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87 As relações entre representações e práticas:... AS RELAÇÕES ENTRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS: O CAMINHO ESQUECIDO Rafael Pecly WOLTER Universidade Católica de Petrópolis/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brésil Celso Pereira de SÁ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brésil RESUMO Este artigo tem como objetivo apresentar os avanços no estudo das relações entre representações e práticas realizados pelo grupo do Midi. A primeira parte apresenta estudos, já clássicos, de J.-C. Abric sobre o gerenciamento das práticas pelas representações. Em seguida o artigo se centra, a partir de trabalhos de Guimelli e Flament, nas modificações representacionais que decorrem de alterações nas práticas. Por último, seguindo o argumento de Rouquette, a influência recíproca entre práticas e representações é rejeitada e as práticas são vistas sob um novo aspecto. Chega-se a conclusão de que, embora um longo caminho tenha sido percorrido por estes autores, as pistas de pesquisa foram gradativamente deixadas de lado até cair num quase esquecimento. Palavras chave: representações sociais, práticas, abordagem estrutural. LAS RELACIONES ENTRE REPRESENTACIONES Y PRÁCTICAS: EL CAMINO OLVIDADO RESUMEN Este artículo tiene como objetivo presentar los avances en el estudio de las relaciones entre las representaciones y las prácticas llevadas a cabo por el grupo de Midi. La primera parte presenta los estudios, ya clásicos, de J.-C. Abric acerca de la gestión de las prácticas por parte de las representaciones. A continuación, el artículo se centra en el trabajo de Guimelli y Flament, sobre los Vol. XXIII, N. 1 y N. 2 (2013) pp. 87-105. 88 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. cambios de representación que surgen de los cambios que se producen en las prácticas. Por último, siguiendo el argumento de Rouquette, se aborda, analisa y rechaza la influencia recíproca entre las prácticas y las representaciones, así las prácticas son descritas bajo un nuevo aspecto. Se llega a la conclusión de que, a pesar del largo camino recorrido por estos autores, estos temas de investigación han sido poco a poco abandonados hasta casi caer en el olvido. Palabras clave: representaciones sociales, prácticas, abor- daje estructural. THE RELATIONSHIP BETWEEN REPRESENTATIONS AND PRACTICES: THE FORGOTTEN TRAIL ABSTRACT This paper aims to present advances in the study of relationships between representations and practices carried out by the group of Midi. The first part presents studies, now classic, of J.-C. Abric about the control of practices by the representations. Then the article focuses on the works of Guimelli and Flament about representational changes following changes in practice. Finally, following the argument Rouquette, the reciprocal influence between practices and representations is rejected and practices are viewed under a new aspect. The authors conclude that, although a long way has been traveled by these authors, the research tracks were gradually set aside until almost fall into oblivion. Keywords: Social representations, practices, structural ap- proach. A psicologia em geral, e a psicologia social em particu- lar, sempre buscaram estudar as relações entre pensamento e ação. Podemos destacar, dentre outros, os trabalhos acerca da tomada de decisão, da resolução de problemas ou até mesmo a psicologia econômica (Kahneman & Tversky, 1979). Se na grande maioria dos trabalhos os autores buscaram demonstrar como o pensamento influi na ação, podemos também encontrar trabalhos demonstrando que o pensamento é o reflexo do que foi feito. Os trabalhos clássicos da dis- sonância cognitiva (Festinger & Carlsmitth, 1959) caminharam neste sentido até chegar ao ponto em que autores como Beauvois & Joule (1981) afirmam que o indivíduo só tem ilusão acerca de sua capa- cidade de tomada de decisão, no entanto sua margem de escolha é 89 As relações entre representações e práticas:... restrita e ele pensa “a posteriori”, ou melhor, racionaliza e encontra uma explicação acerca do que fez. Gostaríamos de relembrar, neste trabalho, alguns grandes avanços sobre as relações entre pensamento e práticas realizados pelo grupo do Midi1 a partir dos trabalhos de