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Mareei Mauss Sociologia e antropologia Precedido de uma Introdução à obra de Mareei Mauss por Claude Lévi-Strauss Textos Georges Gurvitch e Henri Lévy-Bruhl Tradução Paulo Neves COSACNAIFY Biblioteca Setorial-CEFD-UFES 9 Prefácio à primeira edição (1950), por Georges Gurvitch n Introdução à obra de Mareei Mauss, por Claude Lévi-Strauss 47 49 Reg. 006682 Primeira pane ESBOÇO DE UMA TEORIA GERAL DA MAGIA i. Histórico e fontes 55 n. Definição da magia 62 iii. Os elementos da magia 126 iv. Análise e explicação da magia 174 v. Conclusão 178 Apêndice Segunda parte 183 ENSAIO SOBRE A DÁDIVA — Forma e ração da troca nas sociedades arcaicas 185 Introdução — Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir os presentes 194 i. As dádivas trocadas e a obrigação de retribuí-las (Polinésia) 2ii n. Extensão desse sistema — (Liberalidade, honra, moeda) 265 iii. Sobrevivências desses princípios nos direitos antigos e nas economias antigas 294 iv. Conclusão Terceira parte 315 RELAÇÕES REAIS E PRÁTICAS ENTRE A PSICOLOGIA E A SOCIOLOGIA 319 i. Lugar da sociologia na antropologia 325 n. Serviços recentes prestados pela psicologia à sociologia 331 iii. Serviços a prestar à psicologia pela sociologia 337 iv. Questões colocadas à psicologia 343 Apêndice — Resumo da conclusão do debate, por Mareei Mauss Quarta parte 345 EFEITO FÍSICO NO INDIVÍDUO DA IDÉIA DE MORTE SUGERIDA PELA COLETIVIDADE - (Austrália, Nova Zelândia} 349 i. Definição da sugestão coletiva da idéia de morte 353 n. Tipos de fatos australianos 358 ni. Tipos de fatos neozelandeses e polinésios Quinta parte 367 UMA CATEGORIA DO ESPÍRITO HUMANO: A NOÇÃO DE PESSOA, A DE "EU" 369 i. O sujeito: a pessoa 372 n. O personagem e o lugar az pessoa 383 iii. Kpersona latina 385 IV. Apersona 390 v. A pessoa: fato moral 392 vi. A pessoa cristã 394 vn. A pessoa, ser psicológico 397 viu. Conclusão Sextaparte 399 AS TÉCNICAS DO CORPO 401 i. Noção de técnica do corpo 409 ii. Princípios de classificação das técnicas do corpo 412 in. Enumeração biográfica das técnicas do corpo 420 iv. Considerações gerais Sétimaparte 423 MORFOLOGIA SOCIAL 425 Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós 504 Anexos 507 Bibliografia geral 527 Sobre o autor In memoriam, por Henri Lévy-Bruhl 8 Sumário Prefácio à primeira edição (z9-5b) Ao publicar esta miscelânea de estudos do saudoso Mareei Mauss, acredita- mos satisfazer um justo desejo há muito expresso pelos sociólogos, os etnógra- fos e os estudantes dessas duas disciplinas. Com efeito, cada um desses estu- dos, e particularmente os dois primeiros que são os mais importantes desta coletânea, constituem verdadeiras monografias sociológicas de primeiríssima ordem e de um conteúdo mais nco que muitos livros inteiros. O fato de que os leitores se vissem na impossibilidade de consultá-los sem pesquisá-los em pe- riódicos nos quais estavam dispersos constituía um verdadeiro estorvo para o trabalho científico, tanto na França quanto no estrangeiro. Estamos particu- larmente felizes que uma obra-prima da sociologia francesa como A dádiva possa enfim aparecer num volume separado e facilmente manejável, graças a esta nova coleção, "Biblioteca de sociologia contemporânea ", da qual ele constitui um dos primeiros volumes. Não nos propusemos de maneira nenhuma incluir nesta coletânea o con- junto das publicações sempre importantes de Mareei Mauss. Estudos tão fa- mosos como as Variações sazonais das sociedades esquimós* e como a dissertação Fragmento de um plano de sociologia geral descritiva, sem falar do início da tese de Mauss sobre A prece, nem de seu estudo tão conhe- cido sobre O sacrifício e artigos escritos em colaboração seja com Durkheim, Algumas formas primitivas de classificação, seja com Fauconnet, Socio- logia (na Grande Encyclopédie Française^), e outros mais, não puderam encontrar lugar nesta coletânea. As ratões disso são diversas. Acreditamos poder reservar, para uma publicação das obras completas de Mauss, estudos tais como as Variações * Desde a terceira edição (1966), Sociologia e antropologia compreende, segundo desejo ex- presso por Georges Gurvitch antes de sua morte, o ensaio de Mareei Mauss sobre as socie- dades esquimós, publicado inicialmente em Année Sociologique (Mauss 1904-05) e jamais reimpresso depois. [Nota dos editores franceses] Nossos conceitos gerais são ainda instáveis e imperfeitos. Creio sin- ceramente que é por esforços conjugados, mas vindo de direções opostas, que nossas ciências, psicológicas, sociológicas e históricas, poderão um dia tentar uma descrição dessa penosa história. E creio que essa ciência, o sentimento da relatividade atual de nossa razão, é que talvez há de inspi- rar a melhor filosofia. Permitam-me concluir desse modo. Quarta parte EFEITO FÍSICO NO INDIVÍDUO DA IDÉIA DE MORTE SUGERIDA PELA COLETIVIDADE* Austrália., Nova Zelândia i. Definição da sugestão coletiva da idéia de morte n. Tipos de fatos australianos in. Tipos de fatos neozelandeses e polinésios * Extraído ao Journal de Psychologie Normale et Pathologique, 1926. Comunicação apresen- tada à Sociedade de Psicologia. 