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2 GESTÃO PÚBLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Evelyn Levy Pedro Aníbal Drago [organizadores] 9 Governo do Estado de São Paulo Governador do Estado Alberto Goldman Secretário de Gestão Pública Marcos Antonio Monteiros FUNDAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO – FUNDAP Diretora Executiva Geraldo Biasoto Junior Equipe de Edição Edição de texto Maria Eloisa Pires Tavares, Newton Sodré, Vera Carvalho Zangari Tavares Editoração eletrônica Júlia Yaeko Kurose Capa e projeto gráfico Cristina Penz c 2005 By Fundap 2ª Impressão 2010 Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP) (Centro de Documentação da Fundap, SP, Brasil) Gestão pública no Brasil contemporâneo / Evelyn Levy, Pedro Anibal Drago (organizadores) – São Paulo : Casa Civil, 2005. 448p. ISBN 85-7285-097-X 1. Administração Pública – Brasil. I. Levy, Evelyn (org.) II. Drago, Pedro Anibal (org). III. Fundação do Desenvolvimento Administrativo – Fundap. IV. São Paulo ( Estado) Casa Civil CDD -350.00091 _____________________________________________________________________ 4 EDIÇÕES FUNDAP Rua Cristiano Viana, 428 05411-902, São Paulo, SP Telefone (11) 3066 5584 Fax (11) 3081 9082 livraria@fundap.sp.gov.br SUMÁRIO INTRODUÇÃO, 11 Evelyn Levy e Pedro Aníbal Drago REFORMA DA GESTÃO E AVANÇO SOCIAL EM UMA ECONOMIA SEMI- ESTAGNADA, 15 Luiz Carlos Bresser Pereira TENDÊNCIAS DA GESTÃO PÚBLICA NOS PAÍSES DA OCDE, 33 Flávio da Cunha Rezende ADMINISTRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO: A RELEVÂNCIA EM BUSCA DA DISCIPLINA, 44 Humberto Falcão Martins ESTRATÉGIA E GESTÃO DE MUDANÇAS NAS POLÍTICAS DE GESTÃO PÚBLICA, 61 Francisco Gaetani ABRINDO A CAIXA PRETA DO ESTADO: A ECONOMIA POLÍTICA DA INFORMAÇÃO, 74 Marcos Fernandes Gonçalves da Silva INTERVENÇÃO ESTATAL, AGÊNCIAS REGULADORAS E CONTROLE DO PODER ECONÔMICO, 84 Arthur Barrionuevo Filho POSSIBILIDADES E DIFICULDADES DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS, 92 Carlos Américo Pacheco A NOVA SOCIEDADE CIVIL E SEU PAPEL ESTRATÉGICO PARA O DESENVOLVIMENTO, 101 Augusto de Franco 9 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS: A EXPERIÊNCIA DA SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO, 168 Márcio Cidade Gomes RESPONSABILIDADE FISCAL: A AGENDA INCOMPLETA, 189 José Roberto R. Afonso PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO COMO INSTRUMENTOS DE GESTÃO, 202 Ariosto Antunes Culau GESTÃO PÚBLICA ORIENTADA PARA RESULTADOS NO BRASIL, 215 Ariel Garces e José Paulo Silveira UM GOVERNO MATRICIAL: ESTRUTURAS EM REDE PARA GERAR RESULTADOS DE DESENVOLVIMENTO, 239 Caio Marini e Humberto Falcão Martins FRAGMENTAÇÃO E INTERSETORIALIDADE: EM BUSCA DE UMA AGENDA DA INTEGRAÇÃO, 282 Humberto Falcão Martins GOVERNO ELETRÔNICO E NOVOS PROCESSOS DE TRABALHO, 309 Roberto Meizi Agune e José Antônio Carlos ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS DE QUALIDADE, 323 Paulo Daniel Barreto Lima POLÍTICAS INTEGRADAS DE RECURSOS HUMANOS PARA O SETOR PÚBLICO, 337 Nelson Marconi MOTIVAÇÃO, CLIMA ORGANIZACIONAL E QUALIDADE DE VIDA, 356 Ana Maria Brescancini CAPACITAÇÃO PARA A GESTÃO POR COMPETÊNCIAS, 368 Maria Cecília Araújo da Silva AVALIAÇÃO DE RESULTADOS: A EXPERIÊNCIA DO GOVERNO FEDERAL, 385 Pedro Antonio Bertone Ataíde 6 GESTÃO DO CONHECIMENTO COMO SISTEMA DE GESTÃO PARA O SETOR PÚBLICO, 415 Espartaco Madureira Coelho CONHECIMENTO, COMUNIDADES E INOVAÇÃO, 440 Paulo Sérgio Vilches Fresneda A INSTITUIÇÃO DO CÓDIGO DE CONDUTA DA ALTA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL, 447 João Geraldo Piquet Carneiro SOBRE OS AUTORES, 454 9 INTRODUÇÃO Evelyn Levy e Pedro Anibal Drago Com a presente coletânea gostaríamos de apresentar, para o público- leitor, um panorama do ―estado da arte‖ da gestão pública no Brasil, especial- mente a experiência da última década do Governo federal e do Governo do Estado de São Paulo. Essa escolha é parcial e obviamente traz omissões im- portantes, como o trabalho desenvolvido nos outros poderes, em outros esta- dos e nos municípios, que igualmente merece registro e análise. Esperamos, ainda assim, estar contribuindo para os estudos da área, bem como o aperfei- çoamento de nossas instituições. Os temas aqui tratados foram inicialmente propostos a um conjunto de especialistas, que os apresentaram, no âmbito do ―Programa Avançado em Gestão Pública Contemporânea‖ – promovido pela Casa Civil em parceria com a Fundap, de março a dezembro de 2004 –, aos integrantes da alta admi- nistração do Governo de São Paulo. Embora os autores tenham diferentes trajetórias, os capítulos se alicer- çam sobre o conhecimento, a reflexão e a experiência dos próprios protagonis- tas de muitos dos processos de mudanças dos quais está se falando. Assim, o leitor encontrará – em muitos dos textos – a localização teórica do assunto, sua reconstrução histórica, bem como análises comparativas entre o Brasil e outros países, mas também depoimentos de quem liderou, ou ainda lidera, esses pro- cessos. Em muitos casos, o leitor terá oportunidade de acompanhar os dilemas vividos por aqueles que tomaram decisões importantes no curso desses proces- sos, ou cuja ação foi de alguma forma modificada pelo contexto. Isso significa que, em vários momentos, a leitura explicita a tensão entre teoria e realidade, tal como tem sido vivida no âmbito da administração pública brasileira. Cre- mos que isso favorecerá tanto aqueles cujo objetivo é a produção do conheci- mento, como aqueles que vivem, igualmente como sujeitos, o papel de empre- ender processos de transformação da gestão pública. 8 O caminho que percorremos foi do geral para o particular. O texto de abertura é de autoria do ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, cuja impor- tância para a construção do novo modelo de funcionamento da administra- ção pública brasileira (e latino-americana) dispensa referência. Mas importa assinalar que Bresser, ao lado dos textos de Rezende e Martins, que se se- guem, está preocupado em mostrar os vínculos entre a gestão pública, a de- mocracia e o desenvolvimento. Bresser retoma o modelo de reforma admi- nistrativa por ele proposto, recuperando seus fundamentos teóricos, mas também faz uma avaliação retrospectiva dos avanços e dos obstáculos que encontrou. Ao final, depois de mostrar como o Estado brasileiro tem pro- gressivamente vencido sua crise, dirige sua atenção para os aspectos macro- econômicos que, a seu ver, o Brasil ainda não foi capaz de enfrentar. Re- zende e Martins contribuem com análises comparativas sobre a natureza dosmodelos que estão sendo implementados. Voltam, portanto, a colocar os ajustes e dissonâncias entre as mudanças na gestão pública e o contexto his- tórico mais amplo. Silva contribui com um texto que explica as bases teóri- cas do modelo que vem sendo adotado, especialmente pela Nova Gestão Pública, tanto para controlar organizações e burocratas, como para ampliar a transparência, evitando a corrupção. O texto de Gaetani nos faz refletir sobre as diferentes reformas admi- nistrativas havidas no Brasil, suas características e processos de implemen- tação. Problematiza a gestão como política pública, os atores que confor- mam essa arena e as estratégias adotadas para sua transformação. Barrionuevo Filho, Franco, Pacheco e Gomes tratam dos novos modelos organizacionais – agências reguladoras, Oscips e organizações sociais – expli- citando o papel das novas regras institucionais para cumprir atribuições que fortalecem o papel do Estado (Estado-rede), aperfeiçoando o funcionamento do mercado e a produção de serviços públicos. Em cada um de seus textos o/a leitor/a encontrará os acertos e desacertos dessas experiências iniciais. Afonso, Culau, Garces e Silveira apresentam textos sobre as mudanças na gestão fiscal e financeira (LRF), orçamentária e seus vínculos com o pla- nejamento por programas. Mostram as conquistas feitas nesse âmbito e os desafios que ainda se colocam para a implementação das políticas públicas, que efetivamente esteja focada na resolução de problemas. O texto de Mari- ni e Martins complementa esses três textos apontando caminhos para uma gestão adequada aos programas, dentro de um governo ―matricial‖. ―Frag- mentação e intersetorialidade, uma agenda de integração‖, também de Mar- tins, discute com mais detalhe a questão da coordenação governamental, 9 sempre muito difícil em vista de estarmos diante de organizações comple- xas, determinadas por forças díspares e múltiplas. Barreto Lima, Agune e Carlos dão sua contribuição referindo-se à transformação dos processos de trabalho nas organizações públicas, o pri- meiro a partir de programas de qualidade, os últimos através da introdução do governo eletrônico. Marconi, Brescancini e Araújo da Silva desenvolvem as questões mais relevantes referentes à gestão de pessoas no setor público, um problema cen- tral na agenda de mudanças e especialmente complexo no Brasil pela heran- ça patrimonialista ainda recente. O texto de Bertone Atayde dialoga com os de Garces e Silveira, Barre- to Lima e Marconi, ao introduzir a questão da avaliação. Ao lado de trazer a experiência recente em diversos países, Bertone narra a experiência brasilei- ra de avaliação de programas e sua integração com a avaliação do desempe- nho de pessoas e organizações. Madureira e Fresneda trazem aportes bastante equilibrados sobre as possíveis contribuições da gestão do conhecimento, no atual estágio de nos- sas administrações. O texto de Piquet Carneiro finaliza o livro, expondo a experiência com o ―Código de Conduta da Alta Administração‖, abrindo a discussão sobre a ética no serviço público. Ao término do percurso, imaginamos que o leitor terá visitado os prin- cipais tópicos que hoje preocupam administradores e estudiosos; terá prova- velmente observado que ainda há um longo caminho a percorrer para que nossas instituições atendam a contento às demandas de nossa sociedade; mas também terá conhecido mais de perto os progressos que já foram feitos e as dificuldades que se interpuseram no meio do caminho. De toda maneira, acreditamos que os avanços somente serão maiores e mais velozes à medida que a experiência for colocada em debate público e as análises se aprofunda- rem. Era essa nossa intenção. São Paulo, maio de 2005 10 REFORMA DA GESTÃO E AVANÇO SOCIAL EM UMA ECONOMIA SEMI- ESTAGNADA 1 Luiz Carlos Bresser-Pereira Vinte e cinco anos depois de desencadeada a grande crise da dívida ex- terna, vinte anos depois da redemocratização do Estado brasileiro, e dez anos depois de iniciada a Reforma da Gestão Pública de 1995/98, enquanto se observa no país um grande desenvolvimento político – do qual a reforma da gestão faz parte – e um substancial avanço social – que se expressa na melhoria substancial dos indicadores sociais –, a economia praticamente não cresce em termos de renda por habitante. O avanço político teve como eixos a transição e consolidação da democracia e um dinâmico processo de refor- mas institucionais. O desenvolvimento social apoiou-se no aumento da carga tributária, na forte elevação do gasto social per capita e em políticas sociais mais adequadas às necessidades dos cidadãos. Enquanto a Reforma da Ges- tão Pública de 1995/98 era um fruto por excelência do avanço político, ela vem contribuindo para o avanço social. Já a semi-estagnação econômica foi fruto, primeiro, da crise da dívida externa, da crise fiscal do Estado e da alta inflação, mas – desde que a estabilidade de preços foi alcançada em 1994 – só políticas macroeconômicas equivocadas, baseadas em uma ortodoxia conven- cional, podem explicar a sua continuidade. 1 Agradeço os comentários de Ângela Santana, Carmen Varela, Evelyn Levy e Helena Pinheiro, e o apoio do Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Var- gas, São Paulo. Neste paper, vou procurar demonstrar e aprofundar essas questões, concen- trando minha atenção na reforma da gestão e no caráter desequilibrado do desenvolvimento brasileiro, que é grande no plano político e social, mas quase nulo no econômico. Enquanto, desde 1980, o crescimento irrisório da renda per capita, de não mais do que 8,4%, indica que não está havendo desenvolvimento econômico, os avanços nos planos democrático e institucional são consideráveis (inclusive a Reforma da Gestão Pública de 1995/98) e, no plano social, a melho- ria dos indicadores sociais tem sido significativa. E, no final, vou argumentar contra o discurso dominante que faz a superação da semi-estagnação depender da introdução de reformas institucionais ou microeconômicas. Embora sejam importantes, estas reformas só vão produzir efeitos a médio e longo prazo. Mais urgente para a retomada do desenvolvimento é a mudança da política macroeco- nômica – esta sim uma mudança com efeitos imediatos que poderá arrancar a economia do país da semi-estagnação. Não discutirei, neste trabalho, a política macroeconômica. Limitar-me- ei a examinar, na primeira seção, o desenvolvimento político e, em especial, a Reforma da Gestão Pública de 1995/98, da qual participei diretamente; na segunda seção, a relacionar o avanço da democracia ao aumento do gasto social e à substancial melhoria dos indicadores sociais; e, na terceira seção, a fazer uma breve análise dos limites das reformas institucionais e da necessi- dade urgente de mudar a política macroeconômica. DESENVOLVIMENTO POLÍTICO E REFORMA DA GESTÃO PÚBLICA Os países ou estados nacionais desenvolvidos, apesar de todas as dificul- dades que enfrentam, tendem a ser mais democráticos e mais republicanos à medida que aumenta a participação social na política. A organização do Estado tende a ser mais descentralizada e sua administração mais gerencial. No plano social, a onda neoliberal que começou no final dos anos 1970 representou uma ameaça aos direitos sociais alcançados duramentepelos trabalhadores daqueles países, mas a grande maioria desses direitos foi conservada. Não está claro, porém, como será o mundo em termos econômicos. A globalização exige que os estados nacionais sejam cada vez mais competitivos – o que os obriga a combinar de forma pragmática a alocação de recursos pelo mercado e a inter- venção estratégica do Estado, em um quadro de estabilidade macroeconômica –, mas é difícil estabelecer parâmetros para essa combinação. O Brasil apresenta evolução paralela àquela que vem ocorrendo nos pa- íses ricos, mas, como país em desenvolvimento, mostra peculiaridades im- portantes. No plano político, a democracia não tem cessado de avançar em termos institucionais e de práticas políticas desde que, em 1985, consumou- se a transição democrática. A nova Constituição, em 1988, representou um grande avanço e alguns retrocessos – os quais não se cristalizaram, mas estão sendo corrigidos à medida que a Constituição é emendada. As práticas políti- cas, por sua vez, continuam muito aquém do desejável, mas o clientelismo é cada vez mais criticado, a corrupção é cada vez mais investigada, e a clássica impunidade dos políticos e, mais amplamente, das classes dirigentes no Bra- sil vai pouco a pouco sendo combatida. O grande avanço em relação ao fi- nanciamento das campanhas políticas foi dado pela criação do horário gratui- to na rádio e televisão, mas só se completará quando for aprovado o financi- amento público de campanha. Nesse momento estaremos, no plano político- democrático, próximos aos mais avançados países europeus, e mais avança- dos do que os Estados Unidos. A democracia brasileira vai assim deixando de ser uma democracia de elites para se transformar em uma democracia de opinião pública, na qual já podem ser percebidas características da democracia participativa ou republi- cana. Adoto uma tipologia histórica das democracias modernas que tem co- mo base as democracias avançadas, iniciando com a democracia de elites (na primeira metade do século XX), passando para a democracia de opinião pú- blica (a partir do fim da Segunda Guerra Mundial) e começando a ser parti- cipativa ou republicana no final do século (Bresser-Pereira, 2004). O Brasil acompanha essas tendências, mas, como é próprio dos países em desenvol- vimento, sobrepõe ou atropela as etapas. Estamos ainda transitando da de- mocracia de elites para a democracia de opinião pública, mas já há caracte- rísticas da democracia republicana, como os processos participativos oriun- dos de organizações da sociedade civil, sejam elas organizações públicas não-estatais de controle e advocacia social, sejam organizações corporativas, tais como as associações representativas de interesses e sindicatos. No plano da gestão pública, o progresso nos últimos vinte anos foi tam- bém extraordinário. A Constituição de 1988 representou um retrocesso nesse campo, uma vez que criou privilégios, inaceitáveis, para a burocracia públi- ca; mas, mesmo nesse momento, houve um avanço administrativo quando foi estabelecido o princípio da descentralização dos serviços sociais, para os es- tados e municípios. A grande mudança administrativa e organizacional do Estado brasileiro começou, entretanto, com a Reforma da Gestão Pública de 1995/98. Através dela, o Brasil acompanha, com uma pequena defasagem, a segunda grande reforma do Estado moderno. A primeira foi a reforma burocrática, que ocor- reu nos países europeus desenvolvidos no final do século XIX, nos Estados Unidos no início do século XX, e no Brasil a partir de 1936/38. É a reforma que substitui a burocracia patrimonialista por uma burocracia e por um estilo de administração weberianos. A partir dos anos 80, porém, começa na Ingla- terra, e depois se espalha para a maioria dos países desenvolvidos, a reforma da gestão pública, que o Brasil adotará já nos anos 1990. A Reforma da Gestão Pública de 1995/98 estabeleceu dois princípios para a organização do Estado brasileiro e um novo princípio para a sua administração. O primeiro princípio organizacional é a terceirização, ou ‗publicização‘, das atividades exclusivas de Estado: terceirizar para empre- sas privadas os serviços auxiliares do Estado (como obras públicas, limpe- za, serviços de alimentação, digitação etc.) e publicizar os serviços sociais, contratando organizações públicas não-estatais para realizá-los mediante contratos de gestão. O segundo princípio organizacional é de, no caso das atividades exclusivas de Estado, tornar mais descentralizadas as agências executivas e reguladoras, garantindo maior autonomia para seus gestores e exigindo deles maior responsabilização pública (accountability). O novo princípio de gestão é a substituição parcial dos controles burocráticos clás- sicos (supervisão, regulamentação detalhada e auditoria) pelos controles ou sistemas de responsabilização gerenciais: o controle por resultados, a com- petição administrada por excelência e o controle social por organizações da sociedade civil e pela mídia. O objetivo fundamental da Reforma da Gestão Pública de 1995/98 foi tornar mais eficiente o Estado. Para isto, partia do pressuposto de que o Es- tado brasileiro já é democrático. A descentralização, com a transferência de decisões seja para organizações públicas não-estatais seja para as agências executivas, só é viável no contexto de uma sociedade civil com capacidade para exercer controle social. As reformas burocráticas eram necessariamente centralizadoras, porque ocorreram no século XIX em estados liberais, mas ainda autoritários; já as reformas da gestão pública podem envolver descen- tralização e publicização, porque estão ocorrendo em países em que o regime político é democrático. A Reforma da Gestão Pública de 1995/98 parte de uma visão crítica da administração pública burocrática e propõe substituí-la pela administração pública gerencial, mas não confunde administração burocrática com os buro- cratas públicos que a executam. Estes recebem vários nomes sinônimos – burocrata, alto servidor público, gestor público, administrador público, ad- ministrador profissional, tecnoburocrata público, técnico do Estado –, mas são essenciais para a reforma da gestão pública. Eles fazem parte de uma categoria social ampla, de uma classe social que deriva seu prestígio e seus rendimentos não do capital (como o fazem os capitalistas) nem do trabalho manual (como é o caso dos operários), mas do seu conhecimento técnico e organizacional 2 . Enquanto nas organizações públicas os gestores públicos dividem seu poder com os políticos e com os cidadãos, nas organizações pri- vadas dividem-no com os capitalistas. Não existe a possibilidade de reformar o aparelho do Estado, e substituir gradualmente a administração pública bu- rocrática pela gestão pública, sem contar com a participação ativa dos buro- cratas públicos. São eles e os políticos (ou seja, os ‗agentes públicos‘) que, no núcleo estratégico do Estado, organizam e dirigem toda a organização estatal. São eles que, fazendo parte das carreiras exclusivas de Estado, detêm em alguma medida o poder de Estado. Estes são pressupostos da Reforma da Gestão Pública de 1995/98, cuja implementação, longa e contraditória, não se encerrou naquele período. Essa reforma continua sendo implementada – e com sucesso, ainda que lentamen- te –, porque correspondia e continua a corresponder a uma necessidade do Estado e da sociedade brasileiros. Essa reforma logrou deixar uma marca definitiva na gestão do Estado brasileiro porque, ao colocar o gestor público no centro da reforma e ao demandar para ele mais autonomia e mais respon- sabilização, logrou conquistarseus corações e mentes 3 . Os administradores públicos mais competentes compreenderam que a reforma os valorizava e prestigiava. Logo, equivocam-se Clovis Bueno de Azevedo e Maria Rita Loureiro quando afirmam que a Reforma da Gestão Pública de 1995/98 su- bestimou a importância do recrutamento por concurso e a valorização das carreiras no serviço público (Azevedo e Loureiro, 2003). Pelo contrário, ela enfatiza a contínua profissionalização dos gestores públicos, e das carreiras exclusivas de Estado, e a exigência de concurso público para seu recrutamen- to. A importância dada à necessidade de fortalecer as atividades exclusivas do Estado e, particularmente, o núcleo estratégico do Estado pode ser tradu- zida, dentre outras medidas implementadas nesse período, pela promoção anual de concursos públicos para todas as carreiras de Estado do Governo federal – iniciativa inédita na história da administração pública brasileira. Os autores mencionados parecem supor que a existência, no Estado, de uma boa burocracia – ou seja, de administradores profissionais competentes e dotados de espírito público – significa que a administração é burocrática. Assim, a partir da leitura do Plano Diretor, perguntam: ―Se há uma boa bu- 2 Refiro-me à tecnoburocracia ou classe média profissional, que existe tanto nas organi- zações privadas quanto públicas. 3 Em ―Reflexões sobre a Reforma Gerencial de 1995‖ analisei as estratégias que adotei para aprovar a reforma, e apresentei as pesquisas então realizadas que mostram o alto nível de aprovação alcançado pela reforma entre os altos servidores públicos brasileiros. rocracia, o modelo a seguir, dito gerencial, seria ainda burocrático, cujos princípios estão flexibilizados, logo fortalecidos?‖. Não, respondo. Ou o mo- delo é o da administração pública burocrática, ou é o da administração ge- rencial (que hoje prefiro chamar de modelo da gestão pública). Nos docu- mentos e nos trabalhos sobre a Reforma da Gestão Pública de 1995/98, dis- tingui com clareza a administração pública burocrática tanto da administra- ção patrimonialista que a antecede, quanto da administração pública gerenci- al ou do modelo da gestão pública que a sucede. Existem diferenças concei- tuais entre as três formas de organizar e gerir o Estado, mas estas diferenças não derivam da qualidade dos burocratas, e sim do modelo de organização e administração do Estado. Nos três modelos, o Estado é gerido por políticos e burocratas, e, mes- mo no caso do modelo patrimonialista, não há razão para supor que os buro- cratas ou administradores sejam incompetentes. O modelo de organização e administração no qual operam é diferente, e, em conseqüência, as qualidades requeridas dos burocratas serão diferentes. A gestão pública exige adminis- tradores ou burocratas ainda mais competentes e mais prestigiados do que os que existiam na administração burocrática, porque eles são mais autônomos, dirigem agências ou departamentos mais descentralizados, e devem tomar decisões continuamente – algo que no modelo burocrático não era apenas dificultado pelo seu caráter centralizado: era proibido, porque visto como marcado pelo vício da ‗discricionariedade‘. Entendia-se o princípio do Esta- do de direito, ou do império da lei, de forma estrita, não cabendo ao adminis- trador público outra função senão aplicar a lei. Não é, portanto, pelo fato de o Estado brasileiro contar com uma boa burocracia que o modelo de administração é burocrático. A organização do Estado precisa de um grupo de gestores altamente capacitado, que deve ser tão responsabilizável, no plano democrático, quanto autônomo, no gerencial. Conforme afirmei insistentemente enquanto fui responsável pela área, o Go- verno federal já conta, em linhas gerais, com uma burocracia bem seleciona- da por concursos públicos, bem treinada e, portanto, competente. Sem ela, não poderia ter pensado na reforma. Foi a competência da burocracia pública brasileira que permitiu ao Brasil ser o primeiro país em desenvolvimento do mundo a começar sua reforma da gestão pública. A partir de 1995, um núme- ro grande de administradores públicos vem sendo admitido anualmente para todas as carreiras de Estado. A alta e competente burocracia de Brasília está, assim, desde então, sendo renovada gradualmente, de acordo com a filosofia de concursos e de recursos humanos da Reforma da Gestão Pública de 1995/98. Este grande grupo de administradores, que não têm paralelo em nenhum outro país latino-americano, é essencial para que o Estado possa de- sempenhar as funções estratégicas que dele se espera no mundo global. Esta reforma vai, gradualmente, substituindo o modelo burocrático pelo da gestão pública. Jamais, porém, pretendeu ser uma revolução. É curioso, portanto, ver que Azevedo e Loureiro surpreenderam-se agradavelmente quando leram, no livro La Responsabilización en la Nueva Gestión Pública, editado pelo Conselho Científico do Clad (que presido) 4 , que a adoção das três formas próprias de responsabilização gerencial (administração por resul- tados, por concorrência administrada e por controle social) não prescinde o uso das formas clássicas de controle burocrático (supervisão, regulamentação detalhada e auditoria), apenas diminui a ênfase que se deve nelas colocar. Em meus trabalhos anteriores, em que discuto o ‗leque de controles‘ (Bres- ser-Pereira, 1997, 1998, 2004), deixei sempre claro que as novas formas ge- renciais de responsabilizar ou tornar ‗accountable’ os servidores públicos não dispensam as formas clássicas, burocráticas: apenas reduzem sua impor- tância. A auditoria, por exemplo, continua essencial, mas deixa de controlar detalhadamente procedimentos, já que o importante é alcançar os resultados contratados. Através do processo gradual de implementação da reforma, os mecanismos gerenciais de responsabilização vão ganhando força, mas não é razoável esperar que os mecanismos burocráticos clássicos desapareçam completamente mesmo no longo prazo. Os obstáculos de implementação que a Reforma da Gestão Pública de 1995/98 hoje enfrenta em nível federal não derivam da falta de valorização do burocrata público por parte dessa reforma, nem da resistência originada em servidores e em especialistas em direito administrativo, que ainda se man- têm ou se manteriam fiéis ao velho modelo burocrático, mas da dificuldade que os economistas no Ministério do Planejamento e no Ministério da Fa- zenda, preocupados com a redução da despesa pública, têm em aceitar uma reforma que, ao descentralizar, reduz aparentemente seu poder de controle sobre essa despesa e da falta de uma secretaria da presidência com nível mi- nisterial para tratar das questões relativas à gestão. A grande maioria dos altos servidores públicos compreendeu que a Re- forma da Gestão Pública de 1995/98 valorizou o seu trabalho, e por isso a apoiou. Apenas os servidores de nível mais baixo, que não pertencem a car- reiras exclusivas de Estado, mostraram-se sempre contrários. Não é surpre- endente, dado o fato de que a organização do novo Estado que surge da re- 4 CLAD, Conselho Científico. (2000) As formas de responsabilização gerenciais discuti- das nesse livro basearam-se em Bresser-Pereira (1998). forma da gestão pública prescinde desse tipo de servidor, necessitando ape- nas de servidores altamente qualificados e capacitados, que exerçam funções com poder de Estado. As funções auxiliares (como serviços de limpeza, de alimentação, de digitação) serão terceirizadas. A Reforma da Gestão Pública de 1995/98 continua, porém, a enfrentar dificuldades com os economistas do governo. Estes apóiam em princípioa reforma, mas quando se trata de dar mais autonomia às agências executivas e às organizações sociais, resistem com medo de perder o controle das finanças públicas. Além disso, no caso da transformação de autarquias em organiza- ções sociais, sentem-se tentados a reduzir, em seguida, suas dotações orça- mentárias, não percebendo que o que se pretende com essa mudança não é reduzir imediatamente os custos, mas melhorar a quantidade e a qualidade dos serviços, com a adoção do novo modelo de organização, tornando-o pú- blico não-estatal. Por outro lado, estou hoje convencido de que cometi um erro quando, em 1998, propus e apoiei a extinção do Mare (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado), que, entre 1995 e 1998, presidiu a reforma 5 . Como alternativa, ofereci a reversão do Mare à condição de secretaria da Presidência com nível ministerial (como era antes a Secretaria da Adminis- tração Federal, SAF), mas esta alternativa só teria sentido se o presidente, que está sempre assoberbado de problemas, tivesse um interesse especial pe- lo tema da gestão, vendo nele, como acontece hoje nos países ricos, uma questão política importante. Propus a extinção do Mare e a integração da função-gestão no Ministério do Planejamento, porque verifiquei que faltava ao Mare o poder executivo que sobrava no outro ministério, uma vez que controla o orçamento da República. No Mare, o poder era apenas persuasó- rio. Embora esse seja o mais importante dos poderes em uma democracia, parecia-me insuficiente. Não previ, entretanto, que os ministros do Planeja- mento concentrassem toda a sua atenção no orçamento e nos demais proble- mas econômicos, deixando o problema da gestão em segundo plano. O resul- tado da extinção do Mare foi que a função-gestão – que, entre 1995 e 98, foi exercida em nível de primeiro escalão – tem sido, desde então, exercida em nível de terceiro escalão, porque os ministros do Planejamento têm, invaria- velmente, colocado seu secretário Executivo entre si próprios e o secretário da Gestão. Por outro lado, o secretário da Gestão deixou de ter poder sobre a 5 Expliquei as razões que me levaram a fazer esta proposta em Bresser-Pereira (1999). folha de pagamento, sobre a utilização da tecnologia da informação na gestão eletrônica e sobre a própria política de recursos humanos. O terceiro problema tem caráter político. Em 2003, assumiu o poder um partido político de quadros burocráticos médios – o Partido dos Trabalhado- res –, que, durante os quatro anos em que a reforma foi definida e, basica- mente, institucionalizada, se opôs sistematicamente a ela. Opunham-se por- que eram de oposição e porque supunham, equivocadamente, que a reforma fosse contrária aos interesses de toda a burocracia pública, inclusive a de ní- vel médio. No governo, seus dirigentes percebem que é essencial aumentar a eficiência e a efetividade do Estado. Só assim terão argumentos contra a di- reita neoliberal que quer sistematicamente reduzir o Estado em nome da maior eficiência do setor privado. Só assim poderão dispor de recursos para aplicar em atividades sociais e de promoção do desenvolvimento. E só assim poderão melhorar a qualidade dos serviços sociais, existentes. Mas temem a reação dos níveis inferiores e médios do funcionalismo que constituem o PT e as críticas de que estão adotando políticas ‗neoliberais‘. Resulta daí um discurso contraditório e pouco convincente em relação à reforma. De um la- do, falam contra a terceirização e a publicização; de outro, adotam de forma entusiástica a PPP (parceria público-privada) – uma estratégia de terceirização combinada com uma de financiamento de obras e serviços públicos. Não obstante essas dificuldades, a Reforma da Gestão Pública de 1995/98 continua a ser implantada em todos os níveis do Estado brasileiro – federal, estadual e municipal –, uma vez que as idéias que defendeu foram vitoriosas e se tornaram dominantes na sociedade brasileira. A reforma ca- minha, assim, de baixo para cima, a partir da iniciativa dos próprios gestores públicos e das demandas da cidadania. Caminha, também, porque ela se tor- nou imprescindível para que o Estado possa ser razoavelmente eficiente e efetivo em um mundo globalizado, no qual a competição entre as empresas apoiadas por seus respectivos estados nacionais transformou-se na lei eco- nômica global fundamental. Caminha, finalmente, porque a Reforma da Ges- tão Pública de 1995/98 é um capítulo importante de um amplo processo de desenvolvimento político que vem ocorrendo no Brasil desde a transição pa- ra a democracia. AVANÇO SOCIAL E AUMENTO DO GASTO PÚBLICO No campo social os avanços foram também extraordinários. Conforme verificamos pela Tabela 1, a expectativa de vida, que era de 62,5 anos em 1980, aumentou em 8 anos, passando para 70,5 anos em 2000. Considerando esse mesmo período, a taxa de mortalidade infantil, que era de 69,1 por mil, baixou para 30,1 por mil, e a taxa de analfabetismo caiu de 31,9% para 16,7% 6 . O Brasil, entretanto, continua apresentando uma das mais altas taxas de concentração de renda do mundo. As injustiças e os privilégios estão por toda parte, mas não há dúvida de que houve avanço no plano social. Muitos brasileiros se indignam com a situação de injustiça que caracteriza a socieda- de brasileira. E não querem reconhecer os avanços nessa área, porque pen- sam que tal reconhecimento enfraquece a luta contra a injustiça. Creio que estão enganados. Uma vez demonstrado que a melhoria dos indicadores so- ciais é conseqüência do aumento do gasto público na área social, esses gastos tornam-se justificados politicamente. Se não houver esse reconhecimento dos avanços e a explicação dos mesmos através do aumento dos gastos sociais, ficarão fortalecidos os conservadores que querem reduzir o gasto social e a carga tributária. Tabela 1 Brasil, 1980-2000 Dados Sociais 1980 2000 Esperança de Vida ao Nascer (em anos) 62,5 70,5 Taxa de mortalidade infantil/mil (em ‰) 69,1 30,1 Taxa de Analfabetismo – Pessoas com 5 anos ou mais (em %) 31,9 16,7 Fonte: IBGE/PNAD 2002; www.ipeadata.gov.br ; www.inep.gov.br. O fato novo que possibilitou o avanço social foi o aumento do gasto público per capita a um nível muito maior do que o aumento da renda per capita. Verificamos pela Tabela 2 que, enquanto a renda por habitante per- manecia quase estagnada, crescendo apenas 8,5% no período, o gasto social público per capita, incluindo União, estados e municípios, crescia 43,4%. Este dado é impressionante. O substancial aumento do gasto social per ca- pita está certamente relacionado à transição para a democracia e à pressão dos eleitores por serviços sociais mais amplos e com melhor qualidade. Esse extraordinário aumento do gasto social, por sua vez, foi financiado pela ele- vação da carga tributária, que subiu, no mesmo período, de 22% para 33% do 6 Fontes: IBGE/PNAD 2002; www.ipeadata.gov.br; www.inep.gov.br. A taxa de analfa- betismo refere-se a pessoas com 5 anos ou mais. Tabela 2 Brasil, 1980-2000 PIB e Gasto Social per Capita 1980 2000 Variação % PIB per capita – em R$ (preços de 2002) 6.951 7.544 8,5 Gasto Social Público per capita em R$ (valores constantes para dez./2001) 1.143,59 1.639,34 43,4 Fonte: IBGE/PNAD 2002, www.ipeadata.gov.br; www.inep.gov.br. PIB 7 . O gasto social, portanto, foi efetivo em promover a melhoria das con- dições de vida da população brasileira. Os efeitos dessa política social progressiva não aparecem nas estatísticas de concentração de renda, porque uma parte deles não envolve transferências monetáriase, por isso, não é considerada nos levantamentos do IBGE. A acele- ração do progresso técnico, que aumentou a procura por trabalho qualificado e diminuiu a por trabalho não especializado, é o fator que, nos últimos trinta anos, vem provocando universalmente o aumento da concentração de renda. Esse processo certamente também está ocorrendo no Brasil, e, por isso, a taxa de concentração de renda não cede, apesar dos êxitos da política social. Foi a transição para a democracia que permitiu esse grande aumento dos gastos sociais, como também possibilitou que fosse melhorada a quali- dade das políticas públicas sociais. A partir de 1983 (quando os primeiros governadores estaduais tomaram posse por eleições diretas) e de 1985 (quando o primeiro presidente civil foi eleito), os eleitores passaram a ter condições de pressionar os políticos por melhores e mais amplos serviços sociais e por garantias de renda mínima, o que vem se expressando em um grande número de políticas de transferência de renda 8 . Estava claro, entretan- 7 Fontes: IBGE/PNAD 2002; www.ipeadata.gov.br; www.inep.gov.br. 8 Segundo Gilberto Dimenstein (2004) relatórios oficiais afirmam que, apenas no plano federal, são distribuídos 48 milhões de benefícios na forma de transferências. A aposen- tadoria rural atende a quase 6,8 milhões de pessoas; 824 mil idosos e portadores de de- ficiência ganham um salário mínimo mensal; 700 mil crianças ganham uma renda para não trabalharem; 3,6 milhões de brasileiros recebem a bolsa-família, o que atinge pelo menos 11 milhões de pessoas. Adicionalmente existem os programas Bolsa-Escola, Vale-Gás, Cartão-Alimentação e Bolsa-Alimentação, que ainda não estão incorporados ao Bolsa-Família. Os estados de Goiás, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Ge- rais, Mato Grosso do Sul, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá e Pará, além do Distrito Federal, contam com programas de transferência de renda. No caso de São Paulo, exis- tem, além de recursos estaduais, programas de transferências de renda em cidades im- to, para os estudiosos da questão social do Brasil, que não era possível me- lhorar sensivelmente a distribuição de renda no país por meio de aumentos de salários, já que estes dependem do mercado, no qual prevalece uma clás- sica oferta ilimitada de mão-de-obra não-qualificada. A solução demandada politicamente pela sociedade era, portanto, a única efetiva e recomendável do ponto de vista técnico: consistia em aumentar o gasto social. E isso foi reali- zado com financiamento pela via do aumento da carga tributária 9 . A política social foi o maior êxito do novo regime democrático brasilei- ro. O gasto social aumentou como conseqüência da pressão dos eleitores por mais e melhores serviços sociais de educação e saúde, e pela adoção de di- versos mecanismos de renda mínima. Ao mesmo tempo, melhorava a quali- dade das políticas sociais, uma vez que estas eram mais fruto de se ouvir a sociedade e do debate público do que da decisão ‗iluminada‘ dos técnicos. Houve, portanto, melhores decisões – decisões mais efetivas, mais adequadas a resolver o problema específico a que se destinavam – e maior disponibili- dade de recursos (sempre escassos) para financiá-las. Seria interessante saber se a melhoria dos indicadores sociais ocorreu devido, também, ao aumento da eficiência dos serviços sociais do Estado. A motivação fundamental da Reforma da Gestão Pública de 1995/98 foi exa- tamente essa: permitir que o Estado brasileiro lograsse maior quantidade e melhor qualidade dos seus serviços públicos, a um custo menor. Na primeira reunião da Câmara da Reforma do Estado, em 1995, solicitei aprovação para a política de privilegiar, do ponto de vista administrativo, os ministérios da área social. Distingui os ministérios da área econômica (―que já tinham mui- tos economistas e administradores, e dispunham de recursos abundantes‖) e os ministérios da área de infra-estrutura (―que contavam com engenheiros qualificados para a administração e recursos razoáveis‖), dos ministérios da área social (aos quais ―faltavam sejam recursos administrativos sejam orça- mentários‖). E afirmei que a prioridade do Mare seria ―fornecer gestores pú- blicos de alto nível e dar assessoria administrativa para os ministérios da área social‖. Essa política foi rigorosamente seguida nos quatro anos em que ocu- pei a direção do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. portantes como São Paulo, Santo André, Campinas e Ribeirão Preto. Técnicos do Ban- co Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) comentam que tanta gente atendida compõe, nesse caótico desenho, um dos maiores programas do mundo de transferência de renda via governo. 