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FUNDAMENTOS HISTÓRICOS O fato de que uma ação violenta possa não ter relação com uma disfunção cerebral e a possibilidade de que uma alegação de am- nésia seja apenas uma simulação de déficit cognitivo visando a explicar um desvio de dinheiro são exemplos de contextos da in- terface entre a saúde mental e a justiça. A investigação do funcionamento ce- rebral e da expressão do comportamen- to faz parte de um contexto de questiona- mentos que aproxima, ao longo da história, a psicologia, a neurologia e, mais recente- mente, a neuropsicologia. Essa aproxima- ção se deu no fim do século XIX, na Alema- nha, a partir da obra Princípios da psicologia fisiológica, de Wundt, estabelecendo um conceito que perdurou por muito tempo e que dizia respeito ao corpo de pesquisas realizadas em laboratório (Kristensen, Al- meida, & Gomes, 2001). O percurso histórico do surgimento da neuropsicologia tem início com os estu- dos dos antigos egípcios, que, embora acre- ditassem que o coração e o diafragma fos- sem os centros vitais, já faziam menções a alterações comportamentais resultantes de lesões no crânio. Platão (428 a.C.) descreveu a medu- la como uma das partes mais importantes do corpo, considerando-a uma extensão do cérebro. Alcmeón de Crotona, no século V, na Grécia Antiga, julgava que o cérebro era o órgão responsável pela sensação e pe- lo pensamento, afirmando que, para cada sensação, havia uma localização específica no cérebro (Feinberg & Farah, 1997). Um século depois, Hipócrates ressaltava que o cérebro era responsável pela inteligên- cia, pela sensação e pela emoção, e disso- ciava os quadros epilépticos das possessões demoníacas. Já Galeno (129 d.C.) explica- va que a sensação era a mudança qualitati- va de um órgão dos sentidos, e a percepção se configurava como o estado de consciên- cia dessa mudança (Kristensen et al., 2001). A partir do século XVIII, o estudo en- tre mente e cérebro se desenvolve no esco- po das localizações. Inicia-se um processo de identificar regiões cerebrais com deter- minadas funções. Nesse recorte da história, podemos destacar as explicações de David Hartley, em 1777, que já apontava que a ba- se da sensação e do movimento era a subs- tância branca do cérebro e do cerebelo. Essa descrição preconiza as concepções localiza- cionistas, intensamente difundidas no sé- culo XIX. 1 Aspectos históricos da neuropsicologia clínica e forense ANTONIO DE PÁDUA SERAFIM ÉVERTON DUARTE MARIA FERNANDA F. ACHÁ 18 SERAFIM & SAFFI (ORGS.) Franz Josef Gall (século XIX) estabe- leceu a diferença entre a substância bran- ca e a cinzenta, descrevendo a ligação dos quadros de afasia com lesões de lobo fron- tal. Gall identificou 27 faculdades humanas relacionadas a áreas cerebrais, criando, as- sim, a teoria geral da localização cerebral, ou frenologia (Brett, 1953). Embora os conceitos localizacionistas tenham perdurado por todo o século XIX, em 1820, Flourens contradiz as concepções de Gall, ressaltando que o cérebro funcionava como um todo e não dependia de uma única região ou área específica (Walsh, 1994). As conceituações de Flourens acer- ca do funcionamento cerebral integra- do podem ser consideradas como o início das concepções associacionistas, que dis- correm sobre uma organização cerebral hierarquicamente organizada e interati- va. Paul Broca, na metade do século XIX, descreve o quadro clínico de um paciente que apresentava perda da capacidade da fa- la em função de uma lesão na região fron- tal do hemisfério esquerdo, corroborando a dificuldade em pronunciar palavras, em- bora mantivesse preservada a compreen- são dos significados. As descrições de Bro- ca sobre os centros cerebrais da linguagem foram observadas paralelamente por Wer- nicke, que, uma década mais tarde, apre- sentou casos de pacientes com lesões no terço posterior do giro temporal superior esquerdo. Embora tais pacientes não apre- sentassem alterações na fala expressiva, as lesões