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Unidade 2 Critérios para tipologia dos discursos bioeticistas Bioética se tornou uma pluralidade discursiva tão complexa, difusa e difundida que vários autores já procuram sistematizá-la, sob as mais diversas formas. Um dos primeiros, já em 1978, foi Reich (1978), que coordenou uma tentativa de compilar essas discussões sob a forma de enciclopédia, da qual resultou a Enciclopédia de Bioética, revisada pela primeira vez em 1995. Em 1998, Singer e Kuhse (2001) organizaram um compêndio, Compêndio de Bioética, que tomou como ponto de partida justamente a pluralidade de opiniões sobre temas e defi nições de Bioética. Ainda no âmbito das produções coletivas, dessa vez sob a tutela de entidades representativas, temos três importantes declarações. a) Declaração de Gijón, produzida pelo Comitê Científi co da Sociedade Internacional de Bioética, em junho de 2000; OBJETIVO DESTA UNIDADE: Tipifi car os paradigmas, enfoques, vertentes e valorações classifi catórias das narrativas bioeticistas. BIOÉTICA: discursos, paradigmas e enfoques Curso de Bioética40 b) Declaração Ibero-Latino-Americana, datada de 1996 e revisada em 1998, produzida pelos participantes do Encontro sobre Bioética e Genética de Manzanillo, em 1996, e de Buenos Aires, em 1998, procedentes de diversos países da América Ibérica e da Espanha; e, c) Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, homologada pela Unesco, em 2005, durante sua 33a conferência. Em todos os casos, individuais ou coletivos, tratam-se de compilações consensuais que focam a discussão em problemas éticos e políticos típicos dos países capitalistas desenvolvidos, o que produziu novos dissensos. Em função desse perfi l, vários autores da África e da América Latina vêm destacando a necessidade da inserção de questões pertinentes aos problemas dessas regiões do planeta nas discussões sobre Bioética. Na América Latina, como é o nosso caso, tem se sobressaído tanto a imitação de modelos bioeticistas tipicamente euro-americanos quanto a busca por modelos mais consonantes com a ética da vida. Por ética da vida, na ótica de Clotet (2003, p.47), tem se nomeado a luta dos povos desse continente por alimentação, saneamento básico, transporte, trabalho, renda, justiça e dignidade, culminando na necessidade de uma Bioética da pobreza. O argumento de Clotet (2003) para a inserção de uma Bioética da Pobreza é o de que a peste do século XX não é a Aids, mas a pobreza. Em função disso, se não houve desenvolvimento técnico-científi co na América Latina que justifi que o temor do descontrole da ciência, tal como tem aparecido na Europa e EUA pós-guerra, há, no mínimo, o temor da cobaia. A razão desse temor seria decorrente das revelações que vieram à público com os escândalos de Nuremberg (Alemanha nazista), em 1947, e Belmonte (EUA), em 1978, nos quais fi cou-se sabendo que as populações mais vulneráveis foram (ou são?) usadas como cobaias para testes de novos fármacos e técnicas terapêuticas. No Brasil, em termos de produção coletiva sob a forma de compêndios e manuais já temos uma quantidade a perder de vista, como nos mostra Braga (2002). No entanto, com o intuito de compilar os diversos Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 41 sentidos de Bioética somos mais tímidos, destacando-se os esforços de Pessini e Barchifontaine (2005), Zoboli (2003), Pozzi (2001) e Gurgel (2010). Classificação dos paradigmas de Pessini e Barchinfontaine Pessini e Barchifontaine (2005, p.46-49) propuseram, em 1995, a reunião dos mais diversos sentidos da Bioética americana em 10 paradigmas, a saber: • Principialista; • Libertário; • Das virtudes; • Casuístico; • Fenomenológico e hermenêutico; • Narrativo; • Do cuidado; • Do direito natural; • Contratualista; e, • Antropológico personalista. Classificação dos enfoques de Zoboli Zoboli (2003, p.29-31) rejeita a nomenclatura paradigmas, preferindo enfoques, e tornou popular quatro: • Principialista; • Das virtudes; • Do cuidado; e, • Casuística. Classificação das vertentes valorativas de Pozzi Pozzi (2001) também não chama de paradigmas, mas de Vertentes valorativas da Bioética Contemporânea. Trata-se de uma sistematização dos tipos de discursos com base na análise de conteúdos. Para essa autora, existem vertentes valorativas que podem ser usadas como Curso de Bioética42 marcadores dos conteúdos discursivos sobre