9 Infelizmente o aumento da carga tributária também destinou-se ao financiamento do serviço da dívida pública, onerado por taxas de juros absurdas decididas pelo Banco Central. Consegui assessorar de forma efetiva principalmente o Ministério da Saúde (Bresser-Pereira, 1998: Cap. 14). Estou seguro de que – dez anos depois do início da reforma em todo o Brasil –, embora o avanço dos indicadores soci- ais se deva principalmente ao aumento do gasto com a melhoria da qualidade das políticas públicas (mais orientadas para as necessidades dos cidadãos), resultados efetivos foram alcançados em termos de aumento da eficiência dos serviços sociais. Há, entretanto, um longo caminho a percorrer no campo do aumento da quantidade e da qualidade dos serviços sociais, já que os índices de pobreza e de concentração de renda, no Brasil, continuam dramáticos. E o problema está em saber como financiar esse processo. A solução via reforma da gestão pública é fundamental, mas demanda tempo. Por outro lado, o financiamento via aumento da carga tributária está-se tornando cada vez mais problemático. A carga tributária não tem parado de crescer desde a transição democrática, tendo subido de 22%, na época da transição, para 36% do PIB hoje, e não há mais condições, nem econômicas nem políticas, de ampliar os serviços soci- ais com esse tipo de financiamento. UMA ECONOMIA SEMI-ESTAGNADA Existe uma forma óbvia de continuar a aumentar o gasto social sem aumentar a carga tributária. Para isto seria necessário que o país gastasse menos com juros e retomasse o desenvolvimento econômico. Dessa forma, recursos não envolvendo aumento da carga tributária viriam de duas fontes: da diminuição do brutal volume de juros pagos aos rentistas pelo Estado bra- sileiro, e do crescimento da própria economia, que faria aumentar o volume dos recursos tributários arrecadados. Nossa economia, porém, encontra-se semi-estagnada desde 1980, como mostra o crescimento mínimo da renda por habitante. Esta estagnação deveu- se, inicialmente, à grande crise da dívida externa, que atinge o Brasil e os demais países latino-americanos a partir de 1979, e, mais amplamente, à crise do Estado e às altas taxas de inflação, que decorreram em grande parte do excessivo endividamento externo ocorrido nos anos 1970. Entretanto, para fazer face à crise, grandes ajustes foram realizados, re- formas foram implementadas e, em 1994, através de um choque heterodoxo bem concebido – o Plano Real –, o país logrou estabilizar seus preços, e imaginou-se que estava pronto para retornar ao desenvolvimento. Não foi isso, porém, que ocorreu. Aceitando conselhos de Washington e Nova York, que se consubstanciaram no que tenho chamado de Segundo Consenso de Washington, a instabilidade macroeconômica foi mantida não porque voltas- se a alta inflação, mas porque uma perversa equação macroeconômica, carac- terizada por uma alta taxa de jurosbásica (determinada pelo Banco Central) e uma taxa de câmbio alta (valorizada), impedia que o país alcançasse a esta- bilidade intertemporal de suas contas públicas e de suas contas externas (Bresser-Pereira, 2003a). Esta ‗ortodoxia convencional‘ 10 – que os países asiáticos sabiamente não adotam, mas que os brasileiros e, em geral, os lati- no-americanos não sabem recusar – afirma que para que a economia brasilei- ra volte a crescer é preciso continuar a dar absoluta prioridade ao combate à inflação, através do ajuste fiscal e da elevação da taxa de juros básica, e da adoção de reformas institucionais orientadas para o mercado. Embora considere necessárias as reformas institucionais ou microeco- nômicas, desde que realizadas com equilíbrio e voltadas para a realidade na- cional, não acredito que elas sejam o que de mais urgente e efetivo se possa fazer para a retomada do desenvolvimento econômico. Reformas institucio- nais são sempre necessárias. Os parlamentos existem para realizá-las. Elas levam tempo para serem aprovadas, e mais tempo ainda para serem imple- mentadas. Seus efeitos são, por definição, de médio e longo prazo. A retomada do desenvolvimento hoje no Brasil é algo que depende de medidas de curto prazo. Depende, essencialmente, de que se alcance efeti- vamente a estabilidade macroeconômica. Em 1994, o Brasil alcançou a esta- bilidade de preços, mas com prejuízo da estabilidade intertemporal das con- tas externas e das contas públicas. Das contas externas, devido a uma taxa de câmbio valorizada, muito baixa; das contas públicas, devido a uma taxa bási- ca de juros altíssima, incidindo sobre uma dívida pública elevada. Portanto, para que se retome o desenvolvimento econômico, será necessário, além de continuar a controlar a despesa pública, mudar a equação macroeconômica perversa de alta taxa de juros e baixa taxa de câmbio que tem caracterizado a economia brasileira nos últimos anos (Bresser-Pereira e Nakano, 2002). Ao contrário do que supõe a sabedoria convencional, a estabilidade macroeconômica do Brasil é incompatível com a ortodoxia convencional, que expressa os interesses dos rentistas e do sistema financeiro nacional e internacional. É principalmente incompatível com uma taxa básica de juros 10 A ortodoxia convencional é um conjunto de crenças econômicas, geralmente com fun- damentação neoclássica, que traduz o pensamento econômico dominante em Washing- ton e Nova York em relação aos países em desenvolvimento. Nos anos 80 assumiu a forma do Primeiro Consenso de Washington, e, a partir dos anos 90, a do Segundo Consenso de Washington. No Brasil essa ortodoxia convencional se expressa através das opiniões dos empresários e economistas do sistema financeiro, cujos interesses atendem, e das políticas adotadas pelo Banco Central do Brasil. (Selic) do Banco Central que nada tem a ver com as classificações de risco do Brasil. Alcançada a verdadeira estabilidade macroeconômica, o Brasil poderia retomar o desenvolvimento e não apenas aumentar o gasto social, mas reduzir o emprego e aumentar os salários reais. Enquanto, porém, uma democracia pujante tem logrado êxitos impor- tantes na área social, principalmente em níveis municipal e estadual, a eco- nomia brasileira tem-se mantido semi-estagnada. O crescimento de 8,5% da renda per capita em vinte anos é irrisório. Entre 1950 e 1980, a renda per capita dos brasileiros crescia essa porcentagem em dois, ao invés de em vinte anos. Nos anos 2000, o crescimento da renda per capita continua lastimável. Em 2003, caiu 1,5% 11 . Não cabe aqui discutir os grandes equívocos de políti- ca econômica que têm sido cometidos nessa área 12 . Cabe, entretanto, assina- lar que a causa principal destes erros e da crise econômica crônica em que vivemos desde 1980 foi, no início, uma conseqüência do endividamento ex- terno excessivo e da crise fiscal do Estado, mas, desde a primeira metade dos anos 1990, esses problemas foram em grande parte superados com o Plano Real, de 1994. No entanto, a economia brasileira não voltou a crescer. Por quê? Basicamente por uma razão política. A revolução capitalista e democrá- tica do Brasil foi completada, mas a revolução nacional – a transferência, para dentro do país, das principais decisões – não foi. Pelo contrário, sofreu uma interrupção e um retrocesso nos anos 1990. A ortodoxia convencional vinda de Washington e Nova York voltou a dirigir a economia brasileira. Nossas elites econômicas e políticas, que desde 1930 vinham desenvol- vendo a capacidade de pensar e resolver os problemas nacionais, deixaram, de repente, de fazê-lo, respondendo à crise negativamente. Em nome da esta- bilidade de preços, a política macroeconômica passou a sacrificar ou a esta- bilidade da balança de pagamentos (através de taxa de câmbio valorizada) ou a estabilidade das contas públicas (através de política de juros básica absurda- mente alta). Que uma política dessa natureza interesse aos rentistas brasileiros – que vivem de juros e consideram ‗mínima‘ a remuneração de 9% reais para seus empréstimos de curto prazo –, não surpreende. Que interesse ao sistema financeiro – que, além de lucrar com os juros dos seus empréstimos ao Esta- 11 O PIB brasileiro decresceu 0,2% em 2003. O último ano em que o crescimento do PIB havia sido negativo foi 1992. Não é coincidência que, nesses dois anos, o Brasil seguia à risca acordo assinado com o FMI no final, respectivamente, de 1991 e 2002. Em am- bos os casos, um acordo incompetente que partia de um diagnóstico macroeconômico errado e impunha políticas danosas ao país. 12 Minha reflexão sobre o assunto encontra-se, principalmente, em Desenvolvimento e Crise no Brasil (Bresser-Pereira, 2003b). do, depende das comissões que aufere sobre o volume total dos negócios –, é perfeitamente compreensível. Que os dois interessados justifiquem a política de juros altos, em nome do combate à inflação, é previsível. Também não há nada de surpreendente no fato de esse tipo de política ser recomendado pelo Fundo Monetário Internacional: afinal, é a ortodoxia convencional que essa institui- ção adota, uma vez que representa, de um lado, a visão que o governo dos Estados Unidos tem dos problemas macroeconômicos mundiais e, de outro, os interesses do sistema financeiro internacional. É triste, porém, verificar como o restante de nossas elites econômicas e políticas não têm forças para se opor a esta política antinacional. Existe aí um problema político grave, que só será resolvido pelo próprio avanço da democracia brasileira e do debate público que lhe é inerente. A alienação das elites, que – ao copiarem os padrões de consumo do centro rico – aceitam, de forma acrítica, as idéias que vêm de lá, só poderá ser superada por meio des- se debate e da indignação crescente da sociedade contra esse tipo de política macroeconômica. Ou, colocando-se a questão em outros termos, só retoma- remos o desenvolvimento quando retomarmos também a nossa revolução nacional. A menor prioridade que estou atribuindo às reformas institucionais, in- clusive à Reforma da Gestão Pública de 1995/98, não significa, obviamente, que elas não possam e não devam ser tocadas enquanto não se muda a políti- ca macroeconômica, não se alcança a estabilidade macroeconômica e não se retoma o desenvolvimento. Estas reformas devem e estão continuando. O parlamento brasileiro tem logrado avanços importantes nessa direção, com o apoio da sociedade e a resistência de grupos minoritários, geralmente situa- dos nos níveis inferiores do Estado brasileiro. Observe-se, porém, que esses avanços contam também com o apoio internacional – o quefacilita o proces- so de reforma, mas o põe sob suspeita. Embora Washington e, particularmen- te, o Banco Mundial resistam a admitir esse fato, instituições não se expor- tam por um sem número de razões, a partir do fato simples de que políticas econômicas e normas legais são geralmente equivocadas quando impostas de fora. As instituições podem e devem ser importadas, mas importar institui- ções significa introduzir alterações substanciais nas experiências estrangeiras e desenvolver novas idéias, de forma a alcançar instituições adaptadas às ne- cessidades do país. A Reforma da Gestão Pública de 1995/98 é um exemplo do que afirmo. Ela nasceu da observação da experiência e da discussão das idéias sobre a reforma da gestão pública que estavam ocorrendo em alguns países desen- volvidos – mas fomos capazes de formular novas idéias e de iniciar uma re- forma voltada para a realidade e para os interesses nacionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Clovis Bueno de & LOUREIRO, Maria Rita (2003) ―Carreiras Públicas em uma Ordem Democrática: Entre os Modelos Burocrático e Gerencial‖. Revista do Serviço Público, 54(1), janeiro 2003: 45-58. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1997) ―A Reforma do Estado nos Anos 90: Lógica e Mecanismos de Controle‖. Lua Nova - Revista de Cultura Política, n.45, 1998: 49-95. Originalmente publicado em Cadernos MARE da Reforma do Estado, n.1, 1997. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1998) Reforma do Estado para a Cidadania. São Paulo: Editora 34. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1999) ―Reflexões sobre a Reforma Gerencial Brasileira de 1995‖. Revista do Serviço Público, 50(4) Outubro de 1999: 5-28. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (2003a) ―O Segundo Consenso de Washington e a Quase-estagnação da Economia Brasileira‖. Revista de Economia Política, 23 (3): 3-34, julho 2003. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (2003b) Desenvolvimento e Crise no Brasil: 1930-2003, quinta edição. São Paulo: Editora 34. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (2004) Democracy and Public Management Reform. Oxford: Oxford University Press (a ser publicado em 2004). BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos & Yoshiaki Nakano (2002) ―Uma Estratégia de Desenvolvimento com Estabilidade‖. Revista de Economia Política, 21(3) julho 2002: 146-177. CLAD – Conselho Científico, org. (2000) Responsabilización en la Administración Pública. Buenos Aires: EUDEBA; Caracas: CLAD – Consejo Latinoamericano de Administración para el Desarrollo. DIMENSTEIN, Gilberto (2004) ―Por que o Brasil não explode?‖ Folha de S.Paulo, 29 de fevereiro de 2004. MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO – MARE (1995) Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Imprensa Nacional, novembro 1995. Plano aprovado pela Câmara da Reforma do Estado da Presidência da República em setembro de 1995. TENDÊNCIAS DA GESTÃO PÚBLICA NOS PAÍSES DA OCDE Flávio da Cunha Rezende Nas duas últimas décadas do século passado, diversas razões combina- das produziram, em escala global, um acelerado movimento rumo à constru- ção de novos papéis e esferas de atuação para os Estados nacionais. Demo- cratização combinada com globalização impulsionaram a consolidação de amplos processos de formulação e implementação de políticas de reforma dos Estados nacionais, nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Problemas relativos à redistribuição, à justiça social e à eficiência dos governos fizeram crescer a demanda por reflexões e práticas que culminaram em um movimento vigoroso de reinvenção das estruturas e instituições soci- ais e políticas. As reformas do Estado (em suas diversas manifestações visí- veis) ocuparam lugar privilegiado nos debates havidos nos países ricos e na- queles de menor renda. Por diversas razões e por diferentes vias, conforme comentaremos adiante, os processos endógenos de reforma serviram funda- mentalmente para redefinir os limites de atuação do Estado, dos mercados e da sociedade civil, dentro de novos modelos de desenvolvimento econômico e social, consolidando uma ―era de reformas‖. Encontrar um novo papel para o Estado, redefinir e reorganizar os pa- drões de gestão e intervenção pública – no contexto de uma nova ordem cada vez mais globalizada, democrática e com restrições fiscais severas – repre- sentaram um complexo desafio mesmo para sociedades com elevados pa- drões de renda e de desenvolvimento humano. Esse desafio foi ainda mais intenso para países em desenvolvimento, nos quais foram repensados os le- gados de políticas em que o Estado desempenhou papel fundamental no de- senvolvimento, tal como foi o caso brasileiro, em contextos marcados por intensa pressão por equilíbrio das contas públicas, das funções e do papel do Estado, e de redução de desigualdades sociais profundas. O Brasil, bem co- mo a América Latina, foi alvo de transformações significativas nas institui- ções políticas, administrativas, econômicas e financeiras, reformas essas marcadas por agudas tensões entre o equilíbrio fiscal, a mudança institucio- nal e a redução das desigualdades sociais e econômicas que ainda persistem nessas regiões. Reformar o Estado e suas instituições tornou-se requisito para se alcan- çarem padrões de governabilidade e governança no mundo desenvolvido, e o êxito em promover padrões mais eficientes de gestão fiscal e maior redistri- buição moldou os contornos das políticas de reforma do Estado nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Processos combinados de privatização, de reforma administrativa, de ajuste fiscal e de redução do tamanho do Estado e dos seus gastos atuaram decisi- vamente na agenda dos governos dos países ricos (e daqueles de menor renda e desenvolvimento), consolidando uma tendência a ver o Estado como um dos principais problemas a serem enfrentados pelos governos e sociedades. Reduzir os elevados níveis de déficit e de carga tributária e, ao mesmo tem- po, produzir políticas públicas voltadas para favorecer uma maior redistribui- ção social foram os eixos que balizaram as políticas de reforma do Estado. Programas nacionais de reforma – tais como o National Performance Revi- ew, nos Estados Unidos, e o Next Steps, na Inglaterra – fundaram as bases do discurso ―gerencialista‖, no qual fazer o Estado funcionar melhor dentro de padrões de menores custos tornou-se condição fundamental para a organiza- ção e o funcionamento do Estado. O propósito mais geral de criar novas instituições e novos modelos bu- rocráticos dentro de bases organizacionais preferencialmente voltadas para os resultados modelou, de forma decisiva, o desenho das políticas de reforma na Europa, nos países asiáticos e no mundo em desenvolvimento, criando as chamadas reformas gerenciais. As reformas gerenciais foram acompanhadas da consolidação de um novo paradigma de gestão pública, no qual se assen- tam as bases e os princípios lógicos e operacionais para o novo papel do Es- tado. Ampliar os padrões de eficiência e efetividade na intervenção pública, por meio de uma nova matriz institucional organizada pelo desempenho, foi, e tem sido, um dos maiores desafios para os gestores públicos contemporâ- neos. No Brasil, a reforma desencadeada em 1995 pelo Ministério da Admi- nistração Federal e Reforma do Estado (Mare) foi um caso típico de reforma gerencial na qual a administração brasileira foi concebida em novas bases, sob novos modelos de delegação e controle burocrático e, fundamentalmente, visando a uma maior pressão por ajuste das contas públicas. A reformada administração pública nos moldes orientados pelo desem- penho tornou-se central na agenda de políticas públicas de diversos gover- nos, e raros foram os casos em que as reformas não constituíram o eixo prin- cipal das mudanças setoriais em outras políticas públicas. A remodelagem do aparelho burocrático a partir de tipos ideais – tais como: maior capacidade administrativa, maior eficiência dos processos de formulação e implementa- ção de políticas e programas sociais, redução do volume de gastos com a máquina administrativa – foi marcante nos processos de reforma. Tentativas para implementar ganhos de desempenho em um contexto de grande pressão por recursos fiscais passam a depender, cada vez mais, de novos padrões administrativos voltados para a maior racionalidade fiscal e capacidade ge- rencial. Por outro lado, pela primeira vez na história, o desempenho político passa a depender de maior capacidade administrativa. A relação desejável entre política e administração passa a ser orientada, ao menos no plano das intenções, pela tentativa de reduzir a interferência da política nos processos administrativos. Não sem razão, as chamadas políticas de modernização da administração pública passaram a ser ingrediente decisivo nas mudanças es- truturais, citadas anteriormente. Tornar a administração pública mais transpa- rente, mais democrática, mais profissional e mais voltada para atingir objeti- vos e resultados sociais passou a ser um longo e tortuoso caminho, em que obstáculos, tensões e paradoxos marcaram a implementação dessas reformas no mundo real. O confronto com a realidade mostra que as reformas apresen- tam resultados bastante diversos e que – mesmo em contextos de Estados e sociedades de maior renda – os processos de reforma são marcados por con- flitos estruturais que derivam da própria formulação e implementação dessas políticas. Em sentido mais amplo, as políticas de reforma gerencial enquadram-se em um conjunto de reformas de ―segunda geração‖, as quais trazem consigo a necessidade de focalizar as transformações institucionais a fim de produzir impactos sobre os processos de estabilidade macroeconômica. Ao propor um novo modelo institucional de delegação e controle para a organização do Es- tado, as reformas gerenciais identificam que grande parte dos problemas de desempenho do setor público resulta de uma combinação de fatores, dentre os quais são centrais os problemas nas instituições e nos incentivos internos à burocracia. Operacionalmente, mudanças institucionais desencadearam um conjun- to massivo de reformas voltadas (i) para a emergência e o desenvolvimento de políticas de reformulação da administração pública, das relações trabalhis- tas, do judiciário, do legislativo, dos mecanismos regulatórios, (ii) para a modernização tributária, (iii) para os programas massivos de privatização, bem como (iv) para a revisão das relações entre governos centrais e subnaci- onais, especialmente em países federalistas. A explicação de que as institui- ções importam para o êxito ou o fracasso das reformas conquistou considerá- vel espaço nas pesquisas comparadas sobre as reformas (Pollitt e Bouckaert, 2000; World Bank, 1997, e.g.). Quadro 1. Conflitos estruturais nos processos de implementação de reformas gerenciais, nos países da OCDE CONFLITO ESTRUTURAL QUESTÕES Grandes expectativas de mudança versus peso da inércia institucional As reformas esbarram-se muitas vezes, dadas as elevadas expectativas ante os legados institucionais. Ajuste fiscal versus mudança institucional voltada para o desempenho O ajuste fiscal demanda maior controle sobre a burocracia; a mudança institucional orientada pelo desempenho demanda menor controle. Ampliação dos controles burocráticos versus demanda por maior autonomia, pelas burocracias e gestores públicos Como compatibilizar os novos mecanismos de controle com as demandas por maior au- tonomia gerencial? Eficiência administrativa versus desempenho na provisão de serviços Como promover políticas de redução dos custos que não confrontem com a elevação do desempenho? Papel e função das organizações públicas versus novas demandas sociais Como realinhar o papel e a missão das organizações públicas, dada a demanda por mais complexas políticas públicas? Mudança interna dos incentivos ver- sus demandas por redução, por esta- bilidade e por corte nos gastos públi- cos Como criar incentivos para a formação de uma nova burocracia, em um contexto de demandas por novos padrões nas relações de trabalho, no setor público? Focalização versus coordenação de políticas públicas Como equacionar os processos de focalização das organizações públicas com mecanismos de coordenação e ação coletiva em políticas públicas? Tempo e cooperação versus pressões por ajustes estruturais Reformas demandam tempo e ação coletiva. Interesses setoriais no processo político não demandam. Fonte: Elaborado a partir de Rezende (2004). Quando observados comparativamente, os países da OCDE foram deci- sivamente marcados por reformas segundo os modelos gerenciais, nos quais a idéia de downsizing (o encolhimento da quantidade de funcionários) e a orientação por desempenho adquirem contornos mais intensos. Os ataques ao problema fiscal, em países como os EUA e a Inglaterra, tornaram-se para- digmáticos. Os casos alemão e francês representaram movimentos ―dissonan- tes‖ em grande medida, dada a sua reduzida voracidade em questões como a redução do tamanho e o envolvimento do Estado nas políticas sociais e eco- nômicas. Comparativamente, todavia, Rezende (1996 e 2002) mostra que os Estados mais ricos continuam a exibir padrões marcados por forte interven- ção social e econômica, a despeito de uma retórica de reforma. A era das reformas, conforme discutiremos adiante, não recolocou ―os Leviatãs no lugar‖, como pretendiam as reformas ambiciosas no início dos anos 1990. Reformar padrões de gastos e modelos institucionais de políticas públicas não constitui tarefa fácil – e não é menos complexa em países de maior renda. A experiência comparada mostra que os países em desenvolvi- mento, por contraste, são aqueles nos quais se realizaram maiores mudanças estruturais no perfil de gastos públicos. Outro ponto de grande interesse para a comparabilidade é a forte ade- são a novos modelos e paradigmas de delegação e de controles burocráticos. Esse novo paradigma – o paradigma pós-burocrático – propõe a criação de padrões de articulação entre formulação e implementação de políticas públi- cas, regulados pelo desempenho. Esse tem sido um dos principais eixos or- ganizadores dos processos de reforma, centrados na idéia de que as organi- zações e instituições do setor público devem funcionar dentro de padrões de eficiência como os adotados em organizações privadas, a depender dos in- centivos internos que modelam a produção, o gerenciamento e a provisão de serviços. Exceto para os casos de provisão de bens, que se aproximam dos chamados ―bens públicos puros‖ (produção das regras e das políticas, plane- jamento, coordenação de políticas, fisco etc.), os governos podem ser orien- tados pelo desempenho, com resultados perfeitamente mensuráveis. Baseados nas recentes teorias do agente-principal e do novo institucio- nalismo econômico, os defensores do gerencialismo público têm buscado consolidar um novo modelo de gestão pública em que modelos tradicionais de responsabilização (rule-based) são progressivamente substituídos por modelos voltados para os resultados operacionais (performance-basedac- countability). No limite, os modelos gerenciais propõem novos padrões de implementação de políticas, a partir de incentivos e mecanismos de controle que privilegiam o desempenho e a orientação por resultados. A comparação da experiência pela qual passaram os países ricos mostra que as chances de êxito desses novos modelos organizacionais – conhecidos como PBO (per- formance-based organizations) – têm sido reduzidas no mundo real, e que não tem sido fácil mensurar e avaliar resultados em diversas áreas de inter- venção do governo. Quanto ao financiamento dos programas de reforma, uma diferenciação importante deve ser feita. Nos países de maior renda, os processos de refor- ma quase sempre são financiados com recursos internos, o que dá maior au- tonomia e estabilidade em termos da condução, implementação e orientação dos resultados a serem perseguidos com tais políticas. Por contraste, nos paí- ses em desenvolvimento as políticas de reforma são financiadas por meio de projetos (setoriais ou multissetoriais) apoiados por agências multilaterais (tais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento). No período 1997-2000, em que se intensificou a difusão das reformas nos países em desenvolvimento (a reforma brasileira, por exemplo, foi iniciada em 1995 e teve o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento), as operações de empréstimo do Banco Mundial para projetos classificados co- mo Reforma do Estado e Governança totalizaram cerca de U$ 5 a U$ 7 bi- lhões por ano, para as seis regiões do globo, materializados em 1.600 proje- tos de larga escala. A análise da composição temática desses projetos mostra que existe uma prioridade: 40,6% dos empréstimos aprovados tinham como destino reformas institucionais, que envolviam iniciativas voltadas para transformar o papel do Estado e desenvolver capacidades na gestão pública. As políticas de reforma implementadas nos anos 1990 tiveram como centro uma tensão entre o ajuste fiscal e a mudança institucional. Reduzir os gastos públicos e, ao mesmo tempo, criar mecanismos para que as institui- ções funcionassem melhor foram os temas centrais das reformas. A compa- ração entre os programas de reforma gerencial mostra que havia esse formato programático e que, na maioria deles, preponderava o ajuste fiscal sobre a mudança institucional – embora tais objetivos sejam aparentemente comple- mentares à elevação do desempenho. Isso se explica pelo fato de a pressão por ajuste fiscal ter sido uma razão decisiva para que se desse início às re- formas, especialmente nos países de maior renda, ou mesmo naqueles de renda intermediária. Intensas pressões por equilíbrio fiscal em contextos de democratização inibiram a adoção de mudanças institucionais mais qualitati- vas. A prioridade política gerada pelo componente ―ajuste fiscal‖ comprimiu as outras dimensões da reforma. Os casos brasileiro e latino-americano apre- sentaram, tipicamente, essa natureza, que contribuiu decisivamente para mu- danças mais significativas no papel do Estado. A associação de êxito das reformas e redução do tamanho do Estado – muito marcada pelas ―ideologias neoliberais‖ – foi outro ponto crítico no legado das reformas gerenciais. Os casos nacionais revelam, com maior regu- laridade, um certo vigor e, por que não dizer, um sucesso relativo em dimen- sões ―visíveis‖, tais como a redução dos gastos públicos, o encolhimento da quantidade de funcionários públicos (downsizing), o corte em programas sociais, a extinção de agências governamentais e a reorganização superficial de estruturas administrativas. O mesmo não se pode afirmar quanto à propa- lada transformação no modelo institucional que, supostamente, fundaria as bases para uma nova burocracia e, no limite, um novo padrão de funciona- mento do Estado. Apesar disso, a implementação da parte mais delicada de qualquer reforma – qual seja, transformar as instituições (regras formais e informais), alterando os incentivos que afetam o papel e a qualidade da inter- venção pública – ainda representa um desafio crucial. A comparação das experiências revela que as reformas são lentas e de- pendem da montagem de complexas redes de cooperação entre atores institu- cionais em torno dos dois objetivos. As evidências analisadas também apon- tam para o interessante fato de que a implementação das reformas está nega- tivamente correlacionada à qualidade e ao desempenho institucional ex-ante. Em casos marcados por elevadas ineficiências históricas, as evidências mos- tram que as reformas não constituem incentivos para elites que ―se benefici- am‖ com padrões de ineficiência. Parece difícil, nesses contextos, cooperar com os propósitos de ampliação dos controles, de maior responsabilização burocrática e de maior orientação pela eficiência do Estado e da gestão pú- blica. O que os dados demonstram é que as reformas são abandonadas, modi- ficadas ou descontinuadas. Outro ensinamento obtido por comparação é o de que projetos de re- forma que desconsideram as especificidades (one size fits all approaches) dos sistemas burocráticos e administrativos alcançam resultados pouco efeti- vos. Programas de reforma que levem em conta a flexibilidade institucional de cada contexto podem ser mais desejáveis. Comparativamente, os resultados da mudança institucional são tímidos. Raros são os casos em que ambiciosas mudanças propostas foram implemen- tadas a contento, embora os desafios políticos, institucionais e técnicos para conseguir a cooperação, com os objetivos da reforma gerencial, continuem intensos. Reformas gerenciais não encontram cooperação espontânea dos atores para criar uma cultura orientada pelo desempenho. Por outro lado, em reduzidos casos as performance-based organizations, a pedra de toque no novo modelo gerencial, foram criadas a contento. O caso brasileiro de 1995 foi típico de que, apesar das mudanças cons- titucionais empreendidas, a criação de novas organizações redefiniram as relações entre policy-making e service delivery. Mesmo nos casos em que mudanças foram introduzidas, grandes são os desafios para definir, monitorar e controlar os padrões de desempenho. Existe, ainda, grande dissenso entre o que significa o desempenho, sobretudo porque o Estado e a administração pública contemporânea são, na realidade, compostos de grande diversidade de agências com objetivos altamente heterogêneos, o que dificulta estabele- cer padrões comparáveis de desempenho. As reformas gerenciais ainda estão longe de ter introduzido um padrão coerente e aceitável de administração pública. Os estudos de caso disponíveis sobre as experiências nacionais e subnacionais revelaram que as reformas encontram dificuldades para trans- formar a burocracia e o seu modus operandi. Outro ponto a ser considerado em uma análise comparativa das refor- mas é a questão do ajuste das contas públicas, ou o ajuste fiscal. Dados com- parados mostram que as reformas foram relativamente efetivas no controle da expansão acelerada dos gastos públicos e do desequilíbrio fiscal que se vinha consolidando desde os anos 1980. Um grupo reduzido de países – tan- to desenvolvidos quanto em desenvolvimento – apresenta casos concretos de redução do patamar dos gastos públicos. Também um ponto interessante a ser comparado é a transformação da composição dos gastos públicos. Nesse particular, tal como demonstrei em dois estudos empíricos (Rezende, 1996 e 2002), existe uma clara tendência à minimalização dos gastos públicos nos países em desenvolvimento, o que não ocorre nos países desenvolvidos. Os dados revelam que, no período pós- 1980, os países em desenvolvimento passarama alocar a maior parte dos seus recursos em funções consideradas mínimas (sendo a dívida um dos principais componentes da despesa), tendo havido redução dos gastos em funções consideradas sociais e econômicas. No caso dos países desenvolvi- dos, os dados revelam que foram conservados os papéis social e econômico dos gastos públicos, assim como se conservou um modelo intervencionista. Os dados comparados da evolução do Índice de Governo Mínimo (IGM) pa- ra uma amostra de 72 países mostram que os países em desenvolvimento es- tão comparativamente mais próximos dos padrões considerados como ―o de Estado mínimo‖ (Rezende, 2001). Os países mais ricos vêm expandindo suas intervenções em funções sociais e econômicas, apesar das reformas havidas nos anos 1990. Outro ponto de comparação refere-se à redução da força de trabalho no setor público. As reformas não reduziram marcadamente o tamanho do setor público e, em alguns casos, verificou-se a expansão dos gastos com pessoal e com a máquina administrativa. Os governos envolvidos em reformas ainda enfrentam dificuldades consideráveis para reformar a qualidade do emprego no setor público. Evidências disponíveis mostram que a elevação do desem- penho no setor público passa, fundamentalmente, por melhores salários, maior qualificação e pela definição de um outro perfil de carreira, o que cer- tamente demanda maiores gastos. Os governos ainda operam com grande assimetria de informação sobre as demandas reais por pessoal, vindas dos diversos órgãos do governo. Em outros casos, há uma grande ―demanda‖ por informação consistente sobre as ―realidades‖ administrativas dos sistemas burocráticos. Por seu lado, as reformas gerenciais, especialmente nos países em de- senvolvimento, tiveram considerável êxito em permitir o acesso a informa- ções sobre o funcionalismo, antes desconhecidas do grande público. A pres- são por maior racionalidade nos gastos públicos após o ajuste fiscal tornou necessária a maior precisão nos controles quantitativos sobre o funcionalis- mo público e suas características. A difusão desses números per se represen- ta um grande avanço para a gestão pública, especialmente no que se refere ao maior controle social sobre as agências públicas. Sem a informação necessária e o diagnóstico preciso sobre os problemas de desempenho, ao nível intra e interorganizacional, as reformas do setor público correm o risco de entrar nos padrões de ―amputation before diagnosis‖, sobre o qual nos adverte Seidman em sua análise das reformas americanas. As reformas podem ser mais bem- sucedidas quando, por meio do conhecimento aprofundado, os problemas de desempenho são planejadamente detectados e atacados. Os casos mais bem- sucedidos mostram que o conhecimento das instituições é um dos pontos fun- damentais para superar os crônicos problemas de desempenho. Isso exige um esforço amplo de estudos e pesquisas institucionais que produzam informa- ções consistentes de como realmente funcionam as organizações e quais os seus problemas-chave. Reformas que pretendam cortar gastos e controlar as informações sobre o setor público são necessárias, porém insuficientes. Por outro lado, a construção de uma nova matriz institucional descentrali- zada, autônoma e orientada por resultados é chave para o paradigma ge- rencial. Apesar dos resultados obtidos, dos avanços e dos impasses no plano da implementação, as reformas gerenciais ainda têm um longo caminho a per- correr – e dilemas cruciais a enfrentar. Um dos principais dilemas reside em uma contradição que as reformas gerenciais trazem em si, qual seja: o equilí- brio delicado entre desempenho e controle. Se, por um lado, os modelos de reforma propõem a redução dos controles burocráticos, nos moldes descen- tralizados de delegação, é fato que problemas de coordenação e regulação são característicos nos modelos existentes sobre a relação entre formulação e implementação. Nos casos inglês e americano, ainda persistem os dilemas de como delegar responsabilidade sem criar mais controle. No caso dos países em desenvolvimento, com uma frágil tradição de controle, a regulação ainda constitui um problema decisivo. Por outro lado, como nos adverte Schwar- tzman (1996), ―não é a simples eliminação dos controles burocráticos sufici- ente para garantir o bom desempenho e a correção no uso dos recursos públi- cos por parte das instituições governamentais‖. Segundo ele nos adverte e sugere, o controle é fundamental ao desempenho das instituições e requer a combinação de dois elementos: a legitimidade política das elites reformado- ras e a competência técnica dos gestores públicos. Isso demanda, fundamen- talmente, uma mudança de cultura política e administrativa em torno dos princípios da reforma gerencial. Rezende (2001), por sua vez, considera que especial atenção deve ser dada ao fenômeno que ele chama de Problema do Controle, o qual produz incentivos contraditórios sobre a cooperação dos atores aos objetivos pro- gramáticos da reforma gerencial: ―se por um lado o ajuste fiscal demanda mais controle, as mudanças institucionais, especialmente aquelas que de- mandam mais descentralização e sofisticados mecanismos de delegação e responsabilização, demandam menos controle‖. Essa contradição em relação ao controle torna problemático obter a cooperação para os dois objetivos da reforma gerencial. Para além dos resultados alcançados em dimensões setori- ais das reformas, é necessário pensar seriamente sobre como o desenho das reformas incorpora tal dilema, crucial para a implementação da reforma ge- rencial. É bom pensar, por outro lado, que o desempenho e a redução dos controles burocráticos atendem aos interesses de grande parte da burocracia, dos quais os resultados últimos não são a provisão de serviços ao cidadão, mas sim a ―produção de controles‖. Mesmo nas experiências de reforma mais bem-sucedidas – e como tendência geral –, a implementação de modelos fle- xíveis e descentralizados fez, paradoxalmente, elevar os custos burocráticos com mais auditorias e sistemas de controles. Pode-se inferir que, a despeito dos esforços para construir uma nova lógica de organização e novos tipos de controle, as mais poderosas burocracias setoriais nas administrações públicas modernas dependem do controle – e de mais controle ―tradicional‖ para atin- gir os seus resultados. Se considerarmos que a eficiência e a efetividade da ação pública dependem dos controles, a reforma gerencial pode estar com- pletamente equivocada em seu confronto com a realidade, quando considera a ―quebra dos controles‖ como ponto central de um novo paradigma de ad- ministração pública. Reinventar os controles não constitui – conforme de- monstra a experiência recente – uma tarefa simples. O ponto nodal reside em como criar os incentivos seletivos para que os grupos burocráticos cooperem gradualmente com um novo modelo de controle orientado pelo desempenho, o que depende de capacidade e de poder político. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOUCKAERT, Geert & CHRISTOPHER Pollit (2000) Public Management Reform: a comparative analysis. New York: Oxford University Press. KAMARCK, Elaine C. (2000) ―Globalization and Public Administration Reform‖. In: NYE, Joseph S. & DONHAUE, John D. (ed.), Governance in a Globalizing World. Washington DC : Brookings Institution Press. REZENDE, Flávio da Cunha (1998) ―A Nova Gestão Pública, Performance e Reinvenção das Instituições: um desafio para a reforma do Estado‖. Revista Reforma Gerencial, n. 4, novembro, p. 27-28. REZENDE, Flávio da Cunha (2002) ―Gastos Públicos e Transformações Recentes no Papel do Estado Nacional‖. NovosEstudos Cebrap, n.62, março, p. 123-140. REZENDE, Flávio da Cunha (2002) ―Por Que Reformas Administrativas Falham?‖. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, n. 50, outubro, p. 123- 143. REZENDE, Flávio da Cunha (2004) Por Que Falham as Reformas Administrativas? Rio de Janeiro: Editora da FGV. REZENDE, Flávio da Cunha Rezende (1996) ―Os Leviatãs Estão Fora de Lugar‖. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 39(2), p. 195-211. SCHWARTZMAN, Simon (2001) ―Desempenho e Controle na Reforma Administrativa‖. Texto para Discussão, Enap, n. 8, outubro. SEIDMAN, Harold (1998) Politics, Position and Power: the dynamics of federal organization. New York: Oxford University Press. WORLD BANK (1997) World Development Report; the State in a changing world. Washington DC. ADMINISTRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO: A RELEVÂNCIA EM BUSCA DA DISCIPLINA Humberto Falcão Martins A edição de julho/setembro de 1972 da Revista de Administração Pú- blica trouxe um texto, tornado clássico, do professor Paulo Roberto Motta, intitulado ―Administração para o Desenvolvimento – A disciplina em busca da relevância‖. Nele, o autor reflete sobre a disciplina que, àquela altura, já buscava há alguns anos estabelecer a ponte entre o planejamento governa- mental desenvolvimentista e a capacidade dos governos para implementá-lo. Motta destaca dois problemas básicos – tanto da perspectiva empírica quanto da teórica – da Administração para o Desenvolvimento. Primeiro, no que se refere aos fins, constata que a visão de futuro dos países subdesenvolvidos é a imagem e semelhança dos países desenvolvidos. Nesse sentido, a Adminis- tração para o Desenvolvimento estaria buscando mapear as diferenças e os obstáculos na conversão de sociedades tradicionais em transicionais e, suces- sivamente, modernas (os países desenvolvidos). Segundo, no que se refere aos meios, constata que a forma básica de promover a capacidade de governo consiste em implementar um padrão de burocracia governamental ortodoxa, inspirada no modelo-ideal weberiano, orientada para a eficiência e a eficácia, refletindo um deslumbramento pela evolução das concepções de gestão dos países desenvolvidos. Essa visão evolucionista comporta três diferentes posturas: (a) a racio- nalidade moderna pode ser transferida e aprendida integralmente; (b) a raci- onalidade moderna não pode ser transferida porque é limitada e condicionada por aspectos culturais peculiares; e (c) a racionalidade moderna pode ser par- cialmente transferida, desde que ajustada. Em todos os casos, a ―racionalida- de moderna‖, conforme se afigura nos países desenvolvidos, é considerada o estágio último a ser buscado. Motta propunha três linhas que uma nova Administração para o De- senvolvimento deveria seguir: (a) voltar as organizações para objetivos peculiares de desenvolvimento, buscando a relevância mediante a efetivi- dade organizacional (o impacto desejável no ambiente), uma forma estrita de administração por objetivos; (b) conceber modelos de organização mais orgânicos (em contraposição à burocracia mecanicista tipicamente weberi- ana), menos rígidos e permanentes, mais temporais e flexíveis; e (c) buscar o comprometimento valorativo das pessoas que integram as organizações, e não apenas a adesão neutra à regra burocrática como forma de realização de resultados. Passadas mais de três décadas da publicação original do artigo, perma- necem categorias análogas de problemas e soluções, apesar de o mundo e os países em desenvolvimento terem mudado significativamente. Por um lado, a globalização proporcionou maiores ―entradas‖ das sociedades mais avança- das (pelo acesso a bens e serviços, comunicações e transportes) nas subde- senvolvidas, e vice-versa, homogeneizando e padronizando visões de futuro e, ao mesmo tempo, revelando identidades muito específicas e possibilidades peculiares. Ainda que subsistam profundas diferenças de poder, riqueza e bem-estar entre os países, a globalização tende a mesclar padrões modernos, tradicionais e transicionais de forma bastante peculiar. Por outro lado, a ―Nova Gestão Pública‖ surgiu como portadora de modelos de gestão mais orgânicos e, ao mesmo tempo, estabeleceu-se como novo paradigma a ser seguido, gerando tanto deslumbramento quanto o modelo burocrático orto- doxo havia gerado anteriormente. No bojo desses movimentos, surgiram novas concepções de transfor- mação institucional no Estado, com prescrições sobre o que os Estados deve- riam fazer em relação ao desenvolvimento e como prepará-los para isso. Os anos 1980 representaram a decadência da velha Administração para o De- senvolvimento. Além das flagrantes disfuncionalidades da burocracia orto- doxa, esmorecia a idéia de que cabia aos Estados papel central na promoção do desenvolvimento. Os anos 1980 e 1990 não produziram uma nova Admi- nistração para o Desenvolvimento, mas um modelo de ―Administração para o Ajuste Fiscal‖, baseado na crença de que o desenvolvimento requeria a reti- rada do Estado e maior autonomia do mercado. O novo milênio traz de volta a discussão sobre o desenvolvimento e sobre o papel dos Estados na sua promoção. Essa discussão ilumina o advento de uma mudança de paradigmas de transformação institucional do Estado e da administração pública, e acena para uma nova Administração para o Desenvolvimento. O propósito deste artigo é caracterizar essa mudança de paradigmas de modo a se delinear (do ponto de vista empírico e normativo) uma trajetória de transformações na direção de uma nova Administração para o Desenvol- vimento. A disciplina em busca da relevância encontra novas relevâncias em busca do resgate da disciplina. Os dois próximos segmentos apresentam a caracterização de dois para- digmas 13 de transformação institucional 14 do Estado, denominados, respecti- vamente, ―reforma do Estado‖ e ―revitalização do Estado‖. O Quadro 1 apre- senta de forma resumida as características de ambos os paradigmas. A construção desses paradigmas utilizou elementos empíricos e con- ceituais. Há uma dupla utilidade nesse exercício: (a) caracterizar uma tran- sição de pensamento – da concepção da reforma para a revitalização do Estado; e (b) possibilitar análises sobre a extensão na qual determinadas experiências específicas se enquadram mais em um ou em outro paradig- ma. A questão é que praticamente qualquer experiência concreta, indepen- dentemente do nome, conterá elementos de ambos os paradigmas. A esse propósito, é fundamental que qualquer análise a partir desses paradigmas desconsidere a questão terminológica – porque há experiências concretas que se denominam, genericamente ou não, ―reforma do Estado‖ e posicio- nam-se na perspectiva do paradigma e da ―revitalização do Estado‖, e vice- versa. Embora as nomenclaturas sejam problemáticas, o que se busca é contrastar significações. 13 O termo ‗paradigma‘ está sendo empregado em sentido expandido àquele atribuído por Kuhn (1996), como ―generalizações simbólicas‖ a partir de um conjunto de regras, va- lores e crenças objetificados (que façam sentido e explicam) e sedimentados (estágio a partir do qual as bases não são mais questionadas), sobre realizações, problemas e solu- ções modelares, compartilhados por uma comunidade. A idéia de paradigma como ―ge- neralização simbólica‖ remete à questão da quebra de paradigmas como processos de institucionalização e desinstitucionalização de conhecimento e práticas de transforma- ção, nos quais os elementos ―realizações‖, ―problemas e soluções modelares‖ e ―comu- nidade‖ estão sempre presentes de forma interdependente. 14 O termo ‗transformaçãoinstitucional‘ está sendo empregado no sentido de construções políticas deliberadas que visam a modificar as regras que regulam as relações sociais para fins específicos de bem-estar, desenvolvimento, eqüidade etc. A transformação institucional como uma ação deliberada considera que os atores sociais agem no sentido de alterar as instituições (os constrangimentos institucionais, de modo mais amplo) em seus aspectos formais e informais (normas, contratos, constituições etc.), a partir de su- as escolhas interessadas e deliberadas. Ao contrário de tomar as instituições como da- das e com pouca ligação aos interesses dos atores sociais, a premissa da ação deliberada permite incorporar a noção de que os diversos atores sociais se envolvem racional e ati- vamente na produção das instituições, refletindo mais amplamente a articulação entre interesses privados e a estrutura de constrangimentos formais e informais que operam sobre as escolhas individuais dos agentes privados na produção de políticas públicas (Rezende, 2000). Quadro 1. Paradigmas de transformação institucional Reforma do Estado Revitalização do Estado Apropriação peculiar da agenda da Nova Gestão Pública, e refor- mas na linha do Consenso de Washington, em países em de- senvolvimento Estado da arte da agenda da Nova Gestão Pública direcionada ao desenvolvimento, com processo participativo de construção de consenso Conteúdo O Estado como problema Orientação fiscal (eficiência e con- trole) Agenda negativa O Estado como solução Orientação para o desenvolvimen- to (eficácia e efetividade) Agenda positiva Processo Soluções em busca de problemas Resultados rápidos Baixa participação Problemas em busca de soluções Resultados sustentáveis Alta participação Essa forma de pensamento carrega uma hipótese e uma sentença nor- mativa. Por um lado, supõe-se (sem a pretensão de corroborar com análises factuais) que os processos de transformação institucional do Estado tenderão a incorporar progressivamente, de forma mais ou menos complementar, ca- racterísticas do paradigma da revitalização do Estado, indicando uma nova Administração para o Desenvolvimento. Por outro lado, sustenta-se que, do ponto de vista valorativo, esse deveria ser o movimento. A REFORMA DO ESTADO: O ESTADO COMO PROBLEMA A reforma do Estado pode ser caracterizada como um paradigma de transformação institucional porque contém definições peculiares em relação ao caráter e papel do Estado (conteúdo ou direção) e, também, em relação a como implementá-lo (processo). Sucintamente, trata-se de uma apropriação peculiar de princípios e práticas da denominada Nova Gestão Pública 15 , em 15 A Nova Gestão Pública (NGP) é um conjunto de argumentos e filosofias administrati- vas aceitas em determinados contextos e propostas como novo paradigma de gestão pú- blica, a partir da emergência dos temas ‗crise‘ e ‗reforma do Estado‘, nos anos 1980 (Hood & Jackson, 1991). De maneira geral, propõe uma gestão pública dotada das se- guintes características: (a) caráter estratégico ou orientado por resultados do processo decisório; (b) descentralização; (c) flexibilidade; (d) desempenho crescente e pagamen- particular daqueles associados à sua fase inicial gerencialista 16 , na linha do Consenso de Washington 17 . No que se refere ao conteúdo da proposta de reforma do Estado, a crise do Estado é o principal discurso argumentativo justificador. O discurso da crise do Estado, segundo a vertente predominante, tem dois pilares centrais que trançam argumentos doutrinários e factuais: o neoliberalismo e o neo- institucionalismo econômico. O neoliberalismo resgata o ideal liberal na década dos 1970, a partir do esgotamento do paradigma keynesiano e das condições que forjaram o sur- to por desempenho/produtividade; (e) competitividade interna e externa; (f) direciona- mento estratégico; (g) transparência e cobrança de resultados (accountability); (h) pa- drões diferenciados de delegação e discricionaridade decisória; (i) separação entre polí- tica e sua gestão; (j) desenvolvimento de habilidades gerenciais; (k) terceirização; (l) limitação da estabilidade de servidores e regimes temporários de emprego; e (m) estru- turas diferenciadas (Holmes & Shand, 1995; Hood & Jackson, 1991). As proposições doutrinárias da NGP emanam de valores administrativos, principalmente relacionados a desempenho eficiente da tarefa, teorias no âmbito do neo-institucionalismo econômico (Aucoin, 1990; e Boston, 1991) e no âmbito das abordagens contemporâneas de gestão (Aucoin, 1995; Moore, 1994; e Schick, 1996), notadamente aquelas relacionadas à es- tratégia e ao comportamento organizacional, tendo como pano de fundo o argumento do alinhamento oriundo da teoria da contingência (Martins, 2001). 