resultavam na perda da capacidade de compreendê-la (Benedet, 1986). A neuropsicologia, assim, é de fato re- conhecida nos meados do século XX, com os trabalhos de Alexander Romanovich Lu- ria, que desenvolveu diversas técnicas para estudar o comportamento dos indivíduos acometidos por lesões cerebrais (Crawford, Parker, & McKinlay, 1994). Para Luria (1981), o sistema nervoso central, além da organização em rede, parti- cipa de forma ativa na regulação das funções superiores (percepção, memória, gnosias, praxias), visto que essas funções se orga- nizam como sistemas complexos, resulta- do de uma ação e interação dinâmica de di- versas regiões cerebrais interligadas entre si. Autores mais recentes, como Gil (2002, p.1), definem a neuropsicologia como . . . o estudo dos distúrbios cognitivos e emocionais, bem como o estudo dos distúrbios de personalidade provocados por lesões do cérebro, que é o órgão do pensamento e, portanto, a sede da consciência. O que rege esse dinamismo cerebral é a integração entre unidades cerebrais fun- cionais (Tab. 1.1). Luria (1981) elaborou a teoria do sistema funcional, fazendo uma revisão dos termos “função”, “localização” e TABELA 1.1 Unidades cerebrais funcionais UNIDADE I UNIDADE II UNIDADE III Responsável por regular o tônus cortical, a vigília e os estados mentais. É composta pela for- mação reticular e pelo tronco encefálico. Responsável por receber, proces- sar e armazenar as informações. Compõe-se das partes posteriores do cérebro (lobo parietal, occipital e temporal). Responsável por programar, regu- lar e verificar a atividade mental. Composta pelas partes anteriores do cérebro (lobo frontal). Fonte: Luria (1981). NEUROPSICOLOGIA FORENSE 19 “sintoma”. O termo “função” foi substituí- do por “sistema funcional”, que se refere a um conjunto de áreas que trabalham juntas para desempenhar um objetivo final. As contribuições de Luria (1981) acerca das três unidades funcionais não só representaram um modelo para o enten- dimento do funcionamento cerebral co- mo também colaboraram para o desenvol- vimento de mecanismos de avaliação das possíveis disfunções cerebrais. Entre os ins- trumentos para investigar tais alterações, destaca-se a avaliação neuropsicológica. Segundo Lezak, Howieson e Loring (2006), essa técnica é uma importante ferramenta para a compreensão da relação entre cére- bro e comportamento e das consequências psicossociais de uma possível lesão ou dis- função cerebral. A avaliação neuropsicológica tem co- mo objetivo estudar a expressão das dis- funções cerebrais sobre o comportamento, podendo essas disfunções resultar de le- sões ou doenças degenerativas, ou ligar-se a quadros psiquiátricos e doenças que têm a disfunção neurológica como resultado se- cundário, sem que esta possa ser detectada por meio de exames clínicos, uma vez que o tecido cortical não está comprometido. A avaliação é realizada por testes or- ganizados em baterias que fornecem infor- mações diagnósticas e permitem confirmar – ou não – as hipóteses iniciais sobre o pa- ciente. A partir dos resultados do exame neuropsicológico é possível delimitar quais funções cerebrais estão afetadas e quais es- tão preservadas (Groth-Marnat, 2000). Nesse contexto, a análise neuropsi- cológica fornece uma lente através da qual podem ser observadas a natureza e a dinâ- mica dos processos cognitivos e afetivo- -emocionais em sua relação com o cére- bro. Ainda segundo Lezak e colaboradores (2006), o processo de investigação neuro- psicológica engloba a função cerebral infe- rida a partir da manifestação do compor- tamento. As principais manifestações compor- tamentais que sugerem a necessidade de uma avaliação neuropsicológica podem ser organizadas em três grupos distintos(Tab. 1.2). TABELA 1.2 Principais quadros que sugerem a necessidade de avaliação neuropsicológica PESSOAS COM LESÃO PESSOAS COM FATOR DE RISCO SUSPEITA DE DOENÇA OU CEREBRAL CONHECIDA PARA LESÃO OU DISFUNÇÃO CEREBRAL TRAUMATISMO CEREBRAL Doenças Traumatismos craniencefálicos Hidrocefalia Doença de Alzheimer Doença de Parkinson Esclerose múltipla Nestes quadros, as mudanças de comportamento podem ser sintomas de uma determinada patologia Endocrinopatias Alterações metabólicas Doenças renais Entre outras Baseando-se na observação de uma mudança de comportamento da pessoa, sem uma etiologia identificável A pessoa não tem fatores de risco conhecidos para lesão cerebral O diagnóstico é considerado a partir da exclusão de outros diag- nósticos São pessoas sem história neuroló- gica ou psiquiátrica Fonte: Luria (1981). 