Bioética. Sua análise propõe três modelos: situacionista, moderantista e oposicionista, conforme se observa no quadro a seguir: Quadro 1: Vertentes valorativas da Bioética Contemporânea de acordo com Pozzi Bioética Situacionista Bioética Moderantista Bioética Oposicionista Dissolução crítica do sujeito de conhecimento na aceitação da suposta neutralidade tecno-científi ca. Perspectiva crítica do sujeito de conhecimento no contexto da vigília sobre os usos e aplicações do conhecimento. Perspectiva crítica do sujeito de conhecimento a partir da mudança de cosmovisão e da natureza do conhecimento. Bases racionalistas, utilitaristas, positivistas, pragmáticas, tendo o sujeito pleno domínio da liberdade e exercício ilimitado das possibilidades do conhecer, intervir e agir. Bases racionalistas e deontológicas. Bases fi losófi cas de crítica ao racionalismo e ao dualismo. Incorporação do sentimento como elemento constitutivo de moralidade. Metafísica. Microética secular. Macroética secular e religiosa institucional. Macroética secular/mística/religiosa institucional. Justifi cadora e legitimadora do progresso quantitativo ilimitado. Utópica. Crítica do progresso quantitativo ilimitado e suas possíveis consequências Ajustes na utopia. Crítica ao progresso quantitativo ilimitado através de propostas superadoras. Não- utópica. Antropocêntrica contemporânea com bases no individualismo e apologia do sujeito racional na perspectiva dualista. Antropocêntrica com incorporação da solidariedade social e discussão sobre sentido mais abrangente da alteridade. Não-antropocêntrica e não contemporânea. Aplicada. Normativista. Estabelecimento de regras de ação sobre critérios mínimos sem aprofundamento no campo axiológico. Tentativas de articulação entre o campo dos valores e das normas. Em fase de grande esforço de fundamentação teórica. Bioética de resultados. Efi cácia. Ação a-posteriori. Adequação social aos benefícios. Imperialismo do Fazer. Inevitabilidade do processo. Bioética analítica. Implicações e avaliações sociais, políticas, econômicas e culturais do impacto tecno-científi co. Ação a posteriori. Avaliação dos riscos e benefícios. Delimitação do fazer e adequação prudente do ser perante sua potencialidade. Inevitabilidade do processo: necessidade de controle. Bioética analítica e ação a-priori. Desconstrução dos pressupostos fundacionais da tecnociência e previsão negativa a longo prazo dos avanços tecno- científi cos. Perspectivas superadoras em termos de pensamento e ação. O fazer visto a partir de doutrinas do Ser. Especialização e institucionalização ofi cial. Institucionalização, transdisciplinaridade. Transdisciplinaridade e institucionalização alternativa. Cosmovisão Moderna Cientifi cista. Cosmovisão Moderna não cientifi cista. Cosmovisão Pós-Moderna. Visão «molecular» e reducionista, da Natureza, entendida como matéria em movimento, máquina (fenômenos externos).Objeto exterior de domínio. Reprodução e hereditariedade objetivadas em sistemas determinísticos. Os seres vivos são redutíveis às suas partes físicas e bio-químicas elementares.Manipulação empírico intervencionista e abstração matemática. Intervenção no processo evolutivo natural. Mantém a ideia de um objeto de conhecimento despojado de valor e a separação do Ser e do Dever-Ser, sem questionar os pressupostos ônticos da cosmovisão científi ca. Teorias biológicas da auto-organização e dos sistemas complexos(cosmovisão sistêmica). Holismo. Filosofi as e teorias (busca de fundamentos fi losófi cos, científi cos e religiosos que favoreçam o entendimento da Natureza do ponto de vista teleológico e fi nalístico. Os seres vivos não podem ser reduzidos às suas partes. Interdependência e interconexão. Ser humano: ser vivo singular e em vínculo de pertença. Responsabilização formal e resolução de confl itos entre partes. Responsabilização formal crítica Responsabilização ontológica. Fonte: POZZI (2003, p.315) Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 43 Classificação das valorações axiológicas de Gurgel Por fi m, mas não menos importante, Gurgel (2010) faz uma leitura analítica das narrativas bioeticistas e propõe classifi cá-las pela análise axiológica das valorações (GURGEL, 2003) com as quais esses autores operam. As perguntas norteadoras são: o que se encontra como sentido oculto nas mais diversas abordagens de Bioética? O que há além do espetacular em