344 Psicologia e sociologia 345 O estudo sobre as relações da psicologia e da sociologia1 era inteira- mente de método. Mas um método só se justifica se ele abre um cami- nho, náGoSoç, se é um meio de classificar fatos até então rebeldes à classificação. Ele só tem interesse se tiver um valor heurístico. Passe- mos portanto ao trabalho positivo e mostremos que, por trás de algu- mas asserções que me permiti, havia fatos, em particular os que mostram a ligação direta, no homem, do físico, do psicológico e do moral, isto é, do social. Eu vos indiquei que, num número muito grande de sociedades, uma obsessão pela idéia de morte, de origem puramente social, sem ne- nhuma mistura de fatores individuais, era capaz de tamanhas devasta- ções mentais e físicas, na consciência e no corpo do indivíduo, que ela provocava sua morte em pouco tempo, sem lesão aparente ou conhecida. E vos prometi apresentar documentos, uma demonstração e, se não uma análise, ao menos uma proposição de análise. Aqui estão eles, abertos ao debate e submetidos à vossa crítica. Mas, antes, definamos o problema. 1. Journal de Psychologie, 1924: 892. Cf. Terceira parte, supra. 347 i. Definição da sugestão coletiva da idéia de morte Não confundiremos esses fatos com aqueles, no entanto vizinhos, ou- trora confundidos com eles sob o nome de Tanatomania. O suicídio é com freqüência, nas sociedades que vamos estudar, o resultado de uma obsessão do mesmo gênero; a maneira como o indivíduo, em certos es- tados de pecado ou de magia, multiplica seus atentados à própria vida, em particular entre os Maori, manifesta essa sugestão persistente. Esta pode ter, portanto, exatamente as mesmas formas, só que tem conse- qüências diferentes no sistema de fatos que vamos descrever.1 Pois, nesse caso, a vontade e o ato brutal de matar-se intervém. A influência do social sobre o físico conta com uma mediação psíquica evidente; é a própria pessoa que se destrói, e o ato é inconsciente. A ordem dos fatos de que irei vos falar é, de nosso ponto de vista, e para a nossa demonstração, muito mais impressionante. Trata-se de casos de morte causada brutalmente, de forma elementar, em numerosos indivíduos, mas simplesmente porque eles sabem ou crêem (o que é a mes- ma coisa) que vão morrer. Entre esses últimos fatos, porém, é conveniente separar aqueles em que essa crença e esse saber são - ou podem ser - de origem individual. Veremos em seguida que, nas civilizações consideradas, eles muitas ve- zes se confundem com os que examinamos de forma mais precisa. No entanto, é claro que, se o indivíduo está doente e acredita que vai mor- rer, mesmo se a doença é causada, segundo ele, pela feitiçaria de um outroou por pecado próprio (de cometimento ou de omissão), pode- mos afirmar que a idéia da doença é o "meio-causa" do raciocínio cons- ciente e subconsciente. 1. Alguns casos desse gênero serão encontrados no bom catálogo de informações africanas de Steinmetz 1907. Ver, em particular, os suicídios por perda de prestígio, freqüentes ainda entre nós e na China, e que foram tão numerosos na Antigüidade. 349 Portanto, consideraremos somente os casos em que o sujeito que morre não se crê ou não se sabe doente, e apenas por causas coletivas preci- sas julga-se em estado próximo da morte. Esse estado coincide geralmente com uma ruptura de comunhão, seja por magia, seja por pecado, com as forças e coisas sagradas cuja presença normalmente o sustenta. A cons- ciência é então invadida por idéias e sentimentos que são totalmente de origem coletiva, que não revelam nenhum distúrbio físico. A análise não chega a perceber nenhum elemento de vontade, de escolha ou de ideação voluntária da parte do paciente, ou mesmo de distúrbio mental indivi- dual, exceto a própria sugestão coletiva. O indivíduo acredita-se enfeiti- çado ou julga-se em pecado, e morre por essa razão. Eis portanto o tipo de acontecimentos aos quais restringimos nosso exame. Outros fatos, de suicídio ocasionado ou de doença motivada pelos mesmos estados de pecado ou de enfeitiçamento, são evidentemente menos típicos. Ao com- plicar assim nosso estudo por uma circunscrição tão detalhada, tornamo- lo mais simples, mais impressionante e mais demonstrativo. Esses fatos são bem conhecidos em numerosas civilizações, ditas inferiores, mas parecem raros ou inexistentes nas nossas. O que lhes confere um caráter social ainda mais marcado; pois eles dependem evi- dentemente da presença ou da ausência de um certo número de institui- ções e de crenças precisas desaparecidas do leque das nossas: a magia, as interdições ou tabus etc. Mas, embora numerosos e conhecidos nesses povos, eles ainda não foram submetidos — creio eu — a um estudo psico- lógico e sociológico um pouco profundo. Bartels2 e StolP citam um bom número deles, mas os confundem com os outros e não vão além da co- leta de fatos tomados dos povos mais diversos. Contudo, seus livros são suficientes para dar uma boa idéia da difusão desse tipo de fatos na hu- manidade. Quanto a nós, procedamos mais metodicamente; concentre- mos nosso estudo em dois grupos de fatos de dois grupos de civilizações: uma, a mais inferior possível ou a mais inferior conhecida: a australiana; a outra, já bastante evoluída e que certamente passou por vicissitudes, é a dos Maori, malaio-polinésios da Nova Zelândia. Limitar-me-ei a uma escolha de fatos nas compilações que constituímos, o falecido Hertz e eu.4 Teria sido fácil multiplicar as comparações; em particular na 2. Mediçin der Naturvolker (1893:10-13). 3. Suggestion und Hypnotistnus in der Volkerpsy- chologie (1894). 