Abric, Guimelli, Flament & Rouquette. PRIMEIRA VISÃO: A REPRESENTAÇÃO COMO GERENCIADORA DE PRÁTICAS Afirmar que os autores que trabalham com a teoria das re- presentações sociais (TRS) foram os pioneiros da ideia de que o pen- samento é um guia para a ação não seria justo. Inúmeras áreas das Ciências Humanas e Sociais já fizeram esta afirmação. Estudos clás- sicos da Psicologia se interessaram por esta questão, linhas de pes- quisa inteiras trataram do assunto, controvérsias ocorreram, como no caso dos estudos sobre os estereótipos e suas relações com a discrimi- nação. Trabalhos como o de Lapiere (1934) questionavam as relações entre o preconceito contra os chineses e a discriminação de fato. Esta corrente de pesquisa culminou com teorias como da ação racional (Fishbein & Ajzen, 1975) ou do comportamento planejado (Ajzen, 1988). Não detalharemos estas pesquisas nem críticas a este tipo de visão, tal como formuladas por autores como Wagner (1993), e nos centraremos nos trabalhos realizados pelo grupo do Midi. Os trabalhos da psicologia há tempos se interessam pela to- mada de decisão, esta última compreendida de um ponto de vista bi- nário, onde diferentes estímulos engendravam diferentes respostas. No seu famoso texto de 2003, Moscovici2 afirma seu desacordo com a visão defensora de que quando o indivíduo sofre um estímulo que afeta sua representação, esta por sua vez indica a resposta adequada a se ter. Ou seja, ele rejeita a visão de que a representação seria uma mediadora situada entre o estímulo e a resposta. Para Moscovici, a representação não fica entre o estímulo e a resposta, ela é anterior a ambos. Jean-Claude Abric et col. (1967) estudaram experimentalmen- te esta questão ao utilizar o paradigma do prisioneiro. Neste paradig- ma o participante da pesquisa se encontra participando de um jogo onde ele pode cooperar com o outro jogador ou competir. Em ambos os casos há ganhos ou perdas possíveis em função da resposta de um segundo jogador. 90 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. Tabela 1. Ganhos e perdas em função das escolhas do participante e do oponente no paradigma dos jogos. Oponente coopera Oponente compete Participante coopera Ganho máximo Perda máxima Participante compete Ganho moderado Perda moderada Abric e seus colaboradores afirmaram à metade dos parti- cipantes que o oponente é um colega estudante, para outra metade disse que era uma máquina. Em ambos os casos o adversário era o experimentador, toda vez que o participante tomava uma decisão, na jogada seguinte o experimentador fazia a mesma escolha que o participante fez (técnica chamada de “tip for tap”). Os autores fize- ram a hipótese de que, como a ideia de máquina como parceiro su- gere incontrolabilidade e impossibilidade de influência, haverá mais competição comparativamente ao parceiro humano, que é concebido como reativo. Esta hipótese é típica da visão em que a representação do estímulo e da resposta explica a escolha da estratégia utilizada pelo participante: com o adversário reativo é possível cooperar mais, com a máquina é melhor competir. Figura 1. Efeito da representação do adversário (colega ou máquina) sobre a resposta ao estímulo (comperativa ou competitiva). 91 As relações entre representações e práticas:... Os resultados ilustram perfeitamente como a representação do adversário, máquina incontrolável ou colega reativo, tem um efei- to sobre a resposta escolhida pelos participantes. Coopera-se mais frente ao colega comparativamente às situações onde o adversário é uma máquina. Em suma,Abric e colaboradores demonstraram que os participantes levam para a situação experimental seu conhecimen- to acerca do mundo e este conhecimento é preponderante na com- preensão do estímulo e da resposta adequada. Em outra versão de seu experimento Abric não manipula experimentalmente a represen- tação do adversário, mas a compreensão do contexto: para metade dos participantes ele afirma que o estudo é sobre um jogo, para a outra metade diz que é sobre resolução de problemas. Como previsto pelos autores, os participantes cooperam mais quando creem estar em situação de resolução de problemas compa- rativamente a quando acham estar jogando. Estes trabalhos de Abric se inserem plenamente na já famosa definição de representações so- ciais, de Denise