16 Esse tipo de enfoque ilustra-se no gerencialismo puro e no consumeirismo da experi- ência britânica. O gerencialismo puro, mais desestatizante que racionalizador, parte de uma estratégia de eficiência centrada no aumento de produtividade e na redução de cus- tos e de pessoal. Fundamentalmente, apóia-se em uma ética de valorização do custo dos recursos (value for money). Dentre as ações práticas do gerencialismo puro, figuram a racionalização orçamentária, a avaliação de desempenho, a administração por objetivo, a descentralização e a delegação de autoridade. As principais críticas que se fazem ao modelo são a desatenção à efetividade, decorrente do foco na eficiência – que rendeu, inclusive, o rótulo de neotaylorista –, e a despolitização das ações estatais (Pollitt, 1990). O consumerismo consiste em uma reorientação do gerencialismo puro, mais vol- tada à racionalização e tendo como ponto central a satisfação das necessidades dos ci- dadãos, consumidores de serviços públicos. A ênfase do modelo é a estratégia de quali- dade, cujos resultados dependem de medidas tais como: a descentralização, o estímulo à competitividade, a flexibilização dos modelos contratuais e seu direcionamento para a qualidade. A NGP nasceu gerencialista nos anos 1980, fortemente inspirada nas refor- mas minimalistas, e propondo a aplicação de tecnologia de gestão empresarial ao Esta- do, a partir das experiências paradigmáticas (Abrucio, 1996; Martins, 1997; Martins 2001). 17 A expressão foi cunhada por John Williamson (1990) para se referir ao conjunto de políticas liberais que iluminariam a reestruturação econômica e a reforma dos Estados latino-americanos. O ideário condicionava a concessão de crédito e a condição de cre- dibilidade (aos países em desenvolvimento) à adoção de duras medidas de ajuste fiscal, que implicariam a redução do Estado. gimento do welfare state. Apoiado na visão hobbesiana utilitarista da nature- za humana e na idealização da eficiência do mercado preconizada pela eco- nomia neoclássica, o liberalismo celebra as virtudes do mercado, como ins- tância, por excelência, eficiente na alocação dos recursos. Diferentemente dos liberais clássicos, que acreditavam na capacidade auto-regulatória do mercado, os neoliberais reconheceram a existência de falhas de mercado, o que impunha alguma regulação. A caracterização padrão da crise do Estado, conforme elaborada pela crítica neoliberal, evoca alguns elementos contextu- ais que se inter-relacionam em diferentes medidas: (a) o fim do desenvolvi- mentismo pós-guerra, devido ao fim de Bretton Woods, às crises do petróleo, às crises de liquidez e à instabilidade do mercado financeiro internacional, aos novos requisitos de integração competitiva da globalização etc.; (b) a crise do welfare state keynesiano, devido às disfunções eàs desvantagens da intervenção estatal, para garantir o bem-estar e a estabilidade econômica, relativamente aos atributos do mercado; (c) as disfunções burocráticas ou a crise do modo de implementação estatal de serviços públicos; e, dentre ou- tras, (d) a ingovernabilidade: sobrecarga fiscal, excesso de demandas e crise de legitimidade. O desenvolvimentismo empurrado pelo Estado deixava o palco, e entrava em cena o desenvolvimento puxado pelo mercado, em escala global. A contribuição do neo-institucionalismo econômico 18 ao discurso da crise do Estado é que as instituições são importantes (institutions matter) em dois principais sentidos: (1) elas são vitais para a produção de resultados, mas são uma escolha de segunda ordem (second best), um mal necessário, uma vez que o mercado por si só não pode assegurar as transações sem estru- turas ou organizações formais 19 ; (2) as organizações não são instâncias tão racionais assim; a racionalidade (da eficiência econômica) é limitada, sujeita 18 No âmbito do neo-institucionalismo econômico, as abordagens ‗escolha pública‘, ‗teo- ria da agência‘ (principal-agent) e ‗teoria da firma‘ baseiam-se na idéia de que as orga- nizações econômicas e as relações entre diferentes agentes econômicos são pautadas pe- la divergência de interesses (daí a necessidade de haver arranjos contratuais para regu- lar esses interesses). 19 Esse é o argumento da ‗teoria da firma‘, conforme originalmente elaborada por Coase (1937). As firmas (organizações formais) surgem porque o ambiente impõe custos de transação que afetam o funcionamento perfeito do mercado. Mas uma coisa é afirmar que as firmas funcionarão melhor do que os mercados; outra coisa é afirmar que as fir- mas funcionarão de modo perfeito. A ineficiência (comparativamente ao mercado) – e não a eficiência – é o padrão típico, não ocasional, das organizações formais. Dessa perspectiva, organizações formais serão sempre second best. a uma série de ―interferências‖ e constrangimentos decorrentes da sua natu- reza multifacetada (política, humana, cultural etc.). Daí a necessidade de ha- ver ―esquemas de enquadramento‖, do tipo de organizações formais, com estruturas, regras, procedimentos, incentivos, induzimentos e controles que impõem custos de transação e ajudam a evitar os problemas de agência – a subversão de regras e resultados estabelecidos de modo convergente aos inte- resses dos ―principais‖ da organização – os detentores dos direitos de propri- edade. Instituições ineficientes são aquelas que não maximizam a relação estruturas–resultados, e a burocracia governamental era considerada disfun- cional porque estava intensivamente sujeita a excessivos custos de transação e a problemas de agência; portanto, estruturalmente ineficiente e não- confiável. A partir desses fundamentos, o Estado passa a ser considerado como um problema – logo, a solução seria haver menos Estado, e mais mercado e socie- dade civil. O Estado havia, segundo essa ótica, atingido um ponto de estrangu- lamento e ingovernabilidade. À sociedade civil caberia resgatar sua determi- nação e suas capacidades próprias, depender menos do Estado (afinal, have- ria no limiar do século XXI condições tecnológicas para isso) e controlá-lo mais. O Estado deveria restringir-se a suas funções mínimas (defesa, arreca- dação, diplomacia e polícia), a um aparato mínimo de proteção social (com reconhecimento de poucos – e seletos – direitos sociais, e baseado na prestação privada de serviços de relevância social) e a uma gestão mínima da ordem eco- nômica (com destaque para a regulação e a gestão macroeconômica). A implementação desse padrão de Estado mínimo consistia em proces- sos de redução do Estado segundo uma orientação predominantemente fiscal, via redução de despesas (cortes e contingenciamentos orçamentários), de organizações (mediante variadas formas de desestatização, tais como: priva- tização, devolução, descentralização, parceirização etc.) e de quadros funcio- nais (enxugamento, terceirização, voluntarismo etc.). A implementação do Estado mínimo consiste em uma agenda negativa, de desconstrução. No que concerne aos processos de transformação institucional, no sen- tido de implementar o modelo de Estado contido no paradigma da reforma do Estado, esse se baseia no fascínio pelas tecnologias gerenciais emergentes nas décadas de 1980 e 90 – representando o percurso de soluções em busca de problemas. Trata-se de uma situação na qual se supõe que tem validade universal aquilo que funciona em determinado contexto e organização. O deslumbramento por modismos gerenciais, por instrumentos e abordagens considerados panacéias (soluções instantâneas para grandes problemas orga- nizacionais, sem prévia problematização crítica) tende a modelar a percepção sobre os problemas, gerando uma enorme propensão à baixa sustentação, ao desperdício e ao estresse organizacional. Outra característica dos processos de ajuste, no âmbito da reforma do Estado, é a busca por resultados rápidos, freqüentemente de forma tecnocrá- tica, mediante processos de transformação ―de cima para baixo‖. Tal orienta- ção decorre, por sua vez, da crença em que resultados têm de ser visíveis e demonstráveis no curto prazo. A legitimação da mudança é feita a posteriori – pelo resultado concreto –, e não pela discussão prévia daquilo que é dese- jável ou aceitável. Essa concepção abre caminho para estratégias do tipo ―pegar e fazer‖ e ―planos de gabinete‖, com baixa participação das partes essenciais (sejam beneficiários, sejam implementadores). Com efeito, a lógi- ca da restrição, da eficiência e do controle subjacente aos processos de re- forma do Estado dificulta muito a prévia formação de consenso (Rinne, 2001). Essas características não chegam a anular a utilidade da crítica liberal, seja para colocar em destaque a questão da eficiência (que deve ser sempre um elemento central nos processos de transformação do Estado), seja para mostrar a necessidade de se aperfeiçoar constantemente o controle democrá- tico sobre as instituições estatais. A REVITALIZAÇÃO DO ESTADO: O ESTADO COMO SOLUÇÃO O paradigma emergente da revitalização do Estado constitui uma apropri- ação do estado da arte da Nova Gestão Pública 20 , direcionado para o desenvol- vimento de um modo mais consensual. Por essa concepção, o Estado é visto como parte essencial da solução – e não como ―a solução‖ ou ―o problema‖ em si. Isto vale tanto para democracias consolidadas (nas quais, de fato, o Estado nunca deixou de ser parte essencial da solução), quanto para, principalmente, 20 Ilustrado, por exemplo, pelo enfoque orientado para o serviço público (public service oriented), assim como é encontrado na experiência britânica paradigmática, que prega a reconstrução da esfera pública. Ao contrário dos paradigmas anteriores, que se concen- travam no ―Como?‖ da ação estatal, esse modelo preocupa-se com o ―O quê?‖. Assim é que propõe a revalorização da política na definição das finalidades estatais, o aumento da accountability, a participação, a transparência, a eqüidade e a justiça. Esse movi- mento baseia-se numa visão coletiva do cidadão, enfoca a esfera pública como um lo- cus de aprendizado social e prega o aprimoramento da cultura cívica do cidadão, buro- crata e político. O mais interessante é que, ao mesmo tempo em que procura retomar o conceito clássico de ‗público‘, não descarta a tecnologia gerencial desenvolvida pelos modelos anteriores (Abrucio, 1996). os Estados emergentes e, mais ainda, para os subemergentes (em particular, os da África e da Ásia Central). Há três principais elementos nodiscurso de revi- talização do Estado: (1) a crise da reforma do Estado, (2) a peculiaridade dos processos de transformação institucional em países em desenvolvimento e (3) os requisitos de modelagem institucional contemporâneos. A crise da reforma do Estado abre lacunas e causa efeitos colaterais perversos na economia, na política, na sociedade e nas instituições públicas, a partir da onda de ajustes liberais havidos nos anos 1990, na linha do con- senso de Washington. Na economia, Stiglitz (2000) argumenta que a onda de ajustes liberais foi excessiva para os países em desenvolvimento e fez dimi- nuir suas possibilidades de investir e crescer. Já em relação às economias desenvolvidas, que não aplicaram o receituário liberal conforme haviam prescrito 21 , os fatores do crescimento estavam mais relacionados ao advento da nova economia e à decorrente reestruturação produtiva, do que ao ajuste das finanças públicas per se. Na política, o grande problema foi a lacuna cri- ada pelo fato de que o ajuste liberal tinha seu foco na economia e pressupu- nha que as instituições políticas estavam ou já suficientemente consolidadas (caso dos países desenvolvidos, em que pesem as questões suscitadas a partir da última eleição presidencial norte-americana) ou em vias de se estabelece- rem (a partir da adoção da forma democrática na maioria dos países, sem se atentar para a qualidade dessas instituições). Na sociedade, o grande efeito colateral do ajuste liberal dos anos 1990 foi o aumento da pobreza e da desi- gualdade em escala global. Nas instituições, o efeito colateral dos processos de redução do Estado foi o agravamento do déficit institucional, o enfraqueci- mento das instituições e a conseqüente diminuição da capacidade de governo. O paradigma da revitalização do Estado orienta-se claramente para o desenvolvimento pensado não mais apenas como o resultado do crescimento do produto gerado pela industrialização e pela livre iniciativa do mercado, mas como o efeito mensurado de incremento sustentável de bem-estar geral, 21 Com base nos gastos públicos por função, produzidos pelo Fundo Monetário Interna- cional, Rezende (1996) demonstrou empiricamente que países em desenvolvimento (Brasil, México, Índia, Coréia) eram aqueles que se movimentavam – com maior inten- sidade do que os países desenvolvidos (Estado Unidos, Inglaterra, França) – na direção do Estado mínimo. A principal conclusão daquele estudo foi que os países em desen- volvimento estavam se ―minimalizando‖ aceleradamente no período 1980-1992, en- quanto os países desenvolvidos estavam conservando padrões que pouco tinham a ver com o padrão de Estado mínimo. Embora lidando com uma amostra pequena (de sete países), o estudo permitiu mostrar com grande nitidez a diferença encontrada nos pa- péis do governo. em termos de desenvolvimento humano 22 e com responsabilidade ambiental. Isso requer direcionamentos via políticas públicas ativistas, de modo a se promover a redução de desigualdades (do ponto de vista regional, étnico, social etc.). O pressuposto dessa postura ativista para gerar o desenvolvimen- to é que há uma ―primazia das instituições‖ como fator de desenvolvimento 23 . Dessa forma, acredita-se que os imensos desafios sociais em escala global – manifestos na crescente desigualdade e pobreza – não podem ser vencidos pela simples ação dos mercados. O segundo elemento (a peculiaridade dos processos de transformação institucional em países em desenvolvimento) é um agravante do primeiro: o fato de a maior parte do mundo emergente ter que implementar um processo de ajuste que foi plasmado segundo a perspectiva de instituições consolida- das em um contexto de disfunções e incompletudes institucionais. A grande diferença se deve ao fato de – diferentemente das democracias que inventa- ram e consolidaram um padrão de Estado de direito e de Estado social (que se implementou, mesmo apresentando disfunções) – os países emergentes apresentarem, em geral, além das mesmas categorias de disfunções dos Esta- dos desenvolvidos, processos incompletos de construção institucional. Isso porque, nos países emergentes, (1) o Estado patrimonial não é residual, (2) o Estado democrático de direito tem sérias lacunas e disfunções estruturais (ilustradas pelo formalismo jurídico, pela legislação casuísta e pelas limita- ções e precariedades das metainstituições democráticas, tais como o processo legislativo, o sistema eleitoral e partidário, o sistema federativo e a forma de governo) e (3) o Estado social deficiente, que favorece a exclusão, cria bar- 22 O consagrado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) inspirou as metas de desen- volvimento humano do milênio, por iniciativa da Organização das Nações Unidas. O IDH – criado por Mahbub ul Haq, com a colaboração do indiano Amartya Sen, ganha- dor do prêmio Nobel de Economia de 1998 – parte do ―pressuposto de que para aferir o avanço de uma população, não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qua- lidade da vida humana. [...] Ele é um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. O IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvi- mento humano. O IDH – além de computar o PIB per capita, depois de corrigi-lo pelo poder de compra da moeda de cada país – leva em conta dois outros componentes: longevidade e educação. Para aferir a longevidade, o indicador utiliza números relati- vos à expectativa de vida ao nascer. O item educação é avaliado pelo índice de analfa- betismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. Essas três dimensões têm a mesma importância no índice, que varia de zero a um‖ (Pnud, 2004). 23 A forte correlação entre instituições e desenvolvimento foi empiricamente comprovada em diversos estudos recentes, veja-se Graham (2002 e Rodrik & Subramanian (2003). reiras à universalização de direitos humanos e sociais, limita a qualidade e a abrangência da prestação dos serviços, torna precário o aparato de proteção e, em alguns casos, problematiza o financiamento. Respeitadas as diferenças, os Estados emergentes não estão totalmente formados e são bastante sujeitos a predações internas e externas. Esse quadro perverso de fraqueza e fragmen- tação institucional gera enclaves de não-Estado: os guetos, as favelas, as hor- das tribais, as guerrilhas, o terrorismo etc. No mundo emergente, à crise do Estado soma-se a crise gerada pelo não-Estado. Esse quadro clama por uma agenda positiva de fortalecimento e (re)composição das instituições estatais, para reduzir o déficit institucional – o que constitui uma tarefa muito mais complexa do que a cumprida por paí- ses que tiveram de lidar com as disfunções causadas por ―superávits institu- cionais‖. Essa agenda positiva não tem, necessariamente, em sua pauta a ex- pansão do tamanho do Estado, tampouco a estatização de atividades ou a expansão do funcionalismo, mas é fundamentalmente uma agenda de cons- trução da governança, de melhoria da capacidade de governar, visando a al- cançar bons resultados de desenvolvimento – o que requer estratégias, estru- turas, processos e pessoas alinhadas com as finalidades em questão. Essa agenda positiva deve ser construída sobre bases muito peculiares, buscando- se adequar as diferentes soluções customizadas (sejam ortodoxas, inovadoras ou híbridas) a problemas previamente identificados, mensurados e qualifica- dos mediante diagnósticos institucionais (de tal forma que a visão do pro- blema possa condicionara escolha das soluções, e não o contrário). Por essas razões, os processos de transformação institucional voltados ao fortalecimento do Estado são altamente dependentes da formação de consensos sobre problemas e soluções, de forma a se legitimarem e assegurarem resulta- dos sustentáveis sejam no curto, no médio ou no longo prazos, mediante a mo- bilização política e o envolvimento direto e indireto de prestadores e beneficiá- rios, via distintos mecanismos de interlocução (fóruns, conselhos etc.). O terceiro elemento do discurso da revitalização do Estado está relacio- nado aos requisitos de desenho institucional contemporâneo, conforme enun- ciados por Claus Offe (1998): a boa governança social depende de um equi- líbrio (de capacidade e poder) entre as esferas do Estado (domínio dos políti- cos e burocratas), do mercado (domínio dos investidores e consumidores) e do terceiro setor (domínio dos cidadãos organizados em torno de seus inte- resses, públicos ou particulares, em diferentes extensões). Cada uma dessas três esferas tem limitações e vantagens comparativas, bem demonstram a his- tória recente. O Estado promove eqüidade, mas é menos eficiente. Enfraque- cê-lo em detrimento das demais esferas pode levar à baixa capacidade de governo; fortalecê-lo pode levar ao estatismo dirigista e formas autoritárias perversas. O mercado é virtuoso em eficiência, mas insensível em eqüidade. Enfraquecê-lo em detrimento das demais esferas pode levar à ineficiência e à perda de competitividade; fortalecê-lo pode levar a formas perversas de ―mercado livre‖, concentração e ―capitalismo selvagem‖. O terceiro setor é virtuoso porque é o domínio do valor, da causa, provendo meio de expressão de iniciativas comunitárias e cidadãs essenciais à afirmação da identidade cívi- ca, mas sua natureza não é a regra de direito. Fortalecê-lo em detrimento das demais esferas pode gerar formas anômicas de atuação paroquial ou formas perversas de comunitarismo excessivo; enfraquecê-lo pode levar ao negli- genciamento de comunidades e identidades. Segundo essa visão, o que está em questão é a construção de um Estado- rede no sentido institucional, um elemento concertador, ativador e direcionador das capacidades do mercado e da sociedade civil na direção do desenvolvimen- to. Trata-se do Estado incrustado na sociedade no sentido em que não apenas reproduz suas demandas, mas também promove ações conjuntas (parcerias e alianças no provimento de serviços de relevância social e, mesmo, empreendi- mentos) e constitui uma ―inteligência‖ estratégica que se manifesta na interlo- cução e na participação, na gestão das políticas públicas. Não se trata, portanto, apenas, de um processo de reforma do Estado, mas de um processo de reordenamento institucional da sociedade contempo- rânea – processo que pode e deve, em alguma extensão, ser modelado, indu- zido, incentivado e controlado pelo Estado, inclusive em relação a si, mas não de forma autônoma, senão interdependente. IMPLANTANDO A NOVA ADMINISTRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO A transição do paradigma da reforma do Estado para a revitalização do Estado não implica o completo abandono ou negação das características do primeiro, mas a progressiva adesão ao segundo. Isso significa que, na prática, experiências concretas de transformação institucional carregam característi- cas ambíguas e complementares de ambos os paradigmas. O que se advoga é que adesões que tendem ao paradigma da reforma do Estado negligenciam as relevâncias emergentes – traduzidas na forma de demandas e possibilidades de desenvolvimento. A implementação de uma nova Administração para o Desenvolvimento requer uma série de ações extremamente desafiadoras, que passam pela for- mulação de estratégias efetivas de desenvolvimento, pela elaboração de pla- nos de desenvolvimento, pela concepção de modelos de gestão por resulta- dos e pelo alinhamento das organizações aos resultados estabelecidos. Sobre- tudo, é necessário que esse roteiro sintético seja desenvolvido e implementa- do de forma integrada e coerente. A formulação de estratégias de desenvolvimento deve resgatar a dimen- são da visão de futuro (o que o país quer ser) como expressão última de rele- vância e efetividade, de forma não-determinista em relação às interdepen- dências com o ambiente externo. Nesse sentido, as estratégias endógenas e reativas (baseadas no insulamento e na fragmentação, típicas do mundo co- munista e dos países submergentes da Ásia Central e África, como forma de não-inserção na ordem global) e as estratégias integrativas e passivas (basea- das na dependência e submissão à centralidade da ordem estabelecida pelos ―países desenvolvidos‖ na inserção global, típicas da América Latina) ten- dem a dar lugar a formas integrativas-autopoiéticas, baseadas na invenção de padrões próprios de inserção global (típicas de países como a China, Malá- sia, Singapura, Coréia do Sul etc.), segundo novas competências, identidades e possibilidades. Nesse sentido, a nova Administração para o Desenvolvi- mento implica o advento de um modelo de ―governança prospectiva‖ que se define pela capacidade de construir o futuro. A nova Administração para o Desenvolvimento também requer a rein- venção do planejamento governamental. Não se trata mais de equiparar o planejamento governamental ao processo (inescapavelmente burocratizante) de se fazer planos de desenvolvimento – mas isto também não significa pres- cindir deles. Trata-se de orientar os planos para a visão seja realizada, tor- nando-os elementos programáticos dinâmicos, sujeitos e abertos a reformula- ções contínuas nas suas diversas fases lógicas (elaboração, implementação e avaliação). Analogamente, os planos de desenvolvimento devem cada vez mais abarcar de forma coerente e integrada múltiplas dimensões da vida so- cial: economia e produção, meio ambiente, demografia e condições sociais, tecnologia etc. E tudo isto sem perder de vista a dimensão territorial nas perspectivas micro, meso e macro. Fundamentalmente, as políticas de desen- volvimento da nova Administração para o Desenvolvimento devem avançar as concepções e os instrumentos baseados em fomento e posicionarem-se vi- sando à ativação de capacidades, mediante a mobilização, participação e atua- ção em rede – politizando o processo de planejamento, em vez de torná-lo tec- nocrático. A gestão por resultados é outro elemento indispensável da nova Admi- nistração para o Desenvolvimento, pois possibilita desdobrar o plano de de- senvolvimento em políticas e programas e a definição de seus arranjos de implementação. Não se trata apenas de proporcionar programas bem dese- nhados, com nexos claros em relação aos resultados de políticas e indicado- res e metas de eficácia e efetividade pertinentes e coerentes. Viabilizar a ges- tão por programas impõe a busca do elo perdido entre o terreno do planeja- mento, a partir do desenho de programas, e o terreno das organizações, onde – em última análise – os resultados se produzem. Essa questão é essencial e sensível, porque nem os programas são auto-executáveis nem as organiza- ções são auto-orientadas por resultados. Construir o nexo entre programas e organizações implica o mapeamento fino das complexas teias de relações entre programas e organizações (ou a definição de quais estruturas suportam a implementação de tais programas, de como estabelecer coerência e coorde- nação entre diferentes estruturas no âmbito de um mesmo programa, de como comprometer as estruturas etc.). A chave da organicidade e da flexibilidade do modelo de gestão por programas está nesse intrincado relacionamento ‗programas-organizações‘(fins e meios). A concepção de modelos efetivos de gestão por programas demandará uma avaliação precisa da capacidade das organizações envolvidas para alcançar os resultados propostos, o que impli- cará, por sua vez, implementar planos de melhoria institucional, centrados na geração de resultados. Não obstante, a gestão por resultados requer foco (a gestão intensiva de uma carteira prioritária de programas), mecanismos e instrumentos de acompanhamento e avaliação – dotados de centralidade, se- letividade e temporalidade –, e modelos contratuais de pactuação de resulta- dos, com base em incentivos claros. O último elemento da nova Administração para o Desenvolvimento é o plano de gestão, espaço que liga os objetivos do plano de desenvolvimento e seu desdobramento em programas aos resultados concretos, uma vez que busca alinhar as organizações para o alcance dos resultados visados. Esse esforço impõe instrumentos e uma estrutura de incentivos que atue tanto da perspectiva horizontal (promovendo o alinhamento de organizações) quanto da perspectiva vertical (promovendo o alinhamento de sistemas centrais de gestão, usualmente relativos à organização governamental e à gestão das ati- vidades de suporte relacionadas a recursos humanos, orçamento, finanças, compras e logística). Da perspectiva das organizações, a preparação institu- cional para o desenvolvimento requer a reorientação de estratégias, estrutu- ras, processos, pessoas e sistemas de informação vitais para o alcance dos objetivos de desenvolvimento, em bases eficientes. O espaço do plano de gestão constitui, dessa forma, uma complexa e abrangente agenda de transformação da gestão (em níveis microorganizacio- nal e macrogovernamental), que mescla elementos tradicionais da consoli- dação burocrática, em bases profissionais e democráticas (tais como: re- composição da força de trabalho e estruturas e processos basais do Esta- do), a elementos inovadores voltados ao desempenho, à flexibilidade, ao foco no cidadão e ao controle social, tudo isto de forma orientada para os resultados visados. Os requisitos originalmente definidos por Motta para uma nova Admi- nistração para o Desenvolvimento permanecem válidos: orientação para re- sultados, modelos orgânicos de gestão e comprometimento valorativo dos atores envolvidos. Mas, ainda hoje, a construção de uma disciplina que in- corpore esses preceitos não é uma tarefa simplória nem modesta; é um desa- fio que deve ser sistematicamente buscado e experimentado, tanto no sentido de se afirmar como corrente de pensamento a respeito dos processos de transformação do Estado, quanto no sentido de proporcionar instrumentos para sua implementação. Essa discussão está apenas se iniciando, e este tra- balho buscou, de alguma forma, contribuir para o seu desenvolvimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUCOIN, P. (1995) The New public management: Canada in comparative perspective. Montreal: IRPP. BOSTON, J. et al. (1991) Reshaping the state: New Zealand bureaucratic revolution. Auckland: Oxford University Press. COASE, R. H. (1937) ―The Nature of the firm‖. Jornal of Law and Econom- ics, 3. 1960. GRAHAM, C. (2002) Strengthening institutional capacity in poor countries: shoring up institutions, reducing global poverty. s.l.: The Brookings Institu- tion. 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Primeiro, no que se refere aos fins, constata que a visão de futuro dos países subdesenvolvidos é a imagem e semelhança dos países desenvolvidos. Nesse sentido, a Adminis- tração para o Desenvolvimento estaria buscando mapear as diferenças e os obstáculos na conversão de sociedades tradicionais em transicionais e, suces- sivamente, modernas (os países desenvolvidos). Segundo, no que se refere aos meios, constata que a forma básica de promover a capacidade de governo consiste em implementar um padrão de burocracia governamental ortodoxa, inspirada no modelo-ideal weberiano, orientada para a eficiência e a eficácia, refletindo um deslumbramento pela evolução das concepções de gestão dos países desenvolvidos. Essa visão evolucionista comporta três diferentes posturas: (a) a racio- nalidade moderna pode ser transferida e aprendida integralmente; (b) a raci- onalidade moderna não pode ser transferida porque é limitada e condicionada por aspectos culturais peculiares; e (c) a racionalidade moderna pode ser par- cialmente transferida, desde que ajustada. Em todos os casos, a ―racionalida- de moderna‖, conforme se afigura nos países desenvolvidos, é considerada o estágio último a ser buscado. Motta propunha três linhas que uma nova Administração para o De- senvolvimento deveria seguir: (a) voltar as organizaçõespara objetivos peculiares de desenvolvimento, buscando a relevância mediante a efetivi- dade organizacional (o impacto desejável no ambiente), uma forma estrita de administração por objetivos; (b) conceber modelos de organização mais orgânicos (em contraposição à burocracia mecanicista tipicamente weberi- ana), menos rígidos e permanentes, mais temporais e flexíveis; e (c) buscar o comprometimento valorativo das pessoas que integram as organizações, e não apenas a adesão neutra à regra burocrática como forma de realização de resultados. Passadas mais de três décadas da publicação original do artigo, perma- necem categorias análogas de problemas e soluções, apesar de o mundo e os países em desenvolvimento terem mudado significativamente. Por um lado, a globalização proporcionou maiores ―entradas‖ das sociedades mais avança- das (pelo acesso a bens e serviços, comunicações e transportes) nas subde- senvolvidas, e vice-versa, homogeneizando e padronizando visões de futuro e, ao mesmo tempo, revelando identidades muito específicas e possibilidades peculiares. Ainda que subsistam profundas diferenças de poder, riqueza e bem-estar entre os países, a globalização tende a mesclar padrões modernos, tradicionais e transicionais de forma bastante peculiar. Por outro lado, a ―Nova Gestão Pública‖ surgiu como portadora de modelos de gestão mais orgânicos e, ao mesmo tempo, estabeleceu-se como novo paradigma a ser seguido, gerando tanto deslumbramento quanto o modelo burocrático orto- doxo havia gerado anteriormente. No bojo desses movimentos, surgiram novas concepções de transfor- mação institucional no Estado, com prescrições sobre o que os Estados deve- riam fazer em relação ao desenvolvimento e como prepará-los para isso. Os anos 1980 representaram a decadência da velha Administração para o De- senvolvimento. Além das flagrantes disfuncionalidades da burocracia orto- doxa, esmorecia a idéia de que cabia aos Estados papel central na promoção do desenvolvimento. Os anos 1980 e 1990 não produziram uma nova Admi- nistração para o Desenvolvimento, mas um modelo de ―Administração para o Ajuste Fiscal‖, baseado na crença de que o desenvolvimento requeria a reti- rada do Estado e maior autonomia do mercado. O novo milênio traz de volta a discussão sobre o desenvolvimento e sobre o papel dos Estados na sua promoção. Essa discussão ilumina o advento de uma mudança de paradigmas de transformação institucional do Estado e da administração pública, e acena para uma nova Administração para o Desenvolvimento. O propósito deste artigo é caracterizar essa mudança de paradigmas de modo a se delinear (do ponto de vista empírico e normativo) uma trajetória de transformações na direção de uma nova Administração para o Desenvol- vimento. A disciplina em busca da relevância encontra novas relevâncias em busca do resgate da disciplina. Os dois próximos segmentos apresentam a caracterização de dois para- digmas 24 de transformação institucional 25 do Estado, denominados, respecti- vamente, ―reforma do Estado‖ e ―revitalização do Estado‖. O Quadro 1 apre- senta de forma resumida as características de ambos os paradigmas. A construção desses paradigmas utilizou elementos empíricos e con- ceituais. Há uma dupla utilidade nesse exercício: (a) caracterizar uma tran- sição de pensamento – da concepção da reforma para a revitalização do Estado; e (b) possibilitar análises sobre a extensão na qual determinadas experiências específicas se enquadram mais em um ou em outro paradig- ma. A questão é que praticamente qualquer experiência concreta, indepen- dentemente do nome, conterá elementos de ambos os paradigmas. A esse propósito, é fundamental que qualquer análise a partir desses paradigmas desconsidere a questão terminológica – porque há experiências concretas que se denominam, genericamente ou não, ―reforma do Estado‖ e posicio- nam-se na perspectiva do paradigma e da ―revitalização do Estado‖, e vice- versa. Embora as nomenclaturas sejam problemáticas, o que se busca é contrastar significações. 24 O termo ‗paradigma‘ está sendo empregado em sentido expandido àquele atribuído por Kuhn (1996), como ―generalizações simbólicas‖ a partir de um conjunto de regras, va- lores e crenças objetificados (que façam sentido e explicam) e sedimentados (estágio a partir do qual as bases não são mais questionadas), sobre realizações, problemas e solu- ções modelares, compartilhados por uma comunidade. A idéia de paradigma como ―ge- neralização simbólica‖ remete à questão da quebra de paradigmas como processos de institucionalização e desinstitucionalização de conhecimento e práticas de transforma- ção, nos quais os elementos ―realizações‖, ―problemas e soluções modelares‖ e ―comu- nidade‖ estão sempre presentes de forma interdependente. 25 O termo ‗transformação institucional‘ está sendo empregado no sentido de construções políticas deliberadas que visam a modificar as regras que regulam as relações sociais para fins específicos de bem-estar, desenvolvimento, eqüidade etc. A transformação institucional como uma ação deliberada considera que os atores sociais agem no sentido de alterar as instituições (os constrangimentos institucionais, de modo mais amplo) em seus aspectos formais e informais (normas, contratos, constituições etc.), a partir de su- as escolhas interessadas e deliberadas. Ao contrário de tomar as instituições como da- das e com pouca ligação aos interesses dos atores sociais, a premissa da ação deliberada permite incorporar a noção de que os diversos atores sociais se envolvem racional e ati- vamente na produção das instituições, refletindo mais amplamente a articulação entre interesses privados e a estrutura de constrangimentos formais e informais que operam sobre as escolhas individuais dos agentes privados na produção de políticas públicas (Rezende, 2000). Quadro 1. Paradigmas de transformação institucional Reforma do Estado Revitalização do Estado Apropriação peculiar da agenda da Nova Gestão Pública, e refor- mas na linha do Consenso de Washington, em países em de- senvolvimento Estado da arte da agenda da Nova Gestão Pública direcionada ao desenvolvimento, com processo participativo de construção de consenso Conteúdo O Estado como problema Orientação fiscal (eficiência e con- trole) Agenda negativa O Estado como solução Orientação para o desenvolvimen- to (eficácia e efetividade) Agenda positiva Processo Soluções em busca de problemas Resultados rápidos Baixa participação Problemas em busca de soluções Resultados sustentáveis Alta participação Essa forma de pensamento carrega uma hipótese e uma sentença nor- mativa. Por um lado, supõe-se (sem a pretensão de corroborar com análises factuais) que os processos de transformação institucional do Estado tenderão a incorporar progressivamente, de forma mais ou menos complementar, ca- racterísticas do paradigma da revitalização do Estado, indicando uma nova Administração para o Desenvolvimento. Por outro lado, sustenta-se que, do ponto de vista valorativo, esse deveria ser o movimento. A REFORMA DO ESTADO: O ESTADO COMO PROBLEMA A reforma do Estado pode ser caracterizada como um paradigma de transformação institucional porque contém definições peculiares em relação ao caráter e papel do Estado (conteúdo ou direção) e, também, em relação a como implementá-lo (processo). Sucintamente, trata-se de uma apropriação peculiar de princípios e práticas da denominada Nova Gestão Pública 26 , em 26 A Nova Gestão Pública (NGP) é um conjunto de argumentos e filosofias administrati- vas aceitasem determinados contextos e propostas como novo paradigma de gestão pú- blica, a partir da emergência dos temas ‗crise‘ e ‗reforma do Estado‘, nos anos 1980 (Hood & Jackson, 1991). De maneira geral, propõe uma gestão pública dotada das se- guintes características: (a) caráter estratégico ou orientado por resultados do processo decisório; (b) descentralização; (c) flexibilidade; (d) desempenho crescente e pagamen- particular daqueles associados à sua fase inicial gerencialista 27 , na linha do Consenso de Washington 28 . No que se refere ao conteúdo da proposta de reforma do Estado, a crise do Estado é o principal discurso argumentativo justificador. O discurso da crise do Estado, segundo a vertente predominante, tem dois pilares centrais que trançam argumentos doutrinários e factuais: o neoliberalismo e o neo- institucionalismo econômico. O neoliberalismo resgata o ideal liberal na década dos 1970, a partir do esgotamento do paradigma keynesiano e das condições que forjaram o sur- to por desempenho/produtividade; (e) competitividade interna e externa; (f) direciona- mento estratégico; (g) transparência e cobrança de resultados (accountability); (h) pa- drões diferenciados de delegação e discricionaridade decisória; (i) separação entre polí- tica e sua gestão; (j) desenvolvimento de habilidades gerenciais; (k) terceirização; (l) limitação da estabilidade de servidores e regimes temporários de emprego; e (m) estru- turas diferenciadas (Holmes & Shand, 1995; Hood & Jackson, 1991). As proposições doutrinárias da NGP emanam de valores administrativos, principalmente relacionados a desempenho eficiente da tarefa, teorias no âmbito do neo-institucionalismo econômico (Aucoin, 1990; e Boston, 1991) e no âmbito das abordagens contemporâneas de gestão (Aucoin, 1995; Moore, 1994; e Schick, 1996), notadamente aquelas relacionadas à es- tratégia e ao comportamento organizacional, tendo como pano de fundo o argumento do alinhamento oriundo da teoria da contingência (Martins, 2001). 27 Esse tipo de enfoque ilustra-se no gerencialismo puro e no consumeirismo da experi- ência britânica. O gerencialismo puro, mais desestatizante que racionalizador, parte de uma estratégia de eficiência centrada no aumento de produtividade e na redução de cus- tos e de pessoal. Fundamentalmente, apóia-se em uma ética de valorização do custo dos recursos (value for money). Dentre as ações práticas do gerencialismo puro, figuram a racionalização orçamentária, a avaliação de desempenho, a administração por objetivo, a descentralização e a delegação de autoridade. As principais críticas que se fazem ao modelo são a desatenção à efetividade, decorrente do foco na eficiência – que rendeu, inclusive, o rótulo de neotaylorista –, e a despolitização das ações estatais (Pollitt, 1990). O consumerismo consiste em uma reorientação do gerencialismo puro, mais vol- tada à racionalização e tendo como ponto central a satisfação das necessidades dos ci- dadãos, consumidores de serviços públicos. A ênfase do modelo é a estratégia de quali- dade, cujos resultados dependem de medidas tais como: a descentralização, o estímulo à competitividade, a flexibilização dos modelos contratuais e seu direcionamento para a qualidade. A NGP nasceu gerencialista nos anos 1980, fortemente inspirada nas refor- mas minimalistas, e propondo a aplicação de tecnologia de gestão empresarial ao Esta- do, a partir das experiências paradigmáticas (Abrucio, 1996; Martins, 1997; Martins 2001). 28 A expressão foi cunhada por John Williamson (1990) para se referir ao conjunto de políticas liberais que iluminariam a reestruturação econômica e a reforma dos Estados latino-americanos. O ideário condicionava a concessão de crédito e a condição de cre- dibilidade (aos países em desenvolvimento) à adoção de duras medidas de ajuste fiscal, que implicariam a redução do Estado. gimento do welfare state. Apoiado na visão hobbesiana utilitarista da nature- za humana e na idealização da eficiência do mercado preconizada pela eco- nomia neoclássica, o liberalismo celebra as virtudes do mercado, como ins- tância, por excelência, eficiente na alocação dos recursos. Diferentemente dos liberais clássicos, que acreditavam na capacidade auto-regulatória do mercado, os neoliberais reconheceram a existência de falhas de mercado, o que impunha alguma regulação. A caracterização padrão da crise do Estado, conforme elaborada pela crítica neoliberal, evoca alguns elementos contextu- ais que se inter-relacionam em diferentes medidas: (a) o fim do desenvolvi- mentismo pós-guerra, devido ao fim de Bretton Woods, às crises do petróleo, às crises de liquidez e à instabilidade do mercado financeiro internacional, aos novos requisitos de integração competitiva da globalização etc.; (b) a crise do welfare state keynesiano, devido às disfunções e às desvantagens da intervenção estatal, para garantir o bem-estar e a estabilidade econômica, relativamente aos atributos do mercado; (c) as disfunções burocráticas ou a crise do modo de implementação estatal de serviços públicos; e, dentre ou- tras, (d) a ingovernabilidade: sobrecarga fiscal, excesso de demandas e crise de legitimidade. O desenvolvimentismo empurrado pelo Estado deixava o palco, e entrava em cena o desenvolvimento puxado pelo mercado, em escala global. A contribuição do neo-institucionalismo econômico 29 ao discurso da crise do Estado é que as instituições são importantes (institutions matter) em dois principais sentidos: (1) elas são vitais para a produção de resultados, mas são uma escolha de segunda ordem (second best), um mal necessário, uma vez que o mercado por si só não pode assegurar as transações sem estru- turas ou organizações formais 30 ; (2) as organizações não são instâncias tão racionais assim; a racionalidade (da eficiência econômica) é limitada, sujeita 29 No âmbito do neo-institucionalismo econômico, as abordagens ‗escolha pública‘, ‗teo- ria da agência‘ (principal-agent) e ‗teoria da firma‘ baseiam-se na idéia de que as orga- nizações econômicas e as relações entre diferentes agentes econômicos são pautadas pe- la divergência de interesses (daí a necessidade de haver arranjos contratuais para regu- lar esses interesses). 