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1 - Introdução: De um lado é claro que existem testemunhos e evidencias fortes no sentido de que o arsenal jurídico português teve longa pervivência no Estado Brasileiro. O jurista italiano Tullio Ascarelli, que fugido do fascismo, se abrigou no Brasil, disse que o traço mais típico do direito privado brasileiro estava na vigência ininterrupta, até a codificação de 1916, do velho direito comum integrado no plano legislativo pelas Ordenações Filipinas de 1603, de forma que a legislação brasileira carregou até a segunda década do século XX, marcas visivelmente medievais da época portuguesa. Além disso, em 20 de outubro 1823, pouco depois da independência, promulga-se uma lei que estabelece que continue em vigor todo o ordenamento jurídico promulgado pelos reis de Portugal até 25 de abril de 1821, ou seja, uma clara relação de continuidade de vínculo de metrópole e colônia, enquanto não se organizava um novo código ou não fosse especialmente alterado o ordenamento. E ainda tem o detalhe de que a quase totalidade dos jovens juristas brasileiros era formado em Coimbra, o que também mantém o vínculo com o ordenamento jurídico português. 2 – O direito “colonial brasileiro”. Se o Brasil era colônia de Portugal, nada mais justo do que imaginar um ordenamento jurídico idêntico para os dois países, porém essa ideia gera um conflito uma vez que entra em choque com a pluralidade jurídica, haja visto que no Brasil, mesmo sendo uma colônia, tinha suas especificidades de natureza do poder e do direito, pois nesse tempo a norma escrita era uma fonte minoritária do direito, em relação à diversidade de expressões jurídicas então presentes. Logo, diante de uma sociedade completamente subdividida em ordens particulares, o forte pluralismo jurídico determinava que cada “corpo” deveria ser regido pela sua própria “iurisdictio”. A sociedade era dividida e organizada e isso era garantia de que essa sociedade pudesse funcionar harmonicamente, diante isso Hespanha disse que havia uma impossibilidade lógica de uma administração centralizada – e, como consequência, a impossibilidade de que houvesse uma fonte jurídica única e determinante que tivesse condições de excluir todas as demais; e pensar numa sociedade plural, não centralizada, com diversas fontes produtivas de direito e com diversas forma de expressão de juridicidade. Segundo Hespanha: “a autonomia de um direito não decorria principalmente da existência de leis próprias, mas, muito mais, da capacidade local de preencher os espaços jurídicos de abertura ou indeterminações existentes na própria estrutura do direito comum”. Traduzindo: como o direito comum (do qual as ordenações filipinas são uma forma de expressão) tem um caráter lacunoso, deixando livre a possibilidade de manifestação de outros direitos, há que ser considerado o amplo uso da pratica dos costumes locais e também das decisões dos juízes e tribunais como componentes integrantes de um direito relativamente originário. No Brasil percebe-se uma notória diferença da juridicidade metropolitana portuguesa na medida em que a colônia não tinha uma tendência à centralização, ou seja, existe significativa presença de usos particulares nas decisões judiciais que vão se adaptando e orientando especificas condições do Brasil colônia. Logo, seguindo o pensamento de Hespanha: “a regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurídica pluralista não é, assim, uma regra formal e sistemática que hierarquize as diversas fontes do direito, mas antes o arbítrio do juiz na apreciação dos casos concretos, fica ao arbítrio do juiz aquilo que não está definido pelo direito. É ele quem, caso a caso, ponderando as consequências respectivas, decidirá do equilíbrio entre várias normas disponíveis. Este arbítrio é, no entanto, guiado pelos princípios gerais a que nos referimos. Mas, sobretudo, pelos usos do lugar ao decidir questões semelhantes (...) usos que, assim, se vêm a transformar num elemento decisivo deste direito pluralista”. Resumindo, no contexto do antigo regime “sui generis” como o brasileiro dotado de grande pluralidade jurídica e com a ausência de uma fonte legal exclusiva e excludente de outras formas de juridicidade, o papel dos usos e da jurisprudência local com o conteúdo profundamente costumeiro das práticas cotidianas, apontam sempre para uma solução momentânea e local, mas não abstrata e sistemática, utilizando como orientação toda a noção de equidade e justiça tomadas pelo juiz atuante. 