Jodelet (1989/2003), como “uma forma de conheci- mento socialmente elaborada e partilhada, tendo um objetivo prático e concorrendo à construção de uma realidade comum a um conjunto social”. Jean-Claude Abric chegou ao ponto de afirmar que uma das grandes funções da representação social é de orientar e guiar os com- portamentos e práticas sociais. Abric especifica mais acerca das condições necessárias para que a representação afete a ação. Primeiramente ele afirma que é necessário que a situação “tenha uma carga afetiva forte, e onde a referência –explícita ou não– à memória coletiva é necessária para manter ou justificar a identidade, a existência ou a prática dos gru- pos” (1994:231). Este primeiro caso é o que o autor denominou como práticas significantes e correspondem segundo Abric ao que Moscovici “analisa como ações representacionais, ou seja um conjunto de con- dutas regulares, sem contradição com as normas, realizadas em acor- do com o grupo e que correspondem às crenças partilhadas porém não verbalizadas (...)” (1994:231). Esta visão de prática significante pode perfeitamente ser ilus- trada pelo belíssimo livro de Denise Jodelet intitulado “Loucuras e re- presentações sociais”, de 2003 (original publicado em 1989), onde ela 92 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. evidencia que as mulheres que acolhiam doentes mentais em suas casas evitavam o contato com fluidos corporais, suor, sangue ou sa- liva, dos pacientes. A autora demonstrou que a noção de contágio da loucura se mantinha presente na comunidade estudada e guiava ações de prevenção contra o contato com os fluidos corporais dos pa- cientes. O segundo caso em que Jean-Claude Abric afirma que as prá- ticas são determinadas pela representação correspondem às situações de práticas não restritivas (não constrangidas). São os casos em que a pessoa possui escolhas possíveis, ou seja, possui uma margem de manobra para passar ao ato sem que uma opção de ação lhe pareça incontornável. Nenhuma das escolhas é imposta por uma norma social, pelo poder de uma autoridade ou de uma instituição, nenhuma caracte- rística objetiva da situação impõe uma ação. Olhando por outro lado, pode ser uma situação onde diversas restrições ocorrem, mas autori- zam, ou melhor toleram, diferentes ações. O estudo de Abric e colaboradores acerca do paradigma dos jogos, onde os sujeitos deviam escolher entre cooperar e competir (al- guns resultados apresentados acima na figura 1), se inclui perfeita- mente nesta condição de prática não constrangida. Abric (1971) chegou a testar experimentalmente o fator restritivo da situação e concluiu que, em situações onde o constrangimento à ação é elevado, a repre- sentação deixa de ser um fator causal na tomada de decisão. Estes resultados levaram Jean-Claude Abric à formulação da hipótese aqui apresentada de que quanto mais complexas e ambíguas são as situações que o ator confronta mais determinante é o papel das representações. Todos estes trabalhos possuem em pano de fundo, a intuição, ou melhor, a convicção de que, ao menos em algumas situações, o indivíduo age em adequação com seus pensamentos. Esta convicção de forma alguma exclui a possibilidade de que em outras situações o pensamento se adeque à representação e não o oposto. É o que vere- mos nesta segunda parte deste artigo. 93 As relações entre representações e práticas:... SEGUNDA VISÃO: A PRÁTICA COMO FATOR DE MUDANÇA REPRESENTACIONAL A ideia de que a prática pode alterar a relação entre a pessoa e o objeto de prática não é nova. Os estudos acerca da mudança de atitudes a partir de comportamentos contra-atitudinais se inscrevem nesta linha de pensamento. Lima (2000) descreve de maneira concisa um exemplo que ilustra perfeitamente este ponto de vista acerca da influência do com- portamento na relação indivíduo-objeto: “(...) Pallak, Cook e Sullivan (1980) utilizaram esta perspec- tiva num estudo quase-experimental no terreno para incen- tivarem o comportamento de poupança de energia eléctrica. Anunciaram nos jornais locais uma campanha de poupança de energia em duas localidades dos Estados Unidos, com características sociodemográficas e de consumo de energia semelhantes. Anunciava-se que os agregados familiares que poupassem mais energia durante o período de um mês teriam o seu nome