muitos desses acontecimentos que têm passado à ordem do dia como o jeito contemporâneo de se fazer ética? Qual o sentido ontológico, aquele que designa as propriedades do termo Bioética e cuja valência está para além de suas delimitações consensuais? A que tem servido esse termo na sociedade contemporânea? A hipótese apresentada em Gurgel (2010) é a de que Bioética é uma valoração como outra qualquer, portanto, submetida às mesmas regras axiológicas da valoração em geral, conforme observa-se na estrutura dos seus proferimentos. Essas regras nos dizem que uma sentença axiológica é uma valoração (ou juízo de valor) cujos termos estão defi nidos pelos seguintes tipos de valorações bioeticistas: • Bioética como valoração normativa; • Bioética como valoração aplicada; • Bioética como valoração descritiva; e, • Bioética como valoração analítica. Graças à sua simplicidade, e como o objetivo não é cobrir todas as tipologias dos paradigmas bioéticos, vamos aprofundar, neste curso, a classifi cação proposta por Zoboli (2003), ao mesmo tempo que acrescentamos algumas contribuições ao seu trabalho. Teoria dos Enfoques em Bioética A multiplicidade de discursos é reunida por Elma Zoboli em quatro enfoques, já mencionados, cada um com suas variantes internas, mas que podem funcionar como tipos-ideais nos quais são pensados contemporaneamente a Bioética. A saber: Curso de Bioética44 Enfoque principialista O Enfoque principialista dá ênfase aos princípios e aos atos, mais afi liado à Ética normativa. De acordo com Zoboli (2003, p.25), Tom Beauchamp e James Childress, em 1979, se tornaram os responsáveis pelo lançamento desse enfoque, especialmente após a publicação da obra Princípios de ética biomédica, em 1979, na qual sugerem uma Ética médica fundamentada em quatro princípios: a benefi cência, a não- malefi cência, a autonomia e a justiça. As teorias principialistas de Beauchamp e Childress (2001) repousariam sobre as teses de Ross (1930), para o qual os princípios são prima facie, isto é, obrigam a ação de forma condicional – dependendo do contexto no qual ocorrem os confl itos. Não há, portanto, uma hierarquia de valores a priori. É bem verdade que nem todo principialista permanece fi el à tese condicionalista de Ross (1930). Alguns, como Gracía (1998), já romperam com essa postura e buscam trabalhar com um principialismo hierárquico. Em suma, o Enfoque principialista tem as seguintes qualidades, como escreve Zoboli (2003, p.27): O principialismo não faz abstração de caos, porque as compreensões dos princípios e de suas implicações tornam-se possíveis com a realização de juízos em circunstâncias concretas. O enfoque principialista, com efeito, centra-se na análise dos atos, especialmente os confl itivos, buscando o modo de resolver as pendências. Assim, nas deliberações relativas à assistência médico- sanitária, esta teoria ética pode, e deve, dialogar com outras. Os princípios constituem referenciais que alertam para a necessidade de não ser malefi cente, de não ser injusto, de respeitar a autonomia das pessoas e de ser benefi cente para com elas. O principialismo tem infl uenciado muitos autores brasileiros, em especial aqueles de tendência mais normativa. No entanto, mesmo autores que pregam que Bioética é única e exclusivamente uma espécie de Ética aplicada, têm recorrido a esses princípios. Enfoque da casuística De acordo com Zoboli (2003), outro enfoque nos estudos atuais de Bioética é o da casuística. Esse, mais de tendência histórica, se liga Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 45 diretamente às preocupações de médicos, teólogos e fi lósofos que estavam voltados para os problemas que assolavam o mundo na década de 1960, especialmente, na sociedade norte-americana. Trata-se de uma postura que traz as discussões teóricas para a análise de casos concretos, como lembra Zoboli (2003, p.28): “[...] percebem- se discutindo casos, e não teorias, sentindo a necessidade de uma abordagem que se mantenha mais próxima das particularidades e circunstâncias da situação em foco”. Essa postura recebeu o nome de “método de casos”, e fi cou assim defi nida: A análise de questões éticas, usando procedimentos de equacionamento baseados em paradigmas e analogias, levando à formulação de uma opinião de expertise sobre a existência e a abrangência de obrigações morais particulares, que são moduladas em termos de regras e máximas