4. Hertz examinara admiravelmente a maior parte dos documentos publica- dos sobre a Nova Zelândia antes da guerra. Ele preparava um grande trabalho sobre O > América do Norte, na África,5 fatos do mesmo gênero são freqüentes, tendo sido inclusive bem descritos pelos velhos autores. Mas é preferí- vel concentrar nossa atenção em duas espécies de fatos vizinhos, no entanto bastante afastadas uma da outra para que a comparação seja possível, e das quais conhecemos bem as naturezas, bem como o funcio- namento em si e em relação ao meio social e ao indivíduo. Uma breve descrição das condições mentais, físicas e sociais em que se elaboram casos desse tipo não é inútil. Fauconnet", por exemplo, a propósito da responsabilidade em sociedades diversas, e Durkheim, a propósito de numerosos fatos religiosos australianos, como o ritual fu- nerário e outros,7 descreveram bem os impulsos violentos que animam os grupos, os medos e as reações violentas a que eles podem se expor. Mas essas dominações totais das consciências individuais, engendradas no grupo e pelo grupo, não são as únicas. As idéias então elaboradas se mantêm e se reproduzem no indivíduo sob a pressão permanente do grupo, da educação etc. À menor ocasião elas desencadeiam devasta- ções e superexcitam as forças. A intensidade dessas ações do moral sobre o físico é tanto mais notável na medida em que este, nesses povos, é mais forte, mais rude e mais animal do que entre nós. É um fato de observação corrente, da etnografia australiana e de muitas outras, que o corpo do indígena pos- sui uma espantosa resistência física. Seja por causa da ação do sol e da vida no estado de nudez completa ou quase completa, seja por causa da baixíssima septicidade do ambiente e dos instrumentos antes da chegada dos europeus, seja por causa de certas particularidades dessas raças sele- cionadas precisamente por esse gênero de vida (em particular, pode ha- ver em seus organismos elementos fisiológicos, soros e outros, diferen- tes dos das raças mais fracas, elementos que Eugène Fischer começou a > pecado e a expiafão nas sociedades inferiores, cuja introdução foi publicada (Revue de 1'fiistoire dês Religions, 1921) e cujo restante, reescrito por mim, espero poder publicar, graças às admiráveis notas e a importantes fragmentos que restam de uma grande obra. Ele deparava com essa questão a propósito da noção de pecado mortal. Tomei a liberdade de servir-me dessa documentação. Eram fatos que me interessavam a propósito de pesquisas sobre a origem da crença na eficácia das palavras na Austrália, e, sobre esse ponto, meu exa- me da publicação etnográfica sobre os indígenas australianos é igualmente bastante com- pleto. No entanto, indicarei em detalhe apenas um pequeno número de descrições, difíceis de encontrar, deixando de lado os autores conhecidos. 5. Ex. Casalis, Basulos: 269. b. La Responsabilité (1920). 7. Formas elementares da vida religiosa (1912). 35° Idéia de morte 351 totalmente relacionada à nota abaixo. pesquisar ainda com pequeno sucesso), seja qual for a causa, o fato é que, mesmo em relação aos negros africanos, o organismo do australia- no distingue-se por espantosas faculdades de recuperação. A parturiente retorna de imediato a suas ocupações, põe-se a caminhar após algumas horas; incisões formidáveis na carne cicatrizam com rapidez; em algu- mas tribos, uma punição usual consiste em enfiar uma lâmina na coxa da mulher ou do homem; fraturas de braço são rapidamente curadas com talas simples. Todos esses casos contrastam singularmente com ou- tros acontecimentos. Um indivíduo é ferido, mesmo levemente; ele não tem nenhuma chance de se restabelecer se acredita que a lança está enfeitiçada; outro quebra algum membro, e só se restabelecerá rapida- mente no dia em que tiver feito as pazes com as regras que violou, e as- sim por diante. O máximo dessas ações do moral sobre um físico desse gênero é evidentemente ainda mais sensível nos casos em que não há nenhum ferimento e que se enquadram exclusivamente em nosso assunto. O campo de observações neozelandesas é igualmente fértil em fa- tos típicos, embora os neozelandeses tenham organismos mais delicados e menos resistentes aos agentes físicos do que os australianos. É um lu- gar comum de sua etnografia, sobretudo antiga, antes da chegada da varíola e outras doenças dos europeus que os dizimaram, a observação de sua força, de sua saúde, da rapidez das cicatrizações, das curas, quan- do o moral não é atingido. Mas eles nos interessam de outros pontos de vista. Os neozelandeses são, como todos os malaio-polinésios, os mais expostos, entre os homens, a esses estados "pânicos". Todos já ouviram falar do amok malaio: homens (são sempre homens), mesmo nos dias de hoje e mesmo nas grandes cidades, para vingar um insulto ou a morte de um dos seus, saem a matar quantas pessoas puderem, até que eles próprios sejam abatidos. A humanidade neozelandesa e malaio-poliné- sia em geral é a terra de eleição de emotividades desse gênero. É nelaque Hertz, por uma acertada escolha, começou a analisar esses efeitos espantosos dos mecanismos da consciência moral. Os Maori, em parti- cular, apresentam os pontos máximos de força mental e física por causa moral e mística, e também os pontos mínimos de depressão pelas mes- mas razões. No livro de Hertz se encontrarão detalhes dessa demonstra- ção cujo interesse apenas indicamos. n. Tipos de fatos australianos 352 Idéia de morte Os australianos consideram como naturais as mortes que chamamos violentas. Um ferimento, um assassinato, uma fratura são causas natu- rais. A vendeta desencadeia-se com menos força contra o assassino do que contra o feiticeiro. Todas as outras mortes têm por causa uma ori- gem mágica ou então religiosa.1 Já na Nova Zelândia