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Cronistas do século XVI como fonte de pesquisa cartográfica e arqueológica1 Jefferson da Silveira Martins/Angela Buarque UFF/Instituto de Geociências, Departamento de Análise Geo-Ambiental Avenida Litorânea s/n, Campus da Boa Viagem CEP 24.251-970 - Niterói - RJ jffsm@ig.com.br UFRJ/Museu Nacional, Departamento de Antropologia, Quinta da Boa Vista s/n, São Cristóvão CEP 20.940-040 - Rio de Janeiro - RJ abuarqu@terra.com.br RESUMO Nosso trabalho tem por objetivo analisar as informações cartográficas contidas nos cronistas do século XVI que deixaram suas impressões sobre o território brasileiro. Ao desenvolvermos este trabalho temos um marco (data) definido: a descoberta (sic) do Brasil. As primeiras cartas, ainda ligadas aos cânones do comportamento social e religioso da Europa, impregnadas de preconceitos, religiosidade, limitações técnicas e de saber, entre outros, representavam um Novo Mundo, ou um Mundo Expandido e, agora, verdadeiramente, fechado sobre si mesmo. Estas informações traziam indicações da existência de outros povos, outras culturas, outros e novos saberes. Muitas destas culturas e povos pereceram por diversas razões quando entraram em contato com os europeus. Alguns registros ficaram como primeiras indicações para indagações futuras. ABSTRACT Our work aims to analyze the existing cartographic information left by 16th century chroniclers who left their impressions about the Brazilian territory. On developing this work we have a defined milestone (date): The discovery of Brazil. The first maps - still linked to the canons of social and religious behavior in Europe - impregnated with prejudice, religiousness, technical and knowledge limitations, represented - among other things - a New World or an Expanded World and, at that point, a world really closed in itself. This information brought indications of the existence of other peoples, other cultures and new knowledge. Many of these cultures and peoples perished for different reasons when they got in touch with the Europeans. Some records remain as first indications for future questioning. 1 Apoio Museu Nacional/UFRJ e FAPERJ (Projeto “Soberanos da Costa”) São variadas as fontes de informações históricas para a presença de grupos indígenas em território brasileiro, à época do descobrimento. Sem negar sua importância, enfatizamos que devem ser relativizadas por terem origem diferenciada: cartas de religiosos (católicos e protestantes), crônicas de viajantes, de aventureiros, relatos de colonizadores que, nas suas narrativas, deixam transparecer critérios ideológicos e políticos e interesses específicos, além do fato de documentarem uma sociedade em seu momento de desestruturação, devido à presença do colonizador europeu. Apesar dessas restrições, esses documentos, usados com critério, nos possibilitam fazer inferências cartográficas e arqueológicas sobre os espaços ocupados por essas sociedades nos momentos iniciais do período colonial (Buarque 1999: 308). Vamos focalizar, em particular, as informações relacionadas ao litoral do atual Estado do Rio de Janeiro, ocupado, dentre outras, por tribos indígenas relacionadas aos Tupinambá. Essas populações horticultoras e ceramistas, que estavam associadas aos grupos falantes da língua Tupi-guarani, tinham bastante homogeneidade cultural e lingüística e habitavam a faixa litorânea, desde o norte do país até São Paulo, quando os europeus aqui chegaram no século XVI (Buarque op. cit.:307). As datações obtidas para os sítios arqueológicos pesquisados na Região dos Lagos indicam uma longa ocupação, em um período que vai desde 2.600 ± 160 BP (Laboratório Prime, USA) até tempos coloniais, como comprovam os achados de contas, em sítios arqueológicos de Araruama, que foram utilizadas no escambo do pau-brasil, um comércio intenso ocorrido na costa brasileira no século XVI. Através da Cartografia, com seu traçado realista característico dos séculos XVI e XVII, as terras e os mares recém-descobertos ganham contornos mais precisos, em particular a costa, ambiente mais visado naquele momento (Belluzzo, 1994: 66). Juntamente com a delimitação do novo continente, chegam-nos as informações sobre as nações indígenas que povoavam as novas terras e