30 Esse é o argumento da ‗teoria da firma‘, conforme originalmente elaborada por Coase (1937). As firmas (organizações formais) surgem porque o ambiente impõe custos de transação que afetam o funcionamento perfeito do mercado. Mas uma coisa é afirmar que as firmas funcionarão melhor do que os mercados; outra coisa é afirmar que as fir- mas funcionarão de modo perfeito. A ineficiência (comparativamente ao mercado) – e não a eficiência – é o padrão típico, não ocasional, das organizações formais. Dessa perspectiva, organizações formais serão sempre second best. a uma série de ―interferências‖ e constrangimentos decorrentes da sua natu- reza multifacetada (política, humana, cultural etc.). Daí a necessidade de ha- ver ―esquemas de enquadramento‖, do tipo de organizações formais, com estruturas, regras, procedimentos, incentivos, induzimentos e controles que impõem custos de transação e ajudam a evitar os problemas de agência – a subversão de regras e resultados estabelecidos de modo convergente aos inte- resses dos ―principais‖ da organização – os detentores dos direitos de propri- edade. Instituições ineficientes são aquelas que não maximizam a relação estruturas–resultados, e a burocracia governamental era considerada disfun- cional porque estava intensivamente sujeita a excessivos custos de transação e a problemas de agência; portanto, estruturalmente ineficiente e não- confiável. A partirdesses fundamentos, o Estado passa a ser considerado como um problema – logo, a solução seria haver menos Estado, e mais mercado e socie- dade civil. O Estado havia, segundo essa ótica, atingido um ponto de estrangu- lamento e ingovernabilidade. À sociedade civil caberia resgatar sua determi- nação e suas capacidades próprias, depender menos do Estado (afinal, have- ria no limiar do século XXI condições tecnológicas para isso) e controlá-lo mais. O Estado deveria restringir-se a suas funções mínimas (defesa, arreca- dação, diplomacia e polícia), a um aparato mínimo de proteção social (com reconhecimento de poucos – e seletos – direitos sociais, e baseado na prestação privada de serviços de relevância social) e a uma gestão mínima da ordem eco- nômica (com destaque para a regulação e a gestão macroeconômica). A implementação desse padrão de Estado mínimo consistia em proces- sos de redução do Estado segundo uma orientação predominantemente fiscal, via redução de despesas (cortes e contingenciamentos orçamentários), de organizações (mediante variadas formas de desestatização, tais como: priva- tização, devolução, descentralização, parceirização etc.) e de quadros funcio- nais (enxugamento, terceirização, voluntarismo etc.). A implementação do Estado mínimo consiste em uma agenda negativa, de desconstrução. No que concerne aos processos de transformação institucional, no sen- tido de implementar o modelo de Estado contido no paradigma da reforma do Estado, esse se baseia no fascínio pelas tecnologias gerenciais emergentes nas décadas de 1980 e 90 – representando o percurso de soluções em busca de problemas. Trata-se de uma situação na qual se supõe que tem validade universal aquilo que funciona em determinado contexto e organização. O deslumbramento por modismos gerenciais, por instrumentos e abordagens considerados panacéias (soluções instantâneas para grandes problemas orga- nizacionais, sem prévia problematização crítica) tende a modelar a percepção sobre os problemas, gerando uma enorme propensão à baixa sustentação, ao desperdício e ao estresse organizacional. Outra característica dos processos de ajuste, no âmbito da reforma do Estado, é a busca por resultados rápidos, freqüentemente de forma tecnocrá- tica, mediante processos de transformação ―de cima para baixo‖. Tal orienta- ção decorre, por sua vez, da crença em que resultados têm de ser visíveis e demonstráveis no curto prazo. A legitimação da mudança é feita a posteriori – pelo resultado concreto –, e não pela discussão prévia daquilo que é dese- jável ou aceitável. Essa concepção abre caminho para estratégias do tipo ―pegar e fazer‖ e ―planos de gabinete‖, com baixa participação das partes essenciais (sejam beneficiários, sejam implementadores). Com efeito, a lógi- ca da restrição, da eficiência e do controle subjacente aos processos de re- forma do Estado dificulta muito a prévia formação de consenso (Rinne, 2001). Essas características não chegam a anular a utilidade da crítica liberal, seja para colocar em destaque a questão da eficiência (que deve ser sempre um elemento central nos processos de transformação do Estado), seja para mostrar a necessidade de se aperfeiçoar constantemente o controle democrá- tico sobre as instituições estatais. A REVITALIZAÇÃO DO ESTADO: O ESTADO COMO SOLUÇÃO O paradigma emergente da revitalização do Estado constitui uma apropri- ação do estado da arte da Nova Gestão Pública 31 , direcionado para o desenvol- vimento de um modo mais consensual. Por essa concepção, o Estado é visto como parte essencial da solução – e não como ―a solução‖ ou ―o problema‖ em si. Isto vale tanto para democracias consolidadas (nas quais, de fato, o Estado nunca deixou de ser parte essencial da solução), quanto para, principalmente, 31 Ilustrado, por exemplo, pelo enfoque orientado para o serviço público (public service oriented), assim como é encontrado na experiência britânica paradigmática, que prega a reconstrução da esfera pública. Ao contrário dos paradigmas anteriores, que se concen- travam no ―Como?‖ da ação estatal, esse modelo preocupa-se com o ―O quê?‖. Assim é que propõe a revalorização da política na definição das finalidades estatais, o aumento da accountability, a participação, a transparência, a eqüidade e a justiça. Esse movi- mento baseia-se numa visão coletiva do cidadão, enfoca a esfera pública como um lo- cus de aprendizado social e prega o aprimoramento da cultura cívica do cidadão, buro- crata e político. O mais interessante é que, ao mesmo tempo em que procura retomar o conceito clássico de ‗público‘, não descarta a tecnologia gerencial desenvolvida pelos modelos anteriores (Abrucio, 1996). os Estados emergentes e, mais ainda, para os subemergentes (em particular, os da África e da Ásia Central). Há três principais elementos no discurso de revi- talização do Estado: (1) a crise da reforma do Estado, (2) a peculiaridade dos processos de transformação institucional em países em desenvolvimento e (3) os requisitos de modelagem institucional contemporâneos. A crise da reforma do Estado abre lacunas e causa efeitos colaterais perversos na economia, na política, na sociedade e nas instituições públicas, a partir da onda de ajustes liberais havidos nos anos 1990, na linha do con- senso de Washington. Na economia, Stiglitz (2000) argumenta que a onda de ajustes liberais foi excessiva para os países em desenvolvimento e fez dimi- nuir suas possibilidades de investir e crescer. Já em relação às economias desenvolvidas, que não aplicaram o receituário liberal conforme haviam prescrito 32 , os fatores do crescimento estavam mais relacionados ao advento da nova economia e à decorrente reestruturação produtiva, do que ao ajuste das finanças públicas per se. Na política, o grande problema foi a lacuna cri- ada pelo fato de que o ajuste liberal tinha seu foco na economia e pressupu- nha que as instituições políticas estavam ou já suficientemente consolidadas (caso dos países desenvolvidos, em que pesem as questões suscitadas a partir da última eleição presidencial norte-americana) ou em vias de se estabelece- rem (a partir da adoção da forma democrática na maioria dos países, sem se atentar para a qualidade dessas instituições). Na sociedade, o grande efeito colateral do ajuste liberal dos anos 1990 foi o aumento da pobreza e da desi- gualdade em escala global. Nas instituições, o efeito colateral dos processos de redução do Estado foi o agravamento do déficit institucional, o enfraqueci- mento das instituições e a conseqüente diminuição da capacidade de governo. O paradigma da revitalização do Estado orienta-se claramente para o desenvolvimento pensado não mais apenas como o resultado do crescimento do produto gerado pela industrialização e pela livre iniciativa do mercado, mas como o efeito mensurado de incremento sustentável de bem-estar geral, 32 Com base nos gastos públicos por função, produzidos pelo Fundo Monetário Interna- cional, Rezende (1996) demonstrou empiricamente que países em desenvolvimento (Brasil, México, Índia, Coréia) eram aqueles que se movimentavam – com maior inten- sidade do que os países desenvolvidos (Estado Unidos, Inglaterra, França) – na direção do Estado mínimo. A principal conclusão daquele estudo foi que os países em desen- volvimento estavam se ―minimalizando‖ aceleradamente no período 1980-1992, en- quanto os países desenvolvidos estavam conservando padrões que pouco tinham a ver com o padrão de Estado mínimo. Embora lidando com uma amostra pequena (de sete países), o estudo permitiu mostrar com grande nitidez a diferença encontrada nos pa- péis do governo.em termos de desenvolvimento humano 33 e com responsabilidade ambiental. Isso requer direcionamentos via políticas públicas ativistas, de modo a se promover a redução de desigualdades (do ponto de vista regional, étnico, social etc.). O pressuposto dessa postura ativista para gerar o desenvolvimen- to é que há uma ―primazia das instituições‖ como fator de desenvolvimento 34 . Dessa forma, acredita-se que os imensos desafios sociais em escala global – manifestos na crescente desigualdade e pobreza – não podem ser vencidos pela simples ação dos mercados. O segundo elemento (a peculiaridade dos processos de transformação institucional em países em desenvolvimento) é um agravante do primeiro: o fato de a maior parte do mundo emergente ter que implementar um processo de ajuste que foi plasmado segundo a perspectiva de instituições consolida- das em um contexto de disfunções e incompletudes institucionais. A grande diferença se deve ao fato de – diferentemente das democracias que inventa- ram e consolidaram um padrão de Estado de direito e de Estado social (que se implementou, mesmo apresentando disfunções) – os países emergentes apresentarem, em geral, além das mesmas categorias de disfunções dos Esta- dos desenvolvidos, processos incompletos de construção institucional. Isso porque, nos países emergentes, (1) o Estado patrimonial não é residual, (2) o Estado democrático de direito tem sérias lacunas e disfunções estruturais (ilustradas pelo formalismo jurídico, pela legislação casuísta e pelas limita- ções e precariedades das metainstituições democráticas, tais como o processo legislativo, o sistema eleitoral e partidário, o sistema federativo e a forma de governo) e (3) o Estado social deficiente, que favorece a exclusão, cria bar- 33 O consagrado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) inspirou as metas de desen- volvimento humano do milênio, por iniciativa da Organização das Nações Unidas. O IDH – criado por Mahbub ul Haq, com a colaboração do indiano Amartya Sen, ganha- dor do prêmio Nobel de Economia de 1998 – parte do ―pressuposto de que para aferir o avanço de uma população, não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qua- lidade da vida humana. [...] Ele é um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. O IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvi- mento humano. O IDH – além de computar o PIB per capita, depois de corrigi-lo pelo poder de compra da moeda de cada país – leva em conta dois outros componentes: longevidade e educação. Para aferir a longevidade, o indicador utiliza números relati- vos à expectativa de vida ao nascer. O item educação é avaliado pelo índice de analfa- betismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. Essas três dimensões têm a mesma importância no índice, que varia de zero a um‖ (Pnud, 2004). 34 A forte correlação entre instituições e desenvolvimento foi empiricamente comprovada em diversos estudos recentes, veja-se Graham (2002 e Rodrik & Subramanian (2003). reiras à universalização de direitos humanos e sociais, limita a qualidade e a abrangência da prestação dos serviços, torna precário o aparato de proteção e, em alguns casos, problematiza o financiamento. Respeitadas as diferenças, os Estados emergentes não estão totalmente formados e são bastante sujeitos a predações internas e externas. Esse quadro perverso de fraqueza e fragmen- tação institucional gera enclaves de não-Estado: os guetos, as favelas, as hor- das tribais, as guerrilhas, o terrorismo etc. No mundo emergente, à crise do Estado soma-se a crise gerada pelo não-Estado. Esse quadro clama por uma agenda positiva de fortalecimento e (re)composição das instituições estatais, para reduzir o déficit institucional – o que constitui uma tarefa muito mais complexa do que a cumprida por paí- ses que tiveram de lidar com as disfunções causadas por ―superávits institu- cionais‖. Essa agenda positiva não tem, necessariamente, em sua pauta a ex- pansão do tamanho do Estado, tampouco a estatização de atividades ou a expansão do funcionalismo, mas é fundamentalmente uma agenda de cons- trução da governança, de melhoria da capacidade de governar, visando a al- cançar bons resultados de desenvolvimento – o que requer estratégias, estru- turas, processos e pessoas alinhadas com as finalidades em questão. Essa agenda positiva deve ser construída sobre bases muito peculiares, buscando- se adequar as diferentes soluções customizadas (sejam ortodoxas, inovadoras ou híbridas) a problemas previamente identificados, mensurados e qualifica- dos mediante diagnósticos institucionais (de tal forma que a visão do pro- blema possa condicionar a escolha das soluções, e não o contrário). Por essas razões, os processos de transformação institucional voltados ao fortalecimento do Estado são altamente dependentes da formação de consensos sobre problemas e soluções, de forma a se legitimarem e assegurarem resulta- dos sustentáveis sejam no curto, no médio ou no longo prazos, mediante a mo- bilização política e o envolvimento direto e indireto de prestadores e beneficiá- rios, via distintos mecanismos de interlocução (fóruns, conselhos etc.). O terceiro elemento do discurso da revitalização do Estado está relacio- nado aos requisitos de desenho institucional contemporâneo, conforme enun- ciados por Claus Offe (1998): a boa governança social depende de um equi- líbrio (de capacidade e poder) entre as esferas do Estado (domínio dos políti- cos e burocratas), do mercado (domínio dos investidores e consumidores) e do terceiro setor (domínio dos cidadãos organizados em torno de seus inte- resses, públicos ou particulares, em diferentes extensões). Cada uma dessas três esferas tem limitações e vantagens comparativas, bem demonstram a his- tória recente. O Estado promove eqüidade, mas é menos eficiente. Enfraque- cê-lo em detrimento das demais esferas pode levar à baixa capacidade de governo; fortalecê-lo pode levar ao estatismo dirigista e formas autoritárias perversas. O mercado é virtuoso em eficiência, mas insensível em eqüidade. Enfraquecê-lo em detrimento das demais esferas pode levar à ineficiência e à perda de competitividade; fortalecê-lo pode levar a formas perversas de ―mercado livre‖, concentração e ―capitalismo selvagem‖. O terceiro setor é virtuoso porque é o domínio do valor, da causa, provendo meio de expressão de iniciativas comunitárias e cidadãs essenciais à afirmação da identidade cívi- ca, mas sua natureza não é a regra de direito. Fortalecê-lo em detrimento das demais esferas pode gerar formas anômicas de atuação paroquial ou formas perversas de comunitarismo excessivo; enfraquecê-lo pode levar ao negli- genciamento de comunidades e identidades. Segundo essa visão, o que está em questão é a construção de um Estado- rede no sentido institucional, um elemento concertador, ativador e direcionador das capacidades do mercado e da sociedade civil na direção do desenvolvimen- to. Trata-se do Estado incrustado na sociedade no sentido em que não apenas reproduz suas demandas, mas também promove ações conjuntas (parcerias e alianças no provimento de serviços de relevância social e, mesmo, empreendi- mentos) e constitui uma ―inteligência‖ estratégica que se manifesta na interlo- cução e na participação, na gestão das políticas públicas. Não se trata, portanto, apenas, de um processo de reforma do Estado, mas de um processo de reordenamento institucional da sociedade contempo- rânea – processo que pode e deve,em alguma extensão, ser modelado, indu- zido, incentivado e controlado pelo Estado, inclusive em relação a si, mas não de forma autônoma, senão interdependente. IMPLANTANDO A NOVA ADMINISTRAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO A transição do paradigma da reforma do Estado para a revitalização do Estado não implica o completo abandono ou negação das características do primeiro, mas a progressiva adesão ao segundo. Isso significa que, na prática, experiências concretas de transformação institucional carregam característi- cas ambíguas e complementares de ambos os paradigmas. O que se advoga é que adesões que tendem ao paradigma da reforma do Estado negligenciam as relevâncias emergentes – traduzidas na forma de demandas e possibilidades de desenvolvimento. A implementação de uma nova Administração para o Desenvolvimento requer uma série de ações extremamente desafiadoras, que passam pela for- mulação de estratégias efetivas de desenvolvimento, pela elaboração de pla- nos de desenvolvimento, pela concepção de modelos de gestão por resulta- dos e pelo alinhamento das organizações aos resultados estabelecidos. Sobre- tudo, é necessário que esse roteiro sintético seja desenvolvido e implementa- do de forma integrada e coerente. A formulação de estratégias de desenvolvimento deve resgatar a dimen- são da visão de futuro (o que o país quer ser) como expressão última de rele- vância e efetividade, de forma não-determinista em relação às interdepen- dências com o ambiente externo. Nesse sentido, as estratégias endógenas e reativas (baseadas no insulamento e na fragmentação, típicas do mundo co- munista e dos países submergentes da Ásia Central e África, como forma de não-inserção na ordem global) e as estratégias integrativas e passivas (basea- das na dependência e submissão à centralidade da ordem estabelecida pelos ―países desenvolvidos‖ na inserção global, típicas da América Latina) ten- dem a dar lugar a formas integrativas-autopoiéticas, baseadas na invenção de padrões próprios de inserção global (típicas de países como a China, Malá- sia, Singapura, Coréia do Sul etc.), segundo novas competências, identidades e possibilidades. Nesse sentido, a nova Administração para o Desenvolvi- mento implica o advento de um modelo de ―governança prospectiva‖ que se define pela capacidade de construir o futuro. A nova Administração para o Desenvolvimento também requer a rein- venção do planejamento governamental. Não se trata mais de equiparar o planejamento governamental ao processo (inescapavelmente burocratizante) de se fazer planos de desenvolvimento – mas isto também não significa pres- cindir deles. Trata-se de orientar os planos para a visão seja realizada, tor- nando-os elementos programáticos dinâmicos, sujeitos e abertos a reformula- ções contínuas nas suas diversas fases lógicas (elaboração, implementação e avaliação). Analogamente, os planos de desenvolvimento devem cada vez mais abarcar de forma coerente e integrada múltiplas dimensões da vida so- cial: economia e produção, meio ambiente, demografia e condições sociais, tecnologia etc. E tudo isto sem perder de vista a dimensão territorial nas perspectivas micro, meso e macro. Fundamentalmente, as políticas de desen- volvimento da nova Administração para o Desenvolvimento devem avançar as concepções e os instrumentos baseados em fomento e posicionarem-se vi- sando à ativação de capacidades, mediante a mobilização, participação e atua- ção em rede – politizando o processo de planejamento, em vez de torná-lo tec- nocrático. A gestão por resultados é outro elemento indispensável da nova Admi- nistração para o Desenvolvimento, pois possibilita desdobrar o plano de de- senvolvimento em políticas e programas e a definição de seus arranjos de implementação. Não se trata apenas de proporcionar programas bem dese- nhados, com nexos claros em relação aos resultados de políticas e indicado- res e metas de eficácia e efetividade pertinentes e coerentes. Viabilizar a ges- tão por programas impõe a busca do elo perdido entre o terreno do planeja- mento, a partir do desenho de programas, e o terreno das organizações, onde – em última análise – os resultados se produzem. Essa questão é essencial e sensível, porque nem os programas são auto-executáveis nem as organiza- ções são auto-orientadas por resultados. Construir o nexo entre programas e organizações implica o mapeamento fino das complexas teias de relações entre programas e organizações (ou a definição de quais estruturas suportam a implementação de tais programas, de como estabelecer coerência e coorde- nação entre diferentes estruturas no âmbito de um mesmo programa, de como comprometer as estruturas etc.). A chave da organicidade e da flexibilidade do modelo de gestão por programas está nesse intrincado relacionamento ‗programas-organizações‘ (fins e meios). A concepção de modelos efetivos de gestão por programas demandará uma avaliação precisa da capacidade das organizações envolvidas para alcançar os resultados propostos, o que impli- cará, por sua vez, implementar planos de melhoria institucional, centrados na geração de resultados. Não obstante, a gestão por resultados requer foco (a gestão intensiva de uma carteira prioritária de programas), mecanismos e instrumentos de acompanhamento e avaliação – dotados de centralidade, se- letividade e temporalidade –, e modelos contratuais de pactuação de resulta- dos, com base em incentivos claros. O último elemento da nova Administração para o Desenvolvimento é o plano de gestão, espaço que liga os objetivos do plano de desenvolvimento e seu desdobramento em programas aos resultados concretos, uma vez que busca alinhar as organizações para o alcance dos resultados visados. Esse esforço impõe instrumentos e uma estrutura de incentivos que atue tanto da perspectiva horizontal (promovendo o alinhamento de organizações) quanto da perspectiva vertical (promovendo o alinhamento de sistemas centrais de gestão, usualmente relativos à organização governamental e à gestão das ati- vidades de suporte relacionadas a recursos humanos, orçamento, finanças, compras e logística). Da perspectiva das organizações, a preparação institu- cional para o desenvolvimento requer a reorientação de estratégias, estrutu- ras, processos, pessoas e sistemas de informação vitais para o alcance dos objetivos de desenvolvimento, em bases eficientes. O espaço do plano de gestão constitui, dessa forma, uma complexa e abrangente agenda de transformação da gestão (em níveis microorganizacio- nal e macrogovernamental), que mescla elementos tradicionais da consoli- dação burocrática, em bases profissionais e democráticas (tais como: re- composição da força de trabalho e estruturas e processos basais do Esta- do), a elementos inovadores voltados ao desempenho, à flexibilidade, ao foco no cidadão e ao controle social, tudo isto de forma orientada para os resultados visados. Os requisitos originalmente definidos por Motta para uma nova Admi- nistração para o Desenvolvimento permanecem válidos: orientação para re- sultados, modelos orgânicos de gestão e comprometimento valorativo dos atores envolvidos. Mas, ainda hoje, a construção de uma disciplina que in- corpore esses preceitos não é uma tarefa simplória nem modesta; é um desa- fio que deve ser sistematicamente buscado e experimentado, tanto no sentido de se afirmar como corrente de pensamento a respeito dos processos de transformação do Estado, quanto no sentido de proporcionar instrumentos para sua implementação. Essa discussão está apenas se iniciando, e este tra- balho buscou, de alguma forma, contribuir para o seu desenvolvimento. REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS AUCOIN, P. (1995) The New public management: Canada in comparative perspective. Montreal: IRPP. BOSTON, J. et al. (1991) Reshaping the state: New Zealand bureaucratic revolution. Auckland: Oxford University Press. COASE, R. H. (1937) ―The Nature of the firm‖. Jornal of Law and Econom- ics, 3. 1960. GRAHAM, C. (2002) Strengthening institutional capacity in poor countries: shoring up institutions, reducing global poverty. s.l.: The Brookings Institu- tion. 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Robarts Center for Canadian Studies, Summer Institute papers. WILLIAMSON, J. (ed.) (1990) The Progress of policy reform in Latin America in Latin American adjustment: how much has happened? Washing- ton: Institute of International Economics. ABRINDO A CAIXA PRETA DO ESTADO: A ECONOMIA POLÍTICA DA INFORMAÇÃO Marcos Fernandes Gonçalves da Silva Há uma tendência de aproximação entre a ciência econômica, a admi- nistração pública e a ciência política que está gerando uma série de novos e importantes resultados para a análise do governo, de problemas relacionados à ação de grupos de pressão na máquina pública e da corrupção. A chamada Nova Economia Política (NEP) – que engloba desde os novos campos da Nova Economia Institucional (NEI) até a teoria da Escolha Pública (EP) ou Economia Constitucional (EC) – fornece conceitos e modelos para a teoria dos contratos e para a teoria econômica do direito e da análise das leis. O objetivo deste artigo é mostrar que a escolha democrática e, portanto, o Estado e os governos democráticos, possuem falhas que abrem espaço para a separação entre o público e o estatal, entre os interesses de grupos de pres- são e os interesses ―coletivos‖, os quais são, em verdade, hipotéticos. Por exemplo, o aparecimento da ineficiência e da corrupção na máquina pública está associado ao fato de que não podemos falar, a rigor, em administração gerencial pura dentro do Estado, ao custo de ingenuamente supor que as es- truturas de incentivo com as quais deparam-se burocratas, políticos e os agentes privados que agem sobre a máquina pública possam ser comparáveis às estruturas de mercado. Para mostrar como as escolhas públicas são intrinsecamente falhas e que, naturalmente, admitem ineficiência e corrupção ocasional35, farei uma apresentação da visão implícita ao conjunto de abordagens da NEP para, em seguida, indicar sua relevância no estudo da gestão pública. Usarei sempre o exemplo da corrupção, por representar um caso clássico de disfunção geren- cial. As principais questões que buscarei responder são: 1. O agente público, burocrata ou político, pode ser comparado ao agente privado que atua em organizações privadas? 35 Usarei corrupção neste artigo somente como um exemplo de falha de estruturas de governança e de accountability. 2. As escolhas e decisões públicas possuem a mesma natureza das decisões privadas? 3. Podemos imaginar um modelo de autonomia burocrática aos moldes da autonomia relativa de decisão de um burocrata do setor privado? As escolhas públicas não são estritamente técnicas ou gerenciais. Não há neutralidade das decisões públicas no que se refere aos interesses de gru- pos de pressão dentro e fora do Estado. Por exemplo, a elaboração e gestão de um orçamento público é um processo técnico (contábil e financeiro) e po- lítico. A desconsideração desse fato pode implicar diagnósticos inadequados e formulações legais e institucionais que podem abrir espaço, como bem ilus- tra a história recente do Brasil, para o aparecimento, por exemplo, de corrup- ção no orçamento. Isto é, a elaboração de um arcabouço legal-constitucional para nortear o processo orçamentário deve considerar a natureza política do mesmo, pelo menos se o objetivo das leis e instituições é controlar o desvir- tuamento do orçamento. Outro exemplo: a análise das compras de obras de engenharia e de bens e serviços pelo governo deve, da mesma forma, consi- derar que as escolhas públicas possuem um caráter especial, qual seja, elas são sujeitas a critérios políticos. Portanto, há uma dimensão política das decisões públicas, gerando po- tencialmente a impossibilidade de um Estado gerencial puro e a necessidade de controle rigoroso sobre as decisões dos agentes públicos. Para explicar esse fato, usaremos alguns conceitos de teoria econômica aplicada ao estudo das organizações. A economia tem ampliado seus limites para além de seu objeto tradicional, qual seja, o estudo da formação de preços. Ela é também um método de análise aplicável a outros domínios das ciências sociais, como a sociologia, a política e a teoria das organizações públicas, não-públicas e públicas não-estatais. A ciência econômica pode ser entendida como o estudo dos processos de escolha condicionados por restrições. Sempre que há uma escolha com restrição surgem escassez e custo de oportunidade, que são os dois conceitos econômicos fundamentais dentro da teoria da escolha racional. A ciência econômica pode, inclusive, ser definida genericamente, como o faz Robbins (1935), como o estudo das escolhas limitadas a restrições. A descrição da visão econômica da política e das escolhas individuais e coletivas será o ponto de partida para minha apresentação de uma visão geral de análise dos processos de produção de bens públicos puros e semipúblicos. O fundamento da teoria econômica da política é a teoria da escolha ra- cional. A noção de racionalidade em economia pressupõe os conceitos de preferências, ordenações transitivas e maximização condicionada por restri- ções. Considere-se o seguinteexemplo: um processo de escolha pública en- volvendo consecução de algumas obras públicas, no qual o agente público depara-se com três opções de alocação do recurso público (três obras de en- genharia diferentes) denominadas 1, 2 e 3. Suponha que a sociedade tenha revelado suas preferências – por meio do voto – ao político/burocrata e que este as explicita da seguinte forma: o projeto 1 é preferível ao 2, que é prefe- rível ao 3. A racionalidade da escolha pública, a qual se revela, por hipótese, idêntica à da sociedade, depende da transitividade das preferências; isto é, o burocrata, se racional, deve também preferir 1 a 3. As ordenações de preferências do agente individual privado dependem, a princípio, dos incentivos implícitos a um conjunto de regras, normas, leis e instituições e dos valores e ideologias. Por exemplo, há alguns anos, muitas pessoas colocavam fora de seu espaço de escolha de bens de consumo tudo que se relacionava à África do Sul. Por trás de uma ordenação de preferên- cias há um sistema de valores e crenças. Se alguns agentes têm suas ordena- ções determinadas por crenças que podem ser consideradas absurdas – devi- do à ignorância ou à superstição –, isso não caracteriza suas ordenações de preferências e suas decisões, portanto, como irracionais: de gustibus non est diusputandum, ou simplesmente, gosto não se discute. Na teoria da escolha racional, as preferências são formadas exogenamente e conforme as crenças e valores dos indivíduos. O predicado de racionalidade da teoria apenas exige, por necessidade lógica, ordenações e decisões consistentes, ou seja, a escolha racional pede somente, desse ponto de vista, consistência entre crenças e ação. Outro aspecto fundamental para a teoria da escolha racional é a suposição de que os agentes decidem diante de restrições e que, portanto, há custo de opor- tunidade implícito a qualquer escolha. A construção de uma rodovia em determi- nado local, por exemplo, evidencia a existência de uma restrição representada pelo orçamento: há um custo de oportunidade nessa decisão, pois, dada a escas- sez de recursos financeiros, deixa-se de lado outros projetos de construção e vá- rias localidades perdem os benefícios potenciais de investimentos. Outro aspecto importante da teoria da escolha racional é apontado por Elster (1987). A teoria da escolha racional sugere uma forma específica de relacionamento entre os conceitos de preferência, crença e escassez. A ação racional deve seguir critérios de consistência lógica, que se aplicam para as ordenações de preferências e crenças, e também deve ser eficiente: a decisão é racional quando o agente procura a melhor forma de atingir seus objetivos. Na teoria dos preços, por exemplo, a eficiência da ação empresarial depende da hipótese de maximização de lucros. A ação racional supõe, portanto, tran- sitividade e eficiência. A teoria econômica considera que, nos processos de escolhas individu- ais, as instituições e valores são exógenos. Todavia, esses elementos são fun- damentais, dado que implicam estruturas de incentivos que podem gerar re- sultados não desejados. A simples existência de Estado e governo cria a pos- sibilidade de alocações políticas de recursos econômicos escassos, as quais podem ser determinadas por critérios não-competitivos. A criação de um subsídio, devido à ação de grupos setoriais de pressão, altera o sistema aloca- tivo e gera transferências de renda. Exemplo análogo é a criação de direitos especiais dentro da lei, como monopólios e cartórios. Não obstante, os agen- tes econômicos que vislumbram a possibilidade de receberem privilégios com concorrências públicas dirigidas agirão racionalmente se considerarem os benefícios criados pelas regras do jogo – ou pela ausência das mesmas. Entretanto, o resultado dessas ações racionais, do ponto de vista social e da eficiência econômica, pode ser custoso para a sociedade. A argumentação aqui se sustenta na teoria do rent seeking – ―atividades caçadoras de renda‖. O objetivo desse tipo de ação é transferir renda, e não gerá-la. O resultado de ações caçadoras de renda generalizadas dentro da sociedade é uma alocação ineficiente de recursos econômicos escassos em atividades tipicamente im- produtivas (ver, por exemplo, Baumol, 1990). A EC e a EP representam um campo de estudo, dentro das chamadas teorias econômicas da política, dos processos de escolha no Estado. A aná- lise a ser desenvolvida neste artigo partirá basicamente dos resultados apresentados por trabalhos significativos nesses campos de pesquisa, co- mo, por exemplo, os de Buchanan & Tullock (1962), Arrow (1951), Downs (1957) e Olson (1965, 1982). Arrow (1951) prova logicamente a impossibilidade de escolhas coleti- vas racionais (transitivas e completas), como as decisões de produção de bens públicos e como a própria escolha democrática dentro de qualquer par- lamento. Por exemplo, considere-se a existência de três indivíduos na socie- dade (1, 2 e 3) e três possibilidades de contratação, pelo governo, de obras públicas (A, B e C). Suponha-se que: (i) o indivíduo 1 possui uma ordenação de preferências de tal forma que A é preferível a B, a qual é preferível a C; (ii) o indivíduo 2, uma ordenação para a qual C é preferível a A, que é prefe- rível a B; e (iii) o indivíduo 3, uma ordenação tal que B é preferível a C e C é preferível a A. Nesse caso, se cada indivíduo é racional e faz escolhas racio- nais, cada ordenação individual de preferências deve implicar, portanto, tran- sitividade. Por definição, a transitividade exige que, para o indivíduo 1, se A é preferível a B e B a C, então A deve ser preferível a C, por exemplo. Por outro lado, é impossível agregar essas ordenações de preferências no nível público, social ou coletivo. As ordenações individuais e privadas de preferências não criam a possibilidade de uma ordenação coletiva racional. Portanto, não há a possibilidade de escolhas coletivas e públicas racionais. Há, na verdade, a possibilidade de escolhas privadas dentro do Estado feitas por políticos e burocratas, que podem ter suas ações mais ou menos contro- ladas pela Constituição e pelas leis. Tullock (1993) desenvolve o conceito, ao qual me referi acima, de comportamento rent-seeking ou caçador de renda. Segundo essa concepção, os agentes privados e públicos buscam transferir renda dentro da sociedade. Em uma economia competitiva pura, sem Estado ou qualquer poder de mo- nopólio, na qual os indivíduos são remunerados de acordo com suas capaci- dades produtivas, a distribuição de renda dependerá da distribuição do esto- que de propriedade, da qualidade dos fatores de produção e do esforço de trabalho dos indivíduos. Todavia, com o aparecimento de, por exemplo, um monopólio, haverá transferência de renda dentro da economia, dada a exis- tência de lucro econômico positivo no equilíbrio de longo prazo. Caso apare- ça um monopólio na economia, conquistado devido à concessão de direitos especiais barganhados junto ao Estado, o agente e o conjunto de agentes que se beneficiam do mesmo são definidos como caçadores-de-renda. O rent-seeking surge tipicamente como uma atividade ―parasitária‖ do Estado. O Estado arrecada tributos e transfere-os, legal ou ilegalmente, por meio da produção de bens públicos, como segurança, e bens semipúblicos para determinados segmentos da sociedade, os quais se organizam na forma de grupos de pressão. Por isso, não é possível imaginar um Estado, ou go- verno, gerencial puro. Olson (1965) descarta qualquer possibilidade de um Estado gerencial puro. O Estado e o mercado político não são perfeitos: políticos e burocra- tas representam seus interessesdentro do governo e os interesses de agen- tes privados que se organizam coletivamente para agir sobre a máquina governamental, e tal ação visa a caçar renda de grupos da sociedade menos organizados. Essas transferências podem ser acompanhadas de conflitos distributivos entre diversos grupos de interesse que competem entre si para garantir maiores benefícios. Entretanto, faz-se necessária a exposição mais detalhada do argumento que sustenta a impossibilidade de um Estado gerencial. É preciso mostrar porque o burocrata deve ser submetido a relações de contratos e incentivos. Faz-se necessário o estudo dos problemas de agência e da impossibilidade de autonomia burocrática dentro do Estado. Przeworski (1996) sugere uma abordagem para o estudo do comporta- mento burocrático: a teoria da agência, ou o chamado problema principal- agente. Na verdade, entre economistas e modernos teóricos da administração privada e pública, essa teoria não representa, hoje, nenhuma novidade. Entre- tanto, nas ciências sociais em geral e, principalmente, entre vários intelectu- ais e administradores públicos brasileiros, tal concepção infelizmente é pou- co conhecida. Infelizmente, pois, o problema principal-agente ajuda a com- preender melhor porque precisamos de relações contratuais formais e infor- mais específicas que condicionam a ação de burocratas, de tal forma a ma- ximizar a eficiência e a eficácia da administração pública. Pode-se definir o problema de agência da forma que segue: o problema principal-agente (ou agência) surge quando, no estabelecimento de um contrato36, o contratante (principal) não possui informação perfeita que permita a avaliação do esforço ou ação empreendida pelo agente, ação que afeta o bem-estar do primeiro. Aqui o termo principal refere-se ao indivíduo ou entidade que possui a auto- ridade para agir, enquanto o agente é aquele que atua no lugar do principal e sob a autoridade contratual do mesmo. A teoria em questão pode ser resumida de forma muito simples. O prin- cipal é aquele que, em numa organização, delega responsabilidade a um ou- tro indivíduo, denominado agente, o qual age de acordo com seus objetivos privados. O problema em questão reside no fato de que, na administração, em geral, e na pública, em particular, torna-se extremamente difícil fiscalizar o comportamento do agente. Pode-se, portanto, afirmar que principal-agente é uma questão de supervisão e controle de comportamento de agentes que podem agir de forma oculta. Na medida em que a eficiência e a decência da administração pública dependem do comportamento, nem sempre controlado e supervisionado, de agentes (burocratas), o principal (a sociedade, represen- tada pelo governo) vê-se à mercê da perda de controle sobre a máquina esta- tal. Há diversos problemas de agência na administração pública. Por mais que se suponha que todos burocratas sejam, a princípio, agentes que buscam maximizar seus esforços altruisticamente, visando ao bem comum, deve-se supor que os funcionários públicos e contratados têm suas ações motivadas por interesse próprio (legítimo) e nem sempre pelo suposto interesse coletivo. 36 Contrato aqui pode ser um contrato formal de trabalho, jurídico ou contrato tácito, informal, por exemplo. Contratos são relações entre agentes estabelecidas com base em algum acordo de ação a priori cooperativa. O Homem37 público é igual, em parte, a qualquer agente econômico, isto é, não há razão de se supor que somente o homem privado busque seus fins privados: o homem público não é um agente perfeito, imune aos seus próprios interesses privados. Como visto acima, as teorias econômicas apli- cadas à política e à administração pública levam em consideração que as ações na esfera pública são políticas num sentido muito específico, qual seja: os interesses privados dentro e fora do Estado são relevantes para explicar as próprias ações de governo. Logo, a desconsideração deste fato (empírico in- clusive) nos modelos de controle sobre o comportamento dos agentes públi- cos pode trazer sérias conseqüências para as políticas de reforma do Estado. Considerações a respeito daquilo que os economistas chamam de eco- nomia da informação são relevantes para melhor compreender, juntamente com o problema principal-agente, a ação do agente público. A economia da informação estuda um objeto amplo, associado ao rompimento da hipótese, presente nas análises econômicas, segundo a qual os indivíduos que atuam no mercado, ou dentro de organizações, possuem acesso ao mesmo estoque de informações. Entretanto, a discussão em torno da administração pública e da relação entre o principal (a sociedade representada no governo) e os agen- tes (os burocratas) deve ser suficientemente realista ao ponto de incorporar a hipótese de que, na maior parte das vezes, a ação dos agentes não está sob total controle do principal. Ademais, considerando-se que os agentes possu- em fins privados, o problema do estabelecimento de contratos eficientes tor- na-se central. Os economistas definem como risco moral a possibilidade de que o comportamento do agente se desvie do desejado pelo principal. Isto é, existe a possibilidade de uma parte envolvida na administração de uma organização empreender determinadas ações sem que os ―gerentes‖ – no caso da adminis- tração pública, os contribuintes e o governo – possam fiscalizar perfeitamen- te suas mesmas ações. Logo, podemos entender agora todas as dimensões do problema principal-agente aplicado ao setor público: o problema principal- agente (ou agência) surge quando, no caso da administração pública, o con- tratante-principal (sociedade) não possui informação perfeita que permita avaliar a probidade da ação empreendida pelo segundo, ação essa que afeta o bem-estar do primeiro. É exatamente esse fato o que torna o problema prin- cipal-agente tão importante para compreender o problema da administração pública. 37 Vale notar, para se evitar qualquer problema de incorreção política, que refiro-me à espécie, não ao gênero! Em um mundo perfeito, de informação e controle perfeitos, certamente não existiria ineficiência e ineficácia das ações de Estado. No entanto, os fatos da vida prática indicam o contrário. O agente pode ter –e geralmente tem – mais informação que o principal e pode agir – e agirá – de acordo com seu próprio interesse; a informação que o principal recebe é inadequada para monitorar o agente. Isto é, o agente comporta-se estrategicamente. Por exemplo, se uma firma (principal) contrata um empregado (agente), o principal espera que o agente trabalhe duro, maximizando o esforço. No entanto, o agente pode, se tiver condições, trapacear. O incentivo à trapaça é diretamente proporcional à possibilidade de as ações do agente serem ocultas e da incapacidade do principal de controlá-las. Podem-se imaginar esquemas de fiscalização e controle do comporta- mento dos burocratas. Porém, na maior parte dos casos, a fiscalização é cara ou impossível. A solução para isso talvez seja a introdução de incentivos aos contratos: se o agente tem a priori incentivo para agir em seu próprio interes- se, uma mudança no sistema de incentivos pode dirigir seu comportamento a um resultado ótimo do ponto de vista do principal e dele mesmo. Os incenti- vos devem ser concebidos de tal forma a levar a parte que age de forma ocul- ta a assumir plenamente as conseqüências de suas ações. No caso, por exem- plo, de uma relação entre o governo (principal) e o burocrata (agente), um contrato eficiente entre as partes pode ser o estabelecimento de contratos de gestão com metas e bonificações. O problema central, no que serefere ao problema de agência no setor público, está em como criar uma arquitetura contratual que limite a priori o comportamento incontrolável do burocrata, já que o Estado não tem acionistas, por exemplo. Pelas razões expostas acima, esse tipo de análise é perfeitamente apli- cável ao estudo da administração no setor público, particularmente no que se refere à elaboração e à execução de peças orçamentárias e planos anuais de investimento. É fundamental entender que as regras básicas que orientam a ação dos agentes dentro do Estado são, além das leis de controle sobre a ação do Ho- mem público, os contratos de incentivo. A princípio, a lei e as regras do setor público existem para limitar e orientar, no âmbito da administração pública, o comportamento dos agentes públicos na direção do interesse social. Entre- tanto, há um problema que transcende o poder das leis, regras e regulamentos em controlar o comportamento dos agentes públicos: eles têm seus próprios interesses, que podem coincidir ou não com interesses dos gestores hierar- quicamente superiores. Nesse sentido, a administração pública tende a ser mais imperfeita do que se imagina à primeira vista. Os contratos de incentivo podem ser mecanismos de definição das regras do jogo e dos pay-offs na ad- ministração pública, de forma a minimizar os desvios do Estado vis-à-vis o interesse da sociedade em geral. A regra do jogo na administração pública cria a estrutura de incentivos que direciona as escolhas individuais e, portanto, determina a alocação mais ou menos eficiente e eficaz dos recursos públicos. Tais incentivos motivam racionalmente os talentos de uma organização. Caso contrário, se não há contratos adaptados a incentivos dentro do governo, há a tendência ao des- perdício de recursos econômicos e tecnológicos (conhecimento humano) em atividades que não agregam nada à eficiência organizacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTOCI, A. & SACCO, P. L. (1995) ―Public contracting evolutionary game with corruption‖ Journal of Economics, vol 61, 1995. KRUEGER, A. O. (1974) ―The political economy of rent-seeking‖. American Economic Review, 64. OLSON, M. 