são os aconteci- mentos de origem moral e religiosa que sugerem ao indivíduo a idéia dominante de que ele vai morrer, e mesmo os feitiços são geralmente conhecidos como destinados sobretudo a fazer cometer um pecado. Ao contrário, os fatos australianos apresentam-se em proporção inversa. O número de casos em que a morte é causada pela idéia de ela ser o resul- tado fatal de um pecado é - ao que sabemos - bastante raro, e encontra- mos somente um pequeno número deles, em sua maior parte relativos a crimes contra o totem, em particular seu consumo,2 ou então a alimen- tos interditos por classes de idade. Eis aqui dois casos bastante típicos destes últimos, que Durkheim não chegou a considerar.3 "Se um jovem Wakelbure (moça ou rapaz) come caça proibida etc., ele adoece e prova- velmente definha e morre, soltando gritos da criatura em questão." É o espírito dessa criatura que entrou nele e que o mata.4 O outro é um caso ilustrativo5 que nos interessa mais. O sr. McAlpine empregava um garoto 1. Lévy-Bruhl estudou esses fatos várias vezes do ponto de vista da noção de causa (Fonc- tions mentales dons lês sociétés inféríeures, 1910; e Mentalitéprimitive, 1922). 2. Colecionamos cuidadosamente esses fatos, Durkheim e eu. Uma enumeração deles será encontrada em Formas elementares da vida religiosa (1912: 84, n. 1-4; cf. p. 184, n. 2). Eles se verificam sobre- tudo nas tribos do Centro e do Sul, Narrinyeri, Encounter Bay Tribe etc. Esclareçamos que, no caso do tabu do Yunbeai (Mrs. Parker 1905: 20), este é o totem individual e não o totem do clã. 3. Howitt 1904: 769. 4. Esse caso de obsessão e de possessão é típico de nosso ponto de vista (cf. Samoa) e também do ponto de vista das relações entre o indivíduo e as forças que podem tornar-se más e substituir seu espírito pelo delas. 5. Id. ibid. 353 Kurnai em 1856-57. Era um negro forte e saudável. Um dia o encontrou doente. Ele explica que tinha feito o que não devia, tinha roubado uma fêmea de marsupial antes de ter a permissão de comê-la. Os velhos ha- viam descoberto e ele sabia que não cresceria mais. Deitou-se, por assim dizer sob o efeito dessa crença, e não voltou mais a se levantar, morren- do em três semanas. Assim as causas morais e religiosas podem causar a morte também entre os australianos, por sugestão. Este último fato serve igualmente de transição com os casos de morte de origem puramente mágica. Houve ameaça da parte dos velhos. Aliás, como muitas mortes infligidas por magia decorrem de vendeta ou de punições6 decretadas em conselho e são no fundo castigos, o indivíduo que se crê enfeitiçado por essas deci- sões jurídicas é também atingido moralmente, no sentido estrito da pa- lavra, e o conjunto dos fatos australianos não está tão distante do con- junto dos fatos maori como se poderia pensar. No entanto, trata-se normalmente de magia. Um homem que se crê enfeitiçado morre, eis aí o fato brutal e inumerável. Citemos alguns casos de observação, de pre- ferência antigos e bem observados, geralmente durante acontecimentos precisos, até mesmo por naturalistas e médicos. Backhouse,7 antes de 1840, em Bourne Island, relata que um homem se crê enfeitiçado, diz que morrerá no dia seguinte e morre de fato. No distrito de Kennedy, em 1865, no estudo dos Éden,8 uma velha empregada irlandesa censura a uma empregada negra seu egoísmo, dizendo-lhe: "Morrerás logo por seres tão cruel". "A mulher ficou parada por um minuto, suas mãos caí- ram, empalideceu... e, desesperada, sob o efeito das palavras, consumiu- se e, em menos de um mês, morreu." Autores antigos relatam esses fatos de maneira mais geral. Austin, o explorador do distrito de Kimberley,9 em 1843, observa a surpreen- dente vitalidade dos negros e sua surpreendente e mortal fraqueza à idéia de que estão enfeitiçados. Segundo Froggitt,10 um naturalista, quando "um negro sabe que isso (a feitiçaria) foi feito contra ele, "he waste away withfright", "ele se consome de pavor". Um autor diz ter 6. Por exemplo, a descrição do Kurdaitcha arunta e loritja, em Strehlow 1915, iv, n: 20; magia por causa de luto, p. 34. Os casos de suicídio australianos são raros. Strehlow nos diz, em dois momentos, que eles são desconhecidos entre os Arunta e os Loritja. "Eles são mui- to apegados à vida." 7. Blackhouse 1843:105. 8. C. H. Éden 1872: no-n. 9. Publicado por Roth igozb: 47, 49. 10. Froggitt 1888: 654. 354 Idéia de morte observado, por volta de 1870, um homem que declarou que morreria certo dia, e que morreu nesse dia "por puro poder imaginário"." O evangelizador do norte de Victoria, reverendo Bulmer, é geralmente muito afirmativo a propósito de certas tribos12 nas quais presenciou es- ses casos. Numa das tribos do Queensland com menos contato, o evan- gelizador afirma (é uma frase de "sabir" anglo-australiano? é um fato?) que, se não se achar contrafeitiço, "o sangue go bad (fica ruim) e o en- feitiçado morre".13 Foram observados casos em que o indivíduo morre inclusive num momento determinado. Noutros, bastante raros, que escapam à magia mas ainda assim pertencem ao social e ao religioso, quando há obsessão por um morto, isso também é assinalado. O mesmo Backhouse conta como um negro de Molombah morreu em dois dias, após ter visto um "pálido" morto lhe dizer que ele morreria nesse tempo.14 O assassino do botânico Stevens, em 1864, morreu em um mês, na prisão. O morto olhava para ele com desdém.15 Uma lenda dieri — um documento desse gênero vale para nós toda a observação -, perfeitamente transcrita,16 conta