faziam o escambo do pau-brasil. No mapa Terra Brasilis (1515-1519), atribuído a Lopo Homem, temos uma detalhada descrição da costa brasileira, onde a retirada da madeira vermelha, tão valorizada pelo europeu, ganha destaque visual impressionante (Fig. 1). Fig. 1 Carta Terra Brasilis, atribuída a Lopo Homem Esta carta, cujo original se encontra na Biblioteca Nacional de Paris, representa a costa do Brasil desde o Norte, com o registro a partir da foz do Amazonas até o rio da Prata, com ênfase na representação dos acidentes geográficos e a intensa discriminação da toponímia, sugerindo uma exuberante floresta, com fauna variada e até mitológica, resquício da tradição ptolomáica assumida pela cartografia da Igreja Católica àquela época. Registra, ainda, a melhor reprodução, do início do XVI, da Guanabara como baía (“R. de Janeyro”), e não como foz de rio. Realce especial para a atuação dos indígenas na derrubada de árvores, relacionada ao comércio do pau-brasil. Nesta representação, o autor não discrimina as tribos que ocupavam o litoral. A carta desenhada em Dieppe por Jacques de Vau de Claye, de 1579 (Fig. 2), corresponde ao Rio de Janeiro (Belluzzo, op. cit.: 71), com destaque, na parte inferior, para a Região dos Lagos, onde nota-se a ocorrência de aldeias indígenas nas proximidades da lagoa de Araruama. Segundo o autor, a da direita se refere à “Escalle de Paratitou”, local hoje denominado Paracatu, pertencente a Araruama, cujo nome da aldeia é “Syryzi”. Estamos trabalhando com a hipótese de essa representação corresponder ao sítio arqueológico Serrano ocupado pelos Tupinambá, onde o contato com o europeu está presente em toda a sua complexidade. Foram recuperadas peças que atestam a interação das duas culturas, em uma etapa em que a sociedade nativa ainda não havia sido destruída (Buarque & Cordeiro, no prelo). Fig. 2 Carta de Jacques de Vau de Claye Nas pesquisas realizadas nessa aldeia foram recuperadas facas líticas com retoques por pressão, machados polidos, polidor de hastes e raspador, que dividem espaço com miçangas de vidro, de seis formas distintas, facas de ferro, porcelanas “borrão azul” e uma cota de malha metálica para cavalheiros. Na cerâmica encontram-se alças, gargalos e outros elementos. O contágio virótico dos primeiros tempos também está ratificado: foram encontrados, até o momento, 23 sepultamentos em urnas (Buarque & Cordeiro, op. cit.). É importante, também, destacar que, embora apresentando pouca precisão, as cartas, quando devidamente associadas ao texto dos viajantes, se complementam para ajudar na identificação do local. As técnicas e observações, embora com instrumentos pouco precisos, usando as medidas planimétricas em braças e em léguas e os ângulos tomados com bússolas, cujas leituras raramente passavam do meio grau, eram um grande desafio para a época. Nos dois mapas apresentados, de origens diversas, um português e outro da tradição normanda (francesa), à exceção dos paralelos, não há referências seguras quanto às longitudes, ainda não dominadas, o que viria a ocorrer alguns séculos após. Acrescentamos que, por vezes, as dificuldades aumentam na interpretação desses documentos por serem segredo de Estado,contendo dados codificados, como atualmente sabemos. Estas constatações valorizam, então, os textos dos cronistas e, ao arqueólogo também cabe a execução da arqueologia dos mapas e das paisagens quando, no campo, correlaciona acidentes geográficos contidos nos relatos ao que temos no presente. O litoral, geralmente detalhado desde as embarcações, sinalizava, por vezes, nas próprias cartas a aproximação de pontos notáveis. Cabo Frio, Falso Pão de Açúcar definiam aos navegadores e viajantes a aproximação da baía da Guanabara. A referência a “Certan de Índios Brabos” indica, para a época, a existência de tribos em conflito com os europeus. A orientação e, principalmente, a Rosa dos Ventos podem, com observações das direções dos ventos predominantes, indicar, no presente, a preferência na definição do local dos aldeamentos junto à costa onde as populações indígenas buscavam auferir conforto ambiental na interação com os elementos do clima local. Desconhecemos trabalhos que estejam sendo ou foram realizados nesta direção. É um desafio. Ao explorar o território, além