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Para compreender a influência dos escolásticos espanhóis sobre o posterior desenvolvimento da Escola Austríaca de Economia é preciso recordar, antes de tudo, que no século XVI, o imperador e rei de Espanha Carlos V enviou o seu irmão Fernando I para ser rei da Áustria. “Áustria” significa, etimologicamente, “parte este do Império”, Império que nessa altura compreendia praticamente a totalidade da Europa continental, com a única exceção importante da França, que permanecia isolada e rodeada por forças espanholas. É assim fácil compreender a origem da influência intelectual dos escolásticos espanhóis sobre a Escola Austríaca, e que não foi uma simples coincidência ou um mero capricho da história, mas que foi o produto de íntimas relações históricas, políticas e culturais que se desenvolveram entre a Espanha e a Áustria a partir do século XVI. Estas relações haveriam de manter-se durante vários séculos e nas mesmas também teve um papel importantíssimo a Itália, como ponte cultural através da qual fluíram as relações intelectuais entre ambos os extremos do Império (Espanha e Áustria). Por tudo isto, existem importantes argumentos para defender a tese de que, pelo menos nas suas origens, a Escola Austríaca é, em última instância, uma escola de tradição espanhola. De fato, pode-se afirmar que o principal mérito de Carl Menger consistiu em redescobrir e impulsionar esta tradição católica continental de origem espanhola que, praticamente, estava esquecida e havia caído em decadência como consequência, por um lado, do triunfo da reforma protestante e da lenda negra contra tudo o que fosse espanhol e, por outro lado e, sobretudo, devido à muito negativa influência que as teorias de Adam Smith e do resto dos seus seguidores da Escola Clássica da Economia tiveram na história do pensamento econômico. Com efeito, como indica Murray N. Rothbard, Adam Smith abandonou as contribuições anteriores centradas na teoria subjetiva do valor, a função empresarial e o interesse em explicar os preços que se verificam no mercado real, substituindo a todas pela teoria do valor trabalho, sobre a qual Marx construirá, como conclusão natural, toda a teoria socialista da exploração. Além disso, Adam Smith concentra-se preferencialmente na explicação do “preço natural” de equilíbrio no longo prazo, um modelo de equilíbrio em que a função empresarial prima pela sua ausência e se supõe que toda a informação necessária já está disponível, o que virá depois a ser utilizado pelos teóricos neoclássicos do equilíbrio para criticar supostas “falhas de mercado” e para justificar o socialismo e a intervenção do estado sobre a economia e a sociedade civil. Por outro lado, Adam Smith impregnou a ciência econômica de calvinismo, por exemplo, ao apoiar a proibição da usura e ao distinguir entre ocupações “produtivas” e “improdutivas”. Finalmente, Adam Smith rompeu com olaissez-faire radical dos seus antecessores jusnaturalistas do continente (espanhóis, franceses e italianos) introduzindo na história do pensamento um “liberalismo” muito tíbio e tão empestado de exceções e relativizações que muitos teóricos “social-democratas” de hoje poderiam inclusivamente aceitar. A influência negativa que, do ponto de vista da Escola Austríaca, teve o pensamento da escola clássica anglo-saxônica sobre a Ciência Econômica acentua-se com os sucessores de Adam Smith e, em especial, com Jeremy Bentham, que inoculou o bacilo do mais estreito utilitarismo na nossa disciplina, impulsionando com ele o desenvolvimento de toda uma análise pseudocientífica de custos e benefícios (que se acredita que possam ser conhecidos), e o surgimento de toda uma tradição de “engenheiros sociais” que pretendem moldar a sociedade à sua vontade utilizando o poder coercivo do estado. Na Inglaterra, Stuart Mill culmina esta tendência com o seu abandono do laissez-faire e as suas numerosas concessões ao socialismo, e na França, o triunfo do racionalismo construtivista de origem cartesiana explica o domínio dos intervencionistas da École Polytechnique e do socialismo cientifista de Saint-Simon e Comte. Afortunadamente, e apesar do obscurecedor imperialismo intelectual que os teóricos da escola clássica anglo-saxônica exerceram sobre a evolução da nossa disciplina, a tradição continental de origem católica impulsionada pelos nossos escolásticos do Século de Ouro espanhol nunca foi totalmente esquecida. Assim, esta corrente doutrinal influenciou dois notáveis economistas, um irlandês, Cantillon, e outro francês, Turgot, que podem em grande