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Para tanto, aponta brevemente para o papel das agências como parte integrante de um conjunto de instituições relacionadas à mudança de padrão de desenvolvimento nos anos 1990. Em seguida, aborda os problemas econômicos que a regulação procura resolver e quais os ins- trumentos adequados a esses objetivos. Finalmente, conclui com um comen- tário sobre a economia política da regulação. AGÊNCIAS E INTERVENÇÃO ESTATAL A literatura sobre a história econômica brasileira, em particular sobre as políticas de desenvolvimento38, relacionadas à aceleração do processo de industrialização de substituição de importações pós-1930 (até 1980), mostra que esse processo foi conduzido pelo Estado. Dentre os instrumentos utiliza- dos, independentemente do regime político, estiveram o planejamento indica- tivo, o controle de parcela expressiva da poupança nacional (sobretudo após o Paeg, em 1964), direcionada aos setores prioritários, e a intervenção direta, 38 Vide por exemplo, SUZIGAN, W., Industrialização Brasileira: Origem e Desenvol- vimento. São Paulo: Ed. Brasiliense 1986; BONELLI, R. e MALAN, P. ―The Suc- cess of Growth Policies in Brazil‖. In TEITEL, S. (org.), Towards a New Develop- ment Strategy for Latin America – Pathways from Hirschman's Thought. Washing- ton: Inter American Development Bank. 1992; ou SERRA, J. ―Ciclos e Mudanças Estruturais na Economia Brasileira do Pós-Guerra: A Crise Recente‖. Revista de Economia Política, 2(3): 111-135, 1982. via investimentos de empresas estatais nos setores de insumos básicos e in- fra-estrutura. O período 1982-1989 tornou clara a crise da estratégia de substituição de importações, baseada em protecionismo e dirigismo estatal. A alternativa encontrada, após 1990, partiu do pressuposto de que a abertura comercial e financeira e a redução da intervenção direta do Estado seriam políticas ne- cessárias para atrair capital externo, promovendo desse modo uma nova fase de crescimento econômico, liderada pelo investimento privado, em particular do capital externo. Regulação de infra-estrutura A operação dos setores de infra-estrutura passou por vários momentos, a partir de sua modernização, ainda no século XIX. No período prévio a 1930, a infra-estrutura, seja nas ferrovias, seja no setor elétrico, era gerida por empresas privadas, em particular de capital estrangeiro. Os contratos en- tre os diferentes níveis de governo e as empresas concessionárias definiam a remuneração dos investimentos. Muitas vezes era utilizada a tarifa-ouro para proteger o valor real das tarifas (a tarifa ouro consistia na indexação da tarifa a uma moeda forte)39. Com a crise de 1930 e a forte desvalorização cambial, esses contratos não puderam ser mantidos. Desse modo, órgãos do Poder Executivo tornaram-se responsáveis pela fixação das tarifas. A falta de re- muneração adequada, tendo em vista que os órgãos de administração direta seguiam orientações antiinflacionárias de governo, não protegendo o equilí- brio econômico-financeiro dos concessionários, levou a uma crônica falta de investimentos. A saída encontrada foi a progressiva estatização das operadoras de in- fra-estrutura, com a criação de empresas como RFFSA, Petrobrás, Eletrobrás e Telebrás. No período pós-1964, inicialmente, dada a correção tarifária efe- tuada e a modernização gerencial das empresas estatais, houve a retomada dos investimentos. A intervenção estatal direta, via controle dos investimen- tos, promoveu, na segunda metade dos anos 1960 e nos anos 1970, umagrande expansão das redes de transportes, energia e comunicações. Esse período durou até o início dos anos 1980, quando novamente o ar- rocho tarifário e o endividamento elevado provocaram uma crise nesses seto- res. A intervenção direta na infra-estrutura apresentou as mesmas característi- cas da atuação estatal do período autoritário – quando o Estado definia inves- 39 Vide BAER, W. A Economia Brasileira. São Paulo: Nobel, 1996. timentos e controlava preços –, gerou incentivos à ineficiência, rigidez no pla- nejamento e, finalmente, provocou graves problemas de endividamento. A adoção das concessões de serviços públicos, acompanhada da regu- lação por agências autônomas, foi marcada pela tentativa de resolver a crise do sistema estatal, que se havia tornado, por falta de poupança pública, inca- paz de manter um nível de investimentos compatível com as necessidades de crescimento econômico. Adicionalmente, procurou-se reduzir a dívida públi- ca, ou ao menos financiar o déficit com a maximização dos recursos provin- dos da privatização. Daí o ágio nos leilões de privatização ser considerado medida de sucesso. A REGULAÇÃO E A FUNÇÃO DAS AGÊNCIAS Embora, no Brasil, a regulação tenha surgido como conseqüência da privatização e tenha sido muito influenciada pela necessidade de garantir aos investidores, especialmente aos externos, que a existência de um órgão técnico e autônomo seria uma garantia da manutenção do equilíbrio eco- nômico-financeiro dos contratos, a necessidade de regular tem dois moti- vos essenciais: 4. existência de falhas de mercado; e 5. controle do abuso de poder econômico. As falhas de mercado são originadas pela estrutura dos mercados regu- lados, pela existência de externalidades, pelas imperfeições de informação e pela presença de bens públicos. As estruturas de mercado concentradas, quando existem altas escalas de produção em relação à demanda, permitem que as empresas possam abusar de seu poder, praticando preços monopolistas, dificultando a entrada de no- vos competidores e, por meio desses preços monopolistas, distorcer a aloca- ção de recursos. As estruturas de mercado concentradas, monopolistas ou oligopolistas, são uma tendência nos setores dos serviços de utilidade pública, devido às economias de escala e escopo e às barreiras à entrada representadas por ele- vados sunk costs40 Assim, se essa situação não for adequadamente regulada, gera custos (e preços) excessivos e nível insuficiente de investimentos. 40 Aqui se pode fazer referência ao conceito de ―oligopólio natural‖ utilizado por STIGLITZ, J. Wither Socialism. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1994. As externalidades advêm do fato de que, em determinadas situações, a decisão de um agente econômico cria ganhos ou perdas para outros indiví- duos, sem que o responsável se aproprie desses ganhos, ou incorra em seus custos. Em particular nas indústrias de infra-estrutura, têm-se as externalida- des de rede, p. ex., em telecomunicações. O fato de mais um indivíduo começar a participar de um sistema de telefonia traz um ganho aos indivíduos já conec- tados à rede, pois aumenta a possibilidade destes de contatar um grupo mais amplo na sociedade, seja por motivos profissionais ou pessoais. A assimetria de informação – entre o produtor que conhece a qualidade de um bem, ou as características de um novo serviço, e os consumidores que não o conhecem tão bem – pode gerar assimetrias negociais. Esse é um pro- blema particularmente importante na regulação da indústria farmacêutica. A resolução dessas falhas de mercado implicou diferentes políticas. Ini- cialmente, para o controle do poder de mercado, acreditava-se que os setores de infra-estrutura eram monopólios naturais, ou seja, indústrias em que as economias de escala seriam tão elevadas, que a existência de apenas um pro- dutor seria a forma mais eficiente de produzir o serviço em questão e, para evitar o abuso de poder desse produtor, suas tarifas deveriam ser reguladas. Para regular monopólios naturais, existem os seguintes enfoques regu- latórios: i) regulação tarifária da taxa de lucro por custo de serviço; ii) regu- lação por price-cap com índice de preços; iii) modelo de empresa eficiente. No primeiro tipo, as alterações de preço devem ser solicitadas pelo monopo- lista, com base em seus custos para manter uma taxa de retorno sobre ativos definida previamente. Tem sido abandonado por não fornecer incentivos à redução de custos e por manter ineficiências produtivas. A segunda forma, também conhecida por RPI-X, em que RPI (retail price index) representa um índice de preços ao consumidor e X um fator que representa os ganhos anu- ais de eficiência que o regulador espera que a empresa atinja. Os preços má- ximos são determinados para um período e depois reajustados pela fórmula. A vantagem desse método é fornecer um incentivo aos aumentos de produti- vidade por parte das empresas. As desvantagens são a discricionariedade embutida na fixação do fator X e o impacto negativo sobre investimentos. Finalmente, há o caso em que uma empresa considerada eficiente serve como padrão para comparações com relação aos custos e à rentabilidade. Note-se que a regulação desses setores teve como motivação inicial a proteção da sociedade contra o abuso de poder econômico de empresas mo- nopolistas, daí seu parentesco com as leis antitruste. Ao contrário daquelas, entretanto, atuavam preventivamente em segmentos onde a livre-competição era considerada impossível. As agências regulatórias surgiram como forma de manter um equilíbrio entre a saúde econômico-financeira das prestadoras de serviços e a proteção dos consumidores desses serviços. Surgiram como agências técnicas autô- nomas para realizar essa função de forma independente de pressões políticas. Daí a idéia de conceder-lhes autonomia administrativa e mandatos para seus dirigentes. A partir dos anos 1970, as mudanças tecnológicas mostraram que par- cela significativa dos serviços prestados pelo setor de utilidades públicas não eram monopólios naturais, portanto, a competição foi permitida em vários segmentos onde a tecnologia permitia a entrada de novos competidores, tais como transporte aéreo, telecomunicações de longa distância, serviço celular, geração de energia, comercialização de energia etc. Essa mudança alterou também a função das agências regulatórias que passaram a agir como instrumento de desregulação e de promoção da concor- rência, facilitando a entrada de novas empresas. As agências passaram a ser também árbitros que estabelecem regras para permitir a existência de isono- mia na competição. Isso ocorre especialmente porque alguns segmentos dos setores regulados não podem ser duplicados por todas as empresas, tais como rede local de telefonia e rede de transmissão de energia; a agência tem papel para definir condições e preços de acesso pelos competidores a essas instala- ções. Além disso, para maximizar a concorrência, uma série de políticas po- dem ser utilizadas, mesmo em segmentos onde não há competição direta, como a concorrência comparativa e a licitação periódica de concessão. No primeiro caso, o prestador de serviços em monopólios regionais independen- tes tem suas tarifas definidas com base nos custos das empresas que atuam nas outras regiões, gerando o incentivo para cada monopolista tornar-se mais eficiente que os outros prestadores e aumentar sua margem de lucros. O se- gundo método, de licitações periódicas, redefine as empresas responsáveis pela prestação do serviço, por exemplo, de concessões rodoviárias. A restri- ção a esse método é que se o tempo da concessão for curto demais,pode de- sincentivar os investimentos. O segundo tipo de falha de mercado mencionado é o da existência de externalidades, a respeito do qual os governos criam Políticas de Universali- zação, buscando aumentar o acesso aos serviços. No Brasil, as políticas de universalização em telecomunicações estabeleceram metas de investimentos para as operadoras de telefonia fixa e criaram o Fust, um fundo público para seu financiamento, que permite o acesso das famílias das classes C e D. Telecomunicações no Brasil Um bom exemplo de implementação da regulação no Brasil é dada pela Lei Geral das Telecomunicações, publicada em dezembro de 1996, que regu- lamenta dispositivo constitucional, e seguiu as tendências internacionais da regulação. Seu objetivo central foi criar um marco regulatório capaz de atrair capital privado, especialmente operadoras internacionais. Seus pontos mais importantes são: estabelecer as normas gerais do setor, criar a Anatel (agên- cia regulatória), redefinir os serviços de comunicação, conceituar serviço universal, estabelecer as condições de interconexão e concorrência na rede básica e reorganizar a Telebrás para sua futura privatização. Em relação aos objetivos de reestruturação, privatização e concorrên- cia, os principais passos programados, conforme Wohlers, são: a) reorgani- zação do sistema Telebrás, com a aglutinação das empresas-pólo em três em- presas regionais (Telesp, Tele Centro/Sul e Tele Norte/Nordeste/Leste), de forma consistente com o plano de outorgas; b) privatização das empresas do sistema Telebrás, que foi reorganizado em três empresas regionais, Embratel e as nove empresas operadoras de telefonia celular pública (a serem constitu- ídas de forma independente), resultando em treze operadoras a serem deses- tatizadas em 1998 e; c) concorrência na rede básica (longa distância e serviço local), que ocorrerá após a privatização e a aprovação do plano de outorgas (com a redivisão territorial das áreas operacionais). A concorrência foi intro- duzida na longa distância e tentou-se, sem sucesso, abrir o serviço local às operadoras-espelho. A Anatel, nos termos da Lei Geral das Telecomunicações, foi constituí- da como uma autoridade administrativa independente, financeiramente autô- noma, vinculada, mas não subordinada, ao Ministério das Comunicações. Seus cinco dirigentes têm mandato fixo de cinco anos, garantindo dentro das regras constitucionais independência decisória e autonomia orçamentária e financeira. Todavia, o Poder Executivo conservou algumas atribuições im- portantes, como aprovar o plano geral de outorgas e o plano de metas para universalização, autorizar a proposta orçamentária da Anatel e instituir a mo- dalidade de prestação de serviços no regime público. ECONOMIA POLÍTICA DA REGULAÇÃO Por fim, vale comentar os problemas e as dificuldades geradas pela atu- ação das agências, em particular na América Latina. Inicialmente, como o processo de privatização enfrentava o dilema: maximização das receitas ver- sus interesses dos consumidores, muitas vezes, quando o primeiro objetivo prevaleceu, os setores não eram reestruturados para funcionar de forma com- petitiva, no período pós-privatização. Além disso, existem as falhas de atuação das agências, tais como a as- simetria de informação entre reguladores e empresas prestadoras de serviços onde existem serviços monopolistas regulados. O regulador não conhece adequadamente as informações relativas aos custos e investimentos das em- presas, portanto, pode permitir que a empresa prestadora dos serviços se aproprie de rendas monopolistas via tarifas elevadas, ou realize níveis inade- quados de investimento, o que torna necessário encontrar formas de romper o monopólio da informação. Outras falhas importantes são as de captura do regulador e da capacida- de técnica do órgão regulador. A captura – seja a empresarial, em que a enti- dade reguladora, devido ao lobby da empresa, permite a fixação de preços e de padrões de qualidade que geram rendas monopolistas para as empresas concessionárias, seja a captura política, em que a entidade reguladora pode ceder a pressões políticas e reduzir tarifas dos serviços para níveis que tra- gam benefícios políticos para o governo no curto prazo – leva a perdas para a sociedade, quer pelo nível tarifário, quer pelo desestímulo do investimento no longo prazo. Assim, na parte institucional da regulação, os problemas a resolver são: (a) dependência política em relação aos ministérios, que pode levar à captura política no curto prazo; (b) dependência de uma autoridade política com ob- jetivos eleitorais, o que pode conduzir à captura por parte dos regulados; (c) a baixa remuneração dos funcionários técnicos das agências; (d) a existência de problemas de coordenação e dispersão de esforços; e (e) a falta de inde- pendência estatutária. As recomendações clássicas são, em primeiro lugar, a de dotar os regu- ladores de mandatos fixos, não coincidentes com os mandatos políticos para garantir a independência da comissão. Isto não implica que o regulador não tenha de prestar contas a uma instância superior. A segunda seria assegurar que o poder regulatório fosse exercido por uma comissão composta de vários membros, ao invés de apenas um membro. As comissões têm a vantagem de menor risco de captura política e empresarial, além de menor influência de um só indivíduo e pode contar com diversas especialidades profissionais. A terceira refere-se à possível unificação dos órgãos reguladores, que traria ga- nhos de escala, além de uniformizar as decisões. As lições de economia política apontam no sentido oposto do projeto atual de reformulação das agências reguladoras para que elas possam cum- prir seu papel como agências administrativas que funcionam como árbitros em setores que necessitam de regras para o mercado funcionar. Desse modo, agindo na proteção contra o abuso de poder econômico (seja dos consumido- res, seja o acesso a mercados por novos empreendedores). Para concluir, note-se que as agências, como órgão de Estado devem estar submetidas ao controle democrático dos três poderes: Executivo, Legis- lativo e Judiciário. Além disso, elas são compatíveis com planejamento e estratégia de desenvolvimento nacional, mesmo que o Poder Executivo não controle a operação do setor diretamente. POSSIBILIDADES E DIFICULDADES DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS Carlos Américo Pacheco Esta análise aborda as limitações, as possibilidades e as dificuldades das organizações sociais (OS) como uma nova forma de atuação do Estado. O período focado vai de 1999 a 2002, época em que o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) implantou um conjunto de OS, as quais, e principal- mente aquelas vinculadas à área de ciência e tecnologia, a propósito, vêm apresentando bom desempenho. Desde logo, é preciso diferenciar as OS das organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip), pois são regidas por legislações específicas e seus escopos de atuação são diferentes. As OS são uma forma de organiza- ção do próprio Estado, que passa a atuar com maior autonomia e flexibilida- de através de organização regida pelo direito privado a partir de um contrato de gestão com metas acordadas com o órgão supervisor, mas sempre com participação pública nos Conselhos de Administração. As Oscip, ao contrá- rio, são organizações do terceiro setor que podem executar funções de natu- reza pública, mas não através de um contrato de gestão, e têm a participação pública nos Conselhos vedada. Vinculam-seao MCT vários institutos e centros federais de pesquisa criados em períodos distintos e com histórias muito diversas. Além daqueles ligados diretamente a esse Ministério, há, por exemplo, a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ligadas ao Ministério da Saúde e ao da Agricultura, respectivamente; ou, ain- da, as Universidades Federais, ligadas ao Ministério da Educação (MEC). En- contrar modelos adequados de funcionamento dessas instituições tem sido um desafio constante e as organizações sociais conformam uma possibilidade. Em 1999, no início do segundo mandato de governo do presidente Fer- nando Henrique, o ministro Bresser Pereira assumiu o MCT e, experiente na área da administração pública, estimulou que se pensassem alternativas para a institucionalidade federal de pesquisa. Na ocasião, discutiu-se uma reorga- nização institucional do Ministério, porque as organizações de pesquisa esta- vam divididas entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o MCT: havia quatro institutos federais ligados dire- tamente ao Ministério, quais sejam: o Instituto Nacional de Pesquisas Espa- ciais (Inpe) na área espacial em São José dos Campos; a Fundação Centro Tecnológico para Informática (CTI) em Campinas; o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa); e o Instituto Nacional de Tecnologia (INT) no Rio de Janeiro; no CNPq havia sete unidades de pesquisas. Convém lembrar que o CNPq foi criado há mais de cinqüenta anos e o Ministério, há pouco mais de quinze anos. No início de 1999, o ministro procurou implantar um mecanismo de es- colha de dirigentes dessas instituições de pesquisa, seguindo os modelos existentes em grande parte do mundo: comitês de busca e seleção. Foram instalados comitês de busca para a seleção de diretores, como uma tentativa de superar um pouco esse dilema do cooperativismo interno de processos eleitorais, que ainda predomina nas universidades, optando-se por um pro- cesso mais profissional de seleção de diretores. Esse mecanismo já era ado- tado no Brasil, pela Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), a mais antiga organização social, também vinculada ao MCT, que sempre selecionou seu diretor por mecanismo de comitê de busca. Em julho de 1999 o ministro Bresser deixou o Ministério. O novo mi- nistro, o embaixador Ronaldo Sardenberg, trouxe com ele parte das funções da antiga Secretaria de Assuntos Estratégicos, que coordenava a área nucle- ar. Assim, se agregaram ao MCT as unidades de pesquisa da Comissão Na- cional de Energia Nuclear (CNEN), que tinha quatro institutos e um projeto de implantação de um novo instituto no nordeste (Recife). Era um conjunto vasto de instituições, com naturezas distintas e com problemas também muito distintos. O diagnóstico inicial dessas instituições apontava para um conjunto de questões complexas e, dentre elas, talvez a mais grave de todas fosse o fato de que o Ministério, órgão supervisor dessas unidades, não possuía cla- reza quanto ao que se esperava de cada unidade de pesquisa. Não havia indi- cação ou negociação com essas unidades quanto a suas missões de médio e longo prazo. E, como ocorre com o restante da administração pública, foi sendo criado um conjunto de mecanismos de controle sobre todas as organi- zações, mais focalizado em controle de meios do que de resultados. Empreendeu-se, então, uma reforma gerencial das unidades de pesqui- sa, primeiro transferindo todas as unidades para o MCT e criando uma Secre- taria de Coordenação das Unidades de Pesquisa (Secup) no âmbito do Minis- tério, pois entendia-se que os institutos eram muito importantes para a políti- ca nacional de ciência e tecnologia. Essa Secretaria foi criada no final de 1999 com três Coordenadorias: a Coordenadoria de Modernização da Ges- tão, a Coordenadoria de Avaliação e Acompanhamento, e a Coordenadoria de Orçamento. O mais importante, contudo, é que, ao final da montagem da Secretaria, se consolidou a idéia básica de que se instituições tinham problemas em sua gestão, grande parte do problema se devia a omissão do Ministério com rela- ção à clareza das missões das unidades. As unidades sobreviviam, umas me- lhores outras piores, conforme a dinâmica própria de cada uma. Por exemplo, o Inpe sempre foi uma instituição com uma imagem pública extremamente favorável e fez progressos sensíveis na década de 1990 no programa de saté- lites, a exemplo do Satélite Sino-brasileiro (CBERS). Entretanto, essa não era a realidade de todas as instituições e o próprio Inpe tinha dificuldades para identificar seu papel ante a Agência Espacial Brasileira. O que se fez, então, foi estabelecer um processo de avaliação de missão, a partir de 1999, que acabou sendo conhecido como Comissão Tundise. Nesse processo, o professor João Steiner, astrofísico e diretor do Instituto de Estudos Avança- dos da USP, teve um papel extremamente importante. Ele foi o secretário da Secup de 1999 até 2002, uma pessoa experiente, tinha sido secretário geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), além de ser muito conhecido e renomado na comunidade científica, até porque é um dos físicos brasileiros mais citados no exterior e com enorme capacidade de tra- balho. A idéia não era fazer uma avaliação tradicional e sim uma avaliação das missões, inclusive de missões fundamentais, do âmbito nacional, que não eram contempladas pelos institutos do Ministério. No caso brasileiro – ao contrário da Coréia, que fez duas reformas nos úl- timos quinze anos no seu sistema de ciência e tecnologia, fechando inúmeras instituições e abrindo outras –, seria praticamente impossível discutir o fecha- mento de uma instituição para abrir novas instituições. Sem dúvida, a natureza centralizada do poder coreano possibilitava fechar algumas instituições, mas a Coréia possui mais instituições do que tinha há quinze anos, as reformas e as avaliações, portanto, eram um mecanismo de renovar o sistema. Assim, para essa avaliação, montou-se uma comissão de avaliação, com membros da comunidade científica, tecnológica e empresarial, que trabalha- ram durante um ano e meio. Esse trabalho ficou consolidado no que se cha- mou Relatório Tundise. O conjunto de mudanças institucionais propostas partia de uma tipolo- gia do que eram as instituições de pesquisa do MCT, por vezes centros de referência ou laboratórios abertos, por vezes institutos nacionais. Levava-se em conta a diversidade existente e tentava-se ver seus diversos tipos de pa- péis e definir claramente quais eram suas missões. Esse procedimento englo- bou não só as antigas unidades do Ministério, mas também as unidades da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A partir desse processo algumas instituições foram selecionadas para serem transformadas em orga- nizações sociais; mesmo naquelas não selecionadas foi iniciado um processo de elaboração de termos de compromisso de gestão. Esses termos de com- promisso de gestão acordavam metas e resultados similares aos contratos de gestão firmados com organizações sociais. Eram metas que deveriam ser cumpridas em um determinado prazo de tempo. Essas reformas faziam parte de um conjunto de reformas de natureza institucional empreendidas pelo Ministério naquele período, e que foram sin- tetizadas durante uma Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia feita em 2001, que tinha um documento prévio para discussão chamado Livro Verde da C&T no Brasil. Esse Livro Verde tinha cinco grandes capítulos. Um dos capítulos desse livro foi dedicado especificamente aos temas de aspectos institucionais, porqueé identificável que um dos entraves da ciência e tecno- logia do Brasil deriva de aspectos de natureza institucional, quer pela baixa cooperação entre setor público e setor privado; quer pela falta de flexibilidade de gestão das instituições que formam o sistema nacional de ciência e tecnolo- gia. Na própria Conferência, dentre os aspectos institucionais, discutiu-se o que hoje está no Congresso Nacional agora em uma segunda versão: uma Lei de Inovação que trazia requisitos de flexibilidade na gestão das instituições de pesquisa e que incentivava sobretudo a interação, parcerias público- privadas entre instituições, e incentivava novos arranjos institucionais. De- pois de discutida na Conferência e submetida a consulta pública, a Lei de Inovação foi encaminhada ao Congresso Nacional em 2002, em regime de urgência constitucional. Com a posse do novo governo, o regime de urgência foi retirado, porque o governo queria discutir aspectos da lei, já que tinha uma visão um pouco distinta sobre ela. O Projeto de Lei ficou parado durante 2003 e só com a mudança do ministro de Ciência e Tecnologia e com a posse do novo ministro, em janeiro de 2004, o trâmite da lei foi retomado com bas- tante ênfase. Após, curiosamente, ficar parada durante um ano, a Lei de Ino- vação foi considerada um pilar básico importante da política industrial, que tem um foco importante na questão da inovação. A nova gestão do Ministério assumiu para si a tarefa de discuti-la rapi- damente e ela encontra-se hoje em votação no Congresso Nacional, agora novamente em regime de urgência constitucional. O Executivo, a partir de 2004, entendeu a importância da lei e submeteu uma nova versão um pouco modificada em relação à anterior em regime de urgência constitucional.41 Mas, há um aspecto em que subsiste uma grande diferença entre a lei que havia sido formulada em 2002 e a que se encontra agora no Congresso, é que foi suprimida dessa lei uma parte da legislação que tratava de termos de compromisso de gestão entre instituições de ciências da tecnologia e os ór- gãos dirigentes. Eram termos de compromisso que permitiam maior flexibili- dade nas gestões das instituições e que haviam sido negociados com o pró- prio Ministério do Planejamento na época, com algumas vantagens para as instituições que viessem a firmar termos de compromisso de gestão com ór- gãos supervisores. O projeto que está sendo analisado pelo Congresso Nacional é um bom projeto e também flexibiliza muito a forma de atuação do Estado nessa área. Essas mudanças institucionais foram acompanhadas pela criação, nesse mesmo período, de um conjunto de Fundos Setoriais para a área de ciência e tecnolo- gia. Em particular um desses Fundos, que ficou conhecido como Fundo Verde Amarelo, mas cujo nome legal é Interação Universidade Empresa, revela um pouco do espírito das mudanças institucionais que se queria. O mecanismo de gestão de fomento foi bastante modificado, incluindo comitês gestores para o fomento com participação direta da academia e das empresas de base tecnológica na gestão desses recursos, como o mundo in- teiro faz. Deu-se grande ênfase em compartilhar a gestão de recursos públi- cos, trazendo para os comitês que gerenciam esses fundos representantes do meio acadêmico e do mundo empresarial, para poder usar esse instrumento como mecanismo de maior cooperação e sinergia entre as instituições. O próprio Fundo Verde Amarelo foi criado exclusivamente com esse objetivo, como um fundo de interação de universidades e empresas para promover arranjos de diversas naturezas. É uma tônica da política de C&T no mundo atual. A Austrália, por exemplo, cria instituições com prazo finito de duração, em parceria com o setor privado e público, são institutos especí- ficos para resolver problemas e, para isso, têm um determinado período de tempo. Criam-se instituições, por exemplo, que duram cinco anos e que têm que resolver um problema; uma vez resolvido o problema se extingue o apoio do governo, do setor privado e da universidade. Nesse processo, portanto, além da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS) (a OS do Laboratório de Luz Síncroton), outras 41 A Lei de Inovação, n. 10.973, foi sancionada em 2 de dezembro de 2004 (nota do edi- tor). instituições foram transformadas em OS, tais como: o Projeto Mamiraua, a Rede Nacional de Pesquisas (RNP), o Instituto de Matemática Pura e Apli- cada (Impa), e o Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE); o Labo- ratório Nacional de Astrofísica estava em processo de transformação, mas, com o novo governo, acabou não sendo consolidada. Havia, evidentemente, um conjunto de critérios para transformar uma instituição em uma organização social. Por que então algumas foram trans- formadas e outras não? Por várias razões, a principal delas é a seguinte: a capacidade de seus dirigentes e a clareza da missão. Uma OS não serve para resolver problemas administrativos ou gerenciais. Uma instituição problemáti- ca, sem clareza do que faz, não deve ser transformada em uma OS, porque a clareza do órgão dirigente em relação à finalidade da instituição é a base de um contrato de gestão: é a métrica da avaliação de resultados. É preciso clareza quanto às finalidades e às missões que a OS vai cumprir. Se se tiver clareza e qualidade na direção dessa instituição, é possível transformá-la. Há um con- junto de requisitos para transformar em sucesso a gestão de uma OS. Os contratos prevêem um conjunto de mecanismos de avaliação, sobre- tudo de avaliação de desempenho. Estipulam-se metas com prazo de execu- ção, indicadores de qualidade, critérios de avaliação e desempenho. O fato de ser uma OS não quer dizer que não haja um controle. Conti- nua prevalecendo um conjunto de mecanismos de controle, desde Conselhos de Administração, em que mais de 50% dos membros têm que ser represen- tantes externos, e ao governo cabem 40% desses assentos; até controles ex- ternos e órgãos supervisores. O principal caso de sucesso de uma OS, e que continua sendo uma fon- te de inspiração, é o Laboratório de Luz Síncrotron (LNLS) (ou melhor, a Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron – ABTLuS, que é a pessoa jurídica da OS), em Campinas, que sempre contou com uma equipe brilhante de pesquisadores; ele é o mais barato laboratório de luz síncrotron construído no mundo, aliás é o único abaixo do Equador e foi o mais barato no mundo inteiro. Ele tem no seu comitê científico dirigentes do principal síncrotron europeu, tem um bom networking de gente habilitada. A supervisão de uma OS envolve controle de fins e de meios. Têm-se mecanismos do tipo TCU e a Secretaria Federal de Controle, que é a área de controle federal. E, em paralelo, têm-se mecanismos de controle de resulta- dos: comissão de avaliação e acompanhamento, contrato de gestão e conse- lho de administração. Na verdade, as duas coisas se mesclam, a avaliação das finalidades para as quais a organização foi criada; e o controle tradicional das organizações. A Lei de Inovação procurava dar um passo criando o termo de com- promisso de gestão, mas essas novidades acabaram sendo suprimidas na ver- são atual da lei e não seguiram adiante. Esse termo de compromisso de ges- tão buscava criar um conjunto de flexibilidades para as instituições que vies- sem a firmá-los. Em 2003, o Governo federal deu um passo atrás enorme nessa área de gestão dentro do Ministério da Ciência e Tecnologia. Em 2004, ele está vol- tando a tudo que tínhamos deixado em 2002. O novo ministro Eduardo Campos tem uma disposição de voltar ao que basicamente tinha sido empre- endido até 2002, e disseisso literalmente em várias ocasiões e o fez até de forma emblemática, na semana em que tomou posse, ao visitar o LNLS. Mas, durante 2003, a equipe gestora do Ministério tinha enormes dúvidas sobre o funcionamento das OS, achava que era uma forma de privatizar o Estado e criou enormes dificuldades para o funcionamento das OS (e essas dificulda- des são importantes de serem avaliadas). Os acontecimentos de 2003 são ilustrativos dos riscos a que está submetida uma OS, como exemplifica o caso do Centro de Gestão e Estu- dos Estratégicos (CGEE), que tinha sido criado na Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em 2001. O CGEE foi criado numa Assembléia Pública, realizada durante a Conferência, com a missão de fazer estudos prospectivos de ciência e tecnologia e definição de áreas estratégicas, básicas para investimento. Apesar de contar com duas instituições de fomento impor- tantes: o CNPq, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), e outras insti- tuições para orientar a aplicação de recursos, sabia-se que deveríamos traba- lhar a partir de uma grande networking com as próprias instituições de pes- quisas e universidades para definir estratégias, áreas críticas e oportunidades para o Brasil. Quando o sistema federal foi constituído no final da década de 1970, o CNPq e a Finep tinham um enorme corpo técnico extremamente cen- tralizado que definia as estratégias. O CNPq na década de 1980 tinha mais de cem doutores em seu corpo técnico. Em 1980, o Brasil formava mais ou me- nos seiscentos doutores por ano, hoje forma 7 mil. Se o CNPq de 1980 fosse trazido ao que é o sistema de ciência e tecnologia hoje, seria como ter quase mil doutores formulando a política de ciência e tecnologia. Em 1980, o CNPq, para o tamanho da comunidade científica, era uma megainstituição altamente qualificada do ponto de vista de seu corpo interno. O mesmo acontecia com a Finep, no Rio de Janeiro, que contava com os melhores consultores do Brasil, na área de política industrial. Essas estruturas do Estado brasileiro, com grandes capacidades de esta- belecer estratégias, não existem mais. E é difícil imaginar que elas possam ser montadas de uma hora para outra. Mas como elaborar essas estratégias? Para isso criou-se um Centro de Gestão para mobilizar a competência pública e privada existente nas universidades, nos institutos de pesquisas e no setor privado, com o objetivo de discutir estratégias nas diversas áreas. O Centro de Gestão tinha um contrato com o MCT para poder ser secretaria técnica dos diversos fundos setoriais que haviam sido criados. E esse traba- lho era basicamente um trabalho de workshops, discussões, painéis com es- pecialistas nas diversas áreas, para estabelecer consensos sobre as oportuni- dades e as prioridades para o Brasil. O CGEE fazia isso enquanto secretaria técnica de cada um dos fundos setoriais, mas não tinha poder de mando nos fundos, não possuía sequer um assento no comitê gestor que mobilizava os recursos. A idéia era basicamen- te delegar ao Centro a função técnica de instruir e trazer elementos para o processo decisório do comitê gestor. Mas o CGEE não tinha capacidade de decisão. Era um desafio novo: em vez de ter uma agência que resolve tudo, criamos uma instituição que tinha enorme capacidade de influência no pro- cesso decisório, mas apenas influenciava na natureza técnica e podia trazer sugestões a partir de painéis especialistas do que fazer como prioridade, mas sem que fosse o órgão executor das tarefas de fomento. O Centro podia ter 100% de suas propostas aprovadas se fosse convincente do ponto de vista técnico e mobilizasse a melhor competência do Brasil para orientar a decisão do comitê gestor. Mas jamais poderia fazê-lo burocraticamente, no sentido de que tivesse o mando sobre o dinheiro. Esse Centro, que tinha sido uma inovação institucional importante em 2001, quase foi fechado, porque o MCT se recusou a cumprir o contrato de gestão, sendo salvo curiosamente por uma defesa da Presidência da Repúbli- ca. A Presidência, através da Casa Civil, procurou preservar o funcionamento do Centro e mantê-lo com papel importante, na mobilização da competência técnica na formulação da nova política industrial. Atualmente, o novo ministro da ciência e tecnologia, Eduardo Cam- pos42, reafirmou seu compromisso com o modelo de OS. Mas a experiência de 2003 mostra que existem riscos. O que chamamos de elevados riscos re- gulatórios e políticos no modelo de OS, pela alta dependência que tem em relação ao gestor de plantão. O ano de 2003 é um exemplo. 42 Em julho de 2005, Sergio Rezende assumiu a pasta do MCT (nota do editor). Num certo sentido, portanto, organizações sociais têm um futuro pro- missor e seriam uma forma extremamente importante de ação do Estado em áreas em que é possível delegar funções a um ente contratado por ele e regi- do por regime jurídico privado, de modo que essas instituições pudessem executar seus objetos finalísticos de melhor maneira que instituições da ad- ministração direta e indireta o fazem. Mas será preciso tempo e garantias mais sólidas. A maior vulnerabilidade das OS deriva da natureza de seu con- trato de gestão com o setor público. Porque, diferentemente de outras organi- zações, a folha salarial dessas instituições é custeio do ponto de vista orça- mentário. O custeio é muito mais vulnerável do que o pagamento de pessoal, que é um pagamento automático do ponto de vista da gestão pública no Brasil. Dificilmente você tem dificuldade de cumprir um compromisso da União com pagamento de folha salarial. Mas o custeio é muito mais vulnerável a cortes e a contingenciamentos, sobretudo em conjunturas de restrições fiscais. O modelo de OS abre inúmeras possibilidades de atuação para o Esta- do, privilegiando resultados. As OS criadas no MCT são excelentes, mas é preciso criar garantias de que os contratos de gestão sejam honrados quando o Estado contrata uma organização social. A NOVA SOCIEDADE CIVIL E SEU PAPEL ESTRATÉGICO PARA O DESENVOLVIMENTO Augusto de Franco APRESENTAÇÃO Parte deste texto foi tirada de um position paper preparado para o Se- minário Internacional ―Perspectivas para o Terceiro Setor no Século XXI‖, promovido pelo Senac-SP em parceria com o Consulado Geral dos Estados Unidos, em Campos do Jordão (SP), nos dias 27, 28 e 29 de setembro de 2002, com a presença do pesquisador Dr. Lester Salamon do Center for Civil Society Studies da Johns Hopkins University. Outra parte foi colhida nos prefácios que escrevi para as duas edições da cartilha sobre a Lei n. 9.790/99 (Lei das Oscip) publicadas pelo Conselho da Comunidade Solidária (Ferrare- zi & Rezende, 2000 e 2002). E outra parte, finalmente, contém o resultado – parcial – de uma investigação que estou desenvolvendo desde 1994 sobre o papel da nova sociedade civil na mudança social em sociedades tomadas co- mo sistemas complexos. Devo dizer que minha investigação não terminou. Falta muita coisa. Sobretudo, falta fazer a articulação entre a emergência do terceiro setor e a radicalização da democracia – ponto que considero fundamental em qualquer abordagem do tema. A questão do papel estratégico da nova sociedade civil (também cha- mada de terceiro setor) não é trivial. Papel estratégico para quê? Se respon- dermos que é para o desenvolvimento, devemos dizer o que entendemos por desenvolvimento. Mas conceitos como os de ‗sociedade civil‘ e ‗desenvol- vimento‘ têm sido empregados nos últimos anos com sentidos tão diferentes que acabaram por abranger intenções e extensões distintas, àsvezes contradi- tórias entre si. De sorte que não é possível defini-los inequivocamente na ausência de um sistema conceitual de referência, isto é, de uma teoria, na qual se possa divisar e distinguir com clareza backgrounds e pressupostos, supostos ou suposições admitidas como princípios, conseqüências e corolá- rios e convenções designativas. Tal nível de sistematização e de coerência interna, próximo de uma axi- omática, não é, em geral, alcançável pelas ciências sociais. Sendo assim, o máximo que podemos fazer – não se tratando de apresentar, comentar e, tal- vez, interpretar resultados de pesquisa empírica – é tentar encadear declara- ções e algumas justificativas para que o discurso sobre o tema faça sentido em seu conjunto. Nas páginas seguintes vou elencar 14 proposições, sucedi- das por breves escólios, colocando-as em uma ordem compreensível. As 14 proposições são as seguintes: 6. A ‗nova sociedade civil‘ é uma esfera da realidade social relativamente autônoma, subsistente fora da ordem do Estado e da ―lógica‖ do mercado e, assim, separável não somente do Estado, mas também do mercado. 7. Terceiro setor (ou ‗nova sociedade civil‘) é a denominação do conjunto dos entes e processos da realidade social que não pertencem ao primeiro setor (o Estado) nem ao segundo setor (o mercado). 8. O caráter não-lucrativo não é um critério inequívoco para a definição do terceiro setor. 9. O terceiro setor não é uma espécie de simulacro do Estado (―ampliado‖) ou do mercado (―social‖). 10. Existe uma parte do terceiro setor que é pública (e, felizmente, nem todo o terceiro setor é público). 11. A emersão do terceiro setor não é conseqüência de um suposto enfra- quecimento do papel do Estado. 12. O papel do terceiro setor não é somente o de complementar ou suple- mentar o papel do Estado. 13. Não se deve perseguir nenhum tipo de ―equilíbrio de forças‖ entre Esta- do, mercado e nova sociedade civil. 14. O fato de o terceiro setor ser social não implica que ele deva atuar so- mente na chamada ―área social‖. 15. A sustentabilidade do terceiro setor depende da sua capacidade de esta- belecer parcerias intersetoriais. 16. A conquista da sustentabilidade do terceiro setor requer uma reforma social do marco legal que regula suas relações com o Estado. 17. O reconhecimento do papel estratégico do terceiro setor exige uma nova conceituação e um novo esquema classificatório que revelem, de maneira positiva, a ―lógica‖ de funcionamento e a racionalidade comum do con- junto dos entes e processos que o compõem, bem como suas diferenças intrínsecas. 18. O terceiro setor tem papel estratégico para o desenvolvimento. 