como um ancestral divino, o Mura Wanmondina, abandonado por sua tribo, desejou morrer e morreu. Ele próprio se enfeitiçou pelo rito do osso ao fogo. Quanto mais ele sofria, mais se regozijava. Seu fim foi como ele desejava. O estudo da cura dessas obsessões e dessas doenças é tão demons- trativo quanto o de suas conseqüências mortais. O indivíduo fica cura- do se a cerimônia mágica de exorcismo, se o contrafeitiço funciona, tão infalivelmente quanto ele morre no caso contrário.17 Dois observadores recentes, um deles médico, contam como se morre pelo "osso de morto" entre os Wonkanguru, feitiço que lhes causa um grande pavor. Se esse osso é encontrado, o enfeitiçado melhora; caso contrário, ele piora. "A medicina européia não inspira confiança. Ela nada pode contra o feitiço, não é da mesma categoria que ele."18 Convém ler toda a história contada a Sir Baldwin Spencer, o grande fisiologista e antropólogo, por um dos velhos kakadu, um certo Mukalakki. Jovem, ele comera por descuido a 11. H.-P., Australian Blacks (Lachlan River), Australian Anthropological Journal Science of M. L (ia série, i): 100, col. i. 12. Bulmer s/d.: 13. 13. A. Ward 1908 (observações feitas com Hey, colaborador de Roth). 14. Blackhouse 1843: 105 (cerca de 1850). 15. Letters of Victo- rian Pioneers. 16. Siebert 1910: 47. 17. Newland, Parkingi, Roy. Geog. of. S. Austrália, n: 126. 18. Aiston e Horne 1923: 150, 152. 355 carne de uma certa serpente proibida em sua idade. Um velho percebe o fato. "Por que comeste? És um homenzinho... ficarás muito doente", dis- se." Ele respondeu, muito assustado: "O quê! vou morrer?" E o velho exclamou:"Sim, aos pouquinhos, morrer.".20 Quinze anos mais tarde, Mukalakki sentiu-se mal. Um velho médico-feiticeiro perguntou-lhe: "O que comeste?". Então ele recorda e conta a antiga aventura. "É isso, hoje morrer",21 responde o doutor indígena. Ele sentiu-se cada vez pior du- rante a jornada. Eram precisos três homens para segurá-lo. O espírito da serpente havia se enrolado em seu corpo e de tempo em tempo saía-lhe pela testa, silvava em sua boca etc. Era terrível. Foram até bem longe para buscar uma ilustre reencarnação de um célebre médico-feiticeiro, chamado Morpun. Este chegou a tempo, pois as convulsões da serpente e de Mukalakki eram cada vez mais horrorosas. Ele mandou as pessoas em- bora, olhou em silêncio Mukalakki, viu a serpente mística, pegou-a, colo- cou-a numa bolsa mágica, levou-a embora para sua terra, onde a pôs num poço dizendo-lhe que ali ficasse. Mukalakki "sentiu-se imensamente ali- viado. Transpirou abundantemente, dormiu e ao amanhecer estava resta- belecido... Se Morpun não tivesse ido lá para extrair a serpente, ele teria morrido. Somente Morpun tinha poder para fazer isso etc.". Whitnell22 relata, sobre tribos igualmente do norte (noroeste, desta vez), que os "larlow" (santuários e cerimônias dos totens) têm virtudes curativas desse gênero... eficazes mesmo sobre o espírito de crianças pequenas. No fundo, trata-se de manifestar e de restabelecer a comu- nhão com a coisa sagrada essencial. Assim, o dieri que se crê enfeitiçado salva-se ao entoar o canto sagrado de seu clã, de seu antepassado, a mura-wima,2* e mesmo o canto de um certo antepassado tornado inven- cível.24 Um canto de origem cristã miscigenada, relatado por Bulmer25 e composto no enterro de um negro convertido, dizia que ele estava pro- tegido da morte por ser "cheered iyyour helping spirit". Um dos melho- res etnógrafos do centro australiano26 apoia a interpretação de Guyon e de Howitt a propósito das cerimônias do Mindari (iniciação e propicia- ção) e dos rituais de contramagia e de intichiuma. O sentido destes era mostrar aos homens que eles estavam em paz com o mundo inteiro. 19. Spencer 1914: 349-50. 20. Vemos aqui a imprecação reforçar a sanção físico-moral do tabu. 21. Repetição da imprecação. 22. Whitnell 1904: 6. 23. Siebert 1910: 46, col. 2. 24. Canto do Wodampa, id. ibid.: 48, col. i. 25. Bulmer s/d.: 43. 26. Worsnop (que infeliz- mente pouco escreveu) 1886, n. 356 Idéia de morte Essas mentalidades estão completamente impregnadas pela crença na eficácia das palavras, no perigo dos atos sinistros. Elas também es- tão infinitamente preocupadas com uma espécie de mística da paz da alma. E é assim que a confiança na vida se perde definitivamente ou readquire seu equilíbrio por meio de um auxiliar, mágico ou espírito protetor cuja natureza é ela própria coletiva, como o é também a rup- tura de equilíbrio. 357 m. Tipos de fatos neozelandeses e polinésios Estas descrições são igualmente uma espécie de traço comum da etno- grafia dos Maori e de toda a Polinésia. Um de seus melhores conhece- dores, Tregear,1 voltou com freqüência ao assunto. A resistência física dos Maori é extraordinária e famosa. Talvez ela não exceda a de nossos antepassados de dois mil anos atrás. No entanto, as cicatrizações eram extraordinárias. Tregear cita casos notáveis: por exemplo, o de um ho- mem que viveu até uma idade avançada sem mandíbula, que lhe fora arrancada por um obus em 1843. Essa resistência contrasta fortemente com a fraqueza em caso de doença causada por pecado ou por magia, mesmo sem gravidade num ou noutra. O velho e excelente autor Jarvis Havaii descreve nestes termos o estado assim provocado: a conseqüên- cia do enfeitiçamento é a morte "por falta de apetite de viver", por es- pírito de "fatal despondency" [abatimento fatal], por "pura apatia".2 Um provérbio das ilhas Marquesas dizia, antes da chegada dos euro- peus: "Somos pecadores, morreremos". Uma alternativa domina toda a consciência, sem meio-termo. De um lado, a força física, a alegria, a solidez, a brutalidade e a simplicidade mental; de outro, a excitação sem limite e sem trégua3 do luto, do insulto, ou então a depressão, igualmente sem limite e sem trégua, e sem transição, a lamentação so- bre o abandono, o desespero, e por fim a sugestão da morte.4 Newman5 considera que esta afeta inclusive a taxa de mortalidade. "Sem dúvida nenhuma, numerosos maori morrem de pequenas indisposições, sim- plesmente porque, atacados, não lutam contra a doença, nem tentam 1. Tregear, J.P.S.,v. 2: 71, 73; 1904: 20-ss. 2. Havaii: 20, 191: "want exenion to Kve". 