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A MENTIRA A mentira, tão comum em crianças, somente se caracteriza como um desvio de comportamento após a idade de 6 a 7 anos, quando a noção de socialização está devidamente incorporada. Em idade mais precoce a criança ainda não distingue nitidamente o mundo real do imaginário, o que só se desenvolve aos poucos e assume sua plena significação após seis a sete anos, idade em que se solidificam os valores sociais e morais, o que ocorre ao final do Édipo com a ação interditória do pai, simbolizando a lei. Essa distinção e evolução entre o mundo real e o seu imaginário ocorrem progressivamente. Quando a auto-estima e reconhecimento do outro passar a ser priorizado pela criança, então “dizer a verdade” fará parte de sua conduta social. De acordo com Jean Piaget, psicólogo e educador, a criança não faz distinção entre atividade lúdica, mentira e fabulação antes dos seis anos. Progressivamente o verdadeiro e o falso e depois a verdade e a mentira começam a se diferenciar em seu pequeno mundo. Após os oito anos, lentamente, a mentira adquirirá sua dimensão intencional. Tem-se então de um lado a etapa da fantasia e simbolismo com as brincadeiras, atividades lúdicas, contos de fada e a mentira antes dos seis anos e por outro lado a mentira intencional após os oito anos. Entre esses dois períodos está presente a distinção entre verdadeiro e falso, mas a mentira é entendida como erro. Dizer a verdade se constitui num aprendizado progressivo. O aprendizado da verdade é social: os pais valorizam a confissão da verdade e fazem dele um comportamento responsável e adulto. Aos poucos a criança entende que dizer a verdade agrada aos pais e à sociedade e tudo que eles querem é se sentirem queridos e valorizados pela família e pelos outros. Sua auto- estima e consequentemente seu narcisismo agradecem. Clinicamente se distinguem três tipos de mentira: a mentira utilitária, a mentira compensatória e a mitomania. A mentira utilitária é aquela usada para garantir alguma vantagem ou proveito ou ainda para evitar um desagrado: mudar notas do boletim em troca de algum presente prometido, dizer que ganhou o jogo quando perdeu, ocultar suas saídas com amigos indesejáveis e outras. A atitude dos pais diante da mentira será determinante na evolução do comportamento. Acreditar demasiadamente no filho ou não estar atento aos acontecimentos, favorecerá o desenvolvimento desse comportamento. Por outro lado um excesso de rigor moralizante pode progredir para uma seqüência de condutas mentirosas numa escalada de mentiras encobridoras. Chamar a atenção não insistindo demasiadamente, permitirá à criança não se inibir diante do fato e aos poucos perceberá a inutilidade de sua conduta. A atitude da criança diante da mentira dependerá exclusivamente do adulto, em particular dos pais. Há pais em que se percebe uma incoerência entre sua fala e sua conduta às vezes mentirosa para com outros e também para os próprios filhos. Os pais se constituem modelo de identificação para seus filhos, portanto, o exemplo prevalece sobre as pregações moralizantes. A mentira compensatória se caracteriza pela ausência de ganho concreto, real. Traduz a busca de uma imagem que a criança vê como inacessível e desejável ou perdida. Cria para si uma família rica, famosa; fala de bens que não possui; relata façanhas escolares, amorosas, esportivas, heróicas. Enquanto ocupar um lugar razoável no imaginário da criança e ocorrer na tenra infância essa mentira é considerada banal e normal. Existem crianças que desenvolvem um devaneio, uma fantasia que assume um lugar predominante, tal a elaboração que conseguem realizar. Eles constroem para si uma família com seus diversos membros e com os quais conseguem dialogar. Podem também inventar um irmão, uma irmã, um amigo com o qual falam de sua vida e em companhia do qual brincam. Até os seis anos não tem caráter patológico e fazem parte do sonho que possibilita a criança elaborar sua identidade narcísica. A partir dessa idade se caracterizam como distúrbios psicopatológicos: personalidade histérica, incerteza identificatória, distúrbio de consciência de si. Esse tipo de conduta caracteriza uma pré-psicose. A mitomania se constitui no grau extremo desse devaneio. Constitui “uma tendência patológica mais ou menos voluntária e consciente à mentira e à criação de fábulas imaginárias”, de acordo com Dupré, que a descrevia como vaidosa, maligna, perversa e também fisiológica na criança. A doença se constitui num verdadeiro suporte narcísico, edificado sobre falsas bases que a criança se atém para mascarar esse vazio. A criança mitomaníaca grave é portadora de significantes carências afetivas habituais e necessárias, carências nas gerações parentais e incertezas de identidade (pai ou mãe desconhecidos) ou mais ainda, conhecido(a) apenas por alguns membros da família, mas mantido(a) em segredo. Liria Helena Moreira Gomes Littig Professora, psicanalista e psicopedagoga E-mail: lhlittig@gmail.com
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