19. O reconhecimento do papel estratégico do terceiro setor deve levar à cons- trução de um novo consenso, nem estadocêntrico nem mercadocêntrico, porém centrado na sociedade, ou seja, baseado numa visão sociocêntrica e numa outra concepção de relacionamento entre Estado e sociedade. Não se espere desse esforço nada além do que pode ser o resultado de um artifício para facilitar a compreensão do que será dito. Trata-se de um método de exposição, não de investigação. Assim, muito do que será dito não poderá ser justificado – quer por insuficiências de análise, quer por de sistematização ou, mesmo, de espaço disponível. PRÓLOGO Existe um terceiro setor, como esfera da realidade social relativamente autônoma, a não ser enquanto se concretize, em algum grau, o ideal da liber- dade como autonomia. Em outras palavras, desde que exista democracia. Se as pessoas podem se organizar voluntariamente sem fins de lucro ou, melhor, sem se comportar de modo mercantil para, independentemente do Estado, fazer o que bem entenderem, então existe uma esfera da realidade social que não pode ser abarcada pelas esferas do Estado (o primeiro setor) e do mercado (o segundo setor). Isso é o terceiro setor, também chamado de sociedade civil ou de ‗nova sociedade civil‘. As formas de organização social que configuram um terceiro setor não são constituídas contra o Estado ou contra o mercado. São, simplesmente, o resultado de uma tendência que anima os humanos em direção à cooperação. Só isso. No caso do Brasil, o mau costume de encarar a interação da sociedade civil com o Estado a partir da ótica da correlação de forças é uma herança da oposição ao regime militar, quando muitas tendências e militantes políticos de esquerda – impedidos legalmente de se organizar – construíram alternati- vas orgânicas na forma de organizações não-governamentais (Ong). Essas entidades – em geral de advocacy, isto é, voltadas à sensibiliza- ção de gestores públicos, líderes de opinião e da sociedade civil sobre a im- portância de temas de interesse social, mas também dedicadas à educação política popular e aos movimentos de oposição sindical, muitas vezes ligadas àquela parte da Igreja Católica, dita popular, que fez a ―opção preferencial pelos pobres‖ inspirada pela Teologia da Libertação – cumpriram um impor- tante papel na estruturação de um novo terceiro setor no Brasil. Isso ocorreu pelo fato de elas se diferenciarem das antigas entidades, em geral despolitizadas (ou despolitizantes) de saúde, educação e assistência social, muitas das quais atuando há décadas como correias de transmissão de políticas clientelistas. No entanto, tais organizações não-governamentais carregaram também um certo preconceito ideológico de desconfiança em relação ao Estado e de confronto permanente com os governos. Algumas se transformaram em ver- dadeiras trincheiras da luta política movida pela sociedade contra o Estado (identificado como espécie de inimigo da sociedade civil e como centro de cooptação das lideranças autênticas do movimento social). Com a legalização das centrais sindicais e dos partidos de esquerda no início da década de 1980, parte dos militantes das Ong de esquerda (ou de oposição popular) se transformaram em militantes sindicais ou partidários. Outra parte deles permaneceu atuando nas organizações da sociedade civil que criaram, mas tiveram, digamos, alguma dificuldade maior de aggiorna- mento, mantendo suas antigas visões ideológicas de confronto, que continua- ram a inspirar comportamentos predominantemente reativos em relação ao Estado e sua políticas. A partir da década de 1990, no entanto, inicia-se um processo mais ace- lerado de transição do comportamento dessas Ong de reativo para proativo. Seja devido às necessidades de sobrevivência dos seus aparelhos – com o esgotamento ou o redirecionamento das fontes de financiamento de parte da colaboração internacional européia, movida basicamente por solidariedade política –, seja em virtude do processo de democratização desencadeado pela mobilização em torno do voto popular para a Presidência da República, a Campanha das Diretas (1984), e pelo movimento pelo impeachment do pre- sidente Fernando Collor de Mello (1992), essas organizações pioneiras foram obrigadas a modificar seus velhos padrões de relacionamento com a esfera pública, originalmente desenhados para (sobre)viver num regime de restrição das liberdades democráticas. Muitas delas passaram, assim, a celebrar con- vênios com governos e se engajaram em atividades de elaboração, execução, monitoramento ou avaliação de políticas públicas governamentais. Mais recentemente – e isso tem grande relevância do ponto de vista da conquista da maioridade política pelo terceiro setor –, algumas começaram a assumir a função de agentes de políticas públicas não-estatais, passando a se definir como organizações de desenvolvimento. Cumpriram papel importante nesse sentido as organizações ambientalistas,que começaram a se articular nacionalmente a partir da Rio-92 (II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992), e as organizações dedicadas ao desenvolvimento local, à economia solidária e ao microcrédito. Tudo isso coincidiu com o florescimento do chamado ‗investimento so- cial privado‘ e com o exercício da responsabilidade social corporativa, em geral efetivados por meio de fundações e institutos empresariais, os quais introduziram novos olhares e novas ―lógicas‖ de funcionamento na esfera do terceiro setor. Tais mudanças no perfil do terceiro setor no Brasil foram aceleradas a partir de meados dos anos 1990, em virtude principalmente da consolidação do processo democrático no país. No entanto, ainda estão presentes as raízes do pensamento conservador baseado no paradigma do confronto, ou melhor, na idéia de que o papel da sociedade civil é mover uma ação instrumental contra o Estado (não de viés anarquista, contra a forma como o Estado orga- niza – piramidal e heteronomamente – o seu poder, mas com o viés burocrá- tico do ―socialismo real‖, contra determinados ocupantes do Estado com- prometidos com o grande capital e visando substituí-los por outros, compro- metidos com as classes populares). Isso explica, pelo menos em parte, a expressão ―sociedade civil organi- zada‖, tão difundida entre nós nos anos 1980, mas que ainda comparece vez por outra nos debates de salão e nas ações de certos movimentos sociais. Nos anos 1980 e parte dos anos 1990, ―sociedade civil organizada‖ era a designa- ção genérica para um conjunto de entidades – Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Associa- ção Brasileira de Imprensa (ABI), organizações não-governamentais, Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras – que se manifestavam como opo- sição ao governo militar e, depois, aos governos considerados conservadores. Não se prestava muita atenção à imensa diversidade do terceiro setor. O qualificativo ―organizada‖ excluía – das considerações, das estratégias de luta e das próprias reuniões e manifestações – a maior parte da sociedade civil. Corria-se pouco risco de ter de ouvir em um evento público qualquer, por exemplo, o representante de um terreiro de candomblé ou o de uma enti- dade dedicada ao desenvolvimento de micro e pequenas empresas em uma localidade, pois nada disso fazia parte da ―sociedade civil organizada‖. O critério para definir o que era e o que não era ―organizado‖ tinha base ideo- lógica e político-instrumental: para pertencer ao seleto clube, precisava-se ser contra o governo. Ocorre que o processo de democratização permitiu a eleição de muitos governos de esquerda, algumas vezes até mesmo representados por antigos dirigentes de organizações não-governamentais de esquerda. Esse fato tam- bém contribuiu para modificar os padrões de relacionamento de algumas en- tidades da sociedade civil organizada com o Estado. Se os governos são ―po- pulares‖, então é permitido a estes se associar e com eles colaborar; quando não, não. Por outro lado, e paradoxalmente, os governos que se declararam de esquerda e populares tiveram grande dificuldade de se associar às organiza- ções da sociedade civil. Seus novos ocupantes passaram a raciocinar mais ou menos assim: ―Se nós somos de esquerda e populares, então já sabemos a que interesses devemos servir e, portanto, vamos fazer tudo nós mesmos, a partir do Estado‖. É como se o objetivo da atuação das organizações da soci- edade civil organizada já tivesse sido cumprido quando seus representantes entraram no Estado (ou se sentiram representados pelos novos ocupantes ―populares‖ que ocuparam postos nos governos). Evidentemente, tal raciocínio justifica uma prática que enfraquece a so- ciedade civil e a espolia continuamente ao privá-la das suas próprias lideran- ças emergentes. Em alguma medida, isso também instrumentaliza as organi- zações da sociedade civil, que passam a ser utilizadas como trampolim para o Estado. Com efeito, não é raro ocorrer que uma liderança sindical ou associa- tiva importante se candidate a cargos legislativos ou executivos. Para com- provar isso, no Brasil, basta dar uma olhada no que ocorreu com as princi- pais lideranças do movimento da sociedade civil organizada que participaram das campanhas pelas Diretas e pelo impeachment de Collor. E tudo isso é considerado normal e desejável: para a sociedade civil or- ganizada, o objetivo estratégico passa a ser a ocupação do poder (de Estado), e não a consolidação de uma esfera pública não-estatal. Diz-se que isso faz parte do movimento de ascensão à cidadania política dos que nunca tiveram voz e vez num sistema secularmente dominado por elites econômicas exclu- dentes. Mas diga-se o que se quiser dizer, é inegável que a razão que preva- lece aqui é uma razão de Estado, e não uma razão de sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer que pelo menos uma parte das organiza- ções da nova sociedade civil – além, naturalmente, dos partidos – é não tanto neogovernamental (como, presumo, brincou certa feita Manuel Castells) quanto pró-estatal. Porém, outra parte – a maior parte –, não. A partir do início da década de 1990, alguns participantes de organiza- ções não-governamentais e de outras entidades da nova sociedade civil co- meçaram a descobrir que a força do terceiro setor estava exatamente na sua multifariedade. Alguns desses dirigentes do terceiro setor resolveram inverter o velho lema (tão caro aos candidatos a condutores de rebanhos) e começa- ram, meio por brincadeira, a proclamar que ―o povo desunido jamais será vencido‖. Queriam dizer com isso que a constituição do terceiro setor como esfera social autônoma, não voltada para o Estado e nem pensada a partir dele, dependia das múltiplas iniciativas moleculares e descentralizadas dos cidadãos. Estavam captando uma nova dinâmica social, que se manifestava mais abertamente, por exemplo, na emergência do voluntariado contemporâneo. Pessoas se associando para fazer coisas simplesmente porque queriam fazer, porque se sentiam bem fazendo, porque achavam que era necessário e ―le- gal‖ fazer. Pessoas assumindo responsabilidades sem terem sido obrigadas a isso por ninguém, alavancando recursos novos, desenvolvendo competências inéditas e propondo ações inovadoras – e fazendo tudo isso por razões de sociedade mesmo, com um olhar diferente, não de quem está visando con- quistar um cargo no Estado, não de quem acha que o mundo só vai prestar se as ―forças do mal‖ forem destruídas e se seus representantes nos governos forem substituídos pelos ―do bem‖. Entre 1993 e 1996, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pe- la Vida reforçou essa nova tendência, ainda incipiente na sociedade brasilei- ra, dando-lhe expressão nacional. Tratava-se de uma ação pró alguma coisa, uma ação pela vida. Os militantes tradicionais de algumas Ong – acostuma- dos não apenas a reconhecer, mas a cultuar o conflito – não se engajaram decisivamente nesse tipo de ação. Para eles, era como se faltasse uma peça no esquema, considerado ingênuo: como poderia funcionar uma coisa assim, sem identificar um responsável pela situação e sem desencadear um movi- mento voltado para a destruição desse culpado? Mas, para surpresa desses e de muitos outros, surgiram milhares de ações proativas no interior da Ação da Cidadania. Descobriu-se a existência de inumeráveis grupos de cidadãos brasileiros sobre os quais a chamada ―so- ciedade civil organizada‖ não tinha nenhuma notícia. Gente fazendo, gratui- tamente, coisas incríveis, desde projetos de desenvolvimentolocal até novos modelos de ―empresa social‖, passando pela elaboração e execução de mui- tos programas de parceria com empresas privadas, públicas e órgãos gover- namentais – e isso envolvendo toda a extensão do espectro político, sem qualquer tipo de alfândega ideológica que dissesse quem pode e quem não pode entrar no mundo da parceria. Parte da sociedade civil organizada tomou então consciência de que existia uma outra sociedade civil (―desorganizada‖) muito maior do que ela e começou a desconfiar que, em sistemas complexos como as sociedades hu- manas, como escreveu Frank Herbert (1920-1986) em O Messias de Duna (1969) ―não reunir é a derradeira ordenação‖. 1. SOCIEDADE CIVIL E ‘NOVA SOCIEDADE CIVIL’ A ‗nova sociedade civil‘ é uma esfera da realidade social relativamente autônoma, subsistente fora da ordem do Estado e da ―lógica‖ do mercado e, assim, separável não somente do Estado, mas também do mercado. Não se sabe exatamente quando surgiu o conceito de ‗sociedade civil‘. Embora Poulantzas (1936-1979), no início da década de 1970, tentasse nos dizer – com certa razão – que o conceito de uma sociedade civil separada do Estado é uma invenção da teoria política do século XVIII, a idéia de uma societas civilis já pode ser encontrada no pensamento clássico e medieval; por exemplo, em Santo Tomás de Aquino (c. 1225-1274) (cf. Keane, 1988). O fato é que, para ficarmos apenas nos últimos quatro séculos, ocorre- ram muitas idéias de sociedade civil: uma idéia hobbesiana; uma idéia locke- ana – de John Locke (1632-1704), mas também de Immanuel Kant (1724- 1804) e dos fisiocratas –; uma idéia paineana – que aparece na famosa répli- ca de Tom Paine (1737-1809) às Reflexões sobre a Revolução Francesa de Edmund Burke (1729-1797) –; uma idéia hegeliana; uma idéia tocquevilliana – também presente nos escritos de John Stuart Mill (1806-1873); uma idéia marxiana; e, finalmente, a idéia articulada, já no ocaso do século XX, por Alan Wolfe (Wolfe, 1991) e outros, com a qual estamos trabalhando agora. Em Thomas Hobbes (1588-1679), a sociedade civil aparece como uma decorrência da ordenação introduzida pelo Estado e das leis pelas quais se materializam uma contratualidade estabelecida contra a desordem do estado de natureza. Em Locke, a sociedade civil é tomada como sinônimo de socie- dade política, ou seja, de Estado, na medida em que o pacto fundante (pelo qual se garante o assentimento às leis) que distingue a sociedade (civil) da sociedade em estado de natureza, é de natureza política. Em Paine, existe uma sociedade civil que só delega poder ao Estado (um mal necessário) na medida em que não pode se auto-regular. Para ele, portanto, o ‗social‘ existe independentemente e se diferencia do Estado, é fundante do Estado e, quanto mais organizado estiver, menos precisará de Estado. Em Friedrich Hegel (1770-1831), o Estado coesiona, globaliza e transcende a sociedade civil e para manter sua própria liberdade (política) deve subordiná-la à sua razão. Em Alexis de Tocqueville (1805-1859), a sociedade civil é tomada co- mo uma esfera auto-organizada independente do Estado, que deve se prote- ger do ab-uso dos poderes do Estado para preservar a liberdade dos cidadãos. Em Karl Marx (1818-1883), a sociedade civil é o reino das necessidades e dos interesses, do trabalho assalariado e do direito privado. Como um fenô- meno histórico contingente, as sociedades civis modernas são, para ele, a forma econômica pela qual a burguesia cria um mundo à sua imagem; por- tanto, fornecem a base para a construção do Estado (burguês), cujo poder nada mais é do que a força organizada e concentrada da sociedade burguesa (caracterizada pela sua divisão de classes, forças produtivas e relações de produção). Um pouco na linha das reflexões de Paine, Stuart Mill e Tocqueville, desenvolveram-se entretanto, sobretudo nos últimos vinte anos, novos con- ceitos de sociedade civil. Alguns desses foram tomados como base, por exemplo, para as tentativas de explicar fenômenos emergentes na sociedade contemporânea, como a expansão do voluntariado, o florescimento e a proli- feração das Ong, o crescimento do investimento social privado ou do exercí- cio da responsabilidade social corporativa – enfim, o chamado terceiro setor. Além disso, alguns desses conceitos foram apropriados pelas novas teorias do capital social que surgiram na década de 1990. A nova idéia básica de sociedade civil com a qual trabalhamos é a se- guinte: existe uma sociedade civil, como esfera da realidade social relativa- mente autônoma, como fenômeno objetivo – e não como um epifenômeno –, subsistente fora da ordem do Estado e da ―lógica‖ do mercado e, assim, sepa- rável não somente do Estado, mas também do mercado. Para distinguir esse novo conceito de sociedade civil do que acabou prevalecendo no século XX – aquele derivante do hegelianismo e do mar- xismo, que fazia referência ao ―mundo das necessidades‖, ao reino do priva- do e ao terreno no qual se celebravam os contratos e, portanto, à economia dos produtores e consumidores, incluindo assim o mercado e excluindo de certo modo o espaço público –, torna-se necessário denominá-lo de modo distinto. Assim, uma sociedade civil separável do Estado e do mercado será chamada aqui de ‗nova sociedade civil‘ 2. TERCEIRO SETOR COMO DENOMINAÇÃO DA ‘NOVA SOCIEDADE CIVIL’ Terceiro setor (ou ‗nova sociedade civil‘) é a denominação do conjunto dos entes e processos da realidade social que não pertencem ao primeiro se- tor (o Estado) nem ao segundo setor (o mercado). Essa é a definição de terceiro setor que tem menos aderências históricas e conceituais, a que diz menos, a mais vazia. Mas, conquanto tenha a desvan- tagem de ser uma definição por exclusão (como aliás, em alguma medida, todas as demais até hoje disponíveis), ela introduz uma importante hipótese para a análise da realidade social: o chamado ―esquema trinário‖. Ou seja, ela parte da suposição de que a realidade social pode ser compreendida por três esferas relativamente autônomas, com ―lógicas‖ de funcionamento e ra- cionalidades distinguíveis: o primeiro setor (Estado), o segundo setor (mer- cado) e o terceiro setor (a nova sociedade civil). Evidentemente, essa divisão tripartite é arbitrária. Mas afirmá-la estabe- lece um ponto de partida analítico importante: baseados em tal suposto, po- demos dizer que todos os entes e processos da realidade social devem caber em uma dessas três esferas (e nas suas interseções, o que introduz um novo problema, como veremos adiante). Significa dizer que, para efeitos de análi- se, não é necessário admitir a existência de um quarto, nem de um quinto, nem de qualquer outro setor. Tal definição intensiva (ou compreensiva, no sentido de decorrente de intenção) do terceiro setor, pressupõe que, retirado o conjunto de entes e processos caracterizados por uma racionalidade estatal (ou o primeiro setor) e por uma racionalidade mercantil (ou o segundo setor), resta alguma coisa. Essa coisa que resta é a nova sociedade civil (ou o terceiro setor). Extensivamente, pode-se tentar identificar os elementos desse conjunto e, até, propor taxionomias. Quando isso é feito, em geral se esquece de inclu- ir os processos, focalizando-se apenas as organizações e, também, não se consegue esgotar o elenco. Ademais, as taxionomias têm pouco poder analí- tico e são orientadas pelos objetivos da investigação – que não raro são sub- jetivos, ou seja, dependem dos interesses ou de pontos de vista ―extra- científicos‖, se assim se pode dizer, do pesquisador. De todo modo, para qualquer definição do conceito de terceiro setor,mesmo aquelas não extensivas, resta o problema, já mencionado, de difícil solução: o que fazer com os entes e os processos que freqüentam as interse- ções das ―esferas‖? Onde situar, por exemplo, os conselhos de políticas pú- blicas e outros conselhos formados por parcerias bipartites ou tripartites entre Estado e sociedade? E os diferentes tipos de cooperativas? E certos sistemas sócio-produtivos da chamada economia solidária? É importante ressaltar aqui que os critérios devem estar relacionados às racionalidades ou ―lógicas‖ de funcionamento das três ―esferas‖ (ou setores), não ao caráter privado ou público e lucrativo ou não-lucrativo dos elementos de cada conjunto. Em primeiro lugar, porque o caráter público não é próprio somente dos entes e processos estatais e existem organizações do terceiro setor de caráter público; em segundo lugar, porque o caráter não-lucrativo também é próprio do Estado. Mas existe um problema mais relevante, como veremos a seguir. 3. O CARÁTER NÃO-LUCRATIVO DO TERCEIRO SETOR O caráter não-lucrativo não é um critério inequívoco para a definição do terceiro setor. A questão do lucro – mesmo definido não como a obtenção de um resul- tado econômico positivo, porém como a apropriação privada desse resultado – é muito complexa. Por certo, não se pode esperar que as organizações do ter- ceiro setor devam ter, sempre, resultados econômicos não-positivos. Mas como determinar quando uma apropriação será não-privada de sorte a caracterizar o não-lucro? Por exemplo, se uma congregação religiosa voltada para atividades educacionais (mas o mesmo valeria, por exemplo, para o Greenpeace) – em princípio um ente do terceiro setor – realiza o superávit decorrente da sua ativi- dade econômica como aquisição de patrimônio, mesmo declaradamente volta- do para a consecução da sua finalidade (um prédio, uma frota de ônibus, um navio, uma propriedade rural), como dizer se tal apropriação congelou ou não uma forma de lucro? Pode-se dizer que tal apropriação é não-privada, ou seja, que é pública? Por que, se o público decorre de um pacto e, supostamente, da existência de algum tipo de controle externo capaz de verificar o cumprimento ou não desse pacto? Ora, quando não se pode determinar que tipo de apropriação de um su- perávit é privada ou pública, também não se pode saber a partir de que crité- rios (a não ser, talvez, o da exclusiva apropriação individual) o superávit se transforma ou não se transforma em lucro. No terceiro setor, entretanto, as formas de apropriação são, em geral, coletivas – e por isso diz-se que estão voltadas para a finalidade que congregou tal coletivo, não havendo distribui- ção individual (entre os sócios ou associados, conselheiros, diretores, empre- gados ou doadores de uma organização) de eventuais excedentes operacio- nais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, os quais devem ser aplicados integralmente na consecução do objeto social da organização. Porém, a decisão de aplicar dessa ou daquela forma tal resulta- do é tomada, em boa parte dos casos, pelos próprios associados que constitu- em a organização. Não se dá aqui nada semelhante ao que ocorre com a receita fiscal, que é considerada pública, conquanto suas fontes sejam privadas. Nesse caso, o dinheiro do imposto pago, originalmente privado, transformou-se em público em virtude de um pacto (e essa é uma das dimensões do pacto fundante do Estado), que é regulado por lei, tornado compulsório, existindo outras leis que instituem órgãos responsáveis pelo controle e prevêem sanções para quem não cumpre a obrigação. Outrossim, não convém ao terceiro setor, como realidade social autô- noma, que sua racionalidade seja decalcada das racionalidades estatal ou mercantil. Nesse sentido, o caráter ―não-lucrativo‖ e do mesmo modo o cará- ter ―não-governamental‖, ao se basearem em definições por exclusão – ou seja, ao explicitarem o que o terceiro setor não é: não-lucrativo = não- mercado e não-governamental = não-Estado –, mencionam a ―lógica‖ e as racionalidades mercantil e estatal, mas não revelam o que é, positivamente, o terceiro setor, ou seja, qual a ―lógica‖ de funcionamento e a racionalidade que o caracterizam. Até hoje, adotam-se freqüentemente definições do terceiro setor que re- caem em listagens de características do tipo: estar fora da estrutura formal do Estado; não ter fins lucrativos; ser constituído por grupos de cidadãos como pessoas de direito privado; ser de adesão não-compulsória; produzir bens ou serviços de uso (ou interesse) coletivo. E freqüentemente se interpola na terceira característica mencionada a expressão ―constituídos na sociedade civil‖, o que introduz uma circularida- de na definição, pois persiste o problema de definir o que seria a ‗sociedade civil‘ (não-mercantil). Mas o principal problema de listagens como essas é que seus dois pri- meiros elementos (talvez mesmo o terceiro e quem sabe até o quarto) conti- nuam sendo negativos. Em outras palavras, está-se dizendo que o terceiro setor é um ente coletivo (ou, mais propriamente, um conjunto de organiza- ções) que não é Estado, não é mercado, não é de direito público (e, portanto, novamente, que não é Estado num sentido mais ampliado), não é de adesão compulsória (ou seja, não é constituído ou coesionado mediante coação), produz bens ou serviços de uso (ou interesse) coletivo – o que, de resto, é uma afirmativa que não diz grande coisa, de vez que quaisquer organizações produzem, a rigor, coisas de uso ou interesse coletivo, inclusive as empresas (sem o que não teriam mercado e não poderiam existir como tal). Definições como essas introduzem ainda um problema adicional ao res- saltar o caráter não-compulsório da adesão ao terceiro setor, excluindo com isso não somente a coação legal, mas também a ilegal: onde ficariam, por exemplo, as organizações criminosas que arregimentam e mantêm seus inte- grantes pela violência? Num ―quarto setor‖? Mas a existência de um outro setor, para além do terceiro, desconstitui ou enfraquece sobremaneira o es- quema analítico trinário. Ao que tudo indica, uma caracterização positiva do terceiro setor ainda é uma tarefa a ser feita. 4. NEM INSTÂNCIA ‘NEOGOVERNAMENTAL’ NEM ‘MERCADO SOCIAL’ O terceiro setor não é uma espécie de simulacro do Estado (―amplia- do‖) ou do mercado (―social‖). Enquanto não se consegue elaborar uma definição positiva do terceiro setor que explicite de forma autônoma sua ―lógica‖ de funcionamento e sua racionalidade próprias, é possível aprofundar analiticamente suas distinções das outras ―lógicas‖ e racionalidades que presidem as demais esferas da rea- lidade social. Há quem imagine que o terceiro setor seja uma espécie de instância neogovernamental (inclusive pensadores importantes como Manuel Cas- tells andaram dizendo isso, ainda que eu desconfie que, nesse caso, se trate de algum tipo de ironia de sua parte), em face, por um lado, da avidez com que algumas organizações da sociedade civil se colam ao Estado, sobretu- do na esperança de obter os recursos necessários ao seu funcionamento e, por outro lado, de um certo açodamento com que alguns – na verdade, ain- da muito poucos – órgãos governamentais querem transferir suas funções para organizações não-governamentais, ou que faça parte de um novo tipo de ―Estado ampliado‖ que estaria emergindo na atualidade. Baseadas sobretudo na confusão segundo a qual o terceiro setor teria finalidades públicas, algumas pessoas acabam confundindo sua racionalidade com a racionalidadeestatal. Se ambas têm objetivos públicos, delas poderiam fazer parte, pelo menos desse ponto de vista, um mesmo conjunto de entes. É uma hipótese fraca, todavia. Por outro lado, também há quem imagine que o terceiro setor configure uma espécie de ―mercado da sociedade civil‖. Existem inclusive definições do terceiro setor centradas nesse aspecto de économie sociale. Mas o aspecto mais relevante a ser considerado aqui é a confusão com as ―lógicas‖ e racio- nalidades mercantis. Pois, para alguns, o terceiro setor seria (ou deveria ser), em tudo, igualzinho ao mercado – com uma única diferença: a destinação do superávit (evitando que se pudesse caracterizá-lo como lucro). Mas o problema do lucro não se reduz, nem somente nem principal- mente, ao problema da sua destinação (ou da sua forma de apropriação); al- cança também o problema das formas da sua extração e acumulação. Se eu não chamo o superávit de lucro, mas persigo maximizar a obtenção do supe- rávit segundo uma ―lógica‖ competitiva, o processo de extração (para não falar novamente da acumulação) desse excedente (correspondente, talvez, sempre a um sobrevalor gerado socialmente – embora hoje eu já não esteja tão certo disso) é um processo mercantil. Esse é o ponto! E esse ponto é crucial no posicionamento dos atores da sociedade civil perante o Estado e o mercado. Por exemplo, atores que têm uma visão do terceiro setor como uma espécie de mercado da sociedade civil tenderão a exigir do Estado as mesmas formas de incentivo por este destinado às empre- sas. Baseados nessa visão mercadocêntrica, tais atores compreenderão a re- forma do marco legal (que regula as relações do Estado com o terceiro setor) como uma reforma quase exclusivamente fiscal. Em contrapartida, atores estatais possuídos por essa mesma visão tenderão a encarar as organizações do terceiro setor como empresas disfarçadas para fugir dos impostos. Ou, para citar outro exemplo, atores governamentais e não- governamentais tenderão, com base nessa visão, a não perceber o absurdo de submeter certas organizações do terceiro setor (como associações de apoio a portadores de deficiências, por exemplo) a processos concorrenciais seme- lhantes às licitações promovidas pelo Estado para contratação de empresas fornecedoras de bens ou prestadoras de serviços. Outrossim, terão mais difi- culdades para perceber a ―lógica‖ cooperativa que preside o funcionamento de outras tantas entidades da sociedade civil, sobretudo as de caráter público. 5. O PÚBLICO NÃO-ESTATAL Existe uma parte do terceiro setor que é pública (e, felizmente, nem to- do o terceiro setor é público). Com isso, quer-se dizer que existe um subconjunto do conjunto de en- tes e processos chamado terceiro setor que tem caráter público, entendendo- se por caráter o resultado de uma conjunção entre finalidade e regime de funcionamento. E que existe um subconjunto do conjunto de entes e proces- sos chamado terceiro setor que não tem caráter público, porque seus elemen- tos não têm fins públicos ou não têm regimes de funcionamento públicos nenhum dos dois. Se todo o terceiro setor tivesse fins públicos, não poderiam existir entes e processos não-estatais e não-mercantis com fins coletivos privados, e a vida social seria terrivelmente empobrecida. Nesse caso, onde ficariam, por exemplo, as associações de observadores de pássaros ou de cultivadores de orquídeas ou, ainda, de filatelistas? Onde ficariam todas as associações sem fins lucrativos de colecionadores? E os grêmios artísticos, literários, os gru- pos de teatro? E os clubes de esportes amadores, do futebol de várzea ao bridge, passando pelo xadrez? Tomando-se apenas o critério da finalidade, é fácil reconhecer que a maioria das organizações do terceiro setor não é pública. Tais entidades pro- duzem bens ou serviços, tangíveis ou intangíveis, de uso ou interesse coleti- vo – sem o que não teriam sido constituídas. No entanto, coisas de uso ou interesse coletivo não são necessariamente coisas de uso ou interesse (atual ou potencial) comum da sociedade. Isso é o que garante, felizmente, a priva- cidade coletiva de grupos de cidadãos que querem voluntariamente se asso- ciar para fazer tal ou qual coisa, que só a eles interessa ou que pode até inte- ressar a outros mais; porém, sem a pretensão ou a obrigação de atender a um interesse comum da sociedade e, portanto, que não estão voltados para o bem comum. Isso garante, também, a possibilidade da defesa de interesses coleti- vos privados que não são interesses comuns da sociedade. Tal é caso, por exemplo, das corporações. É preciso perceber aqui que o interesse comum que caracteriza o públi- co não significa necessariamente o somatório dos interesses atuais dos entes individuais ou coletivos que compõem a sociedade. Por exemplo, um grupo de educação para prevenção da síndrome de imunodeficiência adquirida (Aids) atende a um interesse potencialmente comum, e não apenas aos dos portadores atuais do vírus HIV, na medida em que, em certas circunstâncias, todos os humanos podem ser contaminados, vindo a contrair a doença. Já um grupo que luta pela conservação ambiental atende a interesses comuns atuais e potenciais dos habitantes do planeta. Mas um sindicato, embora possa de- fender os interesses atuais e potenciais de uma extensíssima parcela da popu- lação – por exemplo, de 98% dos trabalhadores de uma localidade –, não tem finalidades comuns ou seja, públicas, porém coletivas e privadas. Existem organizações do terceiro setor que, embora declarem fins públi- cos, não os têm de fato, uma vez que a intenção do sujeito coletivo nem sempre coincide com a conseqüência objetiva da sua atuação. Esse é o caso das corpo- rações, constituídas para a defesa de interesses econômicos ou setoriais, cuja atuação privatiza o espaço público ao submeter a estrutura e a dinâmica desse espaço a interesses coletivos, porém particulares de uma categoria profissional ou mesmo do que se queira entender por uma classe social. Afirmar o contrá- rio, nesse último caso, seria recair na visão, mítica, segundo a qual certos parti- cularismos de classe, uma vez realizados, se universalizariam. Mas esse não é o caso apenas dos sindicatos de trabalhadores e das as- sociações patronais. Com mais propriedade – se considerarmos, para além dos interesses em estado bruto, credos, práticas e visões devocionais e con- fessionais –, é o caso também das organizações religiosas. E, se considerar- mos as opiniões (que refratam, nem sempre de modo direto, interesses), é o caso igualmente das organizações partidárias. Parece evidente que não se pode avançar nessa discussão sem esclare- cer o que se entende por público. Tomar o conceito de ‗público‘ como relati- vo aos interesses comuns de uma sociedade não resolve inteiramente a ques- tão, pois resta sempre o problema de determinar o que é e o que não é um interesse comum. Essa questão não é trivial, visto envolver juízos, necessari- amente subjetivos, que podem ser divergentes e até contraditórios. Estabelecer a diferença entre interesse coletivo particular e interesse co- letivo geral, entre benefício mútuo e benefício comum é tarefa complexa e árdua, na medida em que não se pode adotar aqui simplesmente critérios quantitativos ou de verificação por maioria. Se, por exemplo, os interesse de 90% das pessoas de uma sociedade contrariar os interesses dos 10% restan- tes, pode-se dizer que esse interesse é público? O mesmo valeria para os di- reitos, terreno onde fica bem mais clara a impossibilidade de tratar a questão em termos de maioria e minoria. Parece que qualquer conjunto de entes e processos caracterizado comopúblico sempre se compõe a partir do privado. Mas a operação que transfor- ma o privado em público é arbitrária, é de natureza política, e não existe ou ainda não se descobriram relações intrínsecas com mecanismos e dinâmicas sociais extrapolíticos, capazes de explicar como, por exemplo, a multiplica- ção de iniciativas privadas poderia vir a compor uma realidade pública. Público, em princípio, para os gregos, que inventaram o conceito, é o que aparece indistintamente para todos na polis, ou seja, na comunidade polí- tica dos iguais. A noção de público é coeva da noção de democracia; ou seja, para os gregos, de política. Trata-se de uma noção que, pelo menos geneti- camente, só faz sentido quando referida a uma determinada koinomia (comu- nhão/comunidade) política. O espaço público surgiu quando os assuntos (comuns) da coletividade deixaram de ser assuntos privados do autocrata, ou seja, surgiu como uma desprivatização, como uma publicização, como possibilidade e capacidade das pessoas de participar dos assuntos que propriamente lhes dizem respeito em termos coletivos. Surgiu como um espaço político, o espaço da conversa- ção democrática, como o espaço onde a livre opinião – e a opinião dos ho- mens livres – pode se exercer. E, para poder coletivamente se exercer com isonomia (mantendo a convivência entre iguais), exigiu o estabelecimento de certas regras capazes de assegurar a igualdade de condições de proferimento (isegoria) e a eqüitativa valorização em princípio (isologia) de quaisquer opi- niões. A democracia surge, assim, na forma de uma rede pactuada de conver- sações e, coetaneamente, surge o espaço público. Portanto, como resultado de um pacto. O público é, então, sempre resultado de um pacto. O que é ou não é pú- blico é arbitrado politicamente pela comunidade política. Nas repúblicas e nos governos representativos modernos, submetidos ao governo da lei, tal pacto passou a ser materializado como lei. Ora, as leis foram feitas pelos homens de Estado, que nelas estabelece- ram, então, que público é o conjunto dos entes e processos coletivos que per- tencem ao Estado. Ou seja, estabeleceram que o público deveria ser definido pelo genos, pela sua origem declarada e definida como pertencente ao con- junto Estado, a partir da consideração de que a finalidade dos elementos des- se conjunto, o seu telos, estaria contida na sua origem. A origem genética e o alvo (tele)finalístico ficaram assim imbricados por uma conexão lógica do tipo co-implicação. Ou seja, se uma coisa tem origem pública, então tem finalidade pública e, vice-versa, se tem finalidade pública, então tem origem pública. Até muito recentemente, não foi considerada a hipótese de que uma coisa poderia ter finalidade pública, mas origem não pública ou privada. Cu- riosamente, porquanto todas as realidades sociais que têm finalidade pública têm, a rigor, origem privada, de vez que todas as realidades sociais são hu- mano-sociais, e as coletividades humanas são constituídas, em última instân- cia, por indivíduos (privados). Mas o caso é que existem entes e processos humano-sociais coletivos, que, mesmo tendo origem privada, podem ter finalidade pública, desde que assim sejam reconhecidos por uma coletividade estável. Tal reconhecimento é a matéria-prima de um pacto que, nos Estados de Direito – e na ausência de situações nas quais exista dualidade de poder, como em países em guerra civil – mais cedo ou mais tarde acabam se registrando como novas leis. No Brasil, por exemplo, é o caso da Lei das Oscip (Ver Ferrarezi, 2002), na qual se define um conjunto de características (dentre finalidades e regime de fun- cionamento) que, uma vez cumpridas por uma organização do terceiro setor, permitem o reconhecimento dessas organizações como de interesse público (o projeto inicial previa, a denominação ―caráter público‖, mais correta). Realidades emergentes não dão origem automaticamente a normas reguladoras. Assim, mesmo na ausência de leis, o conjunto dos entes e processos do terceiro setor reconhecidos como de finalidade e regime de funcionamento públicos configura já um espaço público não-estatal, um espaço social-público. A pergunta, difícil de responder, é: reconhecidos por quem? O reco- nhecimento é difuso, e sua verificação é subjetiva, quer dizer, depende do modo de ver do sujeito que verifica. Há, ainda, um problema adicional, relativo a organizações ―fora-da-lei‖. A esse respeito, poder-se-ia dizer que boa parte das organizações marginais e criminais, de grupos de pessoas que se associam para delinqüir, não se situa no terceiro setor em virtude de possuir fins claramente lucrativos (e, assim, não poderia mesmo pertencer ao terceiro setor), como são os casos do narco- tráfico e do tráfico de armas e, talvez, de outras organizações que privatizam capital social (e, portanto, não poderiam mesmo ser públicas), como a Máfia. No entanto, em outros casos, a coisa não é tão simples. Em sociedades consideradas democráticas, grupos de defesa de direitos às vezes têm exis- tência ou atuação proibidas por lei, embora reconhecidamente cumpram uma função pública ao lutar por liberdade de opinião para minorias étnicas, reli- giosas, culturais, de gênero. Foi o caso, em passado não muito distante, de várias ligas que defendiam o voto feminino em países democráticos do que hoje é chamado de ―Primeiro Mundo‖. Outro ponto relevante da discussão sobre a caracterização da parcela pública do terceiro setor diz respeito à possibilidade da existência de políti- cas públicas (e da produção e da oferta de bens e serviços públicos) que não podem ser definidas a partir do lugar do Estado ou da sua ―lógica‖, da sua presença ou da sua ausência, complementares ou suplementares ao seu papel constitucional, mas que devem ser elaboradas e implementadas pela própria sociedade civil, por ―razões de sociedade‖ – e não por ―razões (inversas) de Estado‖. Desse ponto de vista, organizações públicas não-estatais não podem ser apenas aquelas que complementam a presença do Estado no desempenho de seus deveres sociais, nem somente aquelas que intervêm no espaço públi- co para suprir as deficiências ou a ausência da ação do Estado. Sobre isso, é importante ressaltar que não basta ter finalidade pública para apresentar caráter público. É preciso considerar aqui, também, a ―lógi- ca‖ ou regime de funcionamento. Uma ―lógica‖ pública não-estatal não pode ser decalcada de uma ―lógica‖ pública estatal, ainda que princípios como impessoalidade, moralidade e publicidade possam estar presentes em ambas. Mas o modo de ser público do terceiro setor é diferente do modo de ser pú- blico do Estado. No Brasil, a chamada nova lei do terceiro setor, ou Lei das Oscip, re- solveu a questão do caráter público (ou ‗interesse‘ público, um termo mais fraco, mas que acabou prevalecendo) da nova sociedade civil a partir de uma conjunção entre finalidade e regime de funcionamento. Do ponto de vista da finalidade, essa lei estabeleceu arbitrariamente duas listagens: uma excluden- te e uma includente. Para excluir quem não teria finalidade pública, o artigo 2 da Lei n. 9.790 diz: ―(...) não são passíveis de qualificação como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ainda que se dediquem de qualquer forma às atividades descritas no artigo 3 desta Lei: I – as sociedades comerciais; II – os sindicatos, as associações de classe ou de representação de catego- ria profissional; III – as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais; IV – as organizações partidárias e assemelhadas,inclusive suas fundações; V – as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios; VI – as entidades e empresas que comercializam planos de saúde e asse- melhados; VII – as instituições hospitalares privadas não gratuitas e suas mantenedoras; VIII – as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito e suas mantenedoras; IX – as Organizações Sociais; X – as cooperativas; XI – as fundações públicas; XII – as fundações, sociedades civis ou associações de direito privado cri- adas por órgão público ou por fundações públicas; XIII – as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constitui- ção Federal‖. E, para incluir as organizações da nova sociedade civil que poderiam, do ponto de vista da finalidade, ser reconhecidas como de interesse público, o artigo 3 da referida lei afirma: ―(...) a qualificação (...) somente será conferida às pessoas jurídicas de di- reito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenha pelo menos uma das seguintes finalidades: I – promoção da assistência social; II – promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III – promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; IV – promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; V – promoção da segurança alimentar e nutricional; VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; VII – promoção do voluntariado; VIII – promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à po- breza; IX – experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; X – promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e as- sessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; XI – promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; XII – estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e cientí- ficos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo‖. Num parágrafo único, esse mesmo artigo considera: ―(...) a dedicação às atividades nele previstas configura-se mediante a exe- cução direta de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela pres- tação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem em áreas afins‖. Do ponto de vista do regime de funcionamento, a Lei das Oscip impor- tou, no seu artigo 14, princípios que caracterizam o público-estatal (e que regem a administração pública de acordo com o que reza o artigo 37 da Constituição Federal), ou seja: legalidade; impessoalidade; moralidade; publicidade; economicidade; eficiência. Isso talvez tenha sido um equívoco – do qual me penitencio, pela minha parcela de responsabilidade na elaboração e na negociação do projeto – , de vez que, se o modo de ser público da nova sociedade civil ou do terceiro se- tor não pode ser o mesmo do Estado, os princípios que regem o seu funcio- namento também não deveriam ser exatamente os mesmos. 6. O PAPEL NECESSÁRIO E INSUFICIENTE DO ESTADO A emersão do terceiro setor não é conseqüência de um suposto enfra- quecimento do papel do Estado. Ao contrário do que às vezes se afirma, está em curso na contempora- neidade uma modificação do papel do Estado, e não necessariamente um en- fraquecimento desse papel. Além das funções clássicas, que todos ou quase todos parecem concor- dar em manter – e. g., emitir moeda, deter o monopólio do uso da força den- tro da lei –, existem novos papéis, reguladores e indutores, que deverão ser exercidos mais intensamente pelo Estado. Para fazer isso, tudo indica que precisaremos de Estados mais fortes, e não mais fracos. O que não quer dizer que o Estado precisará arcar com funções que de- vem ser exercidas, em parte, pelo mercado e, em outra parte, pelo terceiro setor – e isso não porque o Estado esteja se retraindo, se desresponsabilizan- do de suas funções, mas por existirem coisas que devem ser feitas por outros sujeitos, de vez que o Estado, além de não poder reter indefinidamente o mo- nopólio do público, não dá conta de absorver, na sua racionalidade predomi- nantemente normativa – executiva, legislativa e judiciária – em certa medida heterônoma em relação à sociedade, outras racionalidades, como aquelas presididas por ―lógicas‖ competitivas (próprias do mercado) ou por ―lógicas‖ cooperativas (próprias da nova sociedade civil, o que não quer dizer que não existam processos cooperativos no mercado e processos competitivos na no- va sociedade civil). A ―fórmula‖ aqui seria: o Estado é necessário, imprescindível, insubsti- tuível mesmo, mas não é suficiente. Ou, mais resumidamente: o Estado é tão necessário quanto insuficiente. Se o público não é monopólio do Estado, existem políticas públicas e ações públicas que não devem ser feitas pelo Estado, não porque o Estado esteja se descompromissando ou renunciando a cumprir o seu papel constitu- cional e nem porque o Estado esteja terceirizando suas responsabilidades, ou seja, não por razões, diretas ou inversas, de Estado, mas por ―razões de soci- edade‖ mesmo. O olhar público da nova sociedade civil (ou da porção pública da nova sociedade civil) detecta problemas, identifica oportunidades e vantagens co- laborativas, descobre potencialidades e soluções inovadoras em lugares onde o olhar do Estado não pode, nem deve, penetrar. A ação pública da sociedade civil é capaz de mobilizar recursos, sinergizar iniciativas, promover parcerias em prol do desenvolvimento humano e social sustentável, de uma forma que o Estado jamais pôde ou poderá fazer. 