da linha de costa, os viajantes e exploradores o faziam, pelo que denominamos em Cartografia e Geografia, por caminhos naturais de penetração. Os rios, os vales, as gargantas sempre foram escolhidos, preferencialmente, como rotas de exploração. Daí, as descrições, mais uma vez, sobrepujarem a precisão gráfica das cartas e mapas, valorizando, mais uma vez, o trabalho dos escribas. Outra representação, também, associando arqueologia e cartografia, está presente na Carta América (Fig. 3), de 1606, do gravador e geógrafo Jodocus Hondius (Josse de Hondt). Neste caso, além da representação das Américas Setentrional, Central e Meridional, com detalhado registro da toponímia, destaca-se a vinheta no canto inferior esquerdo da prancha, nos moldes de tantos outros mapas da época renascentista. Foram registradas cenas do cotidiano da tribo Tupinambá em sua preparação do cauim, bebida alcoólica feita da mandioca, mastigada e cuspida pelas mulheres virgens (Miceli 2002: 96). Segundo registro dos cronistas do século XVI, como Hans Staden e Jean de Léry, o preparo da bebida antecedia grandes cerimônias, em particular aquelas relacionadas à antropofagia ritual. Era preparada em grandes potes de cerâmica que eram, posteriormente, reutilizados como urnas funerárias. Muitos desses exemplares são encontrados nos sítios arqueológicos em contexto associado a enterramento. Fig. 3 – Carta América Acompanhando essas urnas são encontrados, ainda, potes e tigelas, como os representados na prancha acima, e compunham uma estrutura funerária (Fig. 4). Cronistas do século XVI fazem menção à presença dessas peças cerâmicas em torno da urna. Segundo Soares de Sousa serviam para colocar alimentos e água para o morto, para Jean de Léry os alguidares com farinha, aves, peixes, potes de cauim serviriam a Anhangá, espírito do mal na mitologia Tupi, para evitar que desenterrasse e comesse o defunto. Fig. 4 – Estrutura funerária A estrutura funerária acima, cujas peças guardam fortes semelhanças com aquelas representadas na Carta América, é composta de urna com tampa, cujos fragmentos estão quebrados no seu interior, além de duas tigelas cuja parte interna é decorada por pintura em vermelho e preto sobre uma base creme, formando desenhos geométricos de alta sofisticação vinculados ao universo simbólico da sociedade Tupinambá. As dificuldades que se apresentam ao desenvolvermos trabalhos dessa natureza se caracterizam pelo distanciamento que temos das fontes originais de pesquisa. Hoje, sabidamente, preservadas em bibliotecas e mapotecas da Europa, o que torna o trabalho não só demorado como oneroso ao pesquisador. Embora tenhamos cópias de boa qualidade publicadas em livros no Brasil, em particular, nos últimos anos, fazendo parte da comemoração dos 500 anos do Descobrimento, os documentos originais sempre apresentam surpresas, não só por reinterpretações possíveis, como também pela clareza e escala de construção. As reduções e formatações gráficas para as páginas dos compêndios tornam algumas representações e escritas difíceis de serem interpretadas em algumas ocasiões. Some-se a isso as dificuldades relacionadas às transformações lingüísticas, como na Carta de Jacques Vau de Clay que faz referência a uma localidade de Paratitou, hoje, provavelmente Paracatu. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELLUZZO, A. M. De M. O Brasil dos Viajantes, vol. 1, Imaginário do Novo Mundo, Editora Metal Livros BUARQUE, A, 1999, A cultura tupinambá no Estado do Rio de Janeiro, in Pré-História da Terra Brasilis, Org. Maria Cristina Tenório, Editora UFRJ, pp. 307-320. BUARQUE, A., CORDEIRO, A. J. 2003. O Sítio Serrano: Franceses e Tupinambá desconheciam o Testamento de Adão, In Anais da SAB, no prelo. LÉRY, Jean de, 1980 – Viagem à Terra do Brasil, Editora Itatiaia Ltda e Editora da Universidade de São Paulo, 303 páginas. MICELI, P. 2002. O Tesouro dos Mapas. A Cartografia na Formação do Brasil, Instituto Cultural Banco Santos p.96. SOUSA, G. S. 1971. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, 4ª ed., SP: CEN e Ed da USP, v. 117, 389 págs. STADEN, Hans. 1974 Duas Viagens ao Brasil, Editora da Universidade de São Paulo & Livraria Itatiaia Editora Ltda, 216 páginas.
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