3 – A cultura jurídica brasileira como problema: A partir de 1822, o Brasil descola-se do império português e naturalmente como toda colônia busca, após sua independência, distanciar-se de seus colonizadores, o Brasil quis também buscar suas especificidades culturais e criar sua própria identidade jurídica. Nova constituição é promulgada em 1824, novos códigos são projetados e as instituições políticas, apesar das complexidades, tentam imitar os modelos das “nações polidas e civilizadas”. Ou seja, o século XIX é uma época de grandes transformações, é um período muito complexo em termos institucionais, como em termos de cultura jurídica. É um tempo onde tradições são recebidas, traduzidas, distorcidas e reinventadas, logo, neste momento começa a ser construída uma nova tradição que vai definir, aquilo que virá a ser a “cultura jurídica brasileira”. Nesse campo problemático, persegue-se a cultura legitima como um conjunto de significados próprios que efetivamente circulavam na produção do direito e eram aceitos nesta época no Brasil, por isso “cultura jurídica brasileira” não pode ser identificada como “melhor” ou “pior”, ou “mais” ou “menos” refinada, mas sim um conjunto de padrões e significados que circulavam e prevaleciam nas instituições jurídicas, pois cultura jurídica brasileira é aquilo que circula, funciona e produz efeitos dentro de um determinado contexto histórico social. Percebeu-se então, que mais importante do que identificar o que a cultura jurídica brasileira herdou de Portugal, é o modo como fomos influenciados por essas heranças, assim observamos que ao estudar o tema cultura jurídica nacional, não tem a menor pretensão de construir uma essencialidade que resista ao desgaste dos tempos, mas sim que esse passar do tempo, agregue mais elementos à cultura jurídica de cada lugar, à cada época. 4 – A “cultura jurídica brasileira” em ato: Teixeira de Freitas. Teixeira de Freitas foi um jurista moderno – comprometido com o modernismo liberal em afirmação da soberania, separação de poderes, valorização da constituição, cultuador do legalismo e um almejador da sistematicidade do fenômeno jurídico, etc. – que teorizou uma suposta cultura jurídica brasileira mais moderna, aos moldes de sua época. Esse teórico - jurista expunha que era perfeitamente comum que o direito, se apresentasse com lacunas, incompletudes, zonas de indefinição, mas que o direito deve ser certo e claro, como consequência o sistema jurídico deve ser “completo”. Tendo o próprio sistema jurídico das ordenações como “pobre”, reclamou que necessitavam de em “copioso suplemento”, ou seja, ser complementado pelo fato de ser fartamente lacunoso. E nessa mistura e dualidade culturais, que nem sempre se encaixa, têm como distinguir a presença de elementos “lusos” ou “brasileiros”? 5 – Conclusão: Contudo, diante do exposto, talvez seja impossível se distinguir a “cultura jurídica portuguesa” da “cultura jurídica brasileira”, como queriam os juristas do século XIX, pois essas fronteiras são muito imprecisas. Temos que observar que não somos inovadores juridicamente falando, pois aí explicitamente seriamos anticoloniaise até xenófobos, mas também não somos uma mera cópia cultura jurídica lusa, ou seja, um mero transplante da tradição jurídica europeia, sem autenticidade; mas somos sim uma mistura dos dois de modo criativo, adaptado e acomodado, em medidas que a nova historiografia precisa dissecar. E porque não dizer que o próprio povo luso tem uma historiografia tão pluralista quanto a nossa? Uma vez que pelo menos até a sua própria codificação, os próprios portugueses se alicerçaram em modelos de outras nações para construir sua própria cultura jurídica. Daí percebemos que mesmo dentro do Brasil, percebe-se pluralidade jurídica em diversos estados com típicas especificidades, traduções, distorções e criações que cada cultura sofre ao entrar em contato uma com a outra, inclusive a cultura jurídica como aconteceu aqui.