publicado no jornal local. Numa das localidades, esta promessa foi cumprida, mas na outra não, colocando assim as pessoas numa situação de dissonância (“privei-me de ar condicionado, tive cuidado a desligar todas as luzes” e “não ganhei nada com isso”) que foi resolvida interiorizando a necessidade de poupar energia” (pp. 215-216). Existem vários outros estudos, no campo das atitudes, que ilustram este fenômeno de mudança a partir do comportamento (por exemplo, Beauvois e Joule, 1996; Festinger e Carlsmith, 1959; Tafa- ni, 2001). Todos estes trabalhos possuem em comum dois aspectos: o primeiro é que há um constrangimento ao comportamento; o se- gundo ponto é que este constrangimento precede diacronicamente a mudança atitudinal ou representacional. Estes resultados corroboram o ponto de vista de Abric des- crito anteriormente, pois estes diferentes estudos sobre a mudança a partir do comportamento restringem a possibilidade de ação dos par- ticipantes: estes são induzidos a agir de uma maneira que lhes é nova ou não habitual. O segundo ponto é relativo à causalidade implícita neste olhar: a mudança de pensamento ou de atitude ocorre após o 94 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. comportamento. Em consequência a nova atitude ou pensamento de- corre da mudança comportamental. Nos anos noventa uma série de autores se interessou por este tipo de relação entre práticas e representações, dentre eles, Christian Guimelli, que buscou estudar o efeito de mudanças externas sobre a representação. Por mudança externa deve-se compreender que são alterações extra-individuais e extra-representacionais que impõem mudanças de práticas. Uma nova lei pode, por exemplo, ser concebi- da como uma mudança externa aos indivíduos, grupos e suas respec- tivas representações. Um processo analógico possivelmente ocorreu com a repre- sentação da higiene (Castro, 2012): regras e leis impuseram uma série de medidas higiênicas preventivas a partir do final do século XIX, a posteriori e a partir destas mudanças as pessoas envolvidas se ade- quaram e modificaram seus comportamentos o que em médio prazo levou a mudanças representacionais para compatibilizá-las com estas novas práticas. Guimelli interessou-se pelas representações de pro- fissionais de enfermagem, pois estes conviviam com dois campos de prática distintos em sua profissão: • “Um campo ‘tradicional’, inerente à prescrição médica, no qual o enfermeiro se situa como um executor dos atos prescritos pelo médico: é o ‘papel prescrito’. • Um campo relativo ao ‘próprio papel’ no qual ele possui uma real autonomia e aplica seu próprio saber. O próprio papel fica sob a responsabilidade única do enfermeiro e denomina as competências essencialmente relacionais.Ela centra o interventor na pessoa cuidada, enquanto que a abordagem médica o orienta em direção à doença” (1994a:181). Guimelli realizou um estudo com trinta enfermeiras e as se- parou em dois grupos (14 participantes no grupo de práticas tradicio- nais e dezesseis no de novas práticas) a partir da mediana do escore em um questionário acerca das práticas realizadas no seu trabalho. 95 As relações entre representações e práticas:... As participantes indicavam neste questionário a frequência com que realizavam doze tarefas em relação direta com o “novo papel”, após isto respondiam a questões ligadas ao modelo dos esquemas cogniti- vos de base (Guimelli e Rouquette, 1992). Os resultados mostram que as participantes que trabalham com novas práticas pensam o “novo papel” de enfermagem de ma- neira mais operacional (quem realiza a ação, que ação o ator realiza) e utilitária (quem utiliza o instrumento, em que objeto o instrumento é utilizado ou que objeto é utilizado pelo instrumento). Guimelli che- ga à conclusão de que o aumento da frequência das novas práticas mobiliza um campo representacional prático, notadamente ativando cognemas (no sentido de Codol, 1969) ligados à ação, o que ilustra bem uma transformação representacional a partir de novas práticas. Em outros termos, “o acesso às novas práticas modifica de forma massiva a estrutura da representação. No caso analisado, os resultados empíricos mostram que a operação de novas práticas ativa esquemas que as prescrevem e reforçam suas ponderações no sistema representacional” (Guimelli, 