20 SERAFIM & SAFFI (ORGS.) De certa maneira, com base em Lezak e colaboradores (2006), os déficits cognitivos podem ocorrer em quatro diferentes funções: Memória e aprendizagem Função receptiva Pensamento Funções executivas Armazenamento das informações Input Processamento das informações Output Esses apontamentos convergem com as notificações de vários autores quanto à ampliação da aplicação da avaliação neu- ropsicológica nos últimos anos, relaciona- dos principalmente ao córtex pré-frontal e às funções executivas (Müller, Baker, & Yeung, 2013). Para Müller e colaboradores (2013), a relevância do estudo do córtex pré-fron- tal se dá em função de ele ocupar cerca de um terço da massa total do córtex, além de manter relações múltiplas majoritariamen- te recíprocas com inúmeras outras estrutu- ras encefálicas, como conexões com regiões de associação dos córtices parietal, tempo- ral e occipital, bem como com diversas es- truturas subcorticais, em especial o tálamo, além de conter as únicas representações corticais de informações provenientes do sistema límbico. Os instrumentos neuropsicológicos, portanto, se configuram como ferramentas cujo objetivo é avaliar um conjunto de ha- bilidades e competências cognitivas como atenção, memória, linguagem, funções exe- cutivas, aprendizagem, praxia construtiva e potencial intelectual, seja no contexto clíni- co, seja no forense. A NEUROPSICOLOGIA FORENSE A crescente violência urbana e o afastamen- to do trabalho por doenças incapacitantes, por exemplo, têm exigido cada vez mais a participação do psicólogo no esclarecer dos fatos. Responder a questões relacionadas à saúde mental e à justiça requer da psicolo- gia uma compreensão multifatorial de to- dos os processos envolvidos. O desenvolvimento da psiquiatria e da psicologia contribuiu de forma intensa pa- ra que os órgãos da justiça utilizem conhe- cimentos especializados no que diz respeito aos processos que regem a vida humana, a saúde psíquica e, nas duas últimas décadas, a neuropsicologia (Gierowski, 2006). De acordo com o Online Etymology Dictionary, da American Psychological As- sociation (c2011-2013), a palavra “forense” vem do latim forum, que faz alusão ao Fo- rum Romano, a praça principal onde eram realizados os julgamentos do Império. Tra- dicionalmente, o uso do termo “forense” denota a intersecção entre a ciência (medi- cina, antropologia, psicologia) e o sistema jurídico. Uma das primeiras ideias de psico- logia forense surge no fim de 1800, com o psicólogo alemão Hugo Münsterberg, considerado por muitos o precursor da psicologia forense. Münsterberg argu- mentava que a psicologia deveria ser apli- cada à lei. Entretanto, apenas em 2001 a APA reconheceu a psicologia forense co- mo uma especialização no âmbito do es- tudo da psicologia. Seu crescimento se dá sobretudo por pesquisar e dissecar o com- portamento humano diretamente ligado aos crimes seriais. No tocante à neuropsi- cologia forense, a história é mais recente (Hom, 2003). NEUROPSICOLOGIA FORENSE 21 O campo da neuropsicologia forense é relativamente novo, entretanto está evo- luindo de maneira crescente e rápida. Ape- sar de já haver vários programas de treina- mento formal, requisitos de licenciamento ou organizações profissionais dedicadas es- pecificamente à neuropsicologia forense tanto nos Estados Unidos como na Euro- pa, ainda há a necessidade de maior padro- nização dessa prática, bem