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Giroletti, Cap 3: A formação da disciplina Obs: Gente, não acho a crase nesse teclado, portanto, todos os “a” que eram com crase saíram > “á”. O componente disciplinar Dá-se por suposto que a disciplina vem embutida na prática pedagógica, na aprendizagem técnica e na incorporação de novos valores e normas. Neste capítulo, Giroletti dá a disciplina um tratamento analítico distinto dos componentes técnicos e ideológicos, embora na prática a qualificação do trabalhador disciplinado seja produto de todo o processo. Durante o capítulo, Giroletti se baseia muito na obra de Foucault (1977), que se refere ao processo de constituição da hegemonia burguesa, e, para isso, foram importantes os dispositivos disciplinares. Para o autor [Foucault], “A disciplina” é um tipo de poder, uma modalidade de exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma “tecnologia” (1977:189). Há uma diferença entre formação disciplinar e treinamento técnico. O treinamento técnico é a aprendizagem de determinadas habilidades e conhecimentos, que dão conta da execução de tarefas simples, parceladas e mecânicas em que está organizado o processo de trabalho da indústria moderna, na qual a máquina-ferramenta ocupa o lugar central. Essa aprendizagem técnica está sujeita a um período de tempo delimitado que depende da complexidade da função para a qual o individuo está sendo treinado, o que difere bastante da disciplina. A partir da formulação de Foucault, o componente disciplinar refere-se basicamente á “submissão das forças e dos corpos”. Diz respeito á ação, ao comportamento, á formação de atitudes, á elaboração dos gestos, á adaptação do corpo, entre outros. Giroletti também da ênfase na diferença entre formação da disciplina e componente ideológico. Para ele o componente ideológico refere-se mais a teoria, ao conhecimento e á inteligência objetivando o convencimento, a adesão, o consentimento do indivíduo a valores e a determinada concepção de mundo. Por sua vez, o componente disciplinar diz respeito á vontade, á submissão do corpo ás novas exigências técnicas de organização fabril que visam não apenas controlar a paixão e os instintos, mas a atuar positivamente na formação de gestos, de posturas, de comportamentos, de atitudes adequadas aos requisitos da fabrica moderna para a qual o individuo está sendo treinado ou submetido. Na prática pedagógica é possível notar essa distinção já que a aprendizagem de um elemento ou de outro implica em procedimentos e técnicas diferentes. Assim, podem-se destacar dois pontos relevantes dessa prática pedagógica. Em primeiro lugar, a assimilação de normas e valores implica que os funcionários hajam de forma disciplinada. Em segundo lugar, temos que, no treinamento, a aprendizagem de dois elementos se processa sempre de forma integrada embora, ao analisar, eles assumem procedimentos distintos de obtenção entre um e o outro, logo, é preciso reiterar as duas dimensões. Para Giroletti, a produção da disciplina é fruto, tanto para Foucault como para Marx, da ação conjunta de vários mecanismos e procedimentos objetivos que implicam na organização material e espacial da produção e do poder. O objetivo do capítulo é descrever parte do processo e dos mecanismos acionados pelos empresários no interior da fábrica, na vila operária e no convento para transformar o homem do campo em operário industrial, dócil e útil. A produção da disciplina na fábrica Mecanismos espaciais, funcionais e regimentais Novamente baseado em Foucault, Giroletti diz que a disciplina surge através da distribuição dos indivíduos no espaço. Para isso são necessárias técnicas como a “cerca”, a “clausura” e o “encarceramento”, que produzem um espaço físico e social fechado. Nele, os indivíduos que antes eram acostumados a viver com liberdade, passam a ser segregados e governados por normas severas de procedimento, alem de assumirem um comportamento fiscalizado para que não saia dos padrões estabelecidos. As primeiras fábricas lidavam com isso de maneira mais rígida. As jornadas de trabalho eram de 12 horas contínuas, os operários eram segregados do meio exterior, do contato com a natureza e do convívio em família. No interior da fábrica, os operários deveriam criar hábitos de obediência e