1994b:106). Para Flament (1994:50) as circunstâncias externas correspon- dem a “qualquer estado do mundo fora da representação social” e corresponde a toda forma de causalidade estranha à representação social. Christian Guimelli estudou empiricamente o caso do efeito de uma mudança externa sobre uma representação social ao estudar o efeito da mixomatose (doença que extinguiu, ou quase, os coelhos selvagens de várias regiões da França e Europa) sobre as práticas e representações de caçadores. A prática agiria, segundo Claude Flament (1994), como a in- terface entre as circunstâncias externas e os prescritores internos da representação. Como as prescrições orientam e determinam as práti- cas é natural que, caso um fator externo modifique algumas práticas, os prescritores se adequem à novidade. Para não deixar ambiguida- des convém relembrar que prescrição tem o sentido de “totalidade das modalidades em que uma ação é suscetível de ser afetada: ‘deve- se fazer...; ‘pode-se fazer...’; ‘é desejável fazer...’; ‘não se pode fazer...’; ‘não se deve fazer...’ etc. O aspecto prescritivo de uma cognição é o 96 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. laço fundamental entre a cognição e as condutas que se supõe lhe corresponder”(...) (Flament, 1994:38). Em suma, o aspecto prescritor da cognição é a ponte entre as condutas e as ideias correspondentes a ela. Os autores do grupo do Midi distinguem, como já é bem difundido no Brasil (Sá, 1996), as prescrições absolutas das condicionais. As prescrições absolutas são inegociáveis, por exemplo, dentro de um grupo ideal as pessoas devem ser amigas, caso isto não ocorra aquele grupo não será aceito como sendo ideal. Neste caso a amizade tem a função de prescritor absoluto, pois sem este cognema (amizade) não é possível reconhecer o objeto (grupo ideal). Em outras palavras, não é aceitável existir outra forma de re- lação entre membros de um grupo ideal que não seja amistosa. Por outro lado, um grupo ideal se caracteriza, geralmente, por ser forma- do por pessoas que possuem as mesmas opiniões. No entanto, diversos trabalhos (Moliner, 1989; Rouquette & Rateau, 1998) mostram que, mesmo sem ter as mesmas opiniões, um grupo é considerado ideal caso ele seja composto por pessoas amigas e iguais. Como o objeto (grupo ideal) continua sendo reconhecido como tal, embora os membros deste grupo não tenham as mesmas opiniões, é então possível considerar que este cognema (mesmas opi- niões) é negociável, sendo por isto denominado de prescritor condi- cional. A distinção entre estes dois prescritores e a razão pela qual os absolutos compõem o sistema central da representação foi apre- sentada em 1996 por Sá, em consequência não iremos aprofundar a descrição das relações entre status do cognema, central ou periférico, e negociabilidade deste. Tabela 2. Esquema acerca da dinâmica da mudança representacional (Flament, 1994). Modificação das circunstâncias externas ↓ Modificação das práticas sociais ↓ Modificação dos prescritores condicionais ↓ Modificação dos prescritores absolutos 97 As relações entre representações e práticas:... Para Flament, a mudança das circunstâncias externas não afeta diretamente os prescritores absolutos, é necessário que haja modificações prévias das práticas sociais e dos prescritores condicio- nais. Na maior parte dos casos a simples alteração dos prescritores condicionais basta para que os prescritores absolutos se mantenham intocáveis após as modificações externas. Em outros casos, as pes- soas protegem os prescritores absolutos utilizando “boas razões”. Este processo foi ilustrado por Flament (1994) partir da seguinte frase “nestas circunstâncias faço algo inabitual, mas tenho uma boa razão para isto.” No caso do estudo de Christian Guimelli acerca da caça, ao serem obrigados a caçar coelhos criados em cativeiro (os coelhos selvagens estavam em extinção devido a mixomatose), os caçadores usaram racionalizações e boas razões tal qual a frase que segue: “sem criar as presas em cativeiro não teremos mais como exercer nossa prá- tica”. Em alguns casos a mudança dos prescritores condicionais e estas boas razões não são suficientes para proteger o prescritor abso- luto, principalmente no caso de modificações irreversíveis de práticas ligadas a este prescritor (absoluto), quando será