflitos da utopia e das razões classificadoras. 
Alexandria, a maior coleção de livros do mundo antigo, engendra também novas 
formas de escrita erudita: técnicas de edição, de comentário, formas discursivas que 
facultam a mobilidade máxima dos elementos de saber e sua reutilização, conjunto de 
disciplinas, de projetos intelectuais e literários que se definem pela exploração mais ou 
menos metódica das jazidas de saberes confiados à escrita. Os raros leitores dessa 
biblioteca vêm temperar o sonho régio de acumular todos os livros da terra: exprimem a 
exigência de novas formas de visibilidade e de domínio do saber, de uma economia gráfica 
da transmissão – resumos, listas que reclassificam a informação compilada nos livros, 
filologia do texto que vem substituir a acumulação de livros. É a tais exigências de domínio 
e de cartografia do mundo dos livros que respondem as coletâneas de “lugares comuns” do 
humanismo tardio, verdadeiras bibliotecas condensadas no formato de um livro, que nos 
apresenta Ann Blair: (p.13) prática individual, iniciada desde o tempo da escola, através da 
qual alguns leitores consignam vestígios de seus próprios itinerários livrescos e tornam os 
conhecimentos assim adquiridos mobilizáveis para seus projetos de escrita, mas também 
gênero literário em si e fenômeno editorial que alimenta o sonho enciclopédico, 
prometendo o saber das bibliotecas nas dimensões de um só volume 
 
Bibliotecas e sociedade: as políticas da memória 
 
 
O poder das bibliotecas não se situa apenas no mundo das palavras e dos conceitos. 
Como Alexandria já o significava claramente, o domínio da memória da escrita e a 
acumulação dos livros não deixam ter significações políticas. Eles são signo e instrumento 
de poder. Poder espiritual da Igreja. Poder temporal dos monarcas, dos príncipes, da 
aristocracia, da nação e da república. Poder econômico de quem dispõe dos recursos 
necessários para comprar livros, impressos ou manuscritos, em grande quantidade. Poder, 
enfim, intelectual e sobre os intelectuais, tanto é verdade que o domínio dos livros tem 
como corolário o direito de autorizar ou de proibir sua comunicação, ampliá-la ou restringi-
la. Deste ponto de vista, a Renascença e o século XVII apresentam situações exemplares. 
Anthony Grafton e Roger Chartier esclarecem as formas de sociabilidade extremamente 
codificadas que acompanham a circulação dos livros, em Ferrara, em torno de Leonello 
d’Este, ou nos reinos europeus. Bibliotecas humanistas, em que a cultura é um dos valores 
sociais mais apreciados, motivo das reputações e das polêmicas entre cortesãos; biblioteca 
real e biblioteca pessoal do rei, em que a dedicatória de um livro ao soberano e seu 
oferecimento são as etapas seguidas pelos literatos para conseguir proteção e favor. Na 
Europa dos séculos XVI e XVII, a caça aos livros e aos manuscritos é um instrumento de 
prestígio, e por isso mesmo um objeto de concorrência para as bibliotecas de reis e 
príncipes. Quanto aos verdadeiros usuários dessas coleções, os eruditos, eles dependem do 
favor dos grandes e de sua política de mecenato para ter acesso aos textos e aos recursos 
necessários para seus trabalhos. Assim, eles próprios entram em estratégias de 
concorrência, de poder e de prestígio. 
Mas tanto para os leitores como para seus protetores, as práticas parecem ser 
indissociáveis da reflexão sobre a função e a situação da biblioteca na sociedade, sobre seu 
papel intelectual. Quer se trate de formular as regras de uma biblioteconomia elementar – 
as condições da conservação material dos livros, a iluminação e a limpeza dos lugares –, 
quer se trate de explicitar (p.14) os critérios de seleção das coleções (a beleza dos livros? A 
qualidade dos textos?) ou então as funções da biblioteca e de seu público. Tais questões já 
eram debatidas na corte de Leonello d’Este. Elas surgem também no projeto 
“arqueológico”: como mostra Paul Nelles, Justo Lípsio encontra na arqueologia 
institucionaldas bibliotecas greco-romanas, e da Biblioteca de Alexandria em particular, as 
referências que lhe permitem definir a missão da biblioteca pública moderna, não 
confessional, dedicada ao trabalho erudito, e independente do ensino. Do mesmo modo, 
Jacques Revel mostra como L’advis pour dresser une Bibliothèque de Gabriel Naudé 
(1627), considerado como um dos textos fundadores da biblioteconomia moderna, reflete as 
realidades de seu tempo, em particular o papel predominante das coleções particulares, as 
formas de sociabilidade intelectual, os circuitos de amizades e correspondências, os debates 
políticos e eruditos, que se desenvolvem em torno do presidente do Parlement de Paris, 
Jacques Auguste de Thou, e de sua biblioteca, ao mesmo tempo depósito enciclopédico das 
tradições e lugar de trabalho aberto a todas as inovações. 
 
