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Clarice Lispector

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Cronologia: Clarice Lispector
(1920) Nasce, a 10 de dezembro, em Tchetchelnik, uma aldeia da Ucrânia, então pertencente à Rússia, Haia Lispector, terceira filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector. O casal já tinha duas outras meninas: Leia, de 9 anos, e Tania, de 5. O nascimento ocorre durante viagem de emigração da família em direção à América – os pais, judeus, que moraram em Savran, onde nasceu a primeira filha, e em Teplik, onde tiveram a segunda, decidem emigrar três anos após a Revolução Bolchevique de 1917, desanimados com sucessivas guerras internas e constante perseguição antissemita, gerando fome e miséria. Na viagem enfrentam assaltos e epidemias. A mãe requer cuidados especiais porque sofre de paralisia progressiva. Durante o trajeto, a caçula dos Lispectors ouve os sons de diversos idiomas: iídiche e russo, línguas faladas pelos pais, além daquelas dos países por onde passam e tomam residência temporária.
(1922) No mês de fevereiro, de passagem por Bucareste, na Romênia, Pinkouss consegue um passaporte no qual são incluídas a mulher e as filhas, emitido pelo consulado da Rússia. Da Romênia, os Lispectors partem para a Alemanha, onde, no porto de Hamburgo, embarcam no navio Cuyabá, que os levaria ao Brasil. A família chega a Maceió em março desse ano embora Clarice tenha declarado em algumas ocasiões que os Lispectors haviam desembarcado na capital alagoana quando ela contava um dois meses de idade. São recebidos por Zina, irmã de Mania, e seu marido e primo, José Rabin – comerciante próspero da cidade, que enviara a “carta de chamada”, viabilizando o ingresso de Pinkouss, Mania e as meninas no Brasil. Aqui eles adotariam novos nomes. À exceção de Tania, todos, por iniciativa de Pinkouss, mudariam de “identidade”: o pai se tornaria Pedro; Mania, Marieta; Leia se transformaria em Elisa; e Haia – que significa vida, ou clara –, em Clarice. Pedro Lispector passa a trabalhar com Rabin: primeiro como mascate, vendendo mercadorias que o concunhado financiava, e, mais tarde, na fábrica de sabão que o parente criaria contando com a técnica que o pai de Clarice aprendera durante sua viagem de exílio. As duas irmãs mais velhas da futura escritora estudam em escola pública.
(1925) A família muda-se de Alagoas para Pernambuco – Pedro, descontente com os negócios em Maceió, tenta construir sua independência econômica em Recife. Os Lispectors vão viver no bairro da Boa Vista, habitado pela comunidade judaica, que incluía tios e primos do lado materno. Moram em um casarão na praça Maciel Pinheiro  (antiga Conde d’Eu), numa esquina da travessa do Veras com a rua do Aragão. O pai de Clarice trabalha vendendo roupa, novamente como mascate. A doença de Marieta se agrava, o que faz com que Elisa acumule as funções de cuidar da casa, das irmãs e da mãe, paralítica.
(1928) Aos 7 anos, aluna da primeira série do curso primário no Grupo Escolar João Barbalho, que funciona na rua Formosa, perto da Matriz da Boa Vista, Clarice Lispector aprende a ler. Entre seus companheiros de escola, destaca-se Leopoldo Nachbin, futuro matemático, que também será seu colega no ginásio e aparecerá futuramente em “As grandes punições”, conto de memória escrito nos anos 70. A família vive de maneira modesta, as meninas almoçando às vezes suco de laranja aguado e um pedaço de pão. Mais tarde, contudo, a autora se recordaria da infância como um período bom, em que roubava flores e pitangas e tomava banhos de mar em Olinda. E até, em certo Carnaval, ganharia uma fantasia de rosa episódios que contará, respectivamente, em “Cem anos de perdão”, “Banhos de mar” e “Restos do carnaval”, textos publicados na coluna que manteria, aos sábados, a partir de 1967, no Jornal do Brasil. Nessa época, os Lispectors se mudam para o segundo andar do número 173 da rua Imperatriz Thereza Christina – mais conhecida como rua da Imperatriz.
(1930) Matricula-se no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, que funciona no próprio bairro da Boa Vista, e aí termina o terceiro ano do curso primário. Além das disciplinas básicas, estuda hebraico, com Moysés Lazar, e iídiche, com Kalman Burshtein. Assiste a uma peça no teatro Santa Isabel e, inspirada, escreve Pobre menina rica, obra em três atos, cujos originais acaba perdendo.  Morre sua mãe, em 21 de setembro, aos 41 anos. O corpo é sepultado no Cemitério Israelita do Barro, em Recife. Depois da perda, Clarice Lispector, que, como as irmãs, toma aulas de piano, inventa uma música, com parte mais suave e outra mais violenta. Em 15 de dezembro, seu pai dá o primeiro passo no sentido de adotar a nacionalidade brasileira: solicita um documento para provar filiação, lugar e data em que nasceu, profissão, estado civil e tempo de residência no país.
(1931) Pedro Lispector encaminha, em 17 de junho, por meio da Secretaria de Justiça, Educação e Interior do Estado de Pernambuco, pedido de naturalização, registrado no ofício de número 1.747. Em 21 de dezembro, a fim de inscrevê-la no Ginásio Pernambucano, deposita na escola certidão de idade de Clarice, traduzida do russo no dia 3 de dezembro, em Recife, por Arthur Gonçalves Torres. A menina convive com os sete primos de sua mãe, filhos de seu tio-avô Leon Rabin, irmão de sua avó Tania – entre os quais, Dora, grande amiga de Mania, casada com Israel Wainstok –, e com os 18 filhos de tais primos, que moravam, quase todos, em Recife. Por parte de pai, contava com a companhia dos filhos de seus tios Salomão e Mina, que haviam chegado à capital pernambucana no final de 1928: Bertha, Samuel e Pola, além de Vera, já nascida no Brasil. Envia, sem sucesso, vários contos para a seção “O ‘Diário’ das Crianças” do Diário de Pernambuco, e a razão para os escritos não serem publicados é uma só, conforme afirmará mais tarde: suas histórias não falavam de “fatos”, mas de “sensações”.
(1932) Aprovada no exame de admissão, com sua irmã Tania e sua prima Bertha Lispector, ingressa no tradicional Ginásio Pernambucano; fundado em 1825 e instalado em edifício à beira do rio Capibaribe, nele teria professores ilustres, como Olívio Montenegro, de história da civilização, e Agamenon Magalhães, de geografia. Na ocasião da matrícula, seu pai declara que a filha nascera na Rússia. Mora perto da escola, na rua da Imperatriz agora no número 21, segundo andar. Frequenta a livraria Imperatriz, cujo dono era Jacó Berenstein, divulgador de cultura e dono também de uma biblioteca particular. Entre as leituras de Clarice, então, encontram-se Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que pedira emprestado a Reveca, sua colega de escola e filha de Jacó — não sem antes ter de insistir muito para obter a obra, episódio que será narrado no conto “Felicidade clandestina”. Vai a Maceió, em trem da Central Western Brazilian Railroad – CWBR, com o pai. Em Alagoas, revê os primos maternos, filhos dos tios Joel, Zina, Anita e Sara, além dos primos pelo lado do seu tio-avô Leon Rabin.
(1933) Mudam-se para casa própria, na avenida Conde da Boa Vista, 178, no mesmo bairro.
(1934) Tania Lispector, aos 19 anos, formada em comércio, cursa, com a irmã mais nova, a terceira série ginasial; Elisa, 23, trabalha na área comercial e está quase naturalizada brasileira. É então que, em 23 de dezembro, Clarice solicita devolução de documentos depositados no arquivo do ginásio, diante da nova decisão do pai: os Lispectors deixariam Recife, rumo ao Rio de Janeiro.
(1935) Viaja para o Rio com o pai e a irmã Tania, a bordo do vapor inglêsHighland Monarch, na terceira classe (Elisa, compromissada com o trabalho, iria depois). Depois de breve período pouco mais de uma semana em que alugaram um quarto na residência, no Flamengo, de Nathan e Frida Malamud, casal de judeus russos que lhes fora recomendado, os Lispectors se mudam para uma casa antiga, perto do campo de São Cristóvão. Em seguida, ocupam parte da casa de número 341 da rua Mariz e Barros, na Tijuca. Frequenta o quarto ano do curso ginasial no colégio Sílvio Leite, na rua de sua casa, número 258, mesma escola em que se inscrevem as irmãs. Lê romances cor-de-rosa,de M. Delly (pseudônimo dos irmãos Petitjean de la Rosière, Frédéric-Henri e Jeanne-Marie) e Henri Ardel.
(1936) Termina o ginasial, então composto de cinco anos (primeiro ciclo do curso secundário). Nesse período, passa a ler livros selecionados segundo os títulos, numa biblioteca de aluguel do seu bairro entre eles, O lobo da estepe, de Hermann Hesse, que escolheu pensando ser romance de aventuras e que a impressiona muito. Inspirada pela obra, escreve um conto cuja história não acaba nunca e que mais tarde ela destruiria. Lê também Julien Green e Dostoiévski, além de autores da literatura portuguesa, como Júlio Dinis e Eça de Queiroz, e hedonistas brasileiros, como Machado de Assis, José de Alencar, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.
(1937) Objetivando o ingresso na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, começa o curso complementar (nome então dados aos dois últimos anos do secundário) ministrado pela própria instituição. No ano seguinte, passaria para o complementar do colégio Andrews, que ficava na praia de Botafogo, 308. Ao se inscrever nessa nova escola, declara-se nascida em Pernambuco.Paralelamente aos estudos, dá aulas particulares de matemática e português, aprende datilografia e frequenta a Cultura Inglesa.
(1939) Começa o curso superior na Faculdade Nacional de Direito. Mora, então, na rua Lúcio de Mendonça (atual Albert Sabin), 36-B, casa 3, na Tijuca. Trabalha como secretária, sucessivamente em um escritório de advocacia e em um laboratório, além de fazer traduções de textos científicos para revistas. Pedro Lispector solicita audiência ao promotor de justiça, a fim de obter justificação de idade da filha caçula. O documento seria necessário quando Clarice precisasse comprovar data de nascimento, filiação e naturalidade, para pleitear a então já desejada cidadania brasileira. A audiência ocorre em 6 de outubro.