que são gerais, mas não universais ou invariáveis, uma vez que asseguram o bem com certeza somente nas condições típicas do agente e das circunstâncias do caso (JONSEN; TOULMIN, 1988 apud ZOBOLI, 2003, p.28). Clotet (2003) comunga com essa postura. Para ele, a Ética aplicada trouxe novo fôlego à pesquisa fi losófi ca no âmbito da Ética. Após citar o trabalho de Stephen Toulmin, How medicine saved the life of ethics, ele atesta: [...] este encostamento da ética fi losófi ca tradicional aos grandes problemas da humanidade tirou da apatia e isolamento os grandes especialistas e propiciou o diálogo multidisciplinar sobre alguns dos grandes temas que afetam a humanidade (CLOTET, 2003, p.30). Para fundamentar sua hipótese, Clotet (2003) recorre a alguns raciocínios da Ética contemporânea, uma espécie de recurso à autoridade. Esse recurso complementa a argumentação a favor de uma Bioética aplicada. São eles: Falar claramente Aqui Clotet (2003) recorre a Bernard Williams, que tem uma proposta de aproximação conceitual entre a linguagem da Filosofi a moral e a Curso de Bioética46 linguagem em que são tratados os problemas. Para Williams (apud CLOTET, 2003, p.30): “[...] os fi lósofos da moral devem aproximar-se e examinar as questões atuais em cujos termos as pessoas pensam os problemas de hoje”. Falar consensualmente Nesse ponto, a autoridade evocada é H Tristam Engelhardt, que tem uma proposta de unifi cação de alguns paradigmas de moralidade em meio à diversidade cultural axiológica. Diz Engelhardt (apud CLOTET, 2003, p.31): [...] é imprescindível ao nosso desafi o moral e cultural contemporâneo a justifi cação de alguns princípios morais que possam ser compartilhados por pessoas diferentes numa época de apatia e fragmentação moral. Falar utilmente Agora ele recorre a Richard M Hare, talvez o mais “agressivo” de todos,que é fi liado à tese de que a Medicina salvou a Ética, por isso, a Ética tem como tarefa primordial pensar os problemas concernentes à Medicina. Para Hare (apud CLOTET, 2003, p.31): [...] se o fi lósofo moral não pode ajudar nos problemas de ética médica, deve fechar a loja. Os problemas de ética médica são tão fortemente ligados à fi losofi a moral, que sempre foi considerado que esta poderia oferecer uma grande ajuda nesse terreno; e se fosse assim, seria explícita a inutilidade dessa disciplina ou a incompetência profi ssional da mesma. A tese de Hare é reforçada com o argumento de David C Thomasma. Esse último compartilha da tese do anterior, apresentando a aproximação da Filosofi a moral aos problemas da Medicina como uma obrigação moral do fi lósofo. Diz Thomasma (apud CLOTET, 2003, p.31): “[...] estou defendendo que os fi lósofos não podem oferecer ajuda nas consultas, senão que devem fazê-lo”. A clareza das ideias e a superação de um discurso individualizado e inútil formam os paradigmas de uma Ética pública, que tipifi ca o que Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 47 esse enfoque chama de “era do discurso moral público”. Essa era teria, na opinião de Clotet (2003, p.32), como característica dominante, a “transição da ética especulativa para a ética aplicada”. Tal postura tem uma crença: the good reasons approach (aproximar as boas razões) Trata-se de uma crença nascida dentro da abordagem da Ética normativa que prega a possibilidade de os juízos morais serem racionais, imparciais e informados. Alguns dos pensadores fi liados ao the good reasons approach eram metaéticos, que se renderam posteriormente à Ética aplicada. Ainda sobre essa postura, Zoboli (2003, p.29) esclarece que: [...] os casuístas consideram que no equacionamento e no juízo éticos não se apela aos princípios, direitos ou virtudes, mas a casos paradigmáticos, analogias, modelos, esquemas classifi catórios e inclusive à intuição imediata e à capacidade de discernimento Como “método de casos”, esse enfoque prisma pelos casos acontecidos ou alguns experimentos mentais como realidade a ser debatida pelos bioeticistas. Oportunamente, neste curso, faremos alguns exercícios aplicando essa metodologia. Enfoque das virtudes Se o enfoque anterior está direcionado para os atos, para os casos, este se direciona aos sujeitos, aos agentes, “[...] com vistas a defi nir seus hábitos e suas atitudes de caráter” (ZOBOLI, 2003, p.29), o que chamamos virtude. Mas, o que vem a ser isto que nomeamos virtude, não é uma tarefa fácil. Esse