medida ser considerados os verdadeiros fundadores da Ciência Econômica. De fato, Cantillon, por volta do ano de 1730, escreve o seu Ensaio sobre a natureza do comércio em geral, que, segundo Jevons, é o primeiro tratado sistemático de economia. Neste livro, Cantillon realça a figura doempresário como motor do processo de mercado e explica ainda que o aumento da quantidade de dinheiro não afeta de imediato o nível geral de preços, uma vez que o seu impacto na economia real se dá por etapas, ou seja, sucessivamente e através de um processo que inevitavelmente afeta e distorce os preços relativos que surgem no mercado. Trata-se do famoso efeito Cantillon, logo copiado por Hume, e que foi depois retomado por Mises e Hayek na sua análise sobre a teoria do capital e dos ciclos. Posteriormente, o marquês D’Argenson em 1751 e, sobretudo, Turgot, muito antes que Adam Smith, já haviam articulado perfeitamente o caráter disperso do conhecimento incorporado nas instituições sociais entendidas como ordens espontâneas, e cuja análise se haveria de converter num dos elementos essenciais do programa de investigação hayekiano. Assim, Turgot, no seu Elogio de Gournay, já em 1759, concluiu que “não é preciso provar que cada indivíduo é o único que pode julgar com conhecimento de causa o uso mais vantajoso das suas terras e do seu esforço. Somente ele possui o conhecimento específico sem o qual até o homem mais sábio se encontraria às cegas. Aprende com os seus intentos repetidos, com os seus êxitos e com os seus fracassos, e assim vai adquirindo um sentido especial para os negócios que é muito mais engenhoso do que o conhecimento teórico que pode ser adquirido por um observador indiferente, porque é impelido pela necessidade”. Refere-se igualmente Turgot, e neste aspecto segue o padre Juan de Mariana, à “completa impossibilidade de dirigir através de regras rígidas e de um controlo contínuo a multiplicidade de transações que, além de nunca poderem chegar a ser plenamente conhecidas devido à sua imensidade, também dependem continuamente de uma multiplicidade de circunstâncias em constante mudança que não podem controlar-se nem sequer prever-se”. Mesmo na Espanha, e durante a longa decadência dos séculos XVIII e XIX, a tradição dos nossos escolásticos não desapareceu completamente, e isto apesar do enorme complexo de inferioridade face ao universo intelectual anglo-saxônico típico daquela época. Prova disso é que outro autor espanhol de tradição católica foi capaz de resolver o paradoxo do valor e de enunciar com toda a clareza a lei da utilidade marginal vinte e sete anos antes de Carl Menger publicar os seus Princípios de Economia Política. Trata-se do catalão Jaime Balmes (1810-1848), que durante a sua curta vida se tornou o mais importante filósofo tomista na Espanha do seu tempo. Assim, em 1844, publicou um artigo intitulado “Verdadeira ideia do valor ou reflexões sobre a origem, natureza e variedade dos preços”, em que ele não só resolveu o paradoxo do valor, como também expôs com toda a clareza a lei da utilidade marginal. Balmes questiona-se “Como é que uma pedra preciosa vale mais do que um pedaço de pão, do que um cômodo vestido, e talvez até do que uma saudável e grata vivenda?”; e responde: “não é difícil explicá-lo; sendo o valor de umacoisa a sua utilidade, ou aptidão para satisfazer as nossas necessidades, quanto mais precisa for para a satisfação delas maior será o seu valor; deve-se considerar também que se o número de meios aumenta, diminui a necessidade de cada um deles em particular, porque podendo-se escolher entre muitos, nenhum é indispensável. Aqui está por que razão há uma dependência necessária entre o aumento e diminuição do valor e a escassez e abundância de uma coisa. Um pedaço de pão tem pouco valor, mas é porque tem relação necessária com a satisfação das nossas necessidades, porque há muita abundância de pão. Porém, diminuam a sua abundância, e o seu valor rapidamente crescerá, até atingir um nível qualquer, fenômeno que se verifica em tempo de escassez, e que se torna mais palpável em todos os gêneros durante as calamidades da guerra numa praça acossada por um muito prolongado assédio”. Desta forma, Balmes foi capaz de fechar o círculo da tradição continental e deixá-lo preparado para que a mesma fosse completada, aperfeiçoada e impulsionada, poucas décadas depois, por Carl Menger, e pelo resto dos seus discípulos da Escola Austríaca de Economia. Jesús Huerta de Soto A decadência da tradição escolástica e a influência negativa de Adam Smith
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