(1940) Em 25 de maio, sai no semanário Pan, dirigido pelo escritor Tasso da Silveira, o conto “Triunfo”. A narrativa traz temas que serão recorrentes na ficção de Clarice: as dificuldades do relacionamento amoroso, relatadas a partir das sensações de uma mulher que, abandonada pelo marido, em sua solidão descobre a força interior. Pelo que se tem registro, é a primeira vez que um texto ficcional de Clarice Lispector ganha lugar na imprensa, apesar de a autora haver dito, em reiteradas ocasiões, que um outro conto, escrito “aos 14 ou 15 anos”, ainda sob a influência de O lobo da estepe, saíra na Vamos Lêr!, revista que pertencia ao grupo A Noite e era editada por Raymundo Magalhães Júnior. É possível que a autora se tivesse confundido com outro conto, este sim, publicado na revista de Magalhães Júnior, em 10 de outubro – “Eu e Jimmy”, centrado ainda na complexidade das relações afetivas. Nesse mesmo ano, escreveria vários outros contos: “A fuga”, em que uma mulher experimenta o desejo de escapar de uma união conjugal estagnada; “História interrompida”, sobre a relação amorosa como processo destrutivo; e “O delírio”, em que um escritor transforma a experiência da doença em “material poético”. Tanto “Triunfo” como “Eu e Jimmy” permanecem até hoje fora das obras da autora; os outros textos citados apareceriam no volume póstumo A bela e a fera, de 1979. A produção ficcional se dá, em grande parte, após a morte de Pedro Lispector, a 26 de agosto quando ele contava 55 anos de idade, em decorrência de uma cirurgia de vesícula malsucedida. As três irmãs passam a morar juntas, na residência de Tania que se casara em 1938, com William Kaufmann –, situada à rua Silveira Martins, 76, casa 11, no bairro do Catete. Insatisfeita com o tipo de trabalho de escritório que vinha realizando, Clarice busca empregar-se no Departamento de Imprensa e Propaganda DIP, órgão do governo Getúlio Vargas criado em dezembro do ano anterior. Procura o diretor, Lourival Fontes, que a encaminha para o posto de tradutora. Diante, porém, da inexistência de vagas para a função, Clarice Lispector acaba ganhando o lugar de redatora e repórter da Agência Nacional. Começava aí uma carreira paralela: o jornalismo. Sua primeira entrevista publicada seria justamente com o escritor Tasso da Silveira (na Vamos Lêr! de 19 de dezembro). Na redação, convive com veteranos – Antonio Callado, José Condé, Octávio Thyrso e Francisco de Assis Barbosa. E também com o mineiro Lúcio Cardoso, por quem desenvolve grande amizade, que se converteria em paixão não correspondida: o escritor era homossexual. Com o primeiro salário de jornalista, adquire um livro de contos de Katherine Mansfield, Bliss – Felicidade, na tradução de Erico Verissimo editada pela Livraria do Globo. Clarice, que não conhecia o trabalho da ficcionista neozelandesa, compra o volume ao perceber, folheando-o, uma profunda afinidade com Mansfield: “Mas esse livro sou eu!”, teria pensado diante da coletânea, conforme relembraria muitas vezes.
(1941) Enquanto cursa o terceiro ano de direito, continua a publicar na imprensa tanto textos jornalísticos como literários. Em 19 de janeiro, sai a reportagem “Onde se ensinará a ser feliz”, no Diário do Povo, de Campinas (SP), sobre inauguração, pela primeira dama, Darcy Vargas, de um lar para meninas carentes. Em agosto, mais duas histórias de sua autoria saem em revistas; no dia 9, é a vez de “Trecho”, na Vamos lêr! – nela, se concentra no relato detalhado da expectativa de uma mulher que espera por seu companheiro num bar. Já no dia 30, o semanário Dom Casmurro publica “Cartas a Hermengardo”, em que a protagonista aconselha um homem a saber ouvir seus sentimentos. Escreve também outros contos, que serão publicados apenas em A bela e a fera: “Gertrudes pede um conselho” (setembro), “Obsessão” (outubro) e “Mais dois bêbedos” (dezembro). Colabora, ainda, com a revista dos estudantes de sua faculdade, A Época, escrevendo os artigos “Observações sobre o fundamento do direito de punir”, em agosto, e “Deve a mulher trabalhar?”, em setembro. Com Lúcio Cardoso (de quem continua a gostar, como indica carta enviada em julho, de Belo Horizonte), Otávio de Faria e Adonias Filho, passa a frequentar o bar Recreio, na Cinelândia, ponto de encontro de autores como Vinicius de Moraes, Cornélio Pena e Rachel de Queiroz. Apesar de convencida de que não exerceria a profissão, estuda com afinco para concluir o curso de direito.
(1942) Passa férias de janeiro na fazenda Vila Rica, em Avelar, no Rio de Janeiro, de onde escreve para Maury Gurgel Valente colega da faculdade com quem começara a namorar e para Lúcio Cardoso. Ganha, em 2 de março, seu primeiro registro profissional, como redatora do jornal A Noite, cujo quadro integrava desde fevereiro; o salário mensal anotado, de 600 mil réis, passaria a 800 cruzeiros no ano seguinte (em novembro de 42, reforma monetária instituiu o cruzeiro como nova moeda; mil réis passaram a valer 1 cruzeiro). Lê, com o amigo Francisco de Assis Barbosa, textos de Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade. Encaminha, em 2 de março, três meses após completar os necessários 21 anos, pedido de naturalização. Ao saber que havia um decreto assegurando que era possível obtê-la antes do período, de um ano, previsto por lei, solicita, em carta de 3 de junho, dirigida ao presidente Getúlio Vargas, a dispensa de tal prazo. Acompanhando sua carta, outra, de André Carrazzoni: o diretor do jornal A Noite, pedia a um funcionário do Ministério da Justiça, Andrade Queiroz, atenção especial ao caso. O silêncio se prolongaria até 19 de outubro, quando o ministro interino daquela pasta, Alexandre Marcondes Machado, solicita ao presidente seu parecer; Vargas responde secamente, perguntando por que Clarice, residente havia tantos anos no Brasil, só naquele momento pedia a naturalização, e com tanta urgência. Ela volta a escrever ao mandatário, no dia 23, explicando que o fizera assim que lhe fora possível, após sua maioridade legal. Além disso, é instada a desfazer incoerência nos dados declarados na abertura do processo – Clarice Lispector retifica, então, quedesembarcara em Maceió, e não em Recife (como haviam dito, ela e suas testemunhas, na primeira audiência, em 10 de abril). Como provas do que dizia, anexa uma declaração de que não existia lista de passageiros que chegavam àquela cidade alagoana antes de 1925, assinada pela Delegacia Auxiliar da Polícia da Capital, e outra, confirmando o desembarque, firmada por seu primo Henrique, filho de Zina e José, que receberam os Lispectors em Maceió na ocasião. Para além dos entreveros burocráticos, esse se revelaria um ano intelectualmente rico para Clarice, que, por exemplo, tomou cursos de antropologia brasileira e psicologia, ambos na Casa do Estudante do Brasil, ao mesmo tempo em que frequentava a faculdade de direito. Mas, acima de tudo, porque em 1942 ela escreveria seu primeiro romance, elaborado de março a novembro, tendo sido concluído em mês de isolamento numa pensão da rua Marquês de Abrantes, no Botafogo. O título, Perto do coração selvagem, seria sugerido por Lúcio Cardoso; anteriormente, ele dissera que, se todas as anotações esparsas acumuladas no que já se constituía o “método Clarice Lispector” – falavam do mesmo assunto, então o romance estava escrito, bastando reuni-las.
(1943) Após mais de dez meses de espera, obtém, em 12 de janeiro, a naturalização, assinada pelo presidente Getúlio Vargas e por Alexandre Marcondes Filho, então ministro do Trabalho e da Justiça. No dia 23 de janeiro, em cerimônia civil, casa-se com Maury, cônsul de terceira classe desde concurso prestado em 28 de agosto de 1940. O casal mora temporariamente na casa dos sogros de Clarice, Mozart e Maria José Gurgel Valente, na rua do Russel, 102, apto. 302, no bairro da Glória — mudando-se, em seguida, para a rua São Clemente, 403, em Botafogo. Em 3 de maio, ganha carteira profissional do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, registrada como redatora da empresa A Noite. No final do ano, termina, com o marido, o curso de direito. Não chegam, entretanto, a colar grau: em 7 de dezembro, conforme notícia no Diário Oficial, Maury Gurgel Valente seria designado agente de ligação entre o Ministério das Relações Exteriores e as autoridades estrangeiras, residentes ou em trânsito, em Belém do Pará. Antes de mais uma vez fazer as malas e depois de duas tentativas fracassadas de edição junto à Amerique Edite e à José Olympio –, Clarice Lispector consegue publicar Perto do coração selvagem. O livro sai com tiragem de mil exemplares pagos pela editora A Noite, que acede ao pedido da jornalista do mesmo grupo endossado por Francisco de Assis Barbosa e colegas de redação em troca da renúncia aos direitos autorais.