respeito aos superiores, deveriam infundir um ambiente de ordem, organização, limpeza e economia para garantir o funcionamento ordenado da produção fabril sem que houvesse qualquer desperdício, até mesmo de tempo. Além das normas gerais, os operários eram submetidos nas seções a mecanismos específicos para disciplina-los. Todas as fábricas eram divididas em seções. Vigiava-se a pontualidade e o cumprimento do horário, não apenas com a intenção de verificar a presença, mas com o objetivo de extrair, cada vez mais, o tempo produtivo. A pontualidade era requisito imprescindível para o bom funcionamento do sistema e para produzir resultados. A cobrança diária do horário reforçava a formação da disciplina, porque criava novos hábitos de regularidade que passavam a reger toda a vida do operário da biológica á familiar e social. Foucault apontou mais duas técnicas de produção disciplinar alem do cercamento: o “controle do horário” e o “princípio da localização imediata. Cada um no seu lugar, e, em cada lugar, um indivíduo” (1977:131). Para ter um autocontrole nas fábricas formavam-se escalas hierárquicas (Foucault,1977). Eram determinadas as posições sociais de cada indivíduo. Além disso, havia a hierarquia constituída pela escala de salário. O salário dependia da posição social do operário, da sua capacidade de barganha e das suas boas relações com os chefes de seção. A heterogeneidade salarial criava uma diferenciação interna muito grande e isso dificultava a organização dos trabalhadores. Os operários tinham um regulamento que deveria sem cumprido, desta forma, havia um contrato que era assinado pelo empregado mostrando que este tinha conhecimento do regulamento obrigando-se a obedecê-lo sob palavra de honra. Sistema de penalidades e de premiação Foucault dizia que “Na essência de todos os sistemas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal” (1977:159). Para que as ordens emanadas da direção fossem cumpridas era necessário um sistema de punições explicito e pessoas encarregadas de aplicá-lo todas as vezes que se fizesse necessário. Essas penalidades poderiam ser aplicadas devido ao tempo (atrasos, ausência...), á atividade (desatenção, falta de zelo...), á maneira de ser (grosseria, desobediência...), aos discursos (conversar com pessoas de outras máquinas, ler durante o trabalho...), ao corpo (trabalhar assentado), aos gestos e atitudes incorretas (quebrar vidraças, sujar o assoalho...). As penalidades eram de acordo com a gravidade da infração. Em alguns casos a penalidade era uma multa variando o valor de acordo com o delito e a frequência. Em outros era a demissão da fábrica e saída da vila operária. Em outros era a “correção” que as vezes eram castigos corporais como a aplicação da palmatória ou mesmo a exposição ao “tronco” localizado defronte das fábricas ou em lugar de evidência. Embora houvesse as penalidades, havia as premiações. Era preciso incentivos para que os operários atingissem o grau de perfeição almejado em cada fábrica. Havia um sistema de prêmios para os empregados que também constituíam uma caderneta de poupança. Os prêmios não eram pagos em dinheiro, porém em caderneta de juros na Caixa Econômica. Nelas o operário deve depositar uma pequena quantia no fim de cada mês e, assim, tanto os prêmios quanto a poupança constituiriam um fundo que serviria para manter a aposentadoria dos empregados. Foi criada e regulamentada em 1887 a Caixa Econômica para todos os operários.Havia um livro específico, “Registro da Caixa Econômica da Fábrica do Cedro”, o qual os lançamentos eram realizados neste, mas esta não durou muito tempo. Acontece que ainda havia outras formas de gratificação aos operários. Eram distribuídas sobras ou vendas de ações das fábricas. A premiação dos melhores tinha retorno imediato para a companhia, pois aumentava a dedicação, o zelo, a produção e a produtividade. A gratificação não foi, no entanto, um recurso tão generalizado, e sua distribuição muito seletiva. Foi aplicada para premiar os mestres e contramestres e poucos operários, os mais exemplares. Apesar do seu caráter limitado e restritivo, a premiação desempenhou um papel fundamental para a produção da disciplina, na medida em que garantiu e realimentou a dedicação e a lealdade da estrutura intermediária de poder. A