então necessário ir até o último nível de mudança: a dos elementos absolutos. Esta últi- ma mudança ocorre em casos extremos, pois na maior parte dos casos as modificações a nível representacional envolvem apenas as pres- crições condicionais, menos essenciais à visão do objeto para o grupo. Independentemente do nível de mudança, veremos sempre, a médio prazo, uma adequação entre o pensamento e a conduta, o que significa que a inadequação é um estado momentâneo. Esta ade- quação se dá tanto a partir de racionalizações e boas razões, que ex- plicam a inadequação temporária, quanto de mudanças dos prescri- tores condicionais e absolutos. Este último caso, de mudança das cognições absolutas per- tencentes ao núcleo central, sempre ocorre após mudanças externas importantes e que se mantêm no tempo. Em última instância, como afirma Flament (1994), se esta mudança importante afetar as cog- nições absolutas e o restabelecimento do pensamento pós-mudança 98 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. não for homogêneo na população, com indivíduos e subgrupos en- contrando vias alternativas e vias não consensuais para restabelecer a adequação entre a conduta e o pensamento, pode-se considerar que o núcleo central da representação foi desmantelado e que aquele grupo não possui mais uma representação autônoma (onde as prescrições absolutas formam um sistema único, conforme trabalho de Flament em 1989). SOBRE A ASSIMETRIA DAS INFLUÊNCIAS ENTRE REPRESENTAÇÕES E A VARIEDADE DAS PRÁTICAS Acabamos de nos interessar por dois tipos de relação entre as práticas e as representações. Primeiramente cuidamos dos estudos e conceituações das representações como gerenciadoras das práticas. Na segunda parte nos interessamos pelas mudanças representacio- nais a partir das práticas. Poderíamos, numa leitura superficial dos trabalhos aqui apresentados, concluir que as práticas e represen- taçõespodem ou se influenciam mutuamente. Para Rouquette (2000), entretanto, como as duas formas de influência não são equivalentes, não é legitimo falar em reciprocida- de das influências. Ele afirma que devemos tomar as representações como uma condição das práticas e as práticas como um agente de trans- formação das representações. Ambas as constatações, da represen- tação como condição das práticas e esta última, a prática, como agente de transformação da primeira, levaram o autor a se questionar sobre o que é uma prática. Esta noção extremamente ambígua “abrange ao menos dois aspectos eventualmente confundi- dos: a realização de uma ação (conduta efetiva) e a frequência (ou, correlativamente, a familiaridade para o sujeito) dessa realização. Por exemplo, o fato de cumprir uma tarefa num dado momento, e o número de vezes que cumprimos até en- tão uma tarefa idêntica ou semelhante; a passagem ao ato e a recorrência desse ato. Colocamos em oposição de um lado, a concretização à simples intenção, o gesto ao pensamento, e de outro o hábito, ou ao menos a banalidade relativa à rari- dade, talvez à novidade radical” (Rouquette, 2000:43-44). 99 As relações entre representações e práticas:... Rouquette distingue neste primeiro ponto a passagem ao ato, ou seja, a concretização da ação, da banalidade ou recorrência do ato. O autor também diferenciou duas vertentes de ação: a maneira de fazer e a consequência percebida desse fazer. Dois grupos podem ter muita experiência acerca do objeto, tanto com práticas efetivas e recorrência da ação, e no entanto estes dois grupos podem agir de forma dife- rente, ou seja, possuem maneiras distintas de agir. Estudos que se interessam por diferentes procedimentos (como no estudo de Guime- lli, onde havia práticas tradicionais e novas) e desempenhos podem perfeitamente ser definidos como estudos que focam nas diferentes “maneiras de fazer” das populações estudadas. Os estudos que se interessam pela consequência percebida desse fazer, também denominada de prática como cálculo, concebem a ação a partir da estratégia e das antecipações que o sujeito faz. Em outras pa- lavras, convindo que ao agir as pessoas possuem metas e intenções, esta dimensão concebe a prática como um “trabalho cognitivo de pre- paração e acompanhamento, depois de avaliação, da ação, até mesmo uma simulação desta” (Flament & Rouquette, 2003:36). Os trabalhos de Abric