(1944) Em sua carteira profissional de jornalista, datada de 11 de janeiro, adota o nome de casada: Clarice Gurgel Valente. Pouco depois, no dia 19, muda-se para Belém com o marido, enviado como vice-cônsul para suas novas funções. Lá permanecem por seis meses. Na capital paraense, a escritora se impacienta com a falta de ocupação, que ameniza lendo. “Tenho lido o que me cai nas mãos”, diria, em carta enviada do Central Hotel, em 6 de fevereiro, ao amigo Lúcio Cardoso. Essas leituras incluem Flaubert (Madame Bovary), Rainer Maria Rilke (Cahiers de Malte Laurids Brigge) e trechos de Proust, por sugestão do professor Francisco Paulo Mendes, amigo feito em Belém, a exemplo de Benedito Nunes, que se tornaria um especialista em sua obra. Eventualmente, também procuraria trabalhar tentando dar corpo a um novo romance, ou escrevendo para a imprensa, como na ocasião em que, apesar de licenciada das funções jornalísticas, reportaria para A Noite a passagem de Eleanor Roosevelt, primeira-dama dos Estados Unidos, pela cidade. Ao mesmo tempo, toma conhecimento em Belém dos ecos da recepção a seu primeiro romance. Um mês após a publicação de Perto do coração selvagem, a imprensa especializada começava a se manifestar a respeito do livro. Sérgio Milliet escreve uma crítica entusiasmada para sua coluna “Últimos Livros”, do diário O Estado de S. Paulo, em 15 de janeiro, relatando desde seu enfado diante do “estranho” nome da autora que acreditava se tratar de pseudônimo até a surpresa que a leitura lhe causara. Muitos outros nomes aplaudiriam a estreia de Clarice, entre os quais Guilherme Figueiredo (Diário de Notícias, 23 de janeiro), Roberto Lyra (A Noite, 30 de janeiro), Breno Accioly (O Jornal, 30 de janeiro), Lauro Escorel (A Manhã, 2 de fevereiro), Dinah Silveira de Queiroz (Jornal de Alagoas, 27 de fevereiro), além dos amigos Lêdo Ivo (Jornal de Alagoas, 25 de fevereiro) e Lúcio Cardoso (Diário Carioca, 12 de março), para citar só alguns. As resenhas continuariam a aparecer até o segundo semestre do ano, com destaque para a atenção dada ao livro por Antonio Candido na Folha da Manhã: ele primeiro o cita, ao final de um artigo (Língua, pensamento, literatura, de 25 de junho), para dizer que o abordará exclusivamente em próximo texto, como de fato o faz, em 16 de julho. Clarice é avisada da intenção do crítico, entre um e outro artigo, por Lêdo Ivo, que lhe escreve em 5 de julho. Uma crítica que não lhe cai bem é a de Álvaro Lins que, tendo tido acesso aos originais por indicação de Assis Barbosa, pusera reparos ao livro mesmo antes de vê-lo editado. Lins, um dos mais reconhecidos críticos de sua época, publicara em 11 de fevereiro, no Correio da Manhã, texto em que, além de qualificar Perto do coração selvagem de “experiência incompleta”, filiava-o à linha de Virgínia Woolf e James Joyce, dando como certa a influência dos autores britânicos sobre Clarice. Em carta à irmã Tania, escrita a 16 de fevereiro, a escritora diria que a crítica de Álvaro Lins a “abateu e isso foi bom de certo modo”, mas queixa-se da comparação: “o diabo do homem só faltou me chamar de ‘representante comercial’ deles” (mais de uma vez diria não ter lido nenhum dos dois ficcionistas, sendo o título de seu romance de fato tirado de Joyce, mas por influência de Lúcio Cardoso, conforme foi mencionado antes). Após uma curta temporada do casal no Rio de Janeiro, no dia 5 de julho Maury foi designado para servir como vice-cônsul em Nápoles. No dia 13, o casal janta, a título de despedida, com nove pessoas no Central Hotel. Às 6h do dia 19, um avião da Panair levantou voo dando início à viagem Rio-Nápoles e a um longo período quase 16 anos longe do Brasil. Chegam primeiro a Natal, onde são recebidos na base norte-americana de Panamirim. Lá, o cônsul, Narbal Costa, Maury e o outro vice-cônsul, Luiz Porto, permaneceriam cinco dias, à espera de um documento necessário para prosseguir viagem em avião de linha norte-americana. Maury parte no dia 24, enquanto Clarice esperava, num hotel da capital potiguar, para seguir viagem – pois os líderes da missão deviam chegar antes e instalar o consulado. Ela embarca, enfim, no dia 30 de julho, com destino a Portugal, passando por várias escalas na África (Libéria, Guiné-Bissau e Senegal). Na estada de dez dias em Lisboa, onde foi recebida pelo diplomata Ribeiro Couto, conheceria os escritores portugueses João Gaspar Simões, Natércia Freire e Maria Archer. Em seguida partiria para o Marrocos, como correio diplomático, levando carta de Ribeiro Couto para Vasco Leitão da Cunha, que naquela oportunidade atuava como embaixador brasileiro em Roma e estava temporariamente em Casablanca. De lá vai para Argel, sendo hospedada, por 12 dias, na Delegação Brasileira onde o cunhado, Mozart Gurgel Valente, também diplomata, estava em serviço. Embarca para Roma em 25 de agosto, acompanhada de Mozart e de Leitão da Cunha, ambos removidos do consulado em Argel para a capital italiana. Viaja primeiro de navio, comboiado por dois destroieres, até Taranto; não larga um instante o salva-vidas obrigatório, como relataria a Lúcio Cardoso: sente o perigo e os cuidados necessários em tempo de Segunda Guerra Mundial. De Taranto a Nápoles, voa em avião particular do comandante em chefe das forças aliadas no Mediterrâneo. Em Nápoles, todos os membros da delegação brasileira moram no apartamento em que se instalara o consulado – rua Gianbattista Pergoless,1. “Isso aqui é lindo”, diz da cidade, ainda que considere que “as pessoas parecem morar provisoriamente” e tudo “tem uma cor esmaecida” sempre segundo missiva a Cardoso, na qual narraria em detalhes sua longa viagem. Nela diria também que seu segundo romance, O lustre, iniciado no Rio, em março de 1943, estava terminado e pede ao amigo que tentasse publicação pela José Olympio. “Se eles fizerem qualquer tipo de oposição [...], então Tania, minha irmã, se encarregará de arranjar algo mais modesto e possivelmente pago mas rápido, rápido, porque me incomoda um trabalho parado; é como se me impedisse de ir adiante.” Essa carta, escrita em meados de setembro, seria uma das primeiras da intensa correspondência que Clarice Lispector manteria com amigos e família. Recebe notícia de que ganhara o prêmio Graça Aranha com Perto do coração selvagem, considerado o melhor romance de 1943, premiação que agradece por meio de telegrama, de 18 de outubro, do cônsul Narbal Costa à Secretaria de Estado. Pela ocasião, Lauro Escorel escreve um segundo artigo sobre o livro, em A Manhã (29 de outubro). Conhece Rubem Braga, que chega a Nápoles em outubro, acompanhando o 2º. Escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB), como correspondente de guerra, com a missão de enviar suas crônicas para o Diário Carioca e que lá permanece até abril do ano seguinte. Relê A porta estreita, de André Gide; encanta-se com as Cartas de Katherine Mansfield e com Proust, que lê em francês apesar de a maioria das leituras, por força das circunstâncias, ter de ser em italiano.
(1945) Intensifica os contatos com os amigos do Brasil, que lhe enviam livros e notícias. Por meio das cartas do período, sabemos que lê Poussière, Santa Teresa de Jesus e Emily Brontë, esta em tradução, enviada por Elisa, de Lúcio Cardoso – que lhe manda a novela Inácio, a qual Clarice comentaria entusiasticamente em março. De Manuel Bandeira, recebePoesias completas (provavelmente a 2a. edição, de 1944) e Poemas traduzidos. Trabalha em hospital americano, dando assistência a brasileiros feridos na guerra e, em agosto, recebe ofícios assinados por médicos da Força Expedicionária Brasileira que agradecem o serviço prestado. Enquanto posa para Giorgio De Chirico, no estúdio romano do pintor, ouve a notícia do final da guerra; era o dia 9 de maio, e Clarice Lispector estranha a reação de todos, que não manifestam uma esperada euforia. Ainda em Roma, conhece o poeta Giuseppe Ungaretti que, em setembro, lhe enviaria carta contendo traduções de páginas escolhidas de Perto do coração selvagem, feitas por ele e por sua filha, a serem publicadas na revista Prosa. Viaja pela Itália vai a Florença, Veneza e de novo a Roma e também visita Córdoba, na Espanha. Em um passeio por Nápoles, se encanta com um cão vira-lata e o compra; batizado Dilermando, é muito querido por Clarice, que lamenta, em carta de setembro endereçada a Tania, quando ele adoece, aparentemente de maneira incurável. Quando os Gurgel Valentes se mudaram da Itália, o cão não pôde seguir viagem com eles. O abandono do estimado animal está na raiz de um dos contos da escritora, “O crime”, que depois ganharia o título de “O crime do professor de matemática”. Em carta de 23 de novembro, Manuel Bandeira comenta que espera ansioso o segundo romance e lhe pede alguns poemas, dos quais tinha conhecimento, para publicação numa antologia. Sobre os textos, hoje desaparecidos, Bandeira tecera comentários não muito elogiosos, que desagradaram a autora e dos quais o poeta se dizia arrependido. “Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal as minhas palavras [...] faça versos, Clarice, e se lembre de mim.” Após ter obtido notas máximas no “boletim de merecimento”, seu marido é promovido, em dezembro, a cônsul de segunda classe. Também em dezembro, no Brasil, a Livraria Agir Editora fundada no ano anterior, entre outros, pelo crítico literário Alceu Amoroso Lima, que acompanhava atentamente a produção de Clarice Lispector publica O lustre.