construção da disciplina na vila operária O uso do poder político O poder político, que nas sociedades modernas é característico á Soberania do Estado, foi utilizado pelos empresários para determinar o comportamento dos operários e moradores das vilas. Foi basicamente de dois tipos: o poder legislativo e o de polícia. Os regulamentos das fábricas foram escritos para gerar compromissos sociais. O Regulamento da Cedro serviu de modelo para os da Cachoeira, São Sebastião e São Vicente. Nele dizia que estão sujeitos todos os empregados e moradores da Fábrica do Cedro (C.O.,fl.l.grifos nossos). Os destinatários eram claramente nomeados: todos os operários e habitantes da vila. Os empresários proclamavam sua soberania nos domínios internos e externos da fábrica. Para os trabalhadores e moradores não havia escolha possível: ou se submetiam a todas as normas regulamentares, ou passavam á categoria incômoda de contraventores, que, caso se enquadrassem nesta, seriam demitidos da fábrica e expulsos da Vila. A vigilância era extrema nas redondezas. O horário de recolher era 21horas. Depois disso uma fiscalização rigorosa era executada. Mais tarde, com a extensão da luz elétrica, o fornecimento de energia vinculou-se ao cumprimento daquele horário. O poder de polícia era instaurado na tarefa de disciplinamento da mão de obra das vilas operárias. Investiram no poder de taxar, aplicar multas e usar a força, prerrogativas que, nas sociedades modernas, são exclusivas do Estado. Com essas medidas, os empresários coibiam aqueles que eram contra. Além do poder de legislar e de aplicar penalidades fora das relações de trabalho, os industriais, no intuito de controlar o corpo operário, recorreram ao uso da violência nas vilas. Havia a direção e os mestres dentro das fábricas, mas além destes, eram contratadas pessoas para manter a vigilância, a ordem e a disciplina nas vilas operárias. A escolha poderia recair sobre os chefes de repartição, que passavam a ter duas funções. Esse exemplo de acumulação de funções é um dos métodos empregados para manter a ordem dentro da fábrica. Na Cedro, por exemplo, havia policiais particulares, pagos pela companhia, para manter a ordem e o sossego público. Seus membros eram chamados pelo povo de “porreteiros”, por “dar uma lição” naqueles que eram considerados rebeldes. As vilas eram constituídas de duas partes. A primeira, mais central, era formada pelo setor mais urbanizado, com casas de melhor qualidade, servidas de água e posteriormente de luz. A segunda, eram casas feitas de pau-a-pique, cobertas de palha, distantes do núcleo central. A partir do momento em que as vilas operárias se transformaram em cidades, sedes de municípios, os poderes políticos de legislar, multar, fiscalizar e de polícia voltaram á esfera pública: ás prefeituras, ás câmaras municipais ou ás delegacias e aos destacamentos policiais. A manipulação do poder econômico e ideológico O modelo fábrica e vila operária funda seu domínio na manipulação do poder econômico advindo da propriedade e do uso monopolista de bens essenciais, pelos empresários, com fins políticos, de controle dos operários. Os bens essenciais que as fábricas mineiras de tecidos do século XIX manipulavam eram muito variados. Passavam pelo abastecimento, pela moradia, pelas terras de plantio, pelo acesso a rios e lagoas para pesca, pela água, transporte, pela luz elétrica, pelos serviços, educação, lazer, etc. A outra forma posta em prática pelas fábricas para disciplinar os operários foi a utilização de outras instituições de poder. A fundação das fábricas durante o século XIX possibilitou o surgimento de uma nova categoria de operários industriais – os tecelões, o mais numeroso contingente operário em Minas. Quanto ao problema da educação, os empresários organizaram as escolas primárias noturnas para meninos e meninas, que funcionaram nas vilas, muitas vezes ás suas próprias custas. É evidente que o objetivo imediato era a formação dos menores que atuavam nas fábricas. Outra instituição de poder foi a Igreja, que foi de grande utilidade para o disciplinamento dos operários. O catolicismo sempre foi a religião dos brasileiros em geral. Assim, foram construídas capelas que celebravam missa e a presença á missa e aos cultos era um tanto quanto estimulada. Outro