como de textos de referência (Hom, 2003). Ainda de acordo com Hom (2003), o termo “neuropsicologia forense” represen- ta uma subespecialidade da neuropsicolo- gia clínica, que diretamente aplica práticas e princípios neuropsicológicos a questões que dizem respeito às dúvidas jurídicas e à tomada de decisão. Profissionais de neuro- psicologia forense são treinados como neu- ropsicólogos clínicos e, posteriormente, especializam-se na aplicação de seus conhe- cimentos e habilidades no âmbito forense. Diferentemente do que ocorre na neu- ropsicologia clínica, que define a existên- cia ou não de uma disfunção das funções cognitivas, a neuropsicologia forense de- ve responder a uma questão legal, isto é, se determinada disfunção afeta ou não a ca- pacidade de entendimento e de autodeter- minação da pessoa (Hom, 2003). Enquanto na clínica busca-se ajudar o paciente, na assistência forense procura- -se descobrir a verdade dos fatos. Destaca- -se, ainda, que a avaliação neuropsicológica forense também se distingue da área clíni- ca pelo fato de o solicitante ser uma tercei- ra parte, a comunicação dos resultados se dar entre perito e solicitante, e a avaliação ser restrita a quesitos elaborados capazes de responder a determinada questão legal (Se- rafim & Saffi, 2012; Serafim, Saffi, & Rigo- natti, 2010). Na área forense, a avaliação neuro- psicológica se insere na fase pericial. A pala- vra “perícia” vem do latim perior, que quer dizer experimentar, saber por experiência. Consiste em aporte especializado que pres- supõe um conhecimento técnico/científico específico que contribua no esclarecimento de algum ponto considerado imprescindí- vel para o procedimento processual. De maneira geral, a perícia conver- ge da compreensão psicológica e neuropsi- cológica de um caso para responder a uma questão legal expressa pelo juiz ou por ou- tro agente (jurídico ou participante do ca- so), fundamentada nos quesitos elaborados pelo agente solicitante, cabendo ao psicó- logo perito investigar uma ampla faixa do funcionamento mental do indivíduo sub- metido à perícia (o periciando). Por perícia entende-se, na prática, a aplicação dos métodos e técnicas da inves- tigação psicológica e neuropsicológica com a finalidade de subsidiar uma ação judicial toda vez que se instalarem dúvidas relativas à “saúde” psicológica do periciando. Dito de outro modo, seu resultado final é levar conhecimento técnico ao juiz, produzindo prova para auxiliá-lo em seu livre conven- cimento, bem como fornecer ao processo a documentação técnica do fato, o que é feito via documentos legais – no caso em apreço, o laudo (Serafim & Saffi, 2012). Ressalta-se que o procedimento da pe- rícia deve ser fundamentado nos quesitos ela- borados pelo agente jurídico (juiz, promotor, procurador, delegado, advogado), cabendo ao perito investigar uma ampla faixa de fun- cionamento mental do indivíduo envolvido em ação judicial de qualquer natureza (civil, trabalhista, criminal, etc.), por meio do exa- me de sua personalidade e de suas funções cognitivas (Serafim & Saffi, 2012). 22 SERAFIM & SAFFI (ORGS.) Autores como Denney e Sullivan (2008) enfatizam que a utilização da avalia- ção neuropsicológica no contexto forense é capaz de colaborar para a compreensão da conduta humana, seja ela delituosa ou não, no escopo da participaçãodas instâncias bio- lógica, psíquica, social e cultural como mo- duladoras da expressão do comportamento. Para isso, duas importantes linhas de estudo têm sido utilizadas. A primeira diz respeito à avaliação neuropsicológica para verificação de dano cognitivo em pacientes psiquiátricos forenses. Nestor, Kimble, Berman e Haycock (2002) analisaram 26 condenados por homi- cídio com transtornos mentais, internos de um hospital forense de segurança máxima, em relação a funções como memória, inte- ligência, atenção, funções executivas e habi- lidades acadêmicas. Os resultados produzi- ram dois subgrupos distintos: um definido por alta incidência de psicose e