A transmissão, a perda e o esquecimento 
 
O poder das bibliotecas reside, enfim, em seu papel crucial na transmissão da 
cultura e dos saberes. As bibliotecas são os lugares da continuidade, mas também das 
rupturas da tradição. A vocação universalista da biblioteca de Alexandria é indissociável da 
realidade das escolhas, dos processos de seleção e de recapitulação do conhecimento: a 
história das bibliotecas é também a história do que uma sociedade, as instâncias de poder, 
um meio intelectual decidem transmitir. Momento crucial, em que o esforço reflexivo sobre 
o que constitui o essencial de uma cultura e de um patrimônio coexiste com os acidentes 
imprevisíveis que perturbam esses planos. 
Uma das lições de Alexandria é que as políticas de domínio da acumulação infinita, 
as tentativas para resumir, condensar, estruturar a memória e reforçar sua visibilidade são 
em si mesmas produtoras de seleção e de esquecimento. Como mostra Marc Baratin, os 
tratados dos gramáticos latinos ilustram a tensão dialética entre o puro prazer da 
acumulação e o esforço da racionalização e de organização que visa transmitir o essencial 
de um campo de saber. O tratado de gramática se apresenta assim como uma biblioteca em 
que a língua latina inteira viesse se condensar num espaço de visibilidade sinótico ou, ao 
contrário, se dispersar numa infinidade de exemplos e singularidades, fugindo a todo 
controle. (p.15) 
Jean-Marie Goulemot situa o projeto enciclopédico do Século das Luzes na 
inquietude gerada pela própria multiplicidade dos livros, e o sentimento muito forte de suas 
precariedade: trata-se aqui de conjurar a angústia da perda e do fim dos tempos – a 
síndrome de Alexandria? – condensando todos os conhecimentos humanos, a cultura e a 
tecnologia, “num santuário (...) ao abrigo dos tempos e das revoluções”, segundo as 
próprias palavras de Diderot. A lição de Alexandria é que uma enciclopédia metódica é 
menos frágil que uma biblioteca universal. Ela pode substituí-la. Pois, numa concepção 
catastrófica da história, os livros dos livros permitirá reconstruir o mundo. 
Com efeito, tanto a continuidade da tradição como suas rupturas dependem também 
da conservação física dos livros, de sua sobrevivência material, de sua adaptação às 
mutações tecnológicas que lhes modificam a forma, os conteúdos e a percepção. Luciano 
Canfora reconstitui os mecanismos de perda e destruição dos textos antigos, e encontra na 
passagem do rolo de papiro ao códice de pergaminho um dos princípios de explicação das 
perdas aparentemente aleatórias de certos livros e de obras inteiras. A Idade Média constitui 
uma etapa essencial desse processo. Pierre Riché retraça a circulação dos manuscritos, as 
condições de sua reprodução e conservação, a sobrevivência e as transformações do modelo 
antigo das artes liberais, através dos diferentes momentos cruciais da cultura monástica, 
das renascenças carolíngias e do desenvolvimento das escolas. História complexa, em que a 
transmissão do capital literário da latinidade resulta de um conjunto de causas diferentes da 
reutilização dos pergaminhos para a escrita monástica, que preserva assim textos 
palimpsestos, à faina mecânica de copistas muito cristãos, passando pelo desenvolvimento 
dos scriptoria no tempo de Carlos Magno e pelo nascimento do humanismo dos séculos IX 
e X. 
Ao longo de sua história, do papiro ao pergaminho, do manuscrito ao impresso, as 
mutações materiais do livro influenciaram a situação e as funções da biblioteca assim como 
das práticas que aí se desenvolvem. Os suportes numéricos dos livros, dos sons e das 
imagens tornam possíveis a partir de então novos modos de acesso à informação, e, em 
particular, novas visualizações dos textos, que não repousam mais necessariamente sobre o 
princípio da linearidade, mas conduzem a repensar radicalmente a genética textual como a 
possibilidade de criar ligações hipertexuais em vastos corpus documentais. Roger Laufer 
nos convida a uma reflexão prospectiva sobre a hiperbiblioteca de amanhã, seus desafios 
epistemológicos e as mutações que ela introduzirá nas maneiras de ler e escrever, mas 
também na estruturação lógica do trabalho de pesquisa. (p.16) Mais que seus recursos de 
multimídia, a verdadeira inovação será talvez modificar em profundidade as regras de 
interação entre o leitor e a biblioteca, e fazer dos próprios itinerários de leitura um novo 
objeto intelectual, cujo vestígio será preciso conservar e transmitir. 
In fine, Anne e Patrick Poirier trazem o ponto de vista de artistas e arqueólogos-
arquitetos dos lugares de memória: também as bibliotecas são mortais e destrutíveis. A 
perda da legibilidade da anamnésia – as condições de sentido? Toda biblioteca conserva a 
lembrança das que a precederam, e que talvez a tenham sonhado. A biblioteca ideal situa 
assim na encruzilhada da arquelogia e da utopia arquitetônica, da nostalgia das memórias 
perdidas e das reconstruções que fazem as cinzas e a terra falar. 
 
Christian Jacob 
(p.17)

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