3. Que pode chegar até ao homicídio ou ao suicídio, diz Colenso, ver mais adiante. 4. Resumo da descrição dessa mentalidade por Colenso (documento recolhido em cerca de 1840), in Transactions of the New-Zealand Institute, i: 380. 5. Newman, "Causes leading to the extinc- tion of the Maori", Transactions, xiv: 371. 358 Idéia'âe morte resistir a seus danos, mas enrolam-se em seus cobertores e deitam-se precisamente para morrer. Parecem não ter mais força de alma, e seus amigos olham para eles sem escutá-los, sem fazer nada, aceitando a sorte deles como se fosse necessária." Em todo caso, os próprios maori classificam assim as causas de suas mortes:6 a) morte pelos espíritos (violação de tabu, magia etc.); b) morte na guerra; c) morte por deca- dência natural; d) morte por acidente ou suicídio.7 E eles atribuem à primeira dessas causas a maior importância. O sistema dessas crenças é portanto o mesmo que na Austrália. Só que os resultados, e portanto a intensidade das crenças, se distribuem de outro modo. São as noções puramente morais e religiosas que dominam. O encantamento e o feitiço desempenham assim o mesmo papel que na Austrália, mas a moralidade do polinésio, rica, tortuosa, no entanto bru- tal e simples em suas revoluções ou por seus efeitos, é a causa da maioria das mortes. Em todo caso, eis aqui alguns fatos que provam a continui- dade desses dois tipos. Em primeiro lugar, embora o totemismo polinésio seja bastante humilde, sobretudo na Nova Zelândia, ele deixou justamente traços como meio de representar certas causas de morte. Em Tonga,8 particu- larmente, Mariner conta que um homem que comeu tartaruga proibida teve o fígado aumentado e morreu por causa disso. Mas é sobretudo nas ilhas Samoa que os tabus (totêmicos) violados se vingam. O animal ab- sorvido fala, age no interior, destrói o homem, come-o e ele morre.9 Mariner conta10 de que maneira uma mulher (espírito) persegue o espí- rito de um jovem chefe. O tohunga [feiticeiro] lhe diz que ele morreria em dois dias, e ele morre. Noutros lugares, é um deus monstro que morre enfeitiçado." As mortes em conseqüência de um presságio são igualmente freqüentes.12 6. Elsdon Best, in Goldie, "Maori Medicai Lore", Trans. N.-Zeal Inst., v. 37: 3; cf. v. 38: 221. 7. Vê-se que eles não cometem o erro de confundir suicídio e depressão mortal. Mas tampouco devemos buscar nessas divisões - recolhidas entre os teólogos da tribo de Tuhoe - uma precisão que elas não possuem. Assim, ferimentos recebidos na guerra são também conseqüências de uma magia ou de um pecado. 8. Mariner & Martin 1817, li: 133. 9. (Crenças de Salevao, principalmente.) Turner, 1884: 50, 51. Na Nova Zelândia, a idéia parece aplicar-se apenas às sanções do culto do lagarto. Goldie, loc.cit.: 17. 10. Mariner & Martin 1817, i: 109, m. 11. (Mito ngai tahu.) H.-T. (de Croiselles), inj.P.s., v. 10, 73. 12. Elsdon Best 1898: 13. Sobre essas mortes, essas obsessões etc., ver White 1864; Goldie, loc.cit.: 7. 359 Mas é essencialmente a morte por "pecado mortal" que é freqüen- te, sobretudo em terra maori. Aliás, a expressão é deles. As inúmeras descrições são geralmente muito circunstanciadas e com muitas alter- nativas mitológicas: a alma fica pesada; ela está presa, atada em cordas, fios e nós; ela se ausenta; ela é pega; ela não é o único espírito que ha- bitao corpo; ela tem um vizinho que a persegue; ou então é ferida por um animal ou uma coisa que invade o corpo ou que invade ela própria. Todas essas expressões são certamente familiares ao neurologista e ao psicólogo, mas encontram aqui um emprego amplo, seguro, tradicional e individual. Convém, no entanto, não abstrair demais o efeito de sua causa. Os Maori têm um senso refinado de moral e de escrúpulo. Hertz fez uma bela análise desses mecanismos complicados e típicos, da qual extraímos duas indicações: a morte por magia é muito freqüentemente concebida e geralmente só é possível em conseqüência de um pecado prévio. In- versamente, a morte por pecado não é geralmente senão o resultado de uma magia que fez pecar.13 Adivinhação, presságio, espíritos ("aitu", "atua") podem também se misturar ao acaso.14 São verdadeiros males de consciência que provocam os estados de depressão fatal,15 eles próprios causados por essa magia de pecado que faz que o indivíduo se sinta culpado, induzido à culpa.16 Por sorte, dispomos do trabalho de um médico sobre esse conjunto de fatos. O dr. Goldie, auxiliado por um dos melhores etnógrafos, Elsdon Best, elaborou sobre eles uma teoria, inclusive comparativa.17 O capítulo intitula-se: "Melancolia fatal com 13. Sobre o makulu, magia, e opahunu, pecado provocado, ver Tregear 1904: 201. 14. Tri- bos de Tuhoe. E. Best 1898: 119-53. Se o "atua", o espírito auxiliar, não é mais forte, ele "waste away" [se dissipa]. 