campo importante que os empresários investiram para o disciplinamento dos operários e moradores foi o de lazer e diversões. Além disso, tinha a questão da saúde. Antes os empresários não se responsabilizavam pelos acidentes ocorridos nas fábricas e as enfermidades eram resolvidas pela medicina caseira. Mas na década de 1890 foi instalada uma farmácia em cada fábrica para o atendimento dos operários. Outra agência de poder era a família. A instituição familiar era acionada para garantir a continuidade e a perseverança dos operários no trabalho, pelo estimulo ou pela coerção. Contudo, é possível observar que o poder ideológico foi manipulado, indiretamente, por meio do uso de agencias privadas previamente existentes na sociedade civil (como a família, a escola e a Igreja), e diretamente pelas associações especificas criadas por eles, como: bandas de música, associações esportivas, clubes, serviços auxiliares (saúde, hospitais, etc.). O convento Além das instituições vistas anteriormente, havia outras que atuavam na formação da disciplina de uma parte da força de trabalho. A maioria das fábricas mineiras, por preferir operários solteiros, organizou alojamentos para abrigar os trabalhadores que não morassem com os pais, um para homens e outro para mulheres. Esses alojamentos eram designados de formas diferentes. Na Marzagão, em Sabará, o de moças chamava-se “convento” (‘pensão para as operárias’). Acontece que eles queriam construir outro convento. Obs: esses conventos tinham em outras fábricas, como Cachoeira, Cedro, São Sebastião, São Vicente, Beriberi, Montes Claros, etc. Muitas vezes foi preferível a mão de obra feminina tanto por evitar a imobilização de capital na construção de casas para operários, quanto por essa solução possibilitar o pagamento de mais baixos salários as operárias, porque as despesas de manutenção das moçam eram as menores possíveis. Outra razão da preferência por recrutar operárias no convento é o fato delas serem mais constantes e estáveis. Com o tempo as exigências foram aumentando, preferiam mulheres sadias, com prática profissional, inteligentes, sem família, dentre outras características, e, logo, alguns conventos se fecharam. As moças começaram a resistir ao assalariamento e a busca a novas mulheres foi fracassando. A existência de regulamento próprio transformava o convento numa organização fechada. Nele, as moças não podiam agir livremente. Seu tempo e suas atividades eram reguladas coletivamente e deviam obediência á abadessa (pessoa com poderes para dirigir e vigiar o convento). O contato com o mundo exterior era regulado também. Durante os vários depoimentos dados no capítulo aparecem claramente indicados os doisagentes principais na formação da disciplina das moças operárias: o gerente da fábrica e a abadessa, esta subordinada áquele. A presença masculina deveria ser mantida afastada de qualquer maneira para as moças do convento, e nem a relação de parentesco poderia comprometer sua seriedade. Muitas vezes o casamento retirava as moças do convento, e, nesses casos, a saída era compulsória e seguida da demissão do emprego. Os salários eram muito baixos. Com isso, as condições de habitabilidade dos conventos deixavam muito a desejar. Diante disso, pode-se concluir que os conventos foram instituições especialmente organizadas para recrutar força de trabalho feminina para as fábricas de tecidos. Do ponto de vista organizacional, o convento foi uma instituição laica que atuava na formação da disciplina de um segmento importante da classe trabalhadora, a mão de obra feminina que predomina nas indústrias têxteis. O convento era separado do mundo exterior por muros. Os conventos não eram simples pensões, mas instituições que regulavam, administravam e programavam todos os aspectos da vida das moças operárias. O objetivo era transformá-las em trabalhadores da indústria, disciplinadas, dóceis e eficientes. Por fim, a formação da disciplina proveio da atuação conjunta e complementar de todos os mecanismos acionados, postos em prática nos três ambientes – fábrica, convento e vila operária -, tornando os efeitos da ação empresarial mais eficazes, imediatos e duradouros do que os obtidos pelo sistema escolar ou de comunição nos dias atuais.
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