sobre o dilema do prisioneiro ilustram bem este ponto: os sujeitos previam reações do adversário, máquina ou colega, e ade- quavam suas respostas a estas antecipações a fim de ter um máximo de ganho. Em suma, Rouquette concluiu que a relação entre represen- tação e prática e as suas respectivas influências devem levar em conta os quatro aspectos da prática: 1. A prática como passagem ao ato; 2. A prática como recorrência; 3. A prática como maneira de fazer; 4. A prática como “cálculo”. A consideração destes quatro aspectos nos ajuda a sair de um grande problema frequentemente encontrado, a polissemia da noção de prática. Poderíamos acrescentar –e a primeira metade deste artigo fornece uma bela ilustração– que trocamos regularmente de denomi- nação, passando de ação a conduta para um pouco depois falar de 100 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. prática ou comportamento. Neste sentido, nos parece que o trabalho de Michel-Louis Rouquette foi um grande avanço para a área, pois es- pecificou e delimitou a noção de prática em quatro aspectos precisos e relativamente bem delimitados. Como é possível notar na tabela 3, cada aspecto traduz uma característica distinta da noção de prática e, embora estas característi- cas sejam próximas, de forma alguma podem ser consideradas idênti- cas. A operacionalização comparativa que Rouquette aí delineia para a pesquisa empírica de cada tipo de prática não apenas torna eviden- tes as diferenças entre eles, mas também descortina para o pesqui- sador das representações sociais possibilidades de investigação das relações entre estas e as práticas em contextos concretos específicos e diferenciados –dos pontos de vista geográfico-populacional, políti- co-econômico e sócio-cultural– nos quais as duas noções mais fazem sentido e melhor podem contribuir para a psicologia social. CONCLUSÃO Como acabamos de ver, nos anos sessenta e nas três décadas seguintes, diversos autores do grupo do Midi se interessaram pelas relações entre práticas e representação. Cronologicamente, estes tra- balhos se focaram na coerção das representações sobre as práticas, para depois se focar na transformação das representações a partir das práticas e, por fim, chegaram, ao final dos anos noventa e início dos anos 2000, a uma nova caracterização das práticas. Muitos destes trabalhos, infelizmente, ficaram sem continuação, tanto para maio- res avanços teóricos quanto, na aplicação, para uma maior precisão conceitual acerca da prática estudada. No entanto, várias questões ficam em aberto, sobre os quatro aspectos das práticas, Rouquette afirmou que não lhe parece “certo que os estudos feitos até aqui, no domínio das repre- sentações sociais, tenham sempre distinguido o peso relativo desses quatro aspectos. É, entretanto, muito fácil convertê- los em termos operacionais: comparemos, por exemplo, um grupo sem nenhuma experiência de uma atividade particu- lar, e outro grupo que terminou de agir pela primeira vez; depois grupos que tenham familiaridade mais ou menos 101 As relações entre representações e práticas:... grande com as condutas em questão; grupos agindo a propó- sito do mesmo objeto, de maneiras diferentes; e, por fim, gru- pos exibindo processos de ‘cálculo’ irredutíveis uns aos ou- tros. Indubitavelmente em interação com as situações sociais correspondentes, e por conseguinte com a posição social dos atores, veríamos assim que certos aspectos das práticas são mais decisivos que outros, para a fabricação e transformação das representações do mundo. Tais trabalhos, que culmina- riam, inevitavelmente, em precisar os conceitos precedentes, propiciariam grandemente a passagem da noção intuitiva de prática a um status científico um pouco melhor lastreado” (Rouquette, 2000:45). Poderíamos acrescentar que seria importante saber que as- pectos das práticas podem prioritariamente agir como agente de trans- formação da representação, dentro do esquema apresentado por Fla- ment (cf. tabela 2). Por outro lado, poderíamos também nos questio- nar sobre os aspectos das práticas mais suscetíveis de serem afetados pela representação. Além disso, poderíamos inserir as práticas dentro de sua historicidade, pois, como salienta Rouquette (2000:41), “a aná- lise reflexiva do papel da história continua a ser nódoa cega na teoria