(1946) Enviada como correio diplomático do Ministério das Relações Exteriores, visita o Rio no início do ano, entre janeiro e março, aproveitando a oportunidade para divulgar O lustre. O livro seria comentado por Sérgio Milliet (em fevereiro) e novamente com muitas reservas e chateando a autora por Álvaro Lins (no mês de maio). A obra é um tanto quanto ofuscada pela estreia do diplomata João Guimarães Rosa na literatura, com Sagarana, que captava a atenção da crítica. É apresentada por Rubem Braga a Fernando Sabino. Estabelece rapidamente amizade com o jovem mineiro já então autor de um livro de contos, Os grilos não cantam mais (1941), e de uma novela, A marca (1944) –, que, por sua vez, a introduz a Otto  Lara Resende, Paulo Mendes Campos e, mais tarde, a Hélio Pellegrino. Em 8 de março, o Diário Oficial publica a remoção de Maury para Berna. No dia 21, Clarice deixa o Brasil, de volta à Itália, onde o marido preparava a viagem para a Suíça, que se daria no começo do mês seguinte. A escritora diz adeus a Dilermando e, com o marido, se instala no hotel Bellevue-Palace, antes de se mudar para a nova residência, na rua Ostring, 58. A posse de Maury como segundo-secretário aconteceria a 15 de abril, por mãos do ministro Mário Moreira da Silva, chefe da legação do Brasil na cidade. “É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna. É uma fazenda”, diria a autora em carta às irmãs, enviada em maio. Passa alguns dias em Paris, onde convive com o casal Wainer, que residia na capital francesa; Bluma, mulher do jornalista Samuel, desejando bons auspícios, envia-lhe um cartão com um urso, o símbolo de Berna. Segundo Bluma, o animal iria “tomando conta das várias Clarices”. Além da amizade com a mulher de Samuel Wainer, também a relação com Sabino (que se mudaria nesse ano para Nova York, para trabalhar no escritório comercial do Brasil) se intensifica por meio de cartas – a correspondência duraria até janeiro de 1969, e seu principal assunto, junto às novidades das vidas em países estrangeiros, são as respectivas angústias de autores novatos: trocam textos e sugestões. Clarice Lispector, além de contos, escreveria, a partir desse ano, A cidade sitiada, seu terceiro romance. Manuel Bandeira e Lúcio Cardoso continuam na lista de seus destinatários, à qual também se somam Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, que lhe enviam notícias da vida política, social e intelectual do Brasil. Recebe notícia, de Lauro Escorel, a respeito do artigo escrito por Gilda de Mello e Souza sobre O lustre e publicado em O Estado de S. Paulo, a 14 de julho. Tem dificuldade em se adaptar à vida de Berna e se distrai indo ao cinema quase diariamente; também lê muito (Henrik Ibsen, Theodore Dreiser, Jean Cocteau, Simone de Beauvoir) e frequenta a biblioteca pública; passeia pelo Jardim Zoológico, viaja a Lausanne, assiste a concertos: mas não consegue escrever, e a ansiedade cresce, conforme se queixaria às suas irmãs e a Fernando Sabino. Apesar disso, publica, no suplemento “Letras e Artes” do jornal carioca A Manhã, os contos “O crime” (25 de agosto) e “O jantar” (13 de outubro). A convite de Bluma, os Gurgel Valentes passam o fim de ano com os Wainer na França.
(1947) Permanece de férias em Paris até 4 de fevereiro e lá convive amigavelmente com seu ex-professor da faculdade, San Tiago Dantas, o escritor Augusto Frederico Schmidt e sua mulher, Yeda. Após a volta, em março, passa a morar no número 48 da Gerechtigkeitgass. Em meio ao contínuo sentimento de inadaptação, recebe visita de Bluma e, em setembro, viaja pela Espanha e por Portugal. Lúcio Cardoso envia, por Irmgaard, amiga comum de ambos que passa alguns dias na Suíça, carta, acompanhada de seu livro Anfiteatro, lançado no ano anterior. Clarice ressalta, em missiva enviada a Lúcio a 23 de junho, sua admiração pelas personagens femininas da obra, “as pecadoras mais violentas e inocentes”, e a preferência pela cena que dá título à novela, “plásticae visível”.
(1948) O ano se abre com uma grande novidade: em carta a Bluma – que voltara a viver no Brasil em meados do ano anterior –, a escritora comunica estar esperando seu primeiro filho. Enquanto trabalhava para pôr o ponto final em seu terceiro romance que lhe custara os últimos três anos, tendo sido “copiado” pela autora mais de 20 vezes, método que usava ao elaborar um livro –, aumentava também a produção de contos: escreveria nesse ano “Mistério em São Cristóvão” e “Os laços de família” (além de nova versão para “O crime”, já rebatizado como “O crime do professor de matemática”). Um ponto comum a esses escritos, o qual se tornaria marca de sua ficção, é o fato de personagens serem acometidos por um repentino insight – ou epifania – diante de fatos aparentemente banais. Concluído o livro, manda então à irmã Tania o datiloscrito de A cidade sitiada, para que seja entregue a Lúcio Cardoso, mas desincumbindo o amigo de arrumar editora – isso porque a Agir recusara o volume. No Rio, Elisa – que já lançara um primeiro romance em 1945, Além da fronteira – publica outro, No exílio; de caráter autobiográfico, o livro conta a história da sua família, com o casamento dos pais na Ucrânia, a chegada ao Nordeste, a mudança para o Rio de Janeiro, culminando com a proclamação do Estado de Israel, que ocorrera em 13 de maio – episódio político que motiva a elaboração da obra e do qual nunca a ficção de Clarice Lispector se ocuparia. Nasce, em 10 de setembro, seu primeiro filho, Pedro. Em emocionada carta, datada de 5 de novembro, acata os comentários de Tania sobre A cidade sitiada e agradece a compreensão que já não esperava para o livro – o qual qualificara de “cacete”. A nova família se muda, antes do fim de ano, para o número 4 da Reiterstrasse. A escritora se dividia entre os cuidados com o bebê e o aprendizado de tricô e modelagem, enquanto ainda tentava, em vão, editar seu terceiro romance. 
(1949) Em 17 de março, é publicada no Diário Oficial a remoção de Maury Gurgel Valente para a Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro, onde seria estagiário. Clarice Lispector, enfim, concretizaria seu almejado retorno ao Brasil apesar de desconhecer quanto duraria a permanência. Na viagem rumo ao Rio, a escritora aproveita uma parada em Recife para visitar tios e primos e rever lugares de sua infância. Os Gurgel Valentes fixam residência à rua Marquês de Abrantes, 126, apartamento 1.004, no bairro do Flamengo. A cidade sitiada é finalmente lançado, encontrando acolhida outra vez na editora A Noite. A imprensa pouco se manifesta sobre o novo título; embora reafirmasse o talento de Clarice Lispector, Sérgio Milliet nota um traço de “rococó” que mascarava a estrutura do romance.
(1950) Convive com os amigos, especialmente Sabino, Lúcio Cardoso, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos; este a entrevista para o Diário Carioca, a partir de um encontro na casa da escritora, resultando o texto publicado sem assinatura no primeiro perfil mais detalhado da autora a sair na imprensa, o qual posteriormente serviria de introdução à edição francesa de Perto do coração selvagem, lançada pela Plon. No Rio, a escritora continua a se dedicar aos contos: são desse ano “Começos de uma fortuna”, “Uma galinha” e “Amor”. Quando a convivência com a cidade já se encontrava restabelecida, chega novamente a hora de partir: Maury integraria a delegação brasileira na Conferência Geral de Comércios e Tarifas em Torquay, na Inglaterra. O grupo parte com certo atraso, embarcando no dia em que se inaugurava o encontro, o qual contava com 23 países contratantes do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio). A permanência dos Gurgel Valentes na Inglaterra duraria cerca de seis meses – primeiro, instalados no hotel Beaufort Lodge e, a partir de novembro, numa casa de família. Assim Clarice define suas impressões do lugar, em carta de 23 de outubro dirigida a Tania: “Aqui tipicamente cidade pequena, tem cheiro de Berna. Sem ser por pouco tempo, seria chatíssimo. Todo o mundo é mais ou menos feio, com chapéus horríveis, modas horríveis nas vitrinas. […] De qualquer modo, apesar de Torquay ser tão chatinho, gosto da Inglaterra”. O tempo passa entre os cuidados com o filho, as dificuldades com babás e idas ao cinema. Também conhece Londres, onde frequenta teatros. Numa das idas à cidade, entre o fim deste ano e o começo do seguinte, seria internada: sofrerá um aborto espontâneo. João Cabral de Melo Neto, que já se tornara um dos correspondentes da escritora na primeira estada na Europa, e então vice-cônsul na capital inglesa, está a seu lado no hospital, quando volta a si.
(1951) O dia 24 de março marca mais um regresso de Clarice Lispector ao Brasil. Profissionalmente, dedica-se aos contos, recebendo convite para publicar uma seleta de seis deles na coleção Cadernos de cultura, editada pelo Ministério da Educação e Saúde e dirigida por Simeão Leal. A autora escolhe “Mistério em São Cristóvão”, “Os laços de família”, “Começos de uma fortuna”, “Amor”, “Uma galinha” e “O jantar”. Nesse ano, Clarice sofreria uma grande perda: Bluma descobria um câncer e morreria em pouco tempo. A escritora acompanhou a amiga separada de Samuel Wainer desde a volta ao Brasil, três anos antes até seus últimos dias.
(1952) Durante sua estada no Rio, Clarice Lispector desenvolveria também uma nova atividade: sob o pseudônimo de Teresa Quadros, assina para o novo semanário Comício – do qual Rubem Braga, autor do convite, era um dos fundadores uma coluna feminina, “Entre mulheres”, publicada pela primeira vez em 15 de maio.A primeira impressão do volume encomendado por Simeão Leal, intitulada Mistério em São Cristóvão, teria de ser recolhida, pois seu nome saíra grafado com dois “s”; a definitiva apareceria como Alguns contos. Sérgio Milliet, sempre atento às mossas da autora, consideraria que, no gênero, ela conseguia evitar o preciosismo para o qual teria resvalado no terceiro romance; ao mesmo tempo, sublinharia que, no espaço mais curto, Clarice não conseguia estruturar “solidamente” o que queria dizer. Em junho, descobre-se grávida, mas então já sabe que também o segundo filho nasceria no estrangeiro, uma vez que o estágio de Maury na Secretaria de Estado estava prestes a terminar. No dia 3 de julho, a autora e o marido colam grau na faculdade de direito – a formalidade fora adiada pelas sucessivas viagens. E, dois meses depois, embarcam para o novo destino, os Estados Unidos, iniciando sua mais longa permanência no exterior: sete anos, interrompidos apenas por algumas viagens rápidas ao Brasil. Viajam no dia 3 de setembro, a bordo de um navio inglês, com destino a Nova York, levando a babá Avani Cardoso Ferreira dos Santos, de 16 anos. De lá vão para Washington, onde o marido de Clarice assume o posto de segundo-secretário, em 24 de setembro, perante o embaixador Walther Moreira Salles. Convivem com Lauro Escorel — ele também segundo-secretário — e sua mulher, Sara, que, como a escritora, estava grávida. A última coluna de Clarice Lispector/Teresa Quadros sai com o derradeiro número do breve Comício, em 17 de outubro. Do outro lado do mundo, a escritora mais uma vez retomava as notas, iniciadas na Inglaterra, para aquele que seria seu quarto romance: A veia no pulso, posteriormente, A maçã no escuro.