enfoque, um tanto especulativo, procura critérios éticos objetivos para decidir sobre a moralidade dos atos e sujeitos humanos. Assim, uma ação pode até ser virtuosa, embora o sujeito que a pratica não. A sugestão para a compreensão de virtude dada por Zoboli (2003) é a greco-cristã, mas, especialmente, aristotélico-tomista. Há outras evidentemente, mas desde que Bioética se move, primordialmente, em ambiente cristão, ela tende a aceitar algumas contribuições da teologia Curso de Bioética48 tomista, em especial, na confecção de um arcabouço moral para o mundo contemporâneo. Em suma, as virtudes têm sido vistas como “um componente motivacional dos princípios éticos” (HAUERWAS apud ZOBOLI, 2003, p.29). De certo modo, o Enfoque das virtudes está ligado ao principialismo, no sentido de que pensa ser possível estabelecer uma relação entre os princípios fundamentais de Bioética e as virtudes que lhe são correspondentes. Zoboli (2003) mostra que Beauchamp e Childress (2001) já tinham essa preocupação e estabeleceram a seguinte relação: Quadro 2: Relação entre princípios e virtudes em Bioética Princípios Virtudes correspondentes Autonomia Respeitabilidade Não-malefi cência Não-malevolência Benefi cência Benevolência Justiça Justiça Fonte: Zoboli, 2003, p.30 No entanto, a relação entre princípios e virtudes não é forte o sufi ciente para se proteger de críticas. Por um lado, há quem defenda uma postura liberal dentro de Bioética que pense a relação entre sujeitos do ponto de vista contratual, como uma relação de consumo, na qual impera uma “Medicina de estranhos” (nas palavras de Robert Veatch). Por outro lado, há uma postura revisionista que não aceita a pronta relação entre os princípios e as virtudes, mas também não descarta a possibilidade de uma fundamentação de princípios e regras éticos. Essa é a posição, por exemplo, de Alasdair MacIntyre ao publicar em 1994 a obra After Virtue, na qual defende uma contextualização histórica dos princípios e regras morais, evitando assim a postura ético-metafísica. Para esse autor, as normas morais são produtos de uma socialização solidária de certas questões e desafi os enfrentados por determinadas comunidades históricas, e que, através de um processo global de socialização, vão-se constituindo como paradigmas morais universalizados. Se remontarmos novamente aos paradigmas éticos do aristotelismo- tomista, temos algumas características dominantes dentro da Ética que são consideradas pelo especialista em Bioética que se deixa “Medicina de estranhos”, ou mais precisamente uma “Medicina entre estranhos”, corresponde à nossa realidade de prontos-socorros e hospitais lotados com atendimentos impessoais e altamente rotativos. Como não haveria um paradigma de virtudes para nortear essas relações elas fi cariam a mercê do direito. Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 49 orientar por esse enfoque: as propriedades das virtudes e as condições de possibilidades para que um ato seja considerado ético. Propriedades das virtudes As virtudes possuem quatro propriedades: é um hábito adquirido, é um hábito voluntário, é uma ação mediana (meio-termo), é um ato prático. Essas propriedades admitem variáveis, mas juntas constituem o fundamento da ética aristotélica. A virtude como um hábito adquirido O hábito, ou disposição de caráter, na qualidade de uma propriedade da virtude, faz dessa uma aquisição pela repetição dos atos mediante um esforço e a tenacidade na prática do agir bem; e não como algo que brota espontaneamente da natureza humana. A “natureza” (physis) dá, ao mais, certas aptidões ou disposições, tanto para as virtudes morais como para as virtudes intelectuais. Isso explicaria uma certa variedade nos modos de agir entre os homens, pois, as disposições com as quais os indivíduos nascem são diferentes e os tornam mais ou menos susceptíveis às paixões. Mas, chegar a converter tais disposições em hábitos fi rmes e permanentes requer um longo exercício e às vezes uma luta enérgica para vencer as inclinações torcidas e submetê-las ao domínio da racionalidade. A virtude como um hábito voluntário As virtudes, tais como os vícios, não são atos constituídos apenas do conhecimento, mas também, e principalmente, da vontade: não basta somente conhecer o bem para praticá-lo, ou conhecer o mal para não cometê-lo, é preciso querer. Desse modo, longe é esta daquela teoria atribuída a Sócrates: o