7. NEM COMPLEMENTAR NEM SUPLEMENTAR AO PAPEL DO ESTADO O papel do terceiro setor não é somente o de complementar ou suple- mentar o papel do Estado. Ao contrário do que, às vezes, também se afirma, o papel da sociedade civil não é o de complementar e controlar o Estado ou, menos ainda, o de ser interlocutor junto ao setor privado para questões sociais. As organizações da nova sociedade civil têm uma função própria no processo de desenvolvimen- to social, e não apenas um papel que possa ser definido a partir da ótica do Estado, ou seja, pensado a partir do que o Estado faz ou deixa de fazer. Existem razões para isso. Como todo desenvolvimento é social (uma vez que o conceito de desenvolvimento se aplica propriamente a sociedades humanas), o terceiro setor tem um papel necessário, insubstituível, impres- cindível mesmo – embora não suficiente – no desenvolvimento (em todas as suas dimensões: social, econômica, cultural, ambiental e físico-territorial, político-institucional e científico-tecnológica). Mas o chamado ―setor social‖ é em parte privado e em parte público – se definirmos esse caráter (público ou privado) pelo regime de funcionamen- to e pela finalidade de suas ações. Nesses termos, a porção pública do tercei- ro setor tem um papel fundamental de interlocutor sim – e, mais do que isso, de parceiro – tanto do mercado quanto do Estado para a realização de ações de desenvolvimento. A ―divisão de trabalho‖ que coloca as organizações da sociedade civilcomo uma espécie de legião dos preocupados com questões sociais, em geral de corte assistencial, ainda existe. Mas é uma herança à qual temos de renun- ciar se quisermos que a nova sociedade civil alcance sua maioridade política. Por outro lado, a nova sociedade civil não tem apenas um papel de con- trole do Estado, mas também de orientação (social) do mercado. Trata-se, então, de dinamizar a organização da nova sociedade civil pa- ra que ela possa exercer efetivamente o seu papel de sociedade, e não papéis que supostamente foram abandonados pelo Estado. No que tange à porção pública do terceiro setor, trata-se de assumir res- ponsabilidades, tomar iniciativas e alavancar recursos de toda ordem para, autonomamente e em parceria com o Estado e com o mercado, realizar ações de desenvolvimento. 8. SINERGIA, E NÃO EQUILÍBRIO DE FORÇAS, ENTRE ESTADO, MERCADO E ‘NOVA SOCIEDADE CIVIL’ Não se deve perseguir nenhum tipo de ―equilíbrio de forças‖ entre Es- tado, mercado e nova sociedade civil. Ao contrário do que às vezes ainda se afirma, não se deve pretender atingir nenhum tipo de ―equilíbrio de forças‖ entre Estado, mercado e nova sociedade civil. Só teria sentido essa expressão se estivéssemos falando da interação de sujeitos em conflito. Mas Estado, mercado e nova sociedade civil são esferas da realidade social, e não sujeitos políticos em conflito. Por outro lado, o conceito de equilíbrio não é bom para sistemas com- plexos como as sociedades. Sociedades são sistemas que só se desenvolvem se estiverem afastados do estado de equilíbrio. O que não quer dizer que não sejam sistemas estáveis. Mas estabilidade nada tem a ver com equilíbrio. O que é necessário alcançar não é um ―equilíbrio de forças‖, mas uma sinergia entre iniciativas provenientes desses três setores. Por quê? Porque nenhum deles, isoladamente, é suficiente para promover o desenvolvimento desse sistema complexo e estável, que só pode se desenvolver quando afastado do estado de equilíbrio, chamado de sociedade humana. 9. O TERCEIRO SETOR NÃO ATUA SOMENTE NA ÁREA SOCIAL O fato do terceiro setor ser social não implica que ele deva atuar so- mente na chamada ―área social‖. Ao contrário do que às vezes se afirma, não se deve ter como objetivo apenas a participação da chamada ‗sociedade civil organizada‘ na formula- ção das políticas públicas governamentais da área social. É preciso ver que política pública não é sinônimo de política governa- mental. Se o público fosse somente o estatal, não haveria modo de ampliá-lo, a não ser expandindo o Estado e pervertendo o funcionamento do mercado e da sociedade. A ‗sociedade civil organizada‘, e sobretudo aquela julgada ―desorgani- zada‖, está participando crescentemente de iniciativas públicas, e esse é o fenômeno mais promissor. Um exemplo disso é a proliferação dos conselhos. Por outro lado, é claro que o terceiro setor precisa participar mais da formulação de políticas governamentais em todas as áreas, e não somente na área social. Mas isso depende da capacidade propositiva e proativa da pró- pria sociedade civil e de uma mudança do padrão de relação entre Estado e sociedade – a qual depende, por sua vez, da mudança do marco legal e de mudanças na cultura política e na cultura burocrática. 10. A SUSTENTABILIDADE DO TERCEIRO SETOR A sustentabilidade do terceiro setor depende da sua capacidade de esta- belecer parcerias intersetoriais. O conceito de sustentabilidade é tomado aqui no sentido de conservação da adaptação e é, portanto, uma função de integração, quer dizer, da capacida- de de reconstrução continuada de congruências recíprocas de um sistema com o meio no qual se desenvolve. Nesse sentido sistêmico, o conceito de sustenta- bilidade se (com)funde com o próprio conceito de desenvolvimento. Quando se fala da sustentabilidade do terceiro setor, fala-se da capaci- dade de desenvolvimento dos entes e processos do terceiro setor. Para sim- plificar, vamos utilizar aqui a expressão ‗organização‘ para designar qual- quer elemento de qualquer setor, seja ente ou processo. A primeira coisa importante a ser considerada aqui é a pluridiversidade, a intersetorialidade das relações. Quanto mais relações interorganizacionais a organização mantiver e mais diversas forem tais relações e quanto mais rela- ções interorganizacionais intersetoriais – isto é, entre o primeiro setor (o Es- tado), o segundo setor (o mercado) e o terceiro setor (a nova sociedade civil) – forem estabelecidas, mais condições terá essa organização de receber o (in)fluxo de recursos do ambiente externo e mais condições ela terá de influir nesse ambiente. As razões são (quase) óbvias. Se a interação entre ambiente interno e am- biente externo define-se por âmbitos de relações, na medida em que aumenta- mos e diversificamos o número e os tipos de relações, mais interação teremos. Assim, teremos mais troca de energia, matéria e informação com o meio. Logo, teremos mais condições de estabelecer sinergias com o meio – pois é disso, fundamentalmente, que se trata: da capacidade de mudar em congruência com o meio. Conclusão: teremos mais capacidade de desenvolvimento. São múltiplas as combinações possíveis de parcerias intersetoriais a partir das relações básicas entre organizações do Estado (OE), do mercado (OM) e da nova sociedade civil ou do terceiro setor (OS): Tabela 1 RELAÇÕES INTERORGANIZACIONAIS Organizações do Estado (OE) Organizações do Mercado (OM) Organizações da Nova Sociedade Civil (OS) Organizações do Estado (OE) OE-OE OE-OM OE-OS Organizações do Mercado (OM OM-OE = OE-OM OM-OM OM-OS Organizações da Nova Sociedade Civil (OS) OS-OE = OE-OS OS-OMf = OM-OS OS-OS Ou seja, podemos ter seis tipos de relações básicas bilaterais: OE-OE, OE-OM, OE-OS, OM-OM, OM-OS e OS-OS. Mas não é obrigatório que tais relações sejam bilaterais; elas também podem ser trilaterais e multilaterais, com e sem repetição de pólos, levando a um grande número de combinações. Se considerarmos, por exemplo, as par- cerias intersetoriais bilaterais, trilaterais e tetralaterais (envolvendo, pelo me- nos, mais de um setor), teremos 16 combinações diferentes: Bi: OE-OM, OE-OM e OM-OS; Tri: OE-OM-OS, 2OE-OS, 2OE-OM, 2OM-OE, 2OM-OS, 2OS-OE, 2OS- OM; Tetra: 2OE-OM-OS, 2OM-OE-OS, 2OS-OE-OM, 2OE-2OM, 2OM-2OS e 2OS-2OE). Além disso, haverá mais processamento e a função organizacional, por assim dizer, ficará mais complexa. Ora, uma organização mais complexa (não necessariamente maior) terá mais condições de responder aos estímulos do meio, pois terá mais condições de se adaptar com flexibilidade, executan- do mais tarefas simultaneamente, desempenhando novas atividades e sendo capaz de substituir e de compensar uma área desatendida por outra. Mas existe, para além das razões expostas, um outro motivo para apontar a relação interorganizacional intersetorial como o principal fator do desenvolvimento da organização do ponto de vista da sua interação com o meio. E esse motivo, substantivo, é o seguinte. À medida que o desenho da sociedade contemporânea torna-se cada vez mais complexo, aumenta a interdependência setorial entre as três esferas consideradas aqui (o Estado, o mercado e a nova sociedade civil). Não existe praticamente nenhuma ação de uma dessas esferas que não dependa, em algum grau, da participação das demais. Assim, por exemplo, não é possível, para os governos, executar um bom programa social sem fa- zer parcerias com a sociedade, pois as condições em que vive o público-alvo dessas ações governamentais, bem como suas aspirações, não podemser re- almente conhecidas a não ser por organizações que tenham capilaridade – e estas não são, na imensa maioria dos casos, organizações estatais, e sim da sociedade civil. Por outro lado, programas elaborados e aplicados de cima para baixo já revelaram há muito tempo déficits de eficiência e de eficácia. A participação da sociedade, viu-se em todo lugar, aporta energias e recursos novos, que se agregam àqueles aportados pelos governos, alavancando, potencializando e multiplicando a capacidade, necessariamente limitada, das ações governa- mentais. E agrega, além disso, novos modos de ver e de atuar, sensibilidades só captadas por quem é sujeito e não objeto das ações, razões de sociedade que não estão contidas nas razões do Estado nem podem delas derivar. Da mesma forma, viu-se, em todo lugar, que empresas isoladas têm me- nos chances de prosperar e de sobreviver. A articulação de empresas, sobretudo de micro e pequenas empresas, em arranjos produtivos ou sistemas sócio- produtivos de base territorial, clusters e redes setoriais ou territoriais formadas com base na cooperação, potencializa a sua capacidade de desenvolvimento. O mesmo vale para as organizações da sociedade civil, que começam, por toda a parte, a se articular em redes setoriais e regionais. Tudo indica que organizações não-governamentais que não se conectarem a redes maiores terão crescentes dificuldades para sobreviver a médio e longo prazos. A capacidade de desenvolvimento das organizações da nova sociedade civil depende, cada vez mais, das suas relações com o Estado e com o mundo empresarial. Por outro lado, a sociedade contemporânea já começa hoje a cobrar – e amanhã passará a exigir – a responsabilidade social das empresas. Ora, o exercício concreto dessa responsabilidade, executado por meio da chamada nova filantropia empresarial, em geral não pode ocorrer pela atua- ção da empresa diretamente, e sim através de uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, freqüentemente uma fundação, construída e mantida por ela, ou seja, de uma organização da nova sociedade civil. Por último, governos, empresas e organizações da sociedade civil estão fazendo convergir suas ações para induzir processos integrados e sustentá- veis de desenvolvimento de base local ou setorial, pois as demandas surgidas nesses processos colocam, simultaneamente, exigências de natureza gover- namental (por exemplo, programas focalizados de enfrentamento da exclu- são, sobretudo nas áreas de saúde, saneamento básico e educação), de natu- reza empresarial (por exemplo, o surgimento de novos negócios que atendam aos carecimentos de geração de trabalho e renda), e de natureza social (por exemplo, instituições de microfinanças, de conservação do meio ambiente, de defesa dos consumidores, de fiscalização e controle social, de capacitação de agentes para o planejamento participativo do desenvolvimento local). A parceria intersetorial agrega valor ao que é ―produzido‖ pela organi- zação – sejam produtos, idéias ou relações – e aumenta a sua capacidade de desenvolvimento. As parcerias entre Estado, mercado e nova sociedade civil criam condições para o estabelecimento de uma sinergia entre estas três esfe- ras da realidade social. E por que é necessário obter tal sinergia? Porque, como estamos vendo, nenhuma dessas esferas, isoladamente, pode ser capaz de promover o desen- volvimento da sociedade. Se o Estado é necessário, imprescindível, insubsti- tuível mesmo – porém não é suficiente, o mesmo vale para o mercado e para a nova sociedade civil. Pois bem. O que isso tem a ver com o desenvolvimento da organiza- ção? Tem tudo a ver. Pois o que chamamos de desenvolvimento é sempre uma sinergia. Se uma organização não se movimenta sinergicamente, então ela não pode se desenvolver. Vamos analisar melhor esta última frase. Ela diz, por um lado, que uma organização que não se movimenta não pode se desenvolver. Esse movimen- to pode ser formação, crescimento ou pode ser mudança. Se for mudança pode ser renovação ou reinvenção. Movimento não significa necessariamente crescimento. A organização pode não crescer e se desenvolver: basta que esteja em processo de formação, de renovação ou de reinvenção. O que não pode é não haver movimento algum. Mas a frase anterior também diz, por outro lado, que esse movimento deve ser sinérgico. O que isso significa? Significa que as relações entre a organização e o meio (ou âmbitos constituídos pelas relações interorganiza- cionais estabelecidas por ela) devem viabilizar uma congruência dinâmica – quer dizer, construída e reconstruída continuamente. É como uma dança coletiva, em que cada parceiro se move de acordo com os movimentos realizados pelos outros parceiros. Se um parceiro se mo- ve fora do ritmo ou de modo que não ―responde‖ aos movimentos dos de- mais, então ele ―dança‖ – mas em outro sentido. Se queremos que a uma organização se desenvolva, temos que fazê-la representar esta coreografia estrutural pela qual realiza-se sua congruência com o meio. Afirmamos que, em quaisquer circunstâncias, a organização depende, entre inumeráveis outros fatores, sempre de dois tipos de recursos, que pode- riam ser definidos como o capital humano e o capital social existentes nos ambientes das suas relações externas. Em princípio, quanto mais relações interorganizacionais intersetoriais a organização mantiver, mais condições ela terá de se aproveitar do capital humano e do capital social existentes no meio exterior. Mas isso não quer dizer que o efeito benéfico do meio sobre a organização acontecerá neces- sariamente. Ele só ocorrerá quando as relações estabelecidas entre a orga- nização e o meio forem relações de parceria – quer dizer, relações coopera- tivas, em rede e democráticas. Para fortalecer tais características, aumentando as condições de susten- tabilidade do terceiro setor, é necessário modificar as normas que regulam as relações entre Estado, mercado e nova sociedade civil. 11. A REFORMA SOCIAL DO MARCO LEGAL DO TERCEIRO SETOR A conquista da sustentabilidade do terceiro setor requer uma reforma social do marco legal que regula suas relações com o Estado. Do ponto de vista do papel estratégico do terceiro setor, uma reforma do marco legal que regula suas relações com o Estado deve ser uma reforma social que viabilize e favoreça as parcerias intersetoriais centradas no desen- volvimento e não uma reforma liberal ou uma reforma corporativa, centra- das, respectivamente, no crescimento competitivo das organizações ou na sobrevivência individual dos aparelhos. Em uma reforma liberal do marco legal do terceiro setor partimos do princípio de que o fundamental é dar condições para as organizações agirem como quiserem e esperamos que o resultado final seja o fortalecimento da nova sociedade civil. Funciona mais ou menos como um programa de renda mínima, na sua versão clássica de imposto de renda negativo. Vamos colocar dinheiro vivo na mão das pessoas e os mecanismos intraeconômicos farão o resto. É como se existisse uma espécie de ―mão invisível do terceiro setor‖ auto-regulando o seu funcionamento. Trata-se, por um lado, de dar incenti- vos que se traduzam em recursos financeiros e, por outro lado, de desregu- lamentar ao máximo. No limite, abolir qualquer marco regulatório. Cada qual sabe de si. Bem incentivado e livre dos constrangimentos normativos, o ter- ceiro setor crescerá. A reforma liberal do marco legal do terceiro setor é inspirada por uma vi- são mercadocêntrica. Imagina que exista algo como um ―mercado do terceiro setor‖, cujo funcionamento apresenta uma ―lógica‖ e é regidopor uma raciona- lidade semelhante a do mercado mesmo, quer dizer, do segundo setor. O principal argumento da reforma liberal do terceiro setor é o da iso- nomia, no que tange ao tratamento historicamente dispensado pelo Estado brasileiro às empresas. Incentivismo, baseado em renúncia fiscal. A refor- ma do marco legal é então reduzida a uma reforma do marco fiscal. Ora – perguntam os defensores da reforma liberal do terceiro setor —, se o Esta- do pôde conferir vantagens para as empresas, por que não pode, igualmen- te, conferir tais vantagens para as ―empresas sem fins lucrativos‖ (como, muitas vezes são encaradas, pelos próceres dessa visão, as organizações da nova sociedade civil)? Em uma de suas versões – por sinal a mais freqüente entre os liberais que estão dentro do aparelho de Estado —, a reforma liberal do marco legal do terceiro setor adota razões inversas de Estado. Imagina que o terceiro se- tor seja uma força auxiliar, um braço extensor para a atuação do Estado. Tra- ta-se, então, de criar as condições para que o Estado possa terceirizar fun- ções, transferindo para as organizações da sociedade civil as tarefas que não pode ou não quer mais cumprir. Em nome da eficiência e da eficácia, a par- ceria vira sinônimo de terceirização, que favorece inclusive o downsizing do Estado. Sai mais barato. É o argumento definitivo. Há, também, a reforma corporativa do marco legal do terceiro setor. Trata-se de defender os interesses da ―categoria‖ terceiro setor. Esta visão não gosta muito nem do conceito nem do termo ‗terceiro setor‘. Prefere utili- zar a expressão ‗organizações da sociedade civil‘. Unem-se então fundações empresariais, associações de organizações não-governamentais, assemelha- dos e diferenciados, para reivindicar que o Estado dispense um tratamento privilegiado para o setor (e aqui o conceito de ‗setor‘, antes espancado, res- surge – por isso que torna-se necessário dar uma identidade ao conjunto dís- par de organizações, para além daquela única que remanesce: a do ator que reivindica). O que une a disparidade – na aceitação ou na recusa do conceito ou do termo ‗terceiro setor‘ – é, com efeito, o pleito pela obtenção de alguma vantagem econômica. Na reforma corporativa do marco legal do terceiro se- tor, não raro, fundações empresariais de corte marcadamente assistencialista e instituídas por grupos empresariais autocráticos marcham de mãos dadas com organizações não-governamentais revolucionárias, herdeiras de tradi- ções libertárias, da luta socialista contra a autocracia. O que as une? O inte- resse corporativo, sem dúvida. Nenhuma delas tem ou quer propagar visões de um novo padrão de relação entre Estado e sociedade. O que vale é o resul- tado: algum benefício concreto, algum incentivo, alguma possibilidade de dedução – qualquer que seja. Se a isenção da quota patronal (uma renúncia previdenciária que só existe no Brasil) é um absurdo – e todo mundo, hones- tamente, sabe que é –, não importa. O realismo econômico insufla um rea- lismo político. E não se fala mais nisso. Ou melhor, nunca se fala disso. Diferentemente de tudo isso, em uma reforma social do marco legal do terceiro setor parte-se do princípio de que nenhum setor da sociedade, isola- damente, pode impor aos demais suas ―lógicas‖ de funcionamento. Admite- se que a sociedade civil tem uma racionalidade própria, que não deriva do Estado, nem do mercado. Considera-se que a auto-regulação da sociedade global como sistema complexo, se existir, só pode ser fruto de uma sinergia entre Estado, mercado e nova sociedade civil. Admite-se que o protagonismo da sociedade civil é decisivo para o desenvolvimento social e, por conseguin- te, para o desenvolvimento em geral. Assume-se que o terceiro setor cumpre um papel estratégico na conso- lidação e na expansão de uma esfera pública ampliada, que não seja monopó- lio do Estado e sem a qual não pode avançar o processo de democratização das sociedades. Congruentemente com tais pressupostos, a reforma social do marco le- gal do terceiro setor é orientada, prioritariamente, para criar condições para a emergência de novos atores sociais do desenvolvimento e para o fortaleci- mento de uma esfera pública não estatal. Este é o sentido estratégico. Daqui devem decorrer os outros objetivos da iniciativa de reforma. Tendo em vista o sentido geral de criar condições para a emergência de novos atores sociais do desenvolvimento e para o fortalecimento de uma es- fera pública não estatal, quais devem ser os objetivos de uma reforma social do marco que regula as relações do Estado com o terceiro setor? Ensejar o protagonismo da nova sociedade civil. Possibilitar parcerias. Aumentar o estoque do capital social. Induzir e promover um desenvolvimento humano e social sustentável. Tudo isso implica mudança no padrão de relação entre Estado e sociedade. Ora, a mudança desse padrão de relação passa pela re- forma das velhas leis que o expressam. Por isso deve-se fazer a reforma. Então, levando tudo isso em conta, o que fazer? E por onde começar? Obviamente, por um novo sistema classificatório, capaz de possibilitar a dis- tinção entre aquelas organizações privadas sem fins lucrativos com fins pri- vados e aquelas organizações privadas sem fins lucrativos com fins públicos – ambas igualmente legítimas, é sempre bom frisar. Para que fazer isso? Para poder saber como o Estado – uma instituição cuja legitimidade decorre de um pacto em prol do interesse público – deve se relacionar com as demais instituições de interesse público e com as institui- ções de interesse privado. Deveria ser óbvio para qualquer um que o Estado não pode se relacio- nar da mesma maneira com esses dois tipos diferentes de instituições. Uma entidade ambientalista, que luta pelo desenvolvimento sustentável de uma região da Mata Atlântica, não é a mesma coisa que uma associação de joga- dores de bridge de São Bernardo do Campo (SP). Ambas são organizações do terceiro setor. Ambas são legítimas. Mas têm estatutos diferentes no que concerne à sua relação com a esfera pública – referencial que necessariamen- te deve ser tomado pelo Estado para distingui-las. Também deveria ser óbvio para qualquer um que, do ponto de vista do in- teresse público, esse deve ser o primeiro passo de qualquer reforma do marco legal do terceiro setor, e não a concessão de incentivos. Mesmo porque, admi- tindo que os incentivos fiscais com dinheiro público ou com renúncia estatal são um fator importante para o fortalecimento e a expansão do terceiro setor, é claro que o Estado não poderá concedê-los da mesma forma para organizações de interesse público e para organizações de interesse privado. Por isso, a reforma social do marco legal do terceiro setor deve começar pela instalação de um sistema classificatório que permita a distinção entre interesse público e interesse privado, como fez, no Brasil, a Lei da Oscip. Mas, mesmo nesse campo classificatório, ainda deve avançar muito em ter- mos de tipologia, de sorte a poder captar a variedade dos seus entes e proces- sos. Evidentemente, essa visão inovadora encontra resistências. De um lado, dos que não cogitam reforma nenhuma, inclusive porque – fazendo coro com a ex-primeira-ministra da Grã-Bretanha (1979-1990), Margareth Thatcher – não acreditam que exista alguma coisa como sociedade civil ou terceiro se- tor. De outro, daqueles que, sob um ponto de vista liberal ou corporativo, acham que tudo isso não passa de teoria ou de conversa de sociólogo, de vez que o que conta, de fato, é o resultado econômico, o benefício financeiro, a isenção fiscal, a renúncia estatal, a transferência de recursospúblicos, o di- nheiro em caixa. Por justiça, deve-se dizer que o principal obstáculo encontrado até ago- ra pela iniciativa de reforma social do marco legal do terceiro setor no Brasil foi a ignorância de decisores estatais, que pensam ainda com a velha cabeça segundo a qual só existem dois âmbitos, duas esferas da realidade social: a do Estado e a do mercado. Esse pessoal acredita que o terceiro setor é uma espécie de disfarce para atividades lucrativas, que querem se maquilar como atividades sem fins lucrativos para fugir dos impostos. É um problema de cultura e, infelizmente, também de inteligência. Curiosamente, porém, gran- de parte das lideranças populares de oposição tem esse mesmo problema. De sorte que a questão aqui não pode ser colocada em termos de situação versus oposição. Nas oposições, tem gente tão ou mais estatista do que nos gover- nos atuais – e os estatistas, estejam onde estiverem, não conseguem perceber a novidade do terceiro setor, porque, no fundo, suas idéias não estão mais propriamente fundadas em teorias e conceitos, mas no solo das ideologias e dos preconceitos. É o que acontece com quem permanece ancorado no sécu- lo XIX quando o mundo já entrou no século XXI. Entretanto, também entre aqueles que acreditam na existência da socieda- de civil e querem fortalecê-la, seja por qual via, ainda existe bastante precon- ceito. Por exemplo, a idéia de que isenções e incentivos fiscais constituem sempre avanços para o terceiro setor. Nem sempre. Pois podem significar tam- bém privilégios setoriais, corporativos e paracorporativos (no caso daquela par- te do terceiro setor que, legitimamente, não tem fins públicos), que de certa maneira privatizam recursos públicos idealmente destinados não a responder a interesses coletivos de determinados subconjuntos sociais – por mais justos e legítimos que sejam –, mas a interesses comuns de toda a sociedade. Na verdade, precisamos de uma política geral de incentivo para o ter- ceiro setor que enseje a aplicação de um sistema de financiamento comparti- lhado. Um sistema complexo, pois dentro do terceiro setor é grande a diver- sidade, um sistema que não dependa apenas do Estado como o único prove- dor. A orientação maior que deverá ser seguida, aqui como em outros cam- pos, é a seguinte: nenhum direito sem responsabilidade. O terceiro setor deve ser financiado não apenas pelo Estado, e deve ser financiado pelo Estado na medida das responsabilidades públicas que assume. Mas, pelas razões mencionadas – que não teremos tempo de desenvol- ver aqui –, não é possível trabalhar uma política de incentivos baseada pre- dominantemente na renúncia fiscal do Estado. Ademais, existem benefícios francamente injustos como, por exemplo, a já citada isenção da quota previdenciária patronal: se a previdência é um siste- ma contributivo e universal, como pode alguém deixar de pagá-la? Alguém pagará por aquele que não pagou. Curioso que muitos que defendem a univer- salização das políticas públicas e acusam quem não faz, a todo instante, tal pro- fissão de fé, de neoliberal, silenciem sobre esse ponto e continuem achando bom usufruir deste benefício tendo em vista, casuisticamente, seus próprios interesses particularistas. Ou será que consideram que seu particularismo insti- tucional poderá se universalizar em virtude da ideologia que professam? Quando se fala em terceiro setor fala-se em uma realidade complexa e extremamente diversificada. Portanto, não existem as reivindicações do ter- ceiro setor como um todo. Por causa disso, o terceiro setor deverá receber tratamento diferenciado na nova política tributária do Estado. A reforma tributária deve abrir possibilidades para que o terceiro setor construa, a partir de suas próprias iniciativas e tendo sempre em conta sua diversidade, mecanismos mais ágeis, eficientes e criativos de obtenção de financiamentos (fundos sociais públicos e privados, por exemplo). Se o ter- ceiro setor ficar sempre dependendo apenas do Estado jamais adquirirá maio- ridade política e, sendo assim, jamais poderá cumprir o seu papel estratégico de espaço para o surgimento de mecanismos de controle social do Estado e de orientação social do mercado. Quem não é capaz de ver isso não é capaz de entender a novidade da maior promessa deste início de século e de milê- nio, que está mudando o desenho da sociedade contemporânea: o surgimento de uma esfera pública não-estatal. Quem não é capaz de ver isso, vai conti- nuar lutando por aumentar os benefícios para o terceiro setor mas com uma ótica velha, corporativa, que põe ênfase na sobrevivência dos aparelhos. Além da reforma tributária e da mudança do marco fiscal e da constru- ção de um novo sistema de financiamento para o terceiro setor, a reforma do marco legal deve avançar para mudar também o regime trabalhista e previ- denciário. Organizações da sociedade civil não são empresas e não podem ser tratadas como tais. A lista do que deve ser mudado nesse sentido contém vários itens razo- áveis, possíveis, exeqüíveis, que encontram, entretanto, muitas resistências por parte de executivos governamentais. Por incrível que pareça grande parte dessas resistências é de fundo ideológico, faz parte de um ideário retrógrado ou conservador que ainda está presente na velha cabeça de fiscalistas e juris- tas. Eles aprenderam, há trinta ou quarenta anos, que o Estado detém e deve deter eternamente o monopólio do público e, portanto, que tudo que não é estatal é privado. Vá-se lá dizer-lhes que o desenho da sociedade mudou! Por outro lado, os defensores das reformas liberal e corporativa também não ajudam muito quando argumentam, negativamente, com exemplos do incentivismo estatal pretérito. Estado transferindo recursos públicos, sobre- tudo por renúncia, para organizações privadas não pode ser paradigma para coisa alguma, mesmo que tais organizações sejam sem fins lucrativos. Por- que o centro da questão não é o lucro ou a apropriação privada de um resul- tado positivo. O centro da questão é a finalidade e o regime de funcionamen- to. Uma organização de prevenção à Aids não pode ser equiparada a uma organização de caráter corporativo, que defende interesses coletivos por cer- to, mas apenas de uma parcela da sociedade. Por último, é preciso ver que a conquista da sustentabilidade do terceiro setor não requer apenas uma reforma legal que favoreça as parcerias interse- toriais. Faz-se necessário uma reforma institucional mais ampla, baseada em um novo consenso, a ser construído, sobre o papel dos diferentes setores da realidade social do ponto de vista do desenvolvimento. Não me refiro àque- les tipos de consensos centrados no mercado (como o chamado ―Consenso de Washington‖ e os consensos das equipes econômicas de vários países na última década), mas a um novo consenso centrado na sociedade. 12. UM NOVO ESQUEMA CLASSIFICATÓRIO PARA O TERCEIRO SETOR O reconhecimento do papel estratégico do terceiro setor exige uma no- va conceituação e um novo esquema classificatório, que revelem, de maneira positiva, a ―lógica‖ de funcionamento e a racionalidade comum do conjunto dos entes e processos que o compõem, bem como suas diferenças intrínsecas. As definições extensivas do terceiro setor estão relacionadas a taxionomi- as setoriais ou temáticas que são tão arbitrárias quanto podem ser a escolha de setores e temas ou os modos de olhar as finalidades de um ente ou processo da nova sociedade civil. Ademais, em geral, não dizem muita coisa sobre o regime de funcionamento, sobre a ―lógica‖ ou a racionalidade de uma determinada organização do terceiro setor. Em suma, não revelam – o que seria fundamental para qualquerclassificação sintonizada com os fenômenos que realmente ocor- rem na realidade social – as razões em que se baseia sua existência, o que fre- qüentemente transcende as suas finalidades declaradas. Classificar organizações do terceiro setor, como feito na International Classification of Nonprofit Organizations (ICNPO) – que estabelece cerca de uma dezena de categorias, do tipo cultura e recreação; educação e pesquisa; saúde; serviços sociais; meio ambiente; desenvolvimento e habitação; lei, direito e política; promoção da filantropia e do voluntariado; atividades in- ternacionais; religião; sindicatos e associações profissionais e de negócios – é tão útil como qualquer classificação para efeitos de documentação, pesqui- sas quantitativas e análises comparativas, mas pouco acrescenta em termos de análise da realidade e de orientação de políticas. Para compreender as mudanças no desenho da sociedade contemporâ- nea que estão ocorrendo em virtude da emersão de uma nova sociedade civil ou que são fenômenos acompanhantes do florescimento do terceiro setor e para promover novas iniciativas e novos arranjos sociais e político- institucionais sintonizados com tais mudanças, não basta arquitetar uma clas- sificação internamente coerente. É preciso conhecer a natureza e as razões da existência dos entes e processos que não pertencem ao conjunto Estado e ao conjunto mercado. Ora, isso não pode ser feito apenas separando-se os ele- mentos do conjunto terceiro setor em categorias por finalidade. Proponho, portanto, que se adote um novo tipo de classificação, basea- da fundamentalmente na natureza dos entes e processos (definida em termos de origem, racionalidade e ―lógica‖ de funcionamento) e na razão em que se baseia sua existência (tomada tal razão em termos da possibilidade de reali- zação de um interesse, ou de ser instrumento orgânico para as ações capazes de realizar um interesse próprio, relacionado à sua origem, racionalidade e ―lógica‖ de funcionamento). Se considerarmos somente os agrupamentos estáveis, que podem ser chamados, doravante, para simplificar, de ‗organizações‘, teríamos, então, num primeiro nível de classificação, apenas três tipos de organizações: as organizações do Estado (OE), as organizações do mercado (OM) e as orga- nizações da nova sociedade civil ou do terceiro setor (OS). Focalizemos agora, como é nosso propósito, as organizações da nova sociedade civil ou do terceiro setor, as OS. Por definição, qualquer OS deve ser sem fins normativos (ou melhor, sem autoridade – legal – normativa, não tendo os atributos, a ―lógica‖ de funcionamento e a racionalidade, heterôno- mas em relação a sociedade, que presidem o funcionamento dos governos, dos parlamentos, do Judiciário e do Ministério Público) e sem fins lucrativos (ou melhor, sem modo de extração e acumulação de excedentes ou superávits caracterizáveis pela ―lógica‖ de funcionamento e a racionalidade, competiti- vas, que presidem o funcionamento das empresas, das bolsas de valores, dos fundos e de outros entes e processos de mercado, inclusive os grupos de pes- soas que se associam para delinqüir com fins de lucro). Em termos positivos, a ―lógica‖ de funcionamento e a racionalidade que podem distinguir as OS das OE e das OM são as de uma realização e geração autônomas, espontâneas ou auto-organizadas, de ações e normas, em geral in- formais, de comportamento social, baseadas na cooperação. O que não quer dizer que as OS não efetivem relações heterônomas ou que não tenham com- portamento competitivo entre si e mesmo, eventualmente, com alguma OE ou OM. Nem que as OE não possam efetivar relações autônomas. Nem que as OM não possam apresentar comportamento cooperativo. Fala-se aqui apenas dos elementos distintivos, da ontologia, da manifestação que é conforme ao ser social de cada setor, e não de toda a fenomenologia da realidade social, que é resultado das múltiplas e complexas interações entre todos os setores. No conjunto das OS, podemos estabelecer, num segundo nível da clas- sificação, que este se divide em dois subconjuntos: o das organizações públicas (de caráter público, entendendo caráter como uma conjunção de finalidade com regime de funcionamento); o das organizações privadas (idem). As organizações do terceiro setor de caráter público (e. g., uma entida- de de apoio a portadores de necessidades especiais, uma associação de capa- citação profissional gratuita para jovens de periferia) serão designadas como OSPU, e as de caráter privado (e. g., uma igreja, um sindicato) serão desig- nadas como OSPR. A discussão sobre o caráter público (PU) ou privado (PR) das organi- zações do terceiro setor é bastante complexa. Existem organizações do ter- ceiro setor que, embora declarem fins públicos, não os têm de fato. E nem sempre as que têm, de fato, fins públicos, apresentam um regime de funcio- namento que possa ser considerado como público. Corporações, igrejas e partidos políticos constituem bons exemplos de organizações do terceiro setor que não podem ter caráter público. As corporações, constituídas para a defesa de interesses econômicos ou setoriais, têm uma atuação que não conforma um espaço público (e que, mui- tas vezes, privatiza o espaço público ao submeter a estrutura e a dinâmica desse espaço a interesses coletivos, porém particulares, de uma categoria profissional ou mesmo do que se chamava de classe social). Fenômeno semelhante ocorre com organizações religiosas e partidárias. Todas ou quase todas as instituições precipuamente voltadas para a dissemi- nação de religiões, credos, práticas e visões devocionais e confessionais de- claram que perseguem o bem comum da sociedade humana. Algumas acredi- tam-se guardiãs da defesa de direitos muito mais universais até do que os direitos humanos: os direitos divinos sobre a humanidade (o que é canônico, por exemplo, nas concepções jurídicas do catolicismo). No entanto, não se pode conferir a tais instituições do terceiro setor o caráter de organizações públicas desde que a conseqüência de sua atuação precípua não redunde ob- jetivamente em prol do bem ou a favor do interesse daqueles que não con- cordem com suas práticas e visões. Outra coisa são as entidades, vinculadas a tais instituições, que sejam constituídas para prestar e efetivamente prestem serviços de interesse público – como são os casos das pastorais sociais e das chamadas ―obras sociais‖ das dioceses católicas ou das associações beneficentes e assistenciais ligadas às igrejas evangélicas ou aos grupos espíritas ou espiritualistas. Estas e muitas outras entidades, que não prestam propriamente serviços, mas desenvolvem uma atuação em defesa de direitos e interesses difusos na sociedade, embora vinculadas a religiões ou assemelhados, podem ter, de fato, caráter público. Da mesma forma se pode argumentar em relação aos partidos políticos. Embora declarem – e ainda com dupla razão – que seu fim é público, uma vez que almejam o bem comum da sociedade com o objetivo de alcançar o poder público para realizá-lo, os partidos políticos, enquanto tais, ou seja, antes que seus membros ocupem cargos no Estado, são organizações do ter- ceiro setor. Quando seus membros ocupam postos públicos no Estados eles (esses membros) passam a fazer parte da estrutura formal do Estado, mas seu partido de origem (seu ―veículo‖, pode-se dizer, para chegar ali), não! Evi- dentemente, isso só vale para as democracias, não se aplicando nos regimes nos quais um partido (ou uma coligação de partidos) funde a sua estrutura com a do Estado – como ocorreu no chamado ―socialismo real‖. Quer dizer que os partidos políticos,embora almejem fins públicos e estejam organizados para a conquista do poder público, não têm, enquanto tais, fins públicos. E nem poderia ser de outra forma, pois, não obstante as constituições dos regimes democráticos atuais lhes assegurarem, no caso do Brasil, mais do que o direito, o privilégio mesmo, de manterem em suas mãos o monopólio das vias de acesso ao poder público, a racionalidade do seu funcionamento é presidida pela ―lógica‖, heterônoma, da hegemonia de um grupo, ou de uma parte da sociedade, sobre os demais. A conseqüência objetiva da ação dos partidos enquanto tais não redunda em benefício públi- co, pois não reverte – enquanto seus membros não acedem aos postos do Es- tado – em prol do bem ou a favor do interesse geral daqueles que não con- cordem com suas plataformas e seus programas. Outra coisa é um grupo ou entidade vinculada a um partido que resolva, por exemplo, realizar uma ação cidadã de defesa de direitos ou de promoção humana. Nesse caso, tal grupo ou entidade poderá ter fins públicos, a não ser enquanto essa atuação fique claramente identificada com os propósitos de poder do partido político em questão, mas esse partido não. Com mais evidência do que no caso de corporações, igrejas e partidos, excluem-se da categoria caráter público as entidades de benefício mútuo des- tinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de sócios (como acontece com clubes, instituições de previdência privada e fundos de pen- são). E excluem-se também dessa categoria as entidades reconhecidas como filantrópicas, que, conquanto prestem relevantes serviços à sociedade, te- nham, na verdade, fins (disfarçadamente) lucrativos ou cujo comportamento seja presidido predominantemente por uma racionalidade mercantil (tais co- mo os planos de saúde e alguns hospitais privados, escolas e universidades particulares). Descendo a um terceiro nível da classificação, encontramos então os seis tipos básicos de organizações do terceiro setor —excluídas as organiza- ções do terceiro setor que estão nas interseções com o Estado, com o merca- do ou com ambos, ou seja: OS^OE, OS^OM e OS^OE^OM (onde o símbolo ‗^‘ significa ‗interseção‘ na acepção considerada pela teoria dos conjuntos). Vejamos. Entre as organizações do terceiro setor de caráter público (OSPU), podemos ter quatro categorias: 1. OSPU<-S: Constituídas com base em razões de sociedade (quer dizer, da nova sociedade civil) – o símbolo ‗<-;‘ significa ‗com base em razões de‘ ou ‗sob o influxo da racionalidade de‘ e se refere à possibilidade de reali- zação de um interesse, ou de ser instrumento orgânico para as ações capa- zes de realizar um interesse próprio, relacionado à origem, racionalidade e ―lógica‖ de funcionamento da nova sociedade civil, designada pela letra ‗S‘. Como exemplos desse tipo de organização podem ser citados: um grupo de defesa de direitos, uma central de promoção do voluntariado, uma institui- ção microfinanceira, uma organização de economia solidária, uma Ong de conservação do meio ambiente ou de promoção do desenvolvimento sus- tentável, uma ação de cidadania contra a fome, um grupo de fiscalização de preços ou de orientação social do mercado, uma entidade de fiscalização do orçamento federal, estadual ou municipal ou de controle social do Esta- do, centros de estudo e pesquisa dedicados a produção científica e, até, ins- tituições voltadas para a elaboração ou a execução, ou o monitoramento, ou a avaliação de políticas públicas não-estatais. 2. OSPU<-E: Constituídas sob o influxo de razões de Estado, (idem). Aqui se enquadram, por exemplo, as organizações suplementares ou com- plementares à ação do Estado, as prestadoras de bens e serviços convenia- das ou parceirizadas ao Estado – em suma, as ―terceirizáveis‖ socialmente, porque cumprem funções que originalmente eram desempenhadas pelo Es- tado ou que o Estado têm o dever constitucional de cumprir, como, por exemplo: creches e outras associações, sociedades ou fundações de assis- tência social, associações de agentes comunitários de saúde e outras orga- nizações promotoras da saúde básica ou da educação fundamental. 3. OSPU<-M: Constituídas sob o influxo de razões de mercado, (idem- idem). Aqui se enquadram, por exemplo, os meios sociais orgânicos pelos quais se exercem as ações de interesse público do mercado, como, por exem- plo, as fundações da filantropia empresarial e os demais entidades cria- das como instrumentos da responsabilidade social corporativa. 4. OSPU<-OSPR: Constituídas sob o influxo de razões de sociedade, porém intermediadas por outras organizações do terceiro setor de caráter privado. São os casos, por exemplo, de uma associação de apoio a portadores do vírus HIV (uma OSPU) instituída ou mantida por uma Igreja (uma OSPR); ou de uma entidade de capacitação profissional (OSPU) promo- vida por um sindicato (OSPR). Entre as organizações do terceiro setor de caráter privado (OSPR), po- demos ter apenas duas categorias: 5. OSPR<-M: Constituídas sob o influxo de razões de mercado. Por exemplo, uma associação de exportadores. Ou uma associação dos funcionários de uma empresa. 