(1953) Nasce, a 10 de fevereiro, seu segundo filho, Paulo, em Washington. Recebe a visita de Tania, que vai aos EUA conhecer o novo sobrinho. Com a chegada de Erico Verissimo à capital norte-americana para dirigir o Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos (substituindo Alceu Amoroso Lima), surge uma sólida amizade  dos Gurgel Valentes com o escritor gaúcho e sua família – Mafalda, Clarissa e Luis Fernando. Em julho, com o propósito de ter suas próprias economias, apresenta a Fernando Sabino o projeto de escrever uma coluna para a revistaManchete (para onde o autor, com outros amigos de Clarice, migrara após o fim de Comício) e, em agosto, recebe sinal positivo à ideia. Depois de alguma correspondênciaa respeito em que se debate especialmente a necessidade que a escritora exprime de assinar sob pseudônimo, querendo inclusive “ressuscitar” Teresa Quadros decide-se que a partir de outubro ela escreveria semanalmente sobre o assunto de sua preferência, referente aos Estados Unidos ou não. Clarice Lispector mandaria ao menos três crônicas, as quais, porém, não chegam a sair na revista. Ao passo que escreve com dificuldade alguns contos, além das notas para o novo romance –, segue a rotina da vida diplomática, convivendo com novos funcionários, que chegam depois da saída do embaixador Walther Moreira Salles, substituído em agosto por João Carlos Muniz. Entre as amizades cultivadas, estão Lauro e Sara Escorel, que entretanto deixam Washington nesse ano, e Maria Eugênia, mulher de Lauro Soutello Alves — o qual, em dezembro, ao mesmo tempo em que Maury se torna primeiro-secretário, é promovido a segundo secretário. Também para Clarice dezembro traz uma novidade importante: Perto do coração selvagem seria traduzido para o francês – pela primeira vez uma obra sua aparecia em outro idioma. Os Gurgel Valentes compram uma casa, onde a família passa a viver, no número 4.421 da Ridge Street, em Chevy Chase, localidade vizinha a Washington-DC e pertencente ao estado de Maryland.
(1954) A tradução de Perto do coração selvagem preocupa a autora, que recebera uma prova — cuja forma Erico Verissimo reconhecera como de um estágio definitivo do processo editorial. Em carta às irmãs, listaria muitos erros da versão feita por Denise-Teresa Moutonnier, como traduzir “porcaria” por “excrementos” ou dizer “a criada preta” onde Clarice Lispector pusera somente “criada”. Escreve ao editor, queixando-se, mas Pierre de Lescure responderia que enviara várias cartas e inclusive o texto num estágio anterior: nada disso chegara às mãos da escritora, como ela diria em nova missiva. Clarice, então, decide esquecer que o livro fora traduzido, já que não havia o que fazer a respeito. Em julho, viaja para o Brasil com os meninos, ficando até setembro. Carta de agosto enviada a Mafalda dá conta de que o Rio mudou, mas continua “selvagem”, “inesperado”. Enquanto se encontra na cidade, Simeão Leal encomenda-lhe mais contos para integrar futuro livro. Ao voltar aos Estados Unidos, abandona, temporariamente, a elaboração do romance que seria A maçã no escuro (àquela altura ainda sem título, mas já mencionado pela autora a Sabino, no começo desse ano) e dedica-se à solicitação de Leal, que lhe dera um adiantamento. Ao longo dos cinco meses seguintes, escreveria sete contos – “Feliz aniversário”, “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, “A imitação da rosa”, “A mensagem”, “Os desastres de Sofia”, “Tentação”, “Os obedientes”, além de reelaborar “O crime do professor de matemática”. Também no regresso do Brasil, recebe da Plon Prés du coeur sauvage. Envia em dezembro um exemplar a Elisa; contudo não lê a íntegra da tradução de seu primeiro livro.
(1955) Retoma as notas para o novo romance, depois de concluir o trabalho com os contos que entusiasmaram Fernando Sabino, a quem haviam sido encaminhados por intermédio de Tania, para que fossem entregues ao editor. O amigo, em carta de 30 de março, os considera “obra de arte”. Escreve mais dois contos, “Preciosidade” e “A menor mulher do mundo”.
(1956) Em 7 de maio, comunica a Fernando Sabino que dá por terminado o romance que estava escrevendo (apesar de se dizer mais interessada no conto “O búfalo”): punha fim ao trabalho depois de “umas oito cópias”, como já havia dito em outra carta, de 17 de março, enviada às irmãs. Erico Verissimo é um dos primeiros leitores do livro, provisoriamente chamado A veia no pulso. Clarice Lispector pede a Sabino sugestões de editoras a quem o romance pudesse interessar, avisando que tem “umas 400 páginas” (em junho, ele responderia que contatara Agir e Civilização Brasileira). A autora diz também que lhe enviaria o texto e pergunta casualmente sobre Simeão Leal querendo saber da publicação de seus contos. A produção no gênero, aliás, se incrementa. Havia o já mencionado “O búfalo” – história que diria nascida de uma experiência real de ódio (“Era mais uma necessidade de ódio”, na definição dada em outra missiva) e que impressiona muito a amiga Mafalda e Arnaldo Pires, funcionário da União Pan-Americana. E Clarice daria a Fernando Sabino notícia de outros dois textos: um “sobre um pintinho e uma menina” (futuramente “A legião estrangeira”) e outro “sobre a menor mulher do mundo”. Paralelamente ao romance e aos contos, Clarice Lispector também escreveria, a pedido do filho Paulo, uma historieta sobre um dos coelhos dos meninos, que escapara da gaiola em que era mantido – tal narrativa, que se transformaria mais tarde em seu primeiro livro infantil, é redigida em inglês, para que a empregada possa lê-la para o caçula. Volta ao Brasil, com os filhos, em viagem de férias, entre junho e setembro – mês, por sinal, em que os Verissimos regressavam ao país, mas não sem que antes Mafalda e Erico aceitassem ser padrinhos de Pedro e Paulo, com a “condição única” de “continuarem a gostar deles”, como diria Clarice em bilhete enviado no dia 7 ao casal. Durante todo o ano, o empenho para publicar os dois livros recém-concluídos ocuparia Clarice Lispector. Ainda em setembro, ela receberia carta de Sabino com sugestões para o novo romance (que a escritora lhe mandara em julho). Na missiva seguinte, ele diria que, apesar do reiterado interesse de Ênio da Silveira, “se não desse certo”, poderiam tentar outra editora (José Olympio ou Martins). Frisa também que acha que todas as suas propostas de mudança são pouco importantes. A autora, então, conclui que não é o caso de alimentar a pressa e – depois de fase de certo desânimo, achando já o livro “mal escrito” – retoma as sugestões do amigo, acatando quase todas. Terminaria por enviar de volta a Fernando Sabino, em carta de 12 de novembro, 204 emendas feitas e 83 páginas reescritas, porém continuaria hesitante em relação ao título definitivo – tanto Clarice como Fernando não gostavam de A veia no pulso. No Brasil, seus amigos – principalmente Sabino e Rubem Braga – se desdobravam para ver editados não só o romance mas também o volume de contos. Decorre do esforço em atender ao afã da escritora o que parece ser um mal-entendido. Fernando pediria a Rubem (que visitara Clarice em novembro) que contatasse a José Olympio, talvez por saber que agradaria à amiga sair pela prestigiosa editora, que nunca aceitara livro seu. Braga interpreta o pedido como falta de “decisão” da Civilização Brasileira, que antes se manifestara favorável a publicar a obra, e, em dezembro, comunica a Clarice Lispector sua visão dos fatos. Diz também que a José Olympio queria o livro, no entanto só para 1958, pois a programação para o ano seguinte estava fechada, ponderando que valia a pena esperar, considerando a qualidade daquela casa editorial. Clarice lhe escreve uma carta, parte da qual copia para Sabino, determinada a publicar o romance às suas próprias expensas e a fazer o mesmo, quando pudesse, com o volume de contos encomendado por Simeão Leal. Sobre as histórias, Rubem Braga dissera em sua missiva achar “mais normal” que saíssem primeiro na imprensa; a antologia continuava sem data para ser editada, apesar de Sabino ter dito à amiga, em julho, que o livro já entrara em produção. Visando evitar uma atitude precipitada de Clarice Lispector, Fernando Sabino explica em nova carta o que se passara: Ênio da Silveira continuava entusiasmado quanto ao romance, entretanto a Civilização naturalmente já não poderia editá-lo no mesmo ano. Silveira se comprometia a lê-lo em janeiro seguinte e o programava para maio ou junho de 1957; conhecendo a impaciência de Clarice (que lhe dissera, já no primeiro semestre: “Não tem que ser bom editor, tem que ser rápido”), Sabino estima que dificilmente ela poderia vê-lo publicado antes em outra editora considerando o prazo proposto por José Olympio. Assim o ano termina sem que a edição de nenhum dos dois livros se resolva: a ficcionistasente-se de mãos atadas sobre o destino de seu trabalho, em face da distância. Enquanto isso, aumenta sua indisposição para com o tipo de vida que leva. Como manifestaria às irmãs, os compromissos diplomáticos a cansavam antes mesmo de terem acontecido. 
(1957) Instada por Fernando Sabino e Rubem Braga, autoriza que os amigos encaminhem seus contos que em janeiro já eram 15, e mais três “mais ou menos prontos” para publicação no “Suplemento Cultural” de O Estado de S. Paulo. Em carta a Simeão Leal, dois anos depois, a autora diria que tal contrato foi rompido depois que um conto, sem sua autorização nem conhecimento, saíra em um jornal do Rio. Sabino também sondara a editora Agir sobre o interesse em editar uma antologia, e Rubem Braga recupera os originais com Simeão Leal, dizendo também que o volume que este pretendia lançar já estava composto. Na espera de notícias sobre os livros, a autora não trabalha em novos escritos. Fernando Sabino reiteraria o entusiasmo de Ênio da Silveira pelo romance, que permanecia sem título. Erico Verissimo manifesta interesse em saber da obra que ainda se chama A veia no pulso (título aliás defendido de maneira aguerrida por João Cabral de Melo Neto, que escreve, também curioso, de seu novo posto em Sevilha). Por sua vez, Clarice manda, em várias missivas, notícias de Clarissa, filha de Erico e Mafalda, que permanecera nos EUA pois se casara em 1956 com o americano David Jaffe – e estava grávida. Além disso, envia bilhetes afetuosos dos filhos ao casal de padrinhos. No campo literário, contudo, as novidades não vêm; manda, por intermédio de Tania, nova carta a Leal, mas os contos seguem na gaveta do editor. Publica “Amor” na revista New Mexico Quarterly; ao enviar o recibo pelos 20 dólares do pagamento, manda junto a nota biográfica feita por Paulo Mendes Campos. Faz somente a ressalva de que gostaria de ver reforçada sua condição de brasileira, apesar de nascida na Ucrânia. A essa altura, o texto de Mendes Campos já havia sido aproveitado na edição francesa de Perto do coração selvagem, sobre a qual Clarice Lispector nunca se sentira totalmente pacificada. É quando retoma a tradução e percebe que suas observações tinham sido acolhidas. Escreve uma carta pedindo ao editor, Pierre de Lescure, que transmitisse sua gratidão a “mademoiselle Moutonnier” – a tradutora – temendo que ela não aceitasse, depois de todo o mal-estar que demonstrara em 1954. Pessoalmente, as coisas não iam tão bem; o casamento com Maury passava por um momento de tensão.