vício é a ignorância da ciência que é a virtude. Isso não signifi ca que a ética não seja um saber. Ao contrário, como Filosofi a da prática não se trata de uma “competência cognitiva” Curso de Bioética50 (episteme) direcionada para o saber enquanto tal, mas pelo saber que torna prudente. Assim, a prudência se torna sinônimo da própria Ética: o homem ético é o homem prudente. Contudo, ninguém aprende a ser prudente sem que a sua vontade participe deste ensino. O ato voluntário constitui matéria privilegiada no exame sobre as virtudes. No exame dado por Aristóteles à escolha, o elemento conhecimento é completadopor um outro que se situa entre ele e a escolha: a vontade, que necessariamente deve ser livre. Ao que os cristãos posteriormente classifi cariam como livre-arbítrio. A virtude como uma ação mediana O texto aristotélico que abre a temática sobre a virtude como justa mediania diz respeito tanto ao método quanto à verdade da investigação. Diz respeito ao método no sentido de que não devemos exigir desse tipo de competência cognitiva uma exatidão ao modo da matemática, por exemplo. E, diz respeito também à verdade que apresenta, porque a virtude não deve ser entendida nem como um excesso, nem como uma carência, nem como um meio termo exato entre um e outro: Em tudo que é contínuo e divisível pode-se tomar mais, menos ou uma quantidade igual, e isso quer em termos da própria coisa, quer relativamente a nós; e o igual é um meio-termo entre o excesso e a falta. Por meio- termo no objeto entendo aquilo que é equidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os homens; e por meio-termo relativamente a nós, o que não é nem demasiado nem demasiadamente pouco – e este não é um só e o mesmo para todos (ARISTÓTELES, EN, II, 6, 1106a 26-34). Desse modo, a Ética das virtudes é um caminho do equilíbrio entre o excesso e a carência. Uma regulamentação entre a escassez e a abundância. Seja com relação às ações humanas, seja com relação às coisas. Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 51 A virtude como ato prático Aristóteles (1987) diz que há condições necessárias e condições sufi cientes para alguém ser considerado virtuoso. Uma das condições necessárias é o conhecimento da matéria da virtude, a condição sufi ciente é a ação no livre querer. Para ele, o conhecimento especulativo do que seja isto, a virtude, ou mesmo do seja isto, o bem, ou do que seja isto, o mal, não é sufi ciente para considerar ao conhecedor de tais matérias um virtuoso, um bondoso, ou um maldoso, embora seja necessário. É preciso agir. Mas não basta agir, é necessário querer, desejar a ação. E tal querer não pode ser imposto, mas livre, ou, no máximo, auxiliado. Na apresentação da virtude como ato prático são reunidas as propriedades do conhecimento, da liberdade, da vontade e da deliberação. O homem virtuoso se realiza precisamente na ação virtuosa, que recebe como propriedade global completar a boa disposição natural de sua faculdade correspondente e assegurar-lhe a execução perfeita da obra que lhe pertence realizar. É assim que se diz que a “virtude do olho” é o que faz com que o olho seja bom, e isto signifi ca ver bem. Ou que a “virtude do cavalo” é que faz desse um bom cavalo para as suas mais diferentes funções: trabalho, guerra, passeio, corrida etc. O mesmo, segundo o argumento aristotélico, é o que ocorre ao homem: a virtude será o meio pelo qual ele se tornará moralmente bom, e graças a essa, ele realizará a obra que lhe é própria (ARISTÓTELES, EN II, 6, 1106a 15.). Condições do ato ético Das propriedades que foram apresentadas como sendo propriedades das virtudes, são retiradas as condições de possibilidades para que uma ação possa ser considerada moralmente correta (ou incorreta). Essas são as seguintes: • o conhecimento da ação, dos seus meios e dos seus fi ns; • a liberdade para realizar as ações ou impedir que elas se concretizem, bem como, o poder de decidir livremente sobre aderir ou não às ações; ou ainda, de permanecer ligado ou não ao processo agente; Curso de Bioética52 • a vontade de querer realizar as ações do modo, no tempo e na intensidade que elas vão ser realizadas; • a realização efetiva da ação; • a fi delidade à ação realizada ou o remorso por tê-la praticado. Rigorosamente falando, nenhum destes critérios pode sobreviver sem o outro na tarefa de classifi car o ato como moralmente correto ou incorreto. Enfoque