das representações”. Em suma os autores do grupo do Midi fizeram grandes avanços acerca do conhecimento das relações entre representações e práticas e Michel-Louis Rouquette nos apontou caminhos possíveis a seguir. No entanto, esta direção não parece ter tido continuidade em pesquisas recentes. Se estes caminhos –abertos por pioneiros como Jean-Claude Abric e Michel-Louis Rouquette, recentemente falecidos– serão des- bravados ou não depende agora daqueles de nós que –na França, no México, no Brasil ou alhures– valorizamos a perspectiva conceitual, teórica e metodológica do grupo do Midi no campo das represen- tações sociais e sejamos de fato capazes de dar conta da tarefa. Isto somente o tempo dirá, mas as importantes contribuições destes pre- cursores fazem já parte da memória e da história da psicologia social. 102 WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. Tabela 3. Exemplo, forma de operacionalização e tipo de prática. Tipo de prática Operacionalização Exemplos Prática como passagem ao ato Consiste em comparar uma população que nunca implementou a ação àpopulação que já implementou a ação. Comparar soldados que experimentaram o fogo a soldados que nunca entraram em combate. Prática como recorrência Utiliza uma graduação da experiência que vai do “novato” ao “perito”. A graduação se faz a partir da duração da experiência (em tempo), quantidade de vezes que se deparou com a situação ou ainda quantidade de conhecimentos acerca da questão. Comparar soldados veteranos, que lutaram em muitas batalhas a soldados que lutaram em poucas batalhas. Prática como maneira de fazer Neste caso é necessário distinguir qualitativamente a prática comparando um grupo que faz a prática à maneira X a outro grupo que realiza essa prática à maneira Y. Comparar soldados veteranos que em batalha atiram no inimigo a soldados veteranos que nesta mesma situação apoiam moralmente outros soldados e não focam no inimigo. Prática como cálculo Comparar grupos ou pessoas que em relação à prática em questão possuem diferentes avaliações de consequências, intenções, planos de ação ou objetivos. Comparar soldados que em combate valorizam mais o cumprimento da missão a soldados que valorizam mais a tomada de risco mínima. 103 As relações entre representações e práticas:... NOTAS 1. Como os pesquisadores aqui citados, Abric, Flament, Guimelli e Rouquette realizaram seus trabalhos nas cidades de Aix-en- Provence e Montpellier, Sá (1996) decidiu denominá-los de grupo do Midi (nome informal dado ao sul da França). 2. O texto original, em inglês, é de 1984. REFERÊNCIAS ABRIC, J.-C. (1971). “Experimental Study of Group Creativity: Task Representations, Group Structures and Perfor- mance”, European Journal of Social Psychology, 1, pp. 311- 316. ––– (1994). Pratiques sociales et représentations, Paris, PUF. ABRIC, J.-C.; FAUCHEUX, C.; MOSCOVICI, S. & PLON, M. (1967). “Rôle de l’image du partenaire sur la coopéra- tion en situation de jeu”, Psychologie Française, 12, pp. 267-275. AJZEN, I. (1988). Attitudes, Personality and Behavior, Milton Keynes, Open University Press. BEAUVOIS, J.-L. & JOULE, R.V. (1981). Soumissions et idéologies: Psychosociologie de la rationalisation, Paris, PUF. ––– (1996). 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Rafael Pecly WOLTER Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Ja- neiro onde atua como Coordenador-Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Conduz pesquisas acerca dos seguintes temas: pensamento so- cial e formas de raciocínio em situação de mobilização coleti- va; representações sociais; relações entre memória identidade e esquecimento. rafaelpeclywolter@gmail.com Celso Pereira de SÁ Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sua experiência e produção acadêmica se concentram nos campos da análise do comportamento social, das represen- tações sociais e da memória social. Conduz pesquisas nos seguintes temas: controle e contracon- trole sociais, socialização do conhecimento científico, religiões afro-brasileiras, representações sociais de políticas públicas e da exclusão social, memórias do descobrimento do Brasil e de regimes políticos brasileiros recentes (a Era Vargas, os Anos Dourados e o Regime Militar). sa.celso@gmail.com
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