baixo nível de psicopatia e um por baixa incidência de psi- cose e alto nível de psicopatia – cada subgru- po correspondendo a diferenças neuropsico- lógicas distintas em habilidades intelectuais, dificuldades de aprendizagem e inteligência social. Apesar dos resultados, os autores res- saltam a necessidade de estudos com amos- tras maiores para melhor entendimento e confiabilidade de medidas neuropsicológicas com essa população. Já Bentall e Taylor (2006), em estudo de revisão, investigaram as implicações do delírio paranoico no contexto neuropsico- lógico com repercussões forenses. O quadro de paranoia não tem sido consistentemen- te associado a nenhuma anormalidade neu- ropsicológica específica. Entretanto, os au- tores destacam três aspectos do pensamento paranoico que necessitam de uma investiga- ção mais aprofundada: a paranoia que pro- duz motivações e experiências perceptivas anômalas e distorção no raciocínio; a asso- ciação da paranoia com diminuição da ca- pacidade auditiva; e, por fim, a possibilidade de que exista uma forte associação negativa entre paranoia e autoestima. Em seu estudo de revisão, Naudts e Hodgins (2006) consideraram correlatos neurobiológicos e comportamento antisso- cial na esquizofrenia. De maneira geral, es- ses autores concluíram que poucos estudos têm sido realizados e que as amostras não são expressivas, o que dificulta a confirma- ção de hipóteses. Analisando as funções executivas de 33 pacientes com história de violência e 49 não violentos, Fullam e Dolan (2008) não evidenciaram diferenças significativas entre os grupos no desempenho da tare- fa neuropsicológica. No entanto, conside- raram que, quanto menor o quociente de inteligência (QI), maior a associação com a violência. Esses autores consideram tam- bém que a associação entre déficits neuro- psicológicos e violência em pacientes com esquizofrenia é limitada, e os resultados, in- consistentes. Em outro estudo foi investigado o his- tórico de violência e os aspectos neuropsi- cológicos de 301 pessoas com relato de pri- meiro surto psicótico (Hodgins et al., 2011). Nesse estudo, 33,9% dos homens e 10% das mulheres tinham um registro de condena- ções criminais; 19,9% dos homens e 4,6% das mulheres tinham sido condenados por pelo menos um crime violento. Os pacientes infratores apresentaram os menores escores quanto às variáveis neuropsicológicas (me- mória de trabalho, funções executivas e QI). Os autores consideram que intervenções pontuais nos serviços de saúde para pacien- tes de primeiro surto psicótico podem redu- zir a ocorrência, como também a reincidên- cia, de comportamentos violentos. Uma segunda vertente de estudos re- ferentes à avaliação neuropsicológica para verificação de dano cognitivo em pacien- tes psiquiátricos forenses engloba as conse- quências do transtorno de estresse pós- -traumático (TEPT) e os pacientes com lesões cerebrais. Bastert e Schläfke (2011) avaliaram 125 pacientes com disfunções cerebrais orgâni- NEUROPSICOLOGIA FORENSE 23 cas com uma bateria neuropsicológica para avaliar as funções executivas. Os resultados demonstraram que, embora esses pacientes apresentem desempenho cognitivo abai- xo da média quando comparados a pes soas sem disfunções orgânicas, as diferenças não são tão acentuadas como se esperava. Os autores ainda enfatizam que esses resul- tados são sugestivos de que tais pacientes possam se beneficiar de programas de rea- bilitação neuropsicológica. Pensando ainda em termos de pro- cessos de tratamento de pacientes forenses com retardo mental ou disfunção cerebral orgânica, Bastert, Schläfke, Pein, Kupke e Fegert (2012) estudaram 15 pacientes por meio de exames de neuroimagem e avalia- ção neuropsicológica. Os resultados suge- rem mais prejuízos nas capacidades execu- tivas. Além disso, faz-se necessário agrupar os pacientes por tipo de lesão cerebral, com o objetivo de definir com mais qualidade as ações de intervenções. Por fim, Bailie, King, Kinney e Nitch (2012) investigaram