15. Sobre o whakapahuna, fazer pecar, ver Best (Tuhoe), "Maori Magic", igoib: 81; 1902: 52, fazer que "a consciência agarre" o enfeitiçado. 16. Sobre o "fazer pecar" ("w/iakahehe"), ver Shortland 1854: 20. 17. Goldie, "Maori Medicai Lore": 78, 79. Comparações tomadas de Andrew Lang 1887 (Atkinson, sobrinho de Andrew Lang, sobre um caso canaque; Fison e um informante de Howitt, sobre casos em Fiji e na Aus- trália; Codrington, sobre a Melanésia). Goldie serve-se (p. 8o) do termo tanatomania e diz que o número de casos é imenso. No Havaí, um mágico, a quem um europeu dissera que também era feiticeiro, morreu de fraqueza. Nas ilhas Sandwich (Havaí), em 1847, por ocasião de uma epidemia, multidões sucumbiram, não apenas pela doença, mas pelo pavor e por essa fatal melancolia. Essa epidemia foi chamada Okuu, porque as pessoas entregaram a ela (okuu) suas almas e morreram. Em Fiji, do mesmo modo, em casos de epidemia, as pessoas tornam-se incapazes de salvar-se e de salvar as outras; dizem que estão "taqaya", esmagadas, desesperadas, apavoradas, e abandonam toda a esperança de viver. 360 Idéia de morte desfecho rápido". As pessoas "querem para si a morte" ("wülto death"}.™ Eis alguns fatos que ele cita. O doutor (depois Sir) Barry Tuke conhe- ceu um indivíduo de boa saúde, de constituição hercúlea. Ele morreu em menos de três meses por causa dessa "melancolia". Um outro, de aparência excelente, e "seguramente sem nenhuma lesão das vísceras torácicas", "perdeu o gosto da vida"; disse que ia morrer e morreu em dez dias. Na maioria dos casos estudados por esse médico, o período foi de dois ou três dias. Outros fatos são históricos, registrados por Shortland, por Taylor etc. Aconteceram em público. A bordo do barco do governador, o velho chefe Kukutai, quando viu o cabo Norte e a falésia, porta do País dos Mortos, ofereceu sacrifícios às almas, lançando ao mar roupas brancas, primeiro dos tripulantes e inclusive dos ministros, depois as suas pró- prias; "sua prostração foi tal que todos temeram por seus dias". Mas permitam-me apresentar, além desses fatos concretos, docu- mentos literários maori. Um canto célebre, o da filha de Kikokko, relata bem os sentimentos do doente." Sol brilhante, ainda estás no céu, Avermelhando com teus raios o cume de Pukihinau. Fica ainda aí, Sol, fiquemos juntos! ... Ai, nada podes di^er, amiga (mãe)! Whir (Deus da guerra e dos castigos) decidiu assim, Ele cravou seu machado em meus ossos e os desarticulou, Estou partido como um galho que o golpe Arrancou de seu tronco e que, ao cair, Num estalo, se fe^ em pedaços... etc. ... Eu ofi^. Trouxe para mim essa morte que vem de Deus (Hert^). E agora aqui, como esquecida, Estou privada de todo amparo, Emagrecida, abandonada. (Segundo Herti, ^em melhor:) Exausta pelo sofrimento ("sem alma"), De meu corpo, (oprimida, exaurida) 18. Goldie op.cit.: 77, 81. 19. A cópia por Goldie (p. 79) não se compara nem ao texto com- pleto, nem à tradução de C. O. Davis 1855:192 (texto), p. 191 (versão), nem sobretudo à que Hertz preparou. Goldie omite o apelo — muito euripidiano — ao sol. 361 Deito-me para morrer. (Hert^, bem melhor: "por isso o corpo volta-se para morrer")20 Eis a conclusão do dr. Goldie: Essa tendência fatalística tão freqüentemente observada... e que leva à morte após um intervalo de depressão mais ou menos longo, de profunda depressão e falta de vontade de viver, deve-se aos efeitos de um temor supersticioso que age sobre um sistema nervoso particularmente suscetível (p. Jj)— Penso que ninguém tentou explicar a ra^ão da morte devida a essa curiosa forma de melancolia. O vulgo supõe que a vítima "se entrega à morte ", mas não podemos seriamente atribuir tal desfecho fatal à força de vontade do sel- vagem. A característica principal do espírito maori é sua instabilidade. Seu equilíbrio mental está à mercê de mil incidentes cotidianos, ele é o joguete de circunstâncias exteriores. Como seu cérebro não foi submetido a uma cultura moral e intelectual prolongada e metódica, falta aquele balanceamento men- tal característico dos povos altamente civilizados. Ele é incapa^ de governar- se. Chorará e rirá pelas ratões mais fúteis; explosões de alegria e de tristeza podem desaparecer num instante... (Goldie cita aqui numerosos exemplos). Nesse curioso estado mental chamado a "histeria do Pacífico", o paciente, após um período preliminar de depressão, fica subitamente excitado, pega uma faca ou uma arma e precipita-se através da aldeia, golpeando todas as pessoas que encontra, causando danos sem fim, até cair, exausto. Se não en- contrar uma faca, ele pode ir até afalésia, lançar-se no oceano e nadar várias milhas até que o salvem ou se afogue. Essa excitação histérica violenta é co- mum a todas as ilhas, assim como o estado oposto de depressão súbita e pro- funda... Segue a descrição dos resultados lamentáveis de uma sessão espírita realizada depois de funerais. Uma das jovens irmãs ouve o espírito do morto, excita-se, prostra-se, decide segui-lo e mata-se em poucas horas. Portanto, num povo que é assim altamente emocional, cujo cérebro se acha num estado de equilíbrio instável, sujeito a uma excitação excessiva ou a umaprofunda melancolia; num povo que não tem medo da morte, no qual o instinto de preservação da vida é espantosamente fraco, que é profundamen- te supersticioso, que atribui poderes maléficos ilimitados aos deuses e aos feiticeiros malignos, quando alguém que possui essas características mentais 20. Um outro canto descreve a obsessão do animal implantado na carne, desta vez por magia. 