(1958) Conhece Maria Bonomi, uma jovem bolsista de artes plásticas na Universidade de Columbia, em Nova York (NY). Encaminhada por Alzira do Amaral Peixoto (então embaixatriz brasileira), a moça, de 22 anos, vai até a casa da escritora, a fim de conseguir emprestado um traje para cerimônia na Casa Branca, destinada a estudantes brasileiros, sorteados entre os que expunham trabalhos na União Pan-Americana, também em Washington. A partir do episódio, nasce uma amizade que duraria através dos anos subsequentes. Novas possibilidades se abrem para a autora. Antes de o ano acabar, recebe carta do jornalista Nahum Sirotsky, que se encontrava em Washington, solicitando sua colaboração para a revista Senhor, que seria lançada em janeiro seguinte, pela editora Delta. A intenção era que Clarice Lispector assinasse um comentário ou crônica mensal; pouco depois, todavia, recebe missiva de Paulo Francis, encarregado do departamento de ficção da futura revista, no qual reforça o convite e manifesta seu interesse de ali publicar contos seus, começando por “A menor mulher do mundo”. Em carta parabenizando Clarice Lispector pelo aniversário, escrita em 9 de dezembro, Erico Verissimo comenta ter recebido de Enrique Bertaso carta branca para editar A veia no pulso – ou como quer que a autora decidisse chamar o romance – pela Globo e que estava esperando da Civilização Brasileira, que anunciava o livro, um posicionamento a respeito. Dizia ainda que teriam igual interesse nos contos, se esses não se encontrassem retidos por Simeão Leal, cujos representantes também estariam sendo cobrados. Do outro lado do Atlântico, as notícias não eram tão boas: a ficcionista recebe da Plon um comunicado de que, por necessidades de espaço, já não poderiam manter no estoque os mais de 1.700 exemplares remanescentes da edição de Près du coeur sauvager. Mil teriam de ser destruídos. Enquanto isso, o casamento começava a ver seu fim.
(1959) Começa o ano com uma viagem à Holanda, para onde parte em 8 de janeiro, acompanhando a embaixatriz brasileira, Alzira do Amaral Peixoto, que deveria batizar no estaleiro da Verolme United Shipyards, em Roterdã, o navio cujo nome homenageava seu pai: Presidente Getúlio. Passam por Paris ao regressarem aos EUA; o avião, devido a uma tempestade de neve, tem de pousar na Groenlândia, episódio que Clarice Lispector contaria numa das crônicas publicadas em junho de 1971 no Jornal do Brasil. Na volta a Washington, encontra as provas do livro de contos a ser lançado no ano seguinte, enviadas por Simeão Leal. Mas Clarice já não tem interesse em, quatro anos depois de concluído o trabalho, ver o volume na coleção do Ministério da Educação e Cultura e pede, em resposta encaminhada por Eliane, mulher de Mozart Gurgel Valente, que os direitos lhe sejam devolvidos, mediante a restituição dos “dois ou três mil cruzeiros” que recebera adiantados na encomenda feita em 1954. A autora dizia que tivera prejuízos pela retenção de seus escritos e que precisava do dinheiro que pudesse conseguir vendendo-os separadamente para jornais e revistas. O editor acabaria cedendo, a contragosto, e em março, quando, de fato, é lançada Senhor, “A menor mulher do mundo” é publicado, seguido de “O crime do professor de matemática” (em junho), “Feliz aniversário” (em outubro) e “Uma galinha” (em dezembro). Recebe, em fevereiro, de Fernando Sabino, a notícia de que A maçã no escuro – o título estava definitivamente resolvido, com o “aval” do amigo – sairia pela Civilização Brasileira ainda naquele ano; no entanto, o lançamento voltaria a ser adiado, para 1960. Inicia negociações com a editora Agir para publicar os 18 contos que produzira nos anos anteriores. Precavida pela experiência com Simeão Leal, tenta obter, pelo contrato, maior controle sobre a edição, o que acabaria naufragando a tentativa. Enquanto isso, a Civilização Brasileira estipula o novo prazo para a publicação de A maçã no escuro; o romance deveria sair até maio do ano seguinte. Separa-se do marido, depois de agravamento da crise conjugal, e, em junho, regressa ao Brasil, com os dois filhos. Ficam durante um mês na casa da irmã Tania, mudando-se, em 8 de julho, para o Leme; o novo endereço da família seria rua General Ribeiro da Costa, 2, apto. 301. Maury Gurgel Valente ainda tentaria, em carta de 28 de julho, enviada de Washington, uma reconciliação que, contudo, não acontece. Inicia-se o longo processo de separação conjugal. Apesar de Maury enviar mensalmente 500 dólares à família, colocando-se à disposição para aumentar a quantia, se ela se revelasse insuficiente, Clarice Lispector objetivava comprar, por contra própria, o apartamento onde viviam – no que era apoiada pelo ex-marido. Começa, então, a colaborar na imprensa para complementar seus rendimentos, provenientes de mesada e de parcos direitos autorais. Sob o pseudônimo de Helen Palmer, inicia, em agosto, uma coluna no Correio da Manhã, intitulada “Correio feminino – Feira de utilidades”.
(1960) A Senhor continua a publicar seus contos: em março, sai “A imitação da rosa” e, no mês seguinte, “O búfalo”. Além da coluna que já fazia para o Correio da Manhã, passa a elaborar outra página feminina, “Só para mulheres”, a convite de Alberto Dines, encarregado da reforma pela qual o Diário da Noite, em busca de mercado, vinha passando. No novo tabloide, Clarice seria, na verdade, a ghost-writer da atriz Ilka Soares. Em 5 de julho, consegue enfim uma editora para seus contos: assina com a Francisco Alves, do Rio de Janeiro, que lança, no dia 27 domesmo mês, na sua sede paulista, que abrigava também uma livraria,Laços de família. A antologia se compunha de 13 histórias: os seis textos de Alguns contos, os cinco mencionados anteriormente que apareceram em Senhor, mais “Devaneio e embriaguez duma rapariga” e “Preciosidade”. A revista, aliás, se revelara uma importante plataforma para o retorno de Clarice Lispector às livrarias e, além disso, na volta ao Rio, ela passaria a estar mais próxima de seus leitores. O volume de contos teve também um lançamento carioca, que aconteceria no clube Marimbás, em Copacabana. Massaud Moisés (em “Clarice Lispector contista”, Correio da Manhã, 12.08.61) reafirmaria a opinião que Sérgio Milliet bancara, quando foi lançado Alguns contos: o romance era o gênero da autora. Por outro lado, entre as críticas favoráveis, encontra-se artigo de Eduardo Portella, “A forma expressional de Clarice Lispector”, publicada no Jornal do Commerciode 25 de setembro, no qual ela é colocada como a grande ficcionista de sua geração. Antes que o ano se encerre, Clarice assina novo contrato com a Francisco Alves, desta vez, para A maçã no escuro, que se estimava publicar entre 15 de fevereiro e 15 de abril do ano seguinte, com tiragem de 2.000 exemplares mesmo número com que saíra Laços de família, o qual, aliás, diante da boa repercussão, seria reeditado. Conhece, através da pedagoga Nélida Helena da Meira Gama – leitora de Senhor que conhecera no lançamento de seu livro de contos e de quem se tornara próxima –, a jovem escritora Nélida Pinon, que seria sua amiga até o fim da vida.
(1961) O conto “A legião estrangeira” é publicado na Senhor de janeiro. Em 10 de fevereiro, encerra-se a coluna “Feira de utilidades” do Correio da Manhã. O mesmo ocorre com a página de Ilka Soares, que se extingue, com o Diário da Noite, em março. Em julho, A maçã no escuro  é lançado com sessão de autógrafos na abertura do II Festival do Escritor Brasileiro, em um centro comercial de Copacabana, atraindo um grande público, curioso pelo retorno de Clarice Lispector ao romance. Tom Jobim, compositor já conhecido, “apadrinhava” o estande da autora, apregoando o romance e impulsionando as vendas que foram bem, apesar do preço do volume, considerado alto para a época: 9,90 cruzeiros. Recebe o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por Laços de família. Lúcio Cardoso, fiel amigo e crítico sensível, em fragmento datado de agosto de seu Diário, elogiaria o esperado romance, bem como a obra da escritora, em que, diz, “alguma coisa íntima está sempre queimando”.
(1962) Após mudanças internas na revista Senhor, passa a assinar na coluna “Children’s Corner”, da seção “Sr. & Cia.”. No novo espaço, publicaria tanto contos como a “A quinta história” e “Os desastres de Sofia” quanto crônicas caso de “Mineirinho”, “Brasília: cinco dias” e fragmentos variados. Tais textos seriam reunidos em A legião estrangeira, lançado dois anos mais tarde. Viaja em julho para a Polônia, com os filhos, em visita ao ex-marido. Maury ainda nutre esperança de reconciliação, o que não acontece. Durante a viagem, recebe convite para ir até a União Soviética e assim entrar em contato com suas origens – no entanto a escritora recusa a oferta, afirmando que de lá saíra no colo, recém-nascida, e não poria os pés naquele chão. Recebe, em 19 de setembro, o prêmio Carmen Dolores Barbosa oferecido pela senhora paulistana de mesmo nome por A maçã no escuro, considerado o melhor livro de 1961 segundo comissão julgadora composta por Osmar Pimentel, Mário Donato, José Geraldo Vieira, Maria de Lourdes Teixeira, Rolmes Barbosa, Edgar Braga, Edoardo Rizzarri, Sérgio Milliet e Cassiano Ricardo. O prêmio de 20 cruzeiros é entregue por Jânio Quadros, no salão literário de Carmen Barbosa, em São Paulo. Em dezembro, Lúcio Cardoso interrompe seu diário – do qual já havia publicado o volume 1, no ano anterior –, após o primeiro derrame de uma série, que o deixaria parcialmente paralisado, sem poder escrever e, mais tarde, impedido de falar.