do cuidado A questão do feminino e do ecofeminino chegam a Bioética através da noção de cuidado. Que, como nos lembra Zoboli (2003, p.31-32) eclode especialmente após a publicação dos trabalhos de Carol Gilligan. Tais trabalhos se destacam pela abordagem que faz da perspectiva do cuidado no desenvolvimento moral das mulheres. Para essa autora, historicamente homens e mulheres foram preparados moralmente diferentes para enfrentar os problemas sociais. Isso produziu uma diferença psicossocial e histórica no modo como cada um dos gêneros representa axiologicamente o seu mundo. O confl ito dessas representações pode produzir dilemas e embates morais sérios, mas pode ser resolvido pela aplicação dialógico-dialética do diálogo. Essa atividade dialogal pressupõe, antes de tudo, uma relação entre a Ética do cuidado (acentuadamente feminina) e a Ética da justiça (tradicionalmente masculina). Zoboli (2003) nos apresenta um paralelo entre uma e outra de forma gráfi ca: Quadro 3: relação entre a Ética do cuidado e Ética da justiça Ética do cuidado Ética da justiça Abordagem contextual Abordagem abstrata Conexão humana Separação humana Relacionamentos comunitários Direitos individuais Âmbito privado Âmbito público Reforça o papel das emoções (sentimentos) Reforça o papel da razão É relativa ao gênero feminino É relativa ao gênero masculino Fonte: Zoboli, 2003, p.31. É importante observar a diferença entre Ética do feminino e Ética feminista elaborada pelos enciclopedistas da Enciclopédia de Bioética, organizada e editada por Reich (1978; 1995). O artigo de Zoboli ao qual estamos nos remetendo traz uma breve explanação sobre esse assunto. Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 53 A Ética do cuidado é apresentada também na forma de uma Ética das emoções, herdeira do apriorismo material dos valores. Considerações sobre o conteúdo da unidade Uma observação acerca dessas classifi cações: ao fi carem presos à noção de paradigmas ou de enfoques, tanto Pessini e Barchifontaine (2005) quanto Zoboli (2003) não compilam o que são tais discursos, mas apenas quais são. O mesmo acontece com Pozzi (2001), que não toma como objeto de análise o caráter ontológico, mas pragmático dos discursos. Gurgel (2010) é o único dentre esses que se preocupa com esse caráter ontológico, dado à fi liação metodológica à lógica ilocucionária. Discordância à parte, esses autores e autoras demostram que o essencial em Bioética é reconhecer a diversidade como legítima. E, reconhecer a diversidade como legítima, é mais do que reconhecer que há uma diversidade nas narrativas discursivas bioeticistas e nas narrativas sobre Bioética. Reconhecer a diversidade narrativa em Bioética é óbvio, pois isso é um dado social. Reconhecer a diversidade narrativa em Bioética como legítima é mais do que isso, é dizer que essa diversidade não é apenas um fato social, ou um dado da realidade, mas que é legítima. Trata-se, portanto, de uma valoração sobre ela. Ou seja, que a diversidade narrativa faz parte da própria natureza do fenômeno Bioética. Portanto, a redução das narrativas bioeticistas ou sobre Bioética a uma única narrativa, seja ela qual for, contraria a própria natureza dessas narrativas. Além do mais, a diversidade de narrativas bioeticistas nos mostra que o fenômeno ocupa os mais diversos públicos e vertentes ideológicas. E isso demandará daquele que se aproxima do fenômeno a fazer determinadas escolhas. Escolhas essas, nem sempre meramente epistemológicas, mas também políticas, jurídicas, religiosas e morais. Por exemplo, ao operar com uma Bioética principialista aos moldes norte-americanos, o bioeticista se sentirá tentado a priorizar o princípio de autonomia sobre os demais, uma vez que faz parte da tradição da Medicina daquele país evidenciaresse princípio. Contudo, o mesmo na ótica de Clotet (2003) não deveria ser aplicado no Brasil ou em outros países inseridos na pobreza, uma vez que a população desses lugares Curso de Bioética54 não é emancipada do poder médico. Aqui e lá, princípios como o de não- malefi cência ou de justiça deveriam ser priorizados. Do mesmo modo, a discussão sobre a dignidade da morte pode ser mais restrita em alguns países do que em outros, não por desejo dos moribundos ou disponibilidades técnicas e condições médicas, mas por questões religiosas e ausência de políticas. Em outras localidades, a questão do abortamento pode