362 Idéia de morte num grau acentuado se convence de que é vítima de um deus poderoso ou de um tohunga (feiticeiro), o choque nervoso excessivo torna todo o sistema nervoso "parede" [paréticoj; ele não oferece resistência ao estado de estu- por que então ocorre; o indivíduo se absorve em si e se fixa na idéia da enormidade de seu pecado e do caráter desesperado de seu caso; ele é a víti- ma sem esperança de uma melancolia de ilusão, ilusão todo-poderosa que o submerge: ele ofendeu os deuses e morrerá. Ele esquece o interesse das coi- sas exteriores; o estado mórbido é centralizado de uma forma inteiramente aguda; a depressão nervosa é grande, há perda de energia física, e essa depressão secundária estende-se gradualmente a todos os órgãos; as funções vitais se deprimem, o coração se deprime, os músculos involuntários se en- torpecem, e finalmente produz-seuma completa "anergia " ou a morte. O espírito privado de equilíbrio sucumbe sem combate à violência do choque de um medo supersticioso invasor, (p. y9-81). Submeto essa conclusão simplesmente à vossa reflexão. Em sua lingua- gem envelhecida do ponto de vista médico, ela tem sua importância, e seu valor certamente deverá permanecer. Aliás, a extensão desses fatos dificilmente seria exagerada. Citamos apenas um número muito pequeno dos que conhecemos. Para terminar, vejamos um dos fatos mais consideráveis e trágicos, o dos Moriori das ilhas Chatham, conquistados pelos Maori em 1835 e reduzidos a apenas 25 homens dos 2000 que eram. Shand, seu intérprete, conta como eles foram transportados para a Ilha do Sul, e o que disseram seus conquistadores:21 *$ jV Oi Maori diriam: "Não é o número dos que matamos que os redu^üc assim. Depois de tê-los tomado como escravos, os encontrávamos com freqüência mortos, de manhã, em suas casas. Era a infração a seu próprio tabu que os matava (a obrigação de fa^er atos que dessacrali^avam seu tabu). Eles eram um povo muito tabu ". E conhecemos o famoso texto de Jó22 que corresponde ainda tão profun- damente a tantas mentalidades que dizemos anormais, mas que não o eram nessas civilizações: 21. Shand, J.P.S., v. 3: 79. 22. Jó, xxxn, 16 a 21, Bíblia, Ed. Ave Maria. 363 A comunidade está bastante integrada. Faz parte de suas categorias do conhecimento todo o "conhecimento" sobre como o indivíduo morre por feiticeira, quebra de tabu ou espírito maligno. Assim esta representação coletiva está totalmente integrada aos indivíduos da sociedade que, ao se perceberem em tais situações, morrem de fato. É o que faz sentido para eles, o corpo obedece ao pensamento. Então Deus abre o ouvido do homem e o assusta pelas suas aparições /...para salvar sua alma do fosso e sua vida da seta mortífera. /Pela dor também o homem em seu leito é instruído, quando todos os seus membros são agitados, / quando recebe o alimento com desgosto e já não pode suportar as iguarias mais deliciosas; /sua carne some aos olhares, seus membros emagrecidos se desvanecem; /sua alma aproxima-se da sepultura e sua vida daqueles que estão monos. Esses são os fatos. Dispenso-vos de toda discussão psicopatológica e neuropatológica. Todas as testemunhas, inclusive médicos, dizem que não há nenhuma lesão aparente nesses casos, ou algum mal sensível à auscultação etc. Não sei. Observações seriam necessárias. Talvez pu- désseis suscitá-las. Enquanto sociólogo, basta-me indicar, conforme vos havia prome- tido, uma direção na qual encontrei numerosos exemplos normais, ou pelo menos freqüentes em sua anormalidade. Trata-se de um gênero de fatos que, no meu entender, deveriam ser estudados com urgência, aqueles em que a natureza social reencon- tra muito diretamente a natureza biológica do homem. Esse medo pâni- co que desorganiza tudo na consciência, até mesmo o que chamamos o instinto de conservação, desorganiza sobretudo a própria vida. O elo psicológico é visível, sólido: a consciência. Mas ele é frágil; o indivíduo enfeitiçado ou em estado de pecado mortal perde todo o controle de sua vida, toda escolha, toda independência, toda personalidade. Além disso, esses fatos figuram entre aqueles fatos "totais" que, penso, devem ser estudados. A consideração do psíquico, ou melhor, do psico-orgânico, é insuficiente aqui, mesmo para descrever o complexo inteiro. A consideração do social é necessária. Inversamente, a simples consideração desse fragmento de nossa vida que é nossa vida em socie- dade não basta. Vê-se aqui de que modo o "homo duplex" de Durkheim se situa com mais precisão, e de que modo podemos considerar sua du- pla natureza. Por fim, desse duplo ponto de vista, do estudo da totalidade da consciência e da totalidade da conduta, penso que esses fatos são inte- ressantes. Eles opõem essa "totalidade" daqueles que chamamos impro- priamente primitivos, à "dissociação" característica dos homens que 364 Idéia de morte somos, sentindo nossas pessoas e resistindo à coletividade. A instabili- dade de todo o caráter e da vida de um australiano ou de um Maori é visível. Essas "histerias" coletivas ou individuais, como as chamava ainda Goldie, não são mais, entre nós, senão casos hospitalares ou de homens rústicos. Elas formam a ganga da qual, lentamente, nossa soli- dez moral se separou. Para terminar, quero ainda mencionar que esses fatos confirmam e ampliam a teoria do suicídio anômico que Durkheim expôs num livro modelar de demonstração sociológica.23 23. O suicídio [iS<)i]. 365 1.pdf 2.pdf 3.pdf 4.pdf 5.pdf