6. OSPR<-S: Constituídas sob o influxo de razões de sociedade. Aqui entram, numa classificação de tipos básicos, todas as demais organiza- ções do terceiro setor que não se enquadram nas cinco categorias anteriores. Por motivos quase óbvios, excluem-se desse esquema classificatório duas possibilidades: as organizações do terceiro setor de caráter privado constituídas sob o influxo de razões de Estado (OSPR<-E) e as constituídas sob o influxo de razões de sociedade intermediadas por organizações do ter- ceiro setor de caráter público (OSPR<-OSPU). No primeiro caso, porque não se espera que razões estatais, por definição públicas, possam (ou devam) ins- pirar o comportamento de entes ou processos de caráter privado. No segun- do, porque igualmente não se espera que razões sociais de caráter público devam (ou possam) inspirar o comportamento de entes ou processos de caráter privado. Também se excluem, por motivos lógicos, as organizações do terceiro setor de caráter privado ou público constituídas por razões de sociedade inter- mediadas por organizações de mesmo tipo (OSPR<-OSPR e OSPU<-OSPU). Figura 1 DIAGRAMA DO ESQUEMA CLASSIFICATÓRIO PROPOSTO No diagrama da Figura 1, as setas representam os influxos dos conjun- tos Estado, mercado e nova sociedade civil (ou terceiro setor) sobre as OS. Na Tabela 2, apresentam-se exemplos dos seis tipos de OS considerados na nova classificação proposta: Tabela 2 TIPOS DE OS OSPU OSPR Tipo 1 Tupo 2 Tipo 3 Tipo 4 Tipo 5 Tipo 6 OSPUS OSPUE OSPUM OSPUOSP R OSPRM OSPR S Centro de Voluntários Associação de Agentes Comunitá- rios de Saú- de (e.g.: PACS) Fundação Empresarial ―Obra Social‖ de uma Igreja (exemplo: Pastoral da Criança) Associação de Produto- res (de Ex- portadores, por exemplo) Clube de Filatelia Pois bem. Qual a vantagem de uma classificação como essa, baseada em uma conceituação positiva e em características orgânicas intrínsecas dos entes e processos que habitam a nova sociedade civil? Existem, a meu ver, pelo menos cinco vantagens. Em primeiro lugar, ela revela, substantivamente, alguma coisa acerca do que está de fato ocorrendo na realidade social, aumentando nosso conhe- cimento sobre as novas dinâmicas sociais em curso. A constituição de organizações do terceiro setor não é vista apenas a partir da vontade dos sujeitos de se associarem para cumprir uma finalidadeque livremente escolheram, e sim, também, a partir da emersão de novos pa- drões de interação entre Estado, mercado e sociedade civil. O florescimento de organizações complementares à ação do Estado tem a ver com as modifi- cações introduzidas no papel do Estado ou no seu modo de atuação, e não apenas com a vontade de um grupo de cidadãos, baseada em sua vocação, de constituir, por exemplo, uma associação de pais e mestres (uma OSPU<-E). O rápido crescimento, nos últimos anos, de fundações empresariais para via- bilizar o investimento social privado tem a ver com mudanças no padrão de relação entre mercado e sociedade e não apenas com uma conversão coletiva de donos de empresas à filantropia ou com uma súbita tomada de consciência individual, por parte dos empresários, do dever de dar sua parcela de contri- buição ao resgate da chamada ―dívida social‖, que os leve, por exemplo, a organizar programas de educação para crianças de periferia (por meio de uma OSPU<-M). A segunda vantagem de uma classificação como a proposta aqui é que ela permite separar – no terceiro setor – o que tem caráter público do que tem cará- ter privado. Além de acabar com a confusão introduzida pela idéia indefensável de que todo o terceiro setor teria fins públicos ou caráter público, isso fornece parâmetros para as políticas de incentivo, investimento e fomento ao terceiro setor, de vez que é óbvio que o Estado não pode tratar da mesma maneira orga- nizações de caráter público e organizações de caráter privado. A terceira vantagem desse tipo de classificação é que ela permite, como se diz, ―separar o joio do trigo‖. Ao tomar como base uma definição positiva do que o terceiro setor é em termos de ―lógica‖ de funcionamento e raciona- lidade, evitamos classificar as organizações pelas suas natureza e finalidade declaradas. Assim, por exemplo, uma instituição de ensino superior, um hos- pital, uma empresa de consultoria ou, até mesmo, um plano de saúde, que se declaram do terceiro setor por não terem fins lucrativos, não podem ser nele enquadrados enquanto suas formas de extração e acumulação de excedentes ou superávits forem caracteristicamente mercantis. A quarta vantagem é que ela permite captar não apenas os diversos propósitos ou finalidades, mas as diversas ―subnaturezas‖ orgânicas (se as- sim se pode dizer) abrigadas pela ―natureza‖ terceiro setor – que se compõe de entes e processos muito distintos uns dos outros –, afirmando, porém, uma mesma característica intrínseca comum. Em termos epistemológicos, essa talvez seja a maior vantagem de uma classificação baseada numa definição positiva do terceiro setor sobre as classificações, por intenção ou extensão, baseadas em definições negativas (do tipo ‗o que não é Estado e o que não é mercado‘). As definições negativas homogeneízam de forma inadequada a multifariedade do ―conjunto‖ terceiro setor, tornando as pesquisas sobre o seu universo pouco reveladoras dos fenômenos que precisam realmente ser entendidos e explicados. A quinta vantagem é que ela concorre para o reconhecimento e o refor- ço do papel estratégico do terceiro setor como realidade (relativamente) au- tônoma, e não como realidade subordinada, um epifenômeno, algo que não possa subsistir fora da ordem do Estado ou fora da ―lógica‖ do mercado. Ou seja, ela parte do pressuposto de que existe uma ―lógica‖ e uma racionalida- de – na verdade, também uma emocionalidade – cooperativas, sem as quais as ―lógicas‖ e as racionalidades normativas e competitivas que caracterizam, respectivamente, o ser social do Estado e o ser social do mercado, não serão suficientes para promover o desenvolvimento humano e social sustentável. Ora, essa é a única maneira de reconhecer que existe um papel estratégico do terceiro setor, um papel que só ele pode cumprir. 13. O PAPEL ESTRATÉGICO DO TERCEIRO SETOR Dizer que o terceiro setor tem um papel estratégico para o desenvolvi- mento não acrescenta muita coisa se não dissermos o que entendemos por desenvolvimento. De propósito, não estamos afirmando que o terceiro setor tem um papel estratégico para o crescimento econômico, e sim para o desen- volvimento mesmo, o qual não pode haver, em nenhum sentido, sem desen- volvimento social. Relações intrínsecas entre os efeitos de certo tipo de interações sociais e o fenômeno que interpretamos como desenvolvimento só podem ser estabe- lecidas no âmbito de uma teoria onde esses conceitos (‗social‘ ou ‗interação social‘ e ‗desenvolvimento‘) sejam definidos, tenham um status epistemoló- gico definido e sejam intrinsecamente relacionáveis mantendo a coerência interna do sistema teórico. As teorias do capital social são os melhores siste- mas conceituais para estabelecer relações entre conceitos relativos a dinâmi- cas sociais e o conceito de desenvolvimento. Antes de qualquer coisa porque, para as teorias do capital social, de certo modo, todo desenvolvimento é de- senvolvimento social. Aqui não é o lugar para desenvolver uma teoria do capital social. Va- mos considerar, entretanto, como pressuposto, qualquer teoria que admita o conceito de capital social como cooperação ampliada socialmente. A afirmação de que o terceiro setor tem um papel estratégico para o de- senvolvimento pode ser tomada de várias maneiras. Pode significar dizer, por exemplo, que o desenvolvimento depende de algum fator que não pode ser fornecido (ou não pode ser fornecido em quantidade ou qualidade suficien- tes) sem o terceiro setor e que o desenvolvimento ―cresce‖ na razão direta da presença desse fator. Esse fator é o capital social, produzido principalmente – embora não exclusivamente – pela nova sociedade civil. Por quê? Porque os entes e processos da nova sociedade civil (ou do terceiro setor) caracterizam-se, basicamente, por apresentarem uma ―lógica‖ de funcionamento ou uma racionalidade cooperativa. Ou seja, a relação coo- perativa é a forma de interação, propriamente ‗social‘, conforme ao ser social do terceiro setor – diferentemente do que ocorre com o mercado e com o Es- tado. Isso não quer dizer, vale repetir, que ―lógicas‖ cooperativas não possam estar presentes no Estado e no mercado, nem que ―lógicas‖ competitivas e normativas não possam estar presentes na nova sociedade civil. O terceiro setor caracteriza-se, assim, pela realização e geração autô- noma, espontânea ou auto-organizada, de ações e normas, em geral infor- mais, de comportamento social, baseadas na cooperação. Isso é muito dife- rente da realização e geração, heterônoma e hierárquica, de ações e normas formais de comportamento social (que caracterizam o Estado). E é muito di- ferente da realização e geração de ações e normas de comportamento social baseadas na competição (que caracterizam o mercado), mesmo quando estas últimas também possam ser realizadas e geradas autonomamente, inclusive de forma espontânea ou auto-organizada. Ora, se – como estamos admitindo – capital social é cooperação am- pliada socialmente, o lugar próprio de produção do capital social só pode ser a nova sociedade civil, ainda que tal capital possa também ser produzi- do em outros lugares (na medida em que interações propriamente sociais permeiam todas as esferas da realidade social). Não há nenhuma novidade aqui. De certo modo, estamos simplesmente resgatando o conceito tocquevilliano de sociedade civil. A característica do associativismo, a capacidade de associação, a ‗capacidade de comunidade‘ envolvem reconhecimento mútuo, confiança, reciprocidade e ajuda mútua, solidariedade; em suma, cooperação. O problema é saber se tais atributos constituem ou não uma classe particular de interações capaz deconformar uma esfera social relativamente autônoma, separável, pela sua ―lógica‖ de funcionamento e pela sua racionalidade, do Estado e do mercado. Se consti- tuem, então existe um terceiro setor ou uma nova sociedade civil cuja dinâ- mica própria gera capital social. A rigor, se respondermos afirmativamente à questão colocada, estare- mos afirmando que é possível gerar ordem espontaneamente a partir da coo- peração. Ou seja, estaremos dizendo que a nova sociedade civil tem uma ca- racterística auto-organizadora e – ao contrário do que pensavam Hobbes ou Locke – pode subsistir sem a intervenção heterônoma (―civilizadora‖) do Estado ou sem a função reguladora da sociedade política. Mas, como vere- mos adiante, isso nos leva para uma discussão que não poderá ser feita aqui. O foco, aqui, é o desenvolvimento. E, se a equação do desenvolvimento é dada pela relação entre diferentes variáveis, dentre as quais o capital social, pode-se afirmar que não haverá desenvolvimento fora do ―lugar‖ onde se produz capital social. Existe, por certo, uma determinada concepção de desenvolvimento pressuposta na sentença anterior. Para distinguir essa concepção de desen- volvimento das concepções correntes, que encaram o desenvolvimento como resultado do dinamismo econômico ou, mais restritamente, como equivalente a crescimento econômico, pode-se batizar o tipo de desenvolvimento de que trata o presente capítulo de ‗desenvolvimento social‘ ou, mais extensa e pre- cisamente, de ‗desenvolvimento humano e social sustentável‘. Então, pelo menos para o chamado desenvolvimento humano e social sustentável, a nova sociedade civil tem um papel estratégico a cumprir: ela é a fonte dos fatores sem os quais não se conseguirá obter boa vida para cada um e para todos, para os que vivem hoje e para os que viverão amanhã (fina- lidade que, de resto, deveria estar presente em qualquer concepção de desen- volvimento e, sob esse aspecto, todo desenvolvimento deveria ser interpretá- vel como desenvolvimento humano, social e sustentável). O mesmo vale para quem imagina que a prosperidade econômica ou a boa governança, ou am- bas, são os ingredientes imprescindíveis para se chegar à boa vida. Pois já existem evidências empíricas suficientes para indicar que tais ingredientes dependem do nível (ou do estoque) de capital social de uma sociedade. Todavia, dizer isso tudo soa meio estranho. A noção de ‗papel estraté- gico‘ é uma noção política prática, i. e., tem a ver com determinada operação política. Desse ponto de vista político, mais ou menos instrumental, ninguém pode cumprir um papel estratégico pelo simples fato de existir – ainda que para os gregos, segundo a interpretação de Hannah Arendt (1906-1975), a política não seja um instrumento, e sim um modo de efetivar a liberdade, de atualizá-la no cotidiano da rede de conversações que tece o espaço público, sendo-se, simplesmente, um ser político, ou seja, um participante da polis, entendida não como cidade, mas como koinomia política. Geralmente, po- rém, papel estratégico evoca vontade política, ação dirigida a um fim, enca- deamento de passos para alcançar um objetivo. Pois bem. Do ponto de vista operativo, qual seria o papel do terceiro setor em relação à indução ou promoção do desenvolvimento (entendido como de- senvolvimento humano e social sustentável)? Em outras palavras, estamos per- guntando qual é o papel do terceiro setor como ator do desenvolvimento. A primeira resposta é a seguinte: o terceiro setor não pode ser visto co- mo um ator. Trata-se de uma infinidade de entes e processos de interação social. Para usar a tipologia proposta aqui, considerando apenas as organiza- ções independentes do Estado e do mercado (excluindo, portanto, as que ha- bitam as interseções entre as três esferas, como cooperativas, conselhos de políticas públicas et coetera), temos seis tipos de atores, cada qual, grosso modo, com um papel diferente. Poder-se-ia dizer que, em linhas gerais, as organizações da nova socie- dade civil de caráter público (OSPU) cumprem papel mais relevante para o desenvolvimento do que as de caráter privado (OSPR), partindo da hipótese de que a atuação das primeiras gera mais ampliação social da cooperação (ou produz mais capital social) do que a atuação das últimas. Com efeito, não é impossível que algumas organizações do terceiro setor de caráter privado possam, inclusive, privatizar capital social. Em alguns casos, extremos, de organizações privadas fortemente hierarquizadas e regidas por normas de funcionamento autocráticas – como seitas, corporações muito fechadas e cer- tas tendências políticas –, diz-se que pode haver até geração de capital social ―igual a zero‖ e ―negativo‖. Isso todavia, deve ser entendido mais como uma metáfora, para aludir a grupos sociais que aprisionam o capital social em cír- culos restritos, uma vez que um grupo que produzisse capital social realmen- te nulo ou negativo não teria a coesão social necessária para subsistir e não poderia ser considerado um agrupamento humano estável. Numa classificação tentativa, por ordem de prioridade para o desenvol- vimento, dentre as OSPU, tenderiam a ocupar os primeiros lugares aquelas que favorecem a produção e a reprodução do capital social em escala ampli- ada, ou seja, aquelas que articulam e animam redes sociais e aquelas que de- mocratizam procedimentos e processos decisórios, que se organizam, elas próprias, segundo um padrão de rede e adotam internamente modos de regu- lação democráticos. Em geral, essas organizações são, principalmente, do tipo OSPU<-S (ou seja, organizações da sociedade civil de caráter público constituídas sob o influxo de razões de sociedade). Em seguida viriam as demais, mas que também deveriam ser classificadas em graus diferentes, sempre segundo sua condição de gerar e reproduzir capital social. Uma classificação desse tipo, todavia, é muito problemática pois carre- ga consigo, inevitavelmente, juízos abstratos de valor. Não se pode dizer, por exemplo, que uma OSPU<-S seja melhor do que uma OSPU<-M e até mes- mo do que uma OSPR<-M. Em determinadas circunstâncias, a formação de um cluster de alta tecnologia, promovida por uma associação de empresários (uma OSPR<-M), cumpre um papel decisivo para o desenvolvimento de um dado território. Além disso, não se pode dizer que uma coisa é melhor do que outra sem dizer em relação a que estamos efetuando a comparação e sem re- lacionar nossa escala de valores com tal referencial. Ademais, uma classificação desse tipo não serviria, por exemplo, para orientar (automaticamente) políticas governamentais. Pois não se pode dizer que o Estado deva privilegiar sua relação com uma OSPU<-S em detrimento de sua relação com uma OSPU<-E. Nesse caso, aliás, freqüentemente o Es- tado deve, pelo contrário, privilegiar mesmo sua relação com as OSPU<-E, naturalmente por razões de Estado – o que evidencia, por outro lado, que o Estado pode não ser o ator principal na promoção do desenvolvimento hu- mano e social sustentável. E aqui está o ponto: papel estratégico para o de- senvolvimento não significa necessariamente papel estratégico para o Estado, e sim papel estratégico para aquela classe de mudanças sociais que interpre- tamos como desenvolvimento humano e social sustentável. A discussão é complicada e também não poderá ser esgotada aqui. Por enquanto, fiquemos apenas com a evidência empírica que parece indicar que quanto mais padrão de rede e quanto mais regulação democrática estiverem presentes nas interações sociais, mais capital social será produzido e repro- duzido. Se isso será melhor para a humanidade, se os seres humanos alcança-rão mais facilmente a felicidade, se o homem e o mundo serão mais humani- zados em sociedades em rede e democráticas, é uma questão de aposta e não de comprovação científica. Pode-se sempre retrucar que ainda estaríamos vivendo em condições de vida e convivência social semelhantes às das aldei- as agrícolas neolíticas se não tivessem prevalecido dinâmicas normativas he- terônomas (inauguradas pelo Estado) e se não tivessem irrompido dinâmicas competitivas (próprias do mercado). E os que retrucam com tal argumento, por sua vez, não podem dizer se a vida social neolítica era menos humanizan- te e menos sustentável do que a das nossas metrópoles contemporâneas, nem se o ser humano daquela época era mais infeliz do que nós, os de hoje. Vamos ficar com o que temos, ou seja, com a evidência de que a me- lhoria das condições de vida dos seres humanos que vivem em sociedade depende de certas mudanças sociais que interpretamos como desenvolvimen- to; que essas mudanças co-implicam a capacidade de uma sociedade de pro- duzir e reproduzir capital social; que a capacidade de produzir e reproduzir capital social é tanto maior (ou melhor) quanto mais padrões de organização em rede e modos de regulação democráticos forem praticados; e, por último, que quem pode fazer isso – por ser mais conforme ao seu ser social, presidi- do por uma racionalidade (e por uma emocionalidade) cooperativa – é, prin- cipal e propriamente, o terceiro setor. Isso, que já temos, é suficiente para uma segunda e uma terceira respostas à pergunta sobre o papel do terceiro setor como ator do desenvolvimento. A primeira resposta indicou que existem muitos atores diferentes no terceiro setor e que os atores de caráter público (OSPU e, dentre estas, em geral, as do tipo OSPU<-S) cumprem papel estratégico destacado pela sua condição de produzir e reproduzir mais capital social. Consoante com essa primeira resposta, uma segunda resposta poderia ser a seguinte. Todas as organizações da nova sociedade civil cumprem papel estratégico como atores do desenvolvimento na medida da sua capacidade de produzir e reproduzir capital social. Se isso confere principalidade a certos tipos de OSPU, não exclui automaticamente as OSPR, que constituem, aliás, a maior parte do terceiro setor (sobretudo as OSPR<-S). Além disso, as OSPR cumprem um papel sem o qual não poderia haver convivência social privada, associações de pessoas em torno de objetivos coletivos não-comuns (não-compartilháveis e, portanto, não-exigíveis por toda a sociedade, mas apenas por uma parte da sociedade) e, assim, são um fator decisivo para garantir a privacidade do cidadão e dos grupos de cida- dãos e evitar uma espécie de ―ditadura‖ da esfera pública (estatal ou não- estatal, não importa). Nesse sentido, para além das OSPR, entes e processos informais ou formais da nova sociedade civil de caráter privado (casais, fa- mílias, grupos de amigos, vizinhos ou habitantes de uma mesma localidade, outros agrupamentos, ocasionais ou não, de pessoas e, inclusive, organiza- ções) constituem a condição para as liberdades civis, individuais e grupais, sem as quais, a rigor, não poderia haver nem mesmo democracia (ou liberda- de política). Quer dizer que as OSPR cumprem papel estratégico sobretudo em rela- ção à democracia. O problema é que estamos tratando aqui do papel estraté- gico do terceiro setor em relação ao desenvolvimento. Uma maneira de re- solver esse problema é estabelecendo uma relação intrínseca entre democra- cia e desenvolvimento. Nesse caso, tudo o que permite ou amplia e aprofun- da o processo democrático também concorre para o desenvolvimento. E uma maneira, talvez a única no nosso contexto teórico de referência, de estabele- cer tal relação é partindo da hipótese de que a geração e a reprodução do ca- pital social dependem da democracia. Numa autocracia absoluta não poderia haver de forma alguma reprodu- ção ampliada do capital social e, dessarte, não poderia haver desenvolvimen- to, embora pudesse haver crescimento (não sendo certo, entretanto, se tal crescimento poderia ser sustentado ou se poderia se manter a taxas altas o suficiente, a longo prazo, para produzir vida boa para cada um e para todos os seres humanos, no presente e no futuro). Todavia, essa possibilidade teó- rica não pode ocorrer realmente em termos práticos. Uma autocracia absoluta que impedisse absolutamente a produção e a reprodução do capital social não subsistiria, pelo simples fato de que a sociedade hipotética em que tal auto- cracia se instalasse não teria coesão social para subsistir enquanto tal, ou se- ja, não seria um grupo humano estável e, assim, não configuraria aquilo que chamamos de sociedade. Uma terceira resposta poderia ser a seguinte: os atores do terceiro setor que cumprem papel estratégico destacado para o desenvolvimento (humano e social sustentável) são aqueles cuja atuação concorre para configurar, forta- lecer e expandir uma esfera pública não-estatal democrática. Por quê? Por- que uma esfera pública democrática constitui o ambiente necessário para a ampliação social da cooperação (ou para a reprodução do capital social em escala ampliada). Entram aqui as OSPU, tanto as OSPU<-S quanto as OSPU<-E e as OSPU<-OSPR, de vez que estas duas últimas, mesmo que sejam constituí- das, sob o influxo de razões estatais e privadas respectivamente, também te- cem um espaço público não-estatal. Todavia, em relação a esse objetivo estratégico – a formação do ‗públi- co não-estatal‘ – também cumprem papel relevante aquelas organizações da nova sociedade civil de caráter público constituídas sob o influxo de razões de mercado (OSPU<-M), sobretudo quando são veículos do exercício da no- va responsabilidade social corporativa, ou seja, instrumentos sociais das ações públicas das empresas na indução ou na promoção do desenvolvimen- to. De sorte que, enquanto os quatro tipos de OSPU parecem cumprir esse papel estratégico, o mesmo não ocorre com todos os tipos de OSPR. Porque é preciso reconhecer: existem OSPR que não cumprem o papel estratégico de gerar ou fortalecer uma esfera pública não-estatal democrática, pelo menos não diretamente (a não ser, talvez, quando atuam como – o que, em termos orgânicos, significa: ‗por meio de‘ – uma OSPU). Caímos aqui, entretanto, no mesmo problema anterior. Pois, se estamos tratando do papel estratégico do terceiro setor para o desenvolvimento, dizer que os atores da formação do ‗público não-estatal‘ são estratégicos exige que se estabeleça um nexo conotativo entre tal ―esfera‖ ou ―espaço‖ (público não-estatal) e desenvolvimento. Um caminho para resolver esse problema é, novamente, o da democracia: se não pode existir democracia sem espaço pú- blico – considerando que a democracia é uma realidade não apenas coeva, mas cognata ao espaço público – e se democracia é intrinsecamente relacio- nável com desenvolvimento (por meio do capital social), então espaço públi- co (seja ele qual for) é também relacionável com desenvolvimento. A solução desse problema nos remete à discussão sobre o conteúdo do que se considera ‗público‘, mas aduz novas e mais intrincadas questões. Pois se o público é, em última instância, o resultado de um pacto de natureza polí- tica, ele pressupõe a existência de uma sociedade política, e não apenas de uma sociedade civil, o que, no limite, significa que não pode subsistir uma sociedade civil de caráter público per se, independentemente do Estado. Sim ou não? Se sim, isso significa que a existência de um público-estatal é condi- ção para a existência de um público não-estatal (na medida em que o reco- nhecimento do que é e do que nãoé público requer a existência de instâncias políticas normatizadoras formais)? E o mesmo valeria para as organizações da nova sociedade civil de interesse público (as OSPU), as quais só poderiam ser reconhecidas como tal pelo Estado? Respostas afirmativas para essas questões não rompem com o esquema trinário adotado aqui (segundo o qual os entes e processos da realidade social podem ser agrupados em três esferas relativamente autônomas, porém inter- dependentes enquanto interagentes: o Estado, o mercado e a nova sociedade civil) e não rompem, igualmente, com o novo sistema classificatório propos- to, o qual se baseia justamente em uma tipologia relacional. Porém, criam dificuldades para explicações baseadas na característica auto-organizadora da sociedade civil e na sua autonomia política. Para resumir, afirmar que o terceiro setor tem papel estratégico para o desenvolvimento significa dizer que, embora os elementos do conjunto ter- ceiro setor cumpram papéis diferenciados em relação ao desenvolvimento, o elemento comum que, direta ou indiretamente, dá unidade a um subconjunto de toda essa variedade é a capacidade que têm determinados tipos de intera- ção social – próprias (pelo menos de uma parte) da nova sociedade civil – de ampliar socialmente a cooperação. Em outras palavras, de produzir e repro- duzir, em escala ampliada, o capital social. Ora, se admitirmos que nem todas as organizações do terceiro setor manifestam tal capacidade, então nem todos os entes e processos que habi- tam a nova sociedade civil cumpririam, desse ponto de vista (i. e., do ponto de vista de produzir capital social como ingrediente insubstituível do desen- volvimento), um papel estratégico. O problema é identificar quem cumpre e quem não cumpre tal papel. Esse problema não pode ser resolvido excluindo- se as OSPR, pois, como vimos, se a democracia está imbricada no processo de reprodução do capital social e se grande parte das OSPR garantem as ba- ses civis para a instalação da democracia, então as OSPR, indiretamente, constituem a condição privada sem a qual não pode existir uma esfera públi- ca democrática – ambiente necessário para a ampliação social da cooperação (ou para a reprodução do capital social em escala ampliada). Nesse sentido, deveria ser excluída apenas uma parte das OSPR: aquela que privatiza capital social e não produz capital social (ou que produz capital social ―igual a zero‖ ou ―negativo‖). Mas esse critério, a rigor, excluiria organi- zações hierárquicas e autocráticas que se organizam internamente com base na violência, como algumas religiões (e certas seitas e sociedades espiritualistas), algumas corporações (e outros movimentos sociais particularistas, fechados e estruturados verticalmente) e alguns partidos (e tendências políticas rigidamen- te centralizadas) – para exemplificar com um caso eloqüente: a organização terrorista Al Qaeda –, além de muitos entes civis básicos da sociedade (como famílias e outros agrupamentos sociais), que, conquanto estejam longe de ser internamente democráticos e de ter atuação democratizante, constituem (estes últimos) um fator imprescindível para a existência da sociedade civil em si. Por outro lado, excluída a hipótese de produção de capital social ―igual a zero‖ ou ―negativo‖ (considerando as dificuldades, já comentadas, de realização dessa possibilidade teórica), é impossível afirmar que todas essas organizações da sociedade civil não produzam, em alguma medida, capital social – mesmo quando o aprisionam dentro de um círculo restrito. Tudo indica que a questão não pode ser resolvida com base em critérios de inclusão e exclusão, e sim com base em graus diferenciados de desempe- nho de um papel estratégico para o desenvolvimento estabelecidos a partir da capacidade efetiva de produção e reprodução ampliada do capital social. As- sim, todas as organizações da nova sociedade civil cumprem um papel estra- tégico – umas mais, outras menos – na medida da sua capacidade de ampliar socialmente a cooperação (ou de conformar ambientes sociais favoráveis à produção ou reprodução do capital social em escala ampliada). Concluindo. As diferentes organizações do terceiro setor cumprem pa- pel estratégico para o desenvolvimento na medida da sua capacidade de: ampliar socialmente a cooperação ou de produzir ou reproduzir o capital social em escala ampliada; ou configurar, fortalecer e expandir uma esfera pública não-estatal democrá- tica; ou conformar ambientes sociais favoráveis à produção ou reprodução do ca- pital social em escala ampliada. Em termos práticos, isso significa que as relações de parceria introduzi- das pela atuação do terceiro setor entre suas próprias organizações (as OS) e entre estas e as organizações do Estado e do mercado (as OE e as OM) au- mentam a capacidade de desenvolvimento das sociedades. No que diz respei- to à concepção de desenvolvimento adotada aqui – o desenvolvimento hu- mano e social sustentável –, a idéia central é a de que nem Estado nem mer- cado, quer separada, quer conjuntamente, são suficientes para promovê-lo. Em outras palavras, sem a nova sociedade civil, não pode haver desenvolvi- mento humano e social sustentável. Em relação a tal objeto, o terceiro setor cumpre um papel necessário, imprescindível, insubstituível e, portanto, estra- tégico mesmo, no sentido mais forte do termo. EPÍLOGO: UM NOVO CONSENSO BASEADO NA SOCIEDADE O reconhecimento do papel estratégico do terceiro setor deve levar à construção de um novo consenso, nem estadocêntrico nem mercadocêntrico, porém centrado na sociedade, ou seja, baseado numa visão sociocêntrica e numa outra concepção de relacionamento entre Estado e sociedade. Para mostrar como pode fazer sentido a construção de um novo consen- so baseado na sociedade, vamos tomar como exemplo um presumido e polê- mico consenso contemporâneo baseado no mercado: o chamado ―Consenso de Washington‖. Trata-se, na verdade, dos resultados de uma reunião de fun- cionários do governo norte-americano e de organismos financeiros internaci- onais sediados em Washington, convocada em novembro de 1989 pelo Insti- tute for International Economics para discutir o latin american adjustment, redigido na forma de receituário ou mandamentos pelo economista norte- americano John Williamson, que seria o economista-chefe do Banco Mundi- al para a região asiática no período 1996-1999. O documento preconizava a adoção de uma dezena de medidas de disciplina fiscal, contenção do gasto público, reforma tributária, nova dinâmica para determinação das taxas de juros, novo tipo de câmbio, abertura comercial e não-protecionismo, não res- trição a entrada de capitais, privatização, desregulamentação e aumento das garantias associadas aos direitos de propriedade para os setores produtivo e financeiro. Por meio de tal decálogo, os especialistas reunidos em Washington no final dos anos 1980 recomendavam às nações latino-americanas: evitar déficit fiscal superior a 1% ou 2% do PIB; mudar as prioridades de gasto público, reduzindo e controlando subsídios e gastos em educação e saúde, além de restringir os investimentos públi- cos; aumentar os impostos como alternativa para evitar déficits fiscais; deixar que a determinação das taxas de juros seja feita pelo próprio mer- cado e fazer com que elas incentivem a poupança popular e evitem a fuga de capitais; tornar o câmbio competitivo para beneficiar as exportações e aceitar que o valor da moeda nacional seja ditado pelas forças do mercado; liberalizar as importações e evitar proteger as indústrias nacionais contra produtos externos para não criardistorções e não empobrecer a economia doméstica; não restringir a entrada de investimentos estrangeiros diretos; vender as estatais, inclusive para aumentar a eficiência econômica da ati- vidade empresarial; diminuir o controle do Estado sobre setores produtivos e promover a livre concorrência; reforçar os direitos de propriedade, aumentando a segurança para os seto- res produtivos e financeiros. Como se pode notar, um receituário desse tipo é claramente inspirado por uma visão mercadocêntrica do processo de desenvolvimento, freqüente- mente chamada de neoliberal, que co-implica uma determinada concepção de padrão de relação entre Estado e sociedade. Não quero entrar aqui na discussão substantiva sobre os acertos e erros das medidas propostas pela reunião de Washington. Igualmente, não preten- do contrapor uma visão centrada no Estado a essa visão centrada no merca- do, seja porque não acredito nesse tipo de ―fuga para trás‖, seja, até, porque isso já vem sendo feito há anos, sem grande sucesso. Mas considerando – e isso parece inegável – que essas medidas do chamado ―Consenso de Washington‖ imaginam que a realidade social seja composta apenas por Estado e mercado, pergunto se não está chegando a hora de propor também um novo receituário, nem estadocêntrico nem mer- cadocêntrico, porém centrado na nova sociedade civil, ou seja, baseado numa visão sociocêntrica e numa outra concepção de relacionamento entre Estado e sociedade. A produção desse novo consenso, que provavelmente não será mais de Washington – não, pelo menos, sob a égide da era Bush – ainda se insere na categoria dos futuríveis (para usar a curiosa expressão empregada pelo jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio ao tratar da possível expansão da demo- cracia realmente existente: política, representativa e formal, para uma nova democracia: também social, participativa e substancial). No entanto, nada nos impede de trabalhar em sua direção. É evidente que um novo consenso desse tipo não poderia pretender substituir o chamado ―Consenso de Washington‖, mesmo porque ele não daria conta de resolver os problemas que Williamson e seus especialistas pre- tenderam enfrentar. Nem poderia ser um consenso contra-liberal – face que assumiram, em maioria, as tentativas de questionar o receituário neoliberal inspiradas por uma visão estatista e regressiva. Teria de ser algo como um consenso pós-liberal, que superasse a contradição estiolante, mas ainda pre- sente, Estado versus mercado. Deveria ser o resultado de um novo debate que, ao contrário do que fez Margareth Thatcher, levasse em conta a existên- cia de algo como uma sociedade civil. Como exercício, compreensivelmente arbitrário, de imaginação e de vi- são antecipatória de um futuro consenso centrado na nova sociedade civil e no papel estratégico do terceiro setor para o desenvolvimento, poder-se-ia propor para discussão um elenco de medidas como o seguinte: como correspondente da disciplina e da responsabilidade fiscal, a respon- sabilidade social de indivíduos e organizações; em vez de apenas contenção do gasto público, sobretudo na área social, a mudança do perfil desse gasto, com a progressiva mas determinada substi- tuição de programas centralizados e baseados na oferta estatal (principal- mente os de transferência direta de renda) por programas descentralizados, que promovam a negociação e exijam contrapartidas locais visando estabe- lecer o casamento entre oferta e demanda, e por programas de indução ao desenvolvimento e de investimento em capital humano e em capital social baseados na parceria com o terceiro setor (OSPU de todos os 4 tipos); para além de uma reforma tributária que evite déficits fiscais, uma reforma tributária que também desonere a produção formal, abarque a economia informal e estimule o engajamento do terceiro setor nas atividades de inte- resse público; concomitantemente com políticas voltadas para o saneamento e o fortale- cimento do sistema financeiro nacional, o incentivo à construção de um sistema microfinanceiro, a ser operado tanto pelo mercado quanto pelo terceiro setor, tendo por objetivo ofertar crédito produtivo para tomadores formais e informais que não possam apresentar garantias reais, e com con- dições de captar poupança popular e de prestar outros serviços financeiros às populações sem acesso ao crédito formal e à propriedade produtiva; contrabalançando políticas de privatização, políticas de publicização que envolvam a parceria com a sociedade e, em alguns casos, a transferência, para organizações da nova sociedade civil situadas na intercessão com o Estado (OE^OS) e para organizações da sociedade civil de caráter público constituídas sob o influxo de razões de Estado (OSPU<-E), de funções até então desempenhadas pelo Estado; juntamente com a desregulamentação, a instituição de mecanismos de controle social do Estado pela sociedade, de orientação social do mercado e de responsabilização social de todos os setores, que promovam a corres- pondência entre direito e responsabilidade (segundo a máxima ―nenhum direito sem responsabilidade‖); avançando sobre o aumento das garantias associadas aos direitos de pro- priedade para os setores produtivo e financeiro, uma reforma legal que promova o acesso aos direitos formais de propriedade, das posses imobili- árias de pessoas de baixa renda, com o intuito de possibilitar sua utilização como alavanca para obter crédito e gerar capital; e, por último, uma reforma do marco legal que regule as relações do Estado com o terceiro setor e com o mercado (com tratamento diferenciado para organizações da sociedade civil de interesse público e para micro e peque- nas empresas), facilite as parcerias intersetoriais, possibilite a construção de um sistema de financiamento mais sustentável para o terceiro setor, promova a inclusão da economia informal, crie ambientes locais e setori- ais favoráveis à obtenção de sinergias entre ações governamentais e não- governamentais, de modo a aumentar a eficiência e a eficácia das políticas públicas e a alavancar recursos novos – que não podem ser extraídos co- mo receita fiscal, mas podem ser mobilizados na base da sociedade e dire- cionados para o desenvolvimento dos ativos já existentes, a dinamização das potencialidades latentes e a satisfação das necessidades das popula- ções. Um pacto como esse – para vigir a partir dos anos 10 ou 20 do século XXI – seria a base para a realização de um plano de reforma, ou de renova- ção, do velho padrão de relação entre Estado e sociedade (aqui incluídos a nova sociedade civil e o mercado), porém do ponto de vista da nova socieda- de civil. No que concerne principalmente às relações entre o Estado e o terceiro setor, tal plano contemplaria pelo menos os oito pontos seguintes: 7. Responsabilidade social O tema da responsabilidade social corporativa já está na pauta. Nos últi- mos anos, esforços vêm sendo feitos M) para difundir e materiali- zarpor algumas organizações do terceiro setor (OSPU a idéia. No en- tanto, a responsabilidade social não deve ser colocada apenas como um apelo às empresas; não pode ser vista principalmente como uma nova fa- ce da filantropia stricto sensu; e não pode ser ―vendida‖ somente como um bom negócio em termos de marketing social. Responsabilidade social é, principalmente e antes de tudo, responsabili- dade das comunidades, do cidadão e de suas organizações. Responsabi- lidade social é responsabilidade pelo desenvolvimento social. Essa res- ponsabilidade é dos governos em todos os níveis, das empresas e das or- ganizações danova sociedade civil; ou seja: de todos os setores da socie- dade. É possível mostrar que, em última instância, a responsabilidade social é uma responsabilidade política com o desenvolvimento social e que tanto governos quanto empresas e organizações do terceiro setor são igualmen- te sujeitos da responsabilidade social. Um argumento para fundamentar esse novo conceito de responsabilidade social poderia ser construído, de modo sucinto e esquemático, da seguin- te maneira: a responsabilidade do cidadão é complementar – e não apenas su- plementar – ao dever do Estado; o cidadão exerce sua responsabilidade individualmente e coletivamen- te, na ação em comunidade e por intermédio de suas organizações; quando assumem responsabilidades sociais, os sujeitos se transfor- mam em agentes sociais; desenvolvimento é um movimento para melhorar a vida das pessoas, de todas as pessoas, das que vivem hoje e das que viverão amanhã; desenvolvimento é desenvolvimento social; agentes sociais são agentes do desenvolvimento social; a responsabilidade social fundamental do cidadão, de suas comunida- des e organizações é a responsabilidade pelo desenvolvimento social; desenvolvimento social é mudança social; mudança social é um domínio político; a responsabilidade social fundamental é uma responsabilidade políti- ca pelo desenvolvimento social; governos, empresas e organizações da nova sociedade civil tornam- se igualmente agentes do desenvolvimento ao assumirem sua res- ponsabilidade política pelo desenvolvimento social. O exercício da responsabilidade social pelos governos deve ser normati- zado como uma obrigação. Se, para os governos, pode existir Lei de Responsabilidade Fiscal, também podem existir leis de responsabilidade social. Por outro lado, o exercício da responsabilidade social deve ser exigido como contrapartida pelo Estado em qualquer contrato ou convê- nio celebrado com empresas e organizações do terceiro setor. Programas governamentais também devem exigir contrapartidas de seus beneficiá- rios ou participantes em termos de exercício da responsabilidade social, mesmo quando executados em cumprimento de dever legal ou voltados para a satisfação de direitos garantidos pela Constituição – segundo a máxima do diretor da London School of Economics and Political Scien- ces, Anthony Giddens: ―Nenhum direito sem responsabilidade‖. 8. Programas inovadores O desenho dos programas hoje existentes deve ser radicalmente alterado com a substituição dos tradicionais esquemas centralizados, fechados, in- flexíveis e baseados na oferta, por outros arranjos, mais descentralizados, que estimulem as parcerias intersetoriais, promovam a negociação e exi- jam contrapartidas visando promover, sempre que possível, o casamento entre oferta e demanda. Isso vale tanto para programas governamentais quanto não-governamentais, pois ainda existem também muitas ações sociais (religiosas, corporativas ou empresariais) que se limitam a ofere- cer pacotes prontos de benefícios, produtos ou serviços. Tais programas são, em geral, conservadores, quer dizer, não contribuem para mudar as relações sociais geradoras das necessidades que preten- dem satisfazer e, assim, tendem a manter tais necessidades, quando não a aumentá-las! Programas inovadores, ao contrário, devem ser descentralizados, abertos, focalizados, adaptáveis, flexíveis e baseados em parcerias. Em primeiro lugar, porque, sem políticas focalizadas, as políticas de al- cance universal em muitos casos perpetuam e até agravam as desigualda- des. Em segundo lugar, porque a flexibilidade e as parcerias ampliam a eficácia dos programas de desenvolvimento social, aumentando sua ca- pacidade de alavancar recursos, dinamizar mudanças e gerar sustentabi- lidade. Tais princípios, quando incorporados em programas inovadores e focalizados, induzem respostas que estimulam o fortalecimento do capi- tal social, condição necessária para o desenvolvimento. Políticas que têm um foco de ação definido, se forem flexíveis e contarem com o concurso de múltiplos atores, vão alargando esse foco para considerar demandas mais gerais de desenvolvimento social da população mobilizada. É preciso ver que as parcerias são estratégicas não apenas porque aumen- tam a eficiência dos programas e das ações que poderiam ser realizadas por um ator individual – governamental, empresarial ou social. Parceria não é sinônimo de terceirização. Vale repetir: quanto mais relações inte- rorganizacionais intersetoriais um programa ou uma organização manti- verem, mais condições eles terão de se aproveitar do capital humano e do capital social existentes no meio exterior. Mas isso não quer dizer que o efeito benéfico do meio acontecerá necessariamente. Este só ocorrerá quando as relações estabelecidas forem relações de parceria – quer dizer, relações cooperativas. A parceria intersetorial agrega valor ao que é ―produzido‖ – sejam pro- dutos, sejam idéias ou relações – e aumenta a capacidade de desenvolvi- mento dos parceiros. As parcerias entre Estado, mercado e nova socieda- de civil criam condições para o estabelecimento de uma sinergia entre essas três esferas da realidade social. E por que é necessário obter tal si- nergia? Porque nenhuma das esferas, isoladamente, é capaz de promover o desenvolvimento da sociedade. O Estado é necessário, imprescindível, insubstituível mesmo – porém não é suficiente. O mesmo vale para o mercado e para a terceiro setor. Mas, pelos motivos já expostos no capítulo anterior, não se conseguirá realizar tal transição no desenho das políticas e dos programas, sobretudo dos programas estatais, sem a participação do terceiro setor. Portanto, compartilhar com a sociedade as tarefas de formulação e implementação de uma estratégia de desenvolvimento social não é apenas uma possibili- dade mas uma necessidade na sociedade contemporânea. 9. Programas de indução ao desenvolvimento As políticas de indução ao desenvolvimento devem ser a principal refe- rência numa estratégia social, e não as políticas assistenciais, por mais necessárias que sejam ou possam parecer estas últimas. Porque combater a pobreza e a exclusão social não é transformar pessoas e comunidades em beneficiários passivos e permanentes de programas assistenciais. Combater a pobreza significa, isso sim, fortalecer as capa- cidades de pessoas e comunidades de satisfazer necessidades, resolver problemas e melhorar sua qualidade de vida. Visões e práticas conformes a essa premissa básica concorrem para configurar um novo padrão de re- lação entre Estado e sociedade, alicerçado na participação dos cidadãos e de suas comunidades e organizações, na parceria entre múltiplos atores, na articulação inter e intra-governamental, na descentralização, na con- vergência e na integração das ações. Assim, a pobreza e a exclusão social devem ser prioritariamente enfren- tadas por programas inovadores de investimento em capital humano e em capital social. O fortalecimento do capital social local e as dinâmicas comunitárias não são um luxo num país com imenso contingente de pobres e excluídos, mas são ingredientes sem os quais as políticas públicas e as ofertas de serviços governamentais não serão eficientes nem suficientes. Uma estra- tégia social para o Brasil, entendida como estratégia de desenvolvimento social, deve, portanto, incorporar com destaque uma estratégia de indu- ção ao desenvolvimento local integrado e sustentável. Isso, todavia, não poderá ser feito pela execução centralizada de um pla- no nacional, nem unicamente a partir de um poder federal ou estadual.