estar resolvida por um direcionamento fundamentado na autonomia individualizada da disposição sobre o corpo, em outros, a questão recebe o direcionamento que é dado por facções político-religiosas sobre a não-disposição da vida, inclusive da intra-uterina. Em suma, não é possível afastar as discussões bioeticistas dos contextos e suas complexidades nos quais essas questões estão sendo formuladas e os sujeitos envolvidos. Elas não são questões metafísicas, discutidas com base em meros experimentos mentais ou hipóteses especulativas; elas são discutidas a partir de casos ou possibilidades bastante concretas, inseridas em uma teia axiológica da qual sua saída é impossibilitada. Não há soluções universais em Bioética, por mais que se queiram. Tampouco, Bioética não é um completo relativismo. As soluções são analisadas sob inúmeras condições e cada assembleia/comunidade constituída para analisá-las pode chegar a soluções diferenciadas e legitimamente válidas. Não é, portanto, pelo seu estatuto epistemológico (ser uma ciência, um estudo uma proposta moral etc) ou por seu estatuto político- fi losófi co-religioso que Bioética se mantém e se torna um apelo contemporâneo, mas pelas questões que ela coloca e a necessidade que temos de fazê-las. RESUMO Nesta unidade, é importante ressaltar que Bioética se tornou um discurso tão difuso e difundido que vários autores já procuram sistematizá-lo, sob as mais diversas formas. Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 55 Como paradigmas, Bioética se divide em: • Principialista; • Libertário; • Das virtudes; • Casuístico; • Fenomenológico e hermenêutico; • Narrativo; • Do cuidado; • Do direito natural; • Contratualista; e, • Antropológico personalista. • Como enfoques, Bioética se divide em: • Principialista; • Das virtudes; • Do cuidado; e, • Casuística. Como vertentes valorativas, Bioética se divide em: • Situacionista; • Moderantista; • Oposicionista. Como valorações axiológicas, Bioética se divide em: • Normativa; • Aplicada; • Descritiva; e, • Analítica. Curso de Bioética56 Cada uma dessas classifi cações leva em consideração os mais diferentes critérios, contudo consideram que Bioética é uma narrativa discursiva que tem como essência a diversidade. Quais são os paradigmas de Bioética classifi cados por Pessini e Barchifontaine? Quais são os enfoques de Bioética classifi cados por Zoboli? Quais são as vertentes valorativas de Bioética classifi cadas por Pozzi? Quais são as valorações axiológicas de Bioética classifi cadas por Gurgel? O que diferencia o enfoque principialista do enfoque do cuidado em Bioética? Por que é importante reconhecer a diversidade em Bioética como legítima? ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. São Paulo: Nova Cultural, 1987, v.II (Col. Os Pensadores). BRAGA, K.S. Bibliografi a Bioética Brasileira: 1990-2002. Brasília,DF: Letras Livres, 2002. CLOTET, J. Bioética: Uma aproximação. Porto Alegre: EDPUCRS, 2003. DECLARAÇÃO BIOÉTICA DE GIJON. I Congrésso Mundial de Bioética. Gijón (México), 2000. Disponível em: <http://www.ghente.org/bioetica/ giron.htm>. Acesso em 21 jun. 2012. 4 5 6 Unidade 2 | Bioética: discursos, paradigmas e enfoques 57 DECLARAÇÃO IBERO-LATINO-AMERICANA SOBRE ÉTICA E GENÉTICA. Encontro Sobre Bioética e Genética de Manzanillo (Espanha), 1996. Revisada em Buenos Aires (Argentina), 1998. Disponível em <http:// www.bioetica.org.br/?siteAcao=DiretrizesDeclaracoesIntegra&id=5>. Acesso em 21 jun. 2012. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS. Adotada por aclamação no dia 19 de Outubro de 2005 pela 33ª sessão da Conferência Geral da UNESCO. Lisboa. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Divisão de Ética das Ciências e Tecnologias, 2006. GRACIA, D. Ética y Vida – Estudios de Bioética. v.1. Fundamentación y enseñansa de la Bioética. Santa Fé de Bogotá, DC: Editorial El Búho, 1998. GURGEL, W.B. O que é mesmo, Bioética? In: MINAHIM, M.A.; FREITAS, T.B.; OLIVEIRA, T.P. (Coords.). Meio Ambiente, Direito e Biotecnologia - Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Paulo Aff onso Leme Machado. Curitiba: Juruá Editora, 2010, p.589-612. PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. Problemas atuais de Bioética. 7. ed. São Paulo: São Camilo-Loyola, 2005. POZZI, A.A.R. A celebração do temor: biotecnologias, reprodução, ética e feminismo. 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