o comprometimen- to cognitivo de 260 pacientes internos de um hospital psiquiátrico forense. Os prin- cipais resultados demonstraram que 35,8% da amostra apresentaram escores abaixo da média em um teste que media a capacidade de repetição. Além disso, 65% dos partici- pantes relataram história de atraso de de- senvolvimento, menos de 12 anos de ensino ou dificuldades de aprendizagem. Metade da amostra relatou ao menos um fator de ris- co neurológico (p. ex., história de trauma- tismo craniano com perda de consciência). No entanto, os fatores de riscos neurológi- cos, de certa forma, não influenciaram o de- sempenho no teste de autorrelato para fato- res de riscos neuropsicológicos. De acordo com Bailie e colaboradores (2012), esses re- sultados corroboram a relevância dos servi- ços neuropsicológicos em hospitais psiquiá- tricos forenses como forma de intervenção. A segunda linha de estudo engloba a avaliação neu ropsicológica para verificação da capacidade civil, da responsabilidade pe- nal e do risco de violência. Klöppel (2009) destacou a relação entre disfunções neuro- cognitivas e risco de violência, bem como reincidência. Além dos quadros psicóticos, os estudos têm investigado a participação de áreas cerebrais específicas com uma va- riedade de disfunções cognitivas e que se apresentam como variáveis de risco para violência, como disfunção dos lobos fron- tal, orbitofrontal/frontal/frontotemporal e/ ou regiões subcorticais do sistema límbico. A investigação neuropsicológica na área penal se destaca em termos de quan- tidade quando comparada com a inves- tigação da capacidade civil ou a avaliação de risco e se distribui pelos estudos de cri- minosos sexuais, antissociais e psicopatas (Greene & Cahill, 2012; Kruger & Schiffer, 2011). Autores como Heilbronner e colabo- radores (2010) discutem a diferença entre a avaliação neuropsicológica clínica e a fo- rense, seja na área penal, seja na civil. Eles escrevem a partir da perspectiva de que o corpo de profissionais de neuropsicologia, em sua maioria, é eminentemente clínico e com pouca experiência em matéria penal, o que é preocupante para essa atuação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os conceitos localizacionistas, a priori, não devem ser considerados como ideias ou con- cepções simplesmente descartáveis. O pen- samento “localizacionista” possibilitou, ao longo da história, a construção das bases da neuropsicologia no campo das neurociên- cias, visto que seu debate deu lugar, grada- tivamente, à concepção de uma organização do sistema nervoso central pautada no fun- cionamento integrado das várias regiões ce- rebrais. Considerar as descrições de David Hartley, Gall, Flourens, Broca, Wernicke e Luria representa traçar a linha da construção 24 SERAFIM & SAFFI (ORGS.) de uma ciência focada na investigação do funcionamento mais elementar ao funcio- namento mais complexo do sistema nervoso central peculiar às neurociências. Não se discute que a utilização da ava- liação neuropsicológica é capaz de colabo- rar para a compreensão da conduta huma- na, seja eladelituosa ou não, no escopo da participação das instâncias biológica, psí- quica, social e cultural como modulado- ras da expressão do comportamento. Além disso, examinadores forenses em geral con- cordam quanto ao crescimento da avalia- ção neuropsicológica e suas contribuições para o processo judicial. Sua consolidação e seu reconhecimento na prática fo rense se constroem por um processo temporal con- tínuo fundamentado por meio de estudos, da pesquisa científica e de uma conduta humanitária e ética na busca do fator nexo causal de determinado fenômeno. O desen- volvimento de pesquisas nessa área ainda precisa ser ampliado, assim como a estru- turação de centros formadores de neuro- psicólogos forenses. REFERÊNCIAS American Psychological Association. (c2014). Onli- ne etymology dictionary. Recuperado de http://www. etymonline.com/index.php. 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