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ADORNO lirica sociedade

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Noten zur Literatur © S u h r k a m p Verlag, Frankfurt am M a i n , 1974 
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A publ icação desta obra contou com o apoio do Goethe- lnst i tut Inter Nationes, 
Bonn. Alemanha . 
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apropriação indevida dos direitos intelectuais e patr imonia is do autor. 
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Alberto Martins, CA de Piquet 
I a Edição - 2003 (2 a Reimpressão - 2008 ) 
Cata logação na Fonte do Depar tamento Nacional do Livro 
(Fundação Biblioteca Nacional , R J , Brasil) 
A d o r n o , T h e o d o r W . , 1 9 0 3 - 1 9 6 9 
A l 8 6 1 1 N o t a s d e l i t e r a tu ra 1 / T h c o d o r W . A d o r n o ; 
t r a d u ç ã o e a p r e s e n t a ç ã o d e J o r g e M . B. d e A l m e i d a . 
S ã o P a u l o : D u a s C i d a d e s ; E d . 3 4 . 2 0 0 3 . 
1 7 6 p. ( C o l e ç ã o E s p í r i t o C r í t i c o ) 
I S B N 8 5 - 7 3 2 6 - 2 8 5 - 0 
T r a d u ç ã o de : N o t e n zur L i t e r a t u r I 
1. T e o r i a l i t e r á r i a . 2 . E n s a i o a l e m ã o . 
I. A l m e i d a . J o r g e M . B. de . II. T í t u l o . III. Sé r i e . 
C D D - 8 0 9 
índice 
Nota do tradutor -j 
Notas de l iteratura I 
O ensaio como forma j ^ 
Sobre a ingenu idade épica 4 7 
Posição do narrador no romance contemporâneo 55 
Palestra sobre lírica e sociedade 
Em memór ia de Eichendorff 91 
A fer ida He ine j - , y 
Revendo o Surrea l i smo j 
S inais de pontuação j ^ j 
O artista como representante j 51 
/Vota do organizador da edição alemã 155 
Sobre o autor 2 67 
Palestra sobre 
lírica e sociedade 
O anúnc io de uma palestra sobre lírica e sociedade deve 
provocar, e m mui tos dos senhores, um certo desconforto. Esta-
rão esperando uma dessas considerações sociológicas que podem 
ser a l inhavadas a bel-prazer sobre qua lquer objeto, assim como 
há c inqüenta anos se inventavam psicologias e, há trinta, feno-
menolog ias de todas as coisas imagináveis . A lém disso, ficarão 
desconf iados de que o exame das condições sob as quais deter-
minadas conf igurações [Gebilde] foram criadas e recebidas quer 
se intrometer no lugar da experiência delas mesmas; de que su-
bordinações e relações deixarão de lado a percepção da verdade 
ou inverdade do própr io objeto. Os senhores levantarão a sus-
peita de que u m intelectual pode acabar se tornando culpado 
daqu i lo que Hegel reprovava no "intelecto formal", ou seja, por 
ter u m a perspectiva geral do todo, ficar acima da existência sin-
gular de que fala, isto é, s implesmente não vê-la, apenas etiquetá-
la. C) que incomoda em u m procedimento como este será espe-
c i a lmente sensível , para os senhores, no caso da lírica. Afinal , 
trata-se de manusear o que há de mais delicado, de mais frágil, 
ap rox imando-o jus tamente daque la engrenagem, de cujo con-
tato o ideal da lírica, pelo menos no sentido tradicional, sempre 
pretendeu se resguardar. U m a esfera de expressão que tem sua 
essência precisamente em não reconhecer o poder da social iza-
ção, ou em superá-la pelo pathos da distância , como no caso de 
Baudelaire ou de Nietzsche, deve ser a r rogantemente transfor-
mada, por esse tipo de consideração, no contrár io do m o d o co-
mo concebe a si mesma. Quem seria capaz de falar de l ír ica e so-
ciedade, perguntarão, senão a l guém tota lmente d e s ampa r ado 
pelas musas? 
Obviamente , essa suspeita só pode ser enf rentada q u a n d o 
composições líricas não são abus ivamente tomadas como obje-
tos de demonstração de teses sociológicas, mas s im q u a n d o sua 
referência ao social revela nelas próprias a lgo de essencial , a lgo 
do fundamento de sua qual idade. A referência ao social não deve 
levar para fora da obra de arte, mas s im levar ma is f undo para 
dentro dela. É isso o que se deve esperar, e até a ma is s imples 
reflexão caminha nesse sentido. Pois o teor [Gehãlt] de u m poe-
ma não é a mera expressão de emoções e experiências individuais . 
Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando , j u s t amente 
em virtude da especificação que adqu i rem ao ganhar forma es-
tética, conquistam sua participação no universal. Não que aqui lo 
que o poema lírico exprime tenha de ser imed i a t amen te aqu i lo 
que todos vivenciam. Sua universal idade não é u m a volonté de 
tons, não é a da mera comunicação daqu i lo que os outros s im-
plesmente não são capazes de comunicar . Ao contrár io , o mer-
gulho no indiv iduado eleva o poema lírico ao universal por tor-
nar manifesto algo de não distorcido, de não captado , de a inda 
não subsumido, anunc iando desse modo, por antec ipação , a lgo 
de um estado em que nenhum universal ru im, ou seja, no fun-
do algo part icular , acorrente o outro, o universal h u m a n o . A 
compos ição l ír ica tem esperança de extra i r , da ma is i rrestr i ta 
individuação, o universal. O risco pecul iar a s sumido pela l írica, 
entretanto, é que seu princípio de individuação não garante nun -
ca que algo necessário e autêntico venha a ser produzido. Ela não 
tem o poder de evitar por completo o risco de permanecer na 
cont ingência de uma existência meramente isolada. 
Essa universal idade do teor lírico, contudo, é essencialmen-
te social. Só entende aqui lo que o poema diz quem escuta, em 
sua sol idão, a voz da human idade ; mais a inda, a própria solidão 
da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade individualista e, em 
ú l t ima anál ise, a tomíst ica , assim como, inversamente, sua capa-
cidade de criar v ínculos universais [a l l g eme in e Verbindlichkcit] 
vive da dens idade de sua individuação. Por isso mesmo, o pen-
sar sobre a obra de arte está autorizado e compromet ido a per-
guntar concre tamente pelo teor social, a não se satisfazer com o 
vago sen t imento de algo universal e abrangente . Esse tipo de 
de t e rminação pelo pensamento não é uma reflexão externa e 
alheia à arte, mas antes uma exigência de qualquer configuração 
l ingüíst ica. O material próprio dessa configuração, os conceitos, 
não se esgota na mera intuição. Para poderem ser esteticamente 
intuídos, os conceitos sempre querem ser também pensados, e 
o pensamento , u m a vez posto em jogo pelo poema, não pode 
mais, a seu comando , ser sustado. 
Esse pensamento, porém, a interpretação social da lírica, co-
mo aliás de todas as obras de arte, não pode portanto ter em mira, 
sem mediação , a assim chamada posição social ou a inserção so-
cial dos interesses das obras ou até de seus autores. Tem de esta-
belecer, em vez disso, como o todo de uma sociedade, tomada 
como un idade em si mesma contraditória, aparece na obra de 
arte; mostrar e m que a obra de arte lhe obedece e em que a ultra-
passa. O procedimento tem de ser, conforme a l inguagem da filo-
sofia, imanente . Concei tos sociais não devem ser trazidos de fora 
às composições líricas, mas s im devem surgir da rigorosa intuição 
delas mesmas. Aquela frase das Máximas e reflexões At Goethe, 
que diz que o que não entendes tu também não possuis, não vale 
somente para o re lac ionamento estético com obras de arte, vale 
também para a teoria estética: nada que não esteja nas obras, e m 
sua forma específica, leg i t ima a decisão quan to àqu i lo que seu 
teor, o que foi poet icamente condensado, representa em termos 
sociais. Determiná-lo requer, sem dúvida , não só o saberda obra 
de arte por dentro, como t ambém o da sociedade fora dela . M a s 
esse saber só cria vínculos quando se redescobre no puro aban-
donar-se à própria coisa. Recomenda-se v ig i l ânc ia , sobre tudo , 
perante o conceito de ideologia, hoje debu lhado até o l imi te do 
suportável. Pois ideologia é inverdade, falsa consc iênc ia , ment i -
ra. Ela se manifesta no malogro das obras de arte, no que estas 
têm de falso em si mesmas, que deve ser apontado pela cr í t ica . 
Mas dizer de grandes obras de arte, que têm sua essência no po-
der de configuração e apenas por isso são capazes de u m a recon-
ciliação tendencial das contradições fundamenta i s da existência 
real, que elas são ideologia, não é s implesmente fazer in just iça ao 
próprio teor de verdade dessas obras, é t ambém falsear o conceito 
de ideologia. Este não af i rma que todo o espír i to serve apenas 
para que a lguns homens eventua lmente escamote iem eventua i s 
interesses particulares, fazendo-os passar por universais , mas s im 
quer desmascarar o espírito de te rminado a ser falso e, ao mes-
mo tempo, apreendê- lo conce i tua lmente em sua necess idade . 
Obras de arte, entretanto, têm sua grandeza un i c amente e m dei-
xarem falar aqui lo que a ideologia esconde. Seu própr io êxito, 
quer elas queiram ou não, passa a lém da falsa consc iência . 
Pe rmi t am-me que tome como ponto de part ida a própr ia 
desconfiança dos senhores, que sentem a lírica como algo oposto 
à sociedade, como algo absolutamente ind iv idua l . A afe t iv idade 
dos senhores faz questão de que isso permaneça assim, de que a 
expressão lírica, desvenci lhada do peso da obje t iv idade , evoque 
a imagem de u m a vida que seja livre da coerção da práxis domi -
nante, da ut i l idade, da pressão da autoconservação obtusa. C o n -
tudo, essa exigência feita à lírica, a ex igência da palavra v i rg ina l , 
é em si mesma social. Implica o protesto contra uma situação so-
cial que todo ind iv íduo exper imenta como hostil, al ienada, fria 
e opressiva, u m a s i tuação que se impr ime em negativo na confi-
guração l ír ica: quan to mais essa situação pesa sobre ela, mais in-
f lexivelmente a conf iguração resiste, não se curvando a nada de 
heterônomo e const i tu indo-se inte i ramente segundo suas pró-
prias leis. Seu d is tanciamento da mera existência torna-se a medi-
da do que há nesta de falso e de ruim. Em protesto contra ela, o 
poema enunc ia o sonho de u m mundo em que essa situação seria 
diferente. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência 
das coisas é u m a fo rma de reação a cois if icação do mundo , à 
dominação das mercador ias sobre os homens, que se propagou 
desde o início da Era Mode rna e que, desde a Revolução Indus-
trial, desdobrou-se em força dominan te da vida. Mesmo o culto 
à coisa [Dingku l t ] , pretendido por Ri lke, já pertence ao círculo 
encantado de tal idiossincrasia, como u m a tentativa de assimi-
lar e resolver na expressão subjet ivamente pura as coisas al iena-
das, c red i tando metaf i s icamente em favor delas essa sua aliena-
ção. A fraqueza estética desse culto à coisa, seu gesto afetadamen-
te mister ioso e sua mistura de religião e artesanato, denuncia ao 
mesmo tempo o real poder da coisificação, que não se deixa mais 
dourar por n e n h u m a aura lírica, nem se resgatar pelo sentido. 
Q u a n d o se d iz que o conceito de lírica, para nós algo ime-
diato e até certo ponto u m a segunda natureza, tem um caráter 
comple t amente moderno, apenas se está expr imindo de manei-
ra d iferente essa percepção da essência social da lírica. De modo 
análogo, a p intura de paisagens e sua idéia de "natureza" só se 
desenvolveram au tonomamente na Idade Moderna. Sei que es-
tou exagerando ao dizer isso, e que os senhores poderiam retru-
car com muitos contra-exemplos. O mais incisivo seria Safo. Não 
falo da l ír ica chinesa, japonesa ou árabe, pois não a leio no ori-
ginal e nutro a suspeita de que através da tradução ela é apanha-
da por um mecanismo adaptat ivo que corna comple tamente im-
possível o entend imento adequado. M a s as manifestações ma is 
ant igas do espírito lírico, no sentido específ ico que nos é f ami -
liar, só reluzem esporadicamente, assim como certos fundos da 
pintura antiga às vezes antecipam, carregados de presságio, a idéia 
da p intura de paisagens. Elas não estabelecem a forma. Aque les 
grandes poetas do passado remoto que são c lass i f icados pelos 
conceitos histórico-l iterários como representantes da l írica, por 
exemplo P índaro e Alceu, mas t a m b é m boa parte da obra de 
Wa l ther von der Vogelweide, estão a u m a distância descomuna l 
de nossa mais pr imária representação do que seja a l írica. Falta-
lhes aquele caráter do imediato , do desmater ia l izado, que nos 
hab i tuamos a considerar, justa ou in justamente , como critério 
da l ír ica, e que apenas u m a rigorosa formação [Bildung\ cu l tu -
ral nos permite superar. 
Entretanto, aqui lo que entendemos por lírica, antes mes-
mo que tenhamos ampl i ado histor icamente esse conceito ou o 
direc ionado cr i t i camente contra a esfera indiv idual is ta , con tém 
em si mesmo, quanto mais "pura" ela se oferece, o momen to da 
fratura. O eu que ganha voz na l ír ica é um eu que se de te rmina 
e se expr ime como oposto ao coletivo, à objet iv idade; sua iden-
tif icação com a natureza, à qual sua expressão se refere, t ambém 
não ocorre sem mediação. O eu lírico acabou perdendo, por as-
s im dizer, essa un idade com a natureza, e agora se empenha em 
restabelecê-la, pelo an imi smo ou pelo mergu lho no própr io eu. 
Somente através da humanização há de ser devolv ido à nature-
za o direito que lhe foi t i rado pela dominação h u m a n a da natu-
reza. M e s m o aquelas composições líricas nas quais não se imis-
cui nenhum resíduo da existência convencional e objet iva, ne-
nhuma mater ia l idade crua, as mais altas composições conheci-
das por nossa l íngua , devem sua d ign idade jus tamente à força 
com que nelas o eu desperta a aparência da natureza, escapando 
à alienação. A pura subjet iv idade dessas composições, aquilo que 
nelas parece ha rmôn ico e não fraturado, testemunha