(1963) Clarice vai a Austin, nos Estados Unidos, aceitando convite para proferir uma conferência, sobre o tema “Literatura de vanguarda no Brasil”, no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, realizado na Universidade do Texas. Lá conhece Gregory Rabassa, que anos depois traduziria A maçã no escuro. Compra, em setembro, após a oficialização da separação conjugal e divisão dos bens do casal, o apartamento 701 de um prédio, que ainda estava sendo construído, localizado à rua Gustavo Sampaio, 88, no Leme. Escreve, em alguns meses, o romance A paixão segundo G.H.; ao longo do processo, apresenta trechos à poeta Marly de Oliveira, sua amiga. Com o livro, que entregaria a Fernando Sabino e Rubem Braga para publicação na Editora do Autor, de propriedade de ambos, pôs fim a um período de “aridez” que durava desde o término de A maçã no escuro, sete anos antes.
(1964) Publica A paixão segundo G.H., um dos seus textos mais densos. Pela mesma Editora do Autor, lança o volume A legião estrangeira, que reúne, numa primeira parte, contos maiores e, na segunda, intitulada “Fundo de gaveta”, fragmentos de tamanho variado, antes publicados na imprensa. Em julho, sai o desquite de Clarice e Maury e, a 13 de novembro, o juiz profere a sentença (confirmada em 2 de abril do ano seguinte) que poria fim ao processo de separação. Um breve esboço biográfico da escritora é publicado por Renard Perez, a partir de longa entrevista que Clarice Lispector lhe concedera em 1961 e que, no volume – da série Escritores brasileiros contemporâneos, editada pela Civilização Brasileira – vem acompanhado de trechos de A maçã no escuro. Tal perfil passa a ser a principal fonte biográfica sobre ela. A partir de entrevista concedida à revista semanal Manchete, nasce sua amizade com Pedro e Miriam Bloch.
(1965) Muda-se, em maio, para o apartamento que comprara em 1963. A partir do aparecimento de A paixão segundo G.H., sua obra passa a ser examinada com maior atenção pela crítica sensível às questões da filosofia. Nesse âmbito, são publicados, por exemplo, ensaios de Benedito Nunes – “A náusea em Clarice Lispector” (O Estado de S. Paulo, a 24 de julho) – e José Américo Motta Pessanha – “Itinerário da paixão” (revista Cadernos Brasileiros, n. 29), sobre os romances publicados até 1964. É encenado, no teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, o primeiro espetáculo teatral baseado em textos de Clarice Lispector. Resultado de uma seleta de trechos de Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. e A legião estrangeira, adaptados por Fauzi Arap (que também dirigia a peça e nela atuava), o espetáculo, que levava o nome do primeiro romance de Clarice, foi produzido por Carlos Kroeber e tinha no elenco José Wilker, Glauce Rocha e Dirce Migliaccio.
(1966) Luiz Costa Lima publica, em Por que literatura (Vozes), “A mística ao revés de Clarice Lispector”, artigo que discute o imaginário a partir das relações peculiares estabelecidas entre personagem e escritora no romance A paixão segundo G.H. E, em Belém, sai O mundo de Clarice Lispector, de Benedito Nunes; editado pelo Governo do Amazonas, a partir de textos anteriormente publicados no jornal O Estado de S. Paulo, esse é o primeiro livro inteiramente dedicado a fornecer uma abordagem crítica sobre a obra da autora. Na madrugada de 14 de setembro, um acidente mudaria em definitivo a vida de Clarice Lispector. Adormecera com um cigarro aceso, provocando um incêndio, descoberto por uma vizinha que vira de sua janela, do outro lado da rua, a fumaça que saía do apartamento. O quarto ficou completamente destruído, e a autora, com graves queimaduras pelo corpo. Passou três dias sob risco de morte e dois meses hospitalizada na clínica Pio XII. A mão direita foi a parte mais afetada, sofrendo queimadura de terceiro grau e, não fosse por intervenção de uma das irmãs de Clarice, pedindo que esperassem mais um dia, os médicos a teriam amputado. Em lugar disso, recebeu enxerto de pele do abdômen, seguido de fisioterapia para recuperaros movimentos, que, no entanto, ficaram comprometidos, dificultando em muito a escrita. O tratamento teve lugar na Associação Brasileira Beneficente de Recuperação ABBR, onde a autora encontrou Lúcio Cardoso, que ali combatia as sequelas de vários derrames.
(1967) Contrata os serviços da enfermeira Siléa Marchi, que ajuda no período após o incêndio e a acompanharia até a morte. Apesar da boa recuperação e das cirurgias bem-sucedidas, ficam cicatrizes profundas, na perna e na mão direitas, e Clarice cai em estado depressivo. Entre os amigos que manifestam seu apoio estão Rubem Braga, Rosa Cass, Nélida Piñon, Pedro e Miriam Bloch, Alberto Dines, Autran Dourado, Inês Besouchet, Armindo Trevisan e Paulo Mendes Campos. Apesar do estado de espírito abalado, é um ano em que lhe acontecem duas importantes novidades profissionais. Atendendo a uma proposta feita pela José Álvaro Editor, publica seu primeiro livro para crianças,O mistério do coelho pensante, que, conforme foi mencionado anteriormente, escrevera para Paulo nos EUA (a tradução do original em inglês ficou ao seu próprio encargo). Além disso, recebe e aceita convite de Alberto Dines para escrever, a partir de 19 de agosto, uma coluna semanal no Jornal do Brasil. Assim, durante mais de seis anos, envia para a redação daquele diário carioca uma ou várias crônicas objetivando preencher o espaço que lhe fora confiado. Dessa forma, intensificaria o contato com o público, a ponto de conquistar certa popularidade: frequentemente dá autógrafos para os leitores, com os quais também troca cartas e conversa, na rua ou ao telefone. A partir de 7 de dezembro, passa a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Nacional do Livro, que selecionava obras a serem editadas por esse órgão do Ministério de Educação e Cultura. O conselho contava também com outros intelectuais, como Américo Jacobina Lacombe, Celso Cunha, Eduardo Portella, Assis Brasil e Umberto Peregrino.
(1968) Em 13 de março, O mistério do coelho pensante é premiado, como melhor livro infantil do ano anterior, com a Ordem do Calunga, instituída pela Campanha Nacional da Criança, que também destacara trabalhos para o público infantil no cinema e televisão. Acompanhada de seu editor, João Rui de Medeiros, a autora comparece à solenidade, na Pequena Obra Nossa Senhora Auxiliadora, no Rio de Janeiro, mas, sob a alegação de que não se sentia bem, sai logo depois de receber o troféu. Publica, a partir de maio, na revista Manchete, seção intitulada “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”, na qual entrevista personalidades do mundo político e artístico – em grande parte, amigos seus. A colaboração duraria até outubro de 1969 e algumas dessas entrevistas saem também na coluna do Jornal do Brasil – cujas crônicas, aliás, passariam a ser, em parte, republicadas no Correio do Povo, de Porto Alegre. A tensão política recrudescia. A morte, em 28 de março, do estudante secundarista Édson Luís – alvejado pela Polícia Militar no restaurante universitário apelidado de Calabouço, no Rio – causa violenta reação popular, e a luta contra o regime militar implementado em março de 1964 se intensifica. Em 21 de junho, na chamada “sexta-feira sangrenta”, agentes do Departamento Estadual de Ordem Política e Social – Dops e soldados da Polícia Federal matam quatro e ferem 58 pessoas; cerca de mil são presas. À noite, um grupo de militantes decide ir ao governador, para exigir dele uma tomada de posição, e escolhem como porta-voz o psicanalista Hélio Pellegrino, que – convencido pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade, pelo poeta Ferreira Gullar e pelo jornalista Jânio de Freitas – aceita o encargo. Clarice Lispector se encontra entre os que, no dia seguinte, participam da passeata carioca contra a ditadura – que tinha entre os manifestantes cerca de 300 intelectuais e artistas, como Carlos Scliar, Oscar Niemeyer, Glauce Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento. Caminham em direção ao Palácio da Guanabara, onde são recebidos por Negrão de Lima, ocasião em que Pellegrino relata as últimas manifestações de violência da polícia, induzindo o governador a tomar partido a favor dos estudantes. Quatro dias depois, a escritora volta a sair às ruas, na “Passeata dos Cem Mil”. Inscreve-se, em 28 de agosto, no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Guanabara, quando já tinha carteira funcional da Agência JB em que é registrada como “colaborador”. E em 7 de outubro seria nomeada assistente de administração do mesmo estado, vínculo empregatício que manteria na sua carteira de trabalho até o fim da vida. No dia 24 de setembro, Lúcio Cardoso morre, na clínica Doutor Eiras, no Rio de Janeiro, vítima de novo derrame cerebral. Pouco depois, no dia 30, Clarice perde outro amigo; Sérgio Porto (nome verdadeiro de Stanislaw Ponte Preta) sucumbe a problemas cardíacos, após sofrer tentativa de envenenamento durante show teatral. Em sua coluna no JB, ela expressaria seu sentimento diante de ambas as mortes. Enfrentando, além das sequelas que ficaram do incêndio, a doença do filho Pedro, inicia sessões de psicanálise com Jacob David Azulay. Paralelamente, sua obra ganha público e tem maior divulgação nos meios universitários, e Clarice Lispector vai a Belo Horizonte, para palestras na Universidade Federal de Minas Gerais e na Livraria do Estudante, acompanhada pela amiga e escritora Eliane Zagury. A paixão segundo G.H. é reeditado pela Sabiá, que Fernando Sabino e Rubem Braga haviam aberto no ano anterior e que também lança seu segundo livro infantil, A mulher que matou os peixes. A história, novamente, se baseia em fato que acontecera no âmbito familiar. Pedro, que viajaria por um mês, a encarregara de alimentar seus peixes vermelhos; mas, durante três dias, ela se esquece de lhes dar comida e os animais morrem. Dedica o livro, ilustrado por Carlos Scliar, a afilhados, entre os quais Cássio, que nascera da união entre Maria Bonomi e Antunes Filho; Mônica, filha de Marly de Oliveira e Lauro Moreira; e Nicole, filha de Márcia e neta de Tania Kaufmann. Programado para o dia 17 de dezembro, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o lançamento é cancelado após a promulgação do Ato Institucional número 5 e o fechamento do Congresso, pelo Ato Complementar número 38, no dia 13 daquele mês.
(1969) Seu filho Paulo parte para os Estados Unidos, em 25 de janeiro, onde fica um ano em programa de intercâmbio cultural. Pedro, em tratamento psiquiátrico, seria internado durante um mês, em junho. Lança pela editora Sabiá — que publicara a terceira edição de Perto do coração selvagem — Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres. O romance ganha o prêmio Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e do Som. Viaja à Bahia, a fim de entrevistar o escritor Jorge Amado e os artistas Mario Cravo e Genaro. Os textos seriam publicados em junho e julho, na Manchete. Em 14 de agosto, é aposentada pelo Instituto Nacional de Previdência Social INPS.
(1970) Incorporando notas antigas, começa a trabalhar em um novo romance inicialmente intitulado Atrás do pensamento: monólogo com a vida. O livro, que em fase posterior seria chamado Objeto gritante, por fim se definiria como Água viva e sairia sob o amplo gênero “ficção”, diante do entendimento da própria autora de que ultrapassara as classificações convencionais da narrativa literária. Conhece Olga Borelli, que, após vê-la em um programa de televisão, convida a escritora para autografar livro infantil na fundação beneficente Romão de Matos Duarte. Clarice lhe escreveria uma carta singular, datada de 11 de dezembro: “Eu achei, sim, uma nova amiga. Mas você sai perdendo. […] Você me quer como amiga mesmo assim? Se quer, não me diga que não lhe avisei. […] Quando eu morrer (modo de dizer), espero que você esteja perto. Você me pareceu uma pessoa de enorme sensibilidade, mas forte”. Olga aceita prontamente, criando-se, então, uma sólida amizade, que permearia os sete últimos anos de vida da ficcionista.
(1971) Lança Felicidade clandestina, reunião de contos publicados anteriormente, entre os quais um conjunto de escritos emque rememora a infância em Recife. Termina, em julho, cópia do seu romance Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Entrega ao professor Alexandrino Severino com quem se encontra, em julho e agosto, encarregando-o de traduzir a obra para o inglês uma versão de 280 páginas, extensão que se reduziria muito na forma definitiva. A Sabiá lança Elenco de cronistas modernos, que inclui dez textos escolhidos em livros de Clarice Lispector já publicados. E Teresinha Alves Pereira Martins defende, na Universidade de New México, pioneira tese de doutorado no Departamento de Línguas Clássicas e Modernas, intitulada “Júlio Cortázar, Clarice Lispector e a nova narrativa latino-americana”. Elisa reedita No exílio, pela Ebrasa, em convênio com o Instituto Nacional do Livro, então dirigido por sua amiga Maria Alice Barroso.
(1972) Auxiliada por Olga, que datilografa as notas, retoma o trabalho emAtrás do pensamento, com o qual não estava satisfeita. O livro, profundamente alterado, ganha o título de Objeto gritante. José Américo Pessanha, em carta enviada de São Paulo no dia 5 de março, comenta o romance, assinalando um repúdio de Clarice à própria ficção, na medida em que ela tenta se desfazer dos “artifícios da arte”, e detecta um impasse: continuará a falar de si mesma, sem as máscaras das personagens, ou as criará, assim “multiplicando seu mistério e sua perplexidade?”. Clarice Lispector busca eliminar do livro em processo as alusões à sua própria biografia. A protagonista deixa de ser escritora para se dedicar às artes plásticas. Nélida Pinon e Fauzi Arap também leem o romance, participando, com sugestões, de sua reelaboração. Insegura quanto ao livro, distrai a angústia procurando o amigo Carlos Scliar para que pinte um prometido retrato seu: a escritora posa durante o mês de setembro, na casa do artista em Cabo Frio.
(1973) Em 20 de julho, recebe entusiasmada carta de Alberto Dines, referente ao livro já intitulado Água viva. Diz o amigo: “Você venceu o enredo. [...] A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. [...] É menos um livro-carta e, muito mais, um livro-música. Acho que você escreveu uma sinfonia”, continua, identificando um mecanismo de tema principal que se desdobra em variações. O mais importante, porém, como completa, respondendo às inquietudes de Clarice, é que, sim, o livro estava terminado. A autora publica Água viva, no final de agosto, depois de três anos de elaboração, pela Artenova, que lançaria também A imitação da rosa, antologia com 15 contos que já haviam integrado outras coletâneas. No mês seguinte, viaja com Olga Borelli para a Europa. Visita, durante um mês, quatro países: Inglaterra (Londres), Suíça (Zurique, Lausanne, Berna), França (Paris) e Itália (Roma), aproveitando para rever lugares onde havia morado. Affonso Romano de Sant’Anna faz, em seu livro Análise estrutural de romances brasileiros, uma leitura dos contos de Laços de família e A legião estrangeira, detectando motivos recorrentes e esquemas estruturais de construção narrativa nos textos por ele selecionados. A tese central de sua análise era a presença da epifania entendida como uma revelação nascida de uma experiência banal na escrita de Clarice Lispector. Em 6 de dezembro, Alberto Dines é demitido do JB, no que chegou a ser visto como uma onda antissemita envolvendo a administração do periódico. Com o episódio, também se encerraria a participação de Clarice, sem direito a indenizações, por não ser considerada funcionária.
(1974) O Jornal do Brasil a dispensa oficialmente de seus serviços, em carta datada de 2 de janeiro e acompanhada de envelope com suas crônicas. A partir daí, a fim de complementar os rendimentos, aumentaria sua atividade de tradutora vertendo desde obras literárias, como O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, adaptado para o público juvenil (Ediouro), até títulos de interesse geral, caso de A receita natural para ser bonita, de Mary Ann Crenshaw, para Álvaro Pacheco, da Artenova que lhe passaria vários livros para traduzir. Sempre pela mesma editora, lançaria Onde estivestes de noite (cuja primeira tiragem foi recolhida porque erroneamente se colocara um ponto de interrogação no título). Em bilhete de 5 de maio, Carlos Drummond de Andrade comentaria com um pequeno poema essa coletânea de escritos variados com contos inéditos, outros publicados no JB e mesmo fragmentos do romance Uma aprendizagem. Em maio, Pacheco, ainda, lhe faria uma encomenda: um volume abordando o tema do sexo. Daí resultaram os 13 contos de A via-crúcis do corpo — livro pouco aceito pela própria autora, que diria, em tom de justificativa: “Há hora para tudo. Há também a hora do lixo”. Sofre um novo acidente: seu cão Ulisses lhe morde o rosto, requerendo cirurgia plástica, feita pelo amigo Ivo Pitanguy que cuida também dos reparos na sua mão, dando continuidade ao tratamento iniciado logo após o incêndio. Vive na companhia de Siléa Marchi e da cozinheira Geni, depois que os filhos deixam a casa. Paulo fora morar sozinho ainda que em apartamento próximo, permitindo que almoçasse com a mãe enquanto Pedro se mudara para Montevidéu, vivendo com o pai, embaixador do Brasil no Uruguai, e Isabel Leitão da Cunha, sua mulher desde 1964. Aproxima-se de novos afetos, como Andréa Azulay — filha de seu ex-analista, que se convertera em amigo —, a quem dá conselhos literários, posto que a menina começava a se arriscar na escrita. Viaja para Brasília, onde lê a conferência intitulada “Literatura de vanguarda no Brasil”, que apresentara no Texas, como parte de atividades promovidas pela Fundação Cultural do Distrito Federal. E vai também a Cali, na Colômbia, convidada a participar do IV Congresso da Nova Narrativa Hispanoamericana. Encontra-se no evento quando Hélio Pólvora se decide a escrever sobre A via-crúcis do corpo (“Da arte de mexer no lixo”, Jornal do Brasil de 13 de agosto). Na opinião do crítico, a contundência era um dos méritos da escritora e, se algo o preocupava, era um eventual desgaste advindo dessas pequenas obras. “Quanto ao mais, quanto à sua nova maneira de aceitar desafios, não tem por que se penitenciar.” Publica ainda outro livro, o terceiro destinado ao público infantil,A vida íntima de Laura, que sai pela José Olympio, então detentora dos direitos de sua obra publicada até 1971.
(1975) Passa breve período no hotel Continental, no Rio, para, sozinha, poder escrever. Traduz romances, como A rendeira, de Pascal Lainé (Imago), Luzes acesas, de Bella Chagall (Nova Fronteira), além de livros policiais de Agatha Christie, que também saíram pela Nova Fronteira, e obras de caráter geral como A yoga do amor, de Jean Herbert (Artenova). E, ao longo da década, faz também adaptações de obras de escritores como Júlio Verne, Jonathan Swift, Walter Scott, Jack London e Edgar Allan Poe. Em algumas ocasiões, trabalharia com Tati de Moraes, ex-mulher do poeta Vinicius, como no caso de Hedda Gabler, peça de Ibsen. Volta à Colômbia, desta vez com Olga Borelli, como convidada do I Congresso Mundial de Bruxaria, realizado em Bogotá, de 24 a 28 de agosto. No dia 26, sentindo-se indisposta, em vez de apresentar a fala sobre a magia que havia preparado para introduzir a leitura de “O ovo e a galinha”, pede a alguém que leia o conto por ela. Em novembro, vai a Belo Horizonte, onde recebe muitas homenagens, deixando-a contrariada. Dias depois, dando entrevista a Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge, para o volume Brasileiras – que seria publicado em 1977, na França –, mostra-se pouco à vontade. Publica Visão do esplendor, com crônicas da coluna “Children’s Corner”, que publicara em Senhor, e também textos que saíram noJornal do Brasil. Lança ainda De corpo inteiro, com algumas das entrevistas que fizera nos anos anteriores para a imprensa carioca. O volume Seleta, organizado por Renato Cordeiro Gomes, com ensaio de Amariles Guimarães Hill, é editado pela José Olympio em formato popular, o que colaboraria para a divulgação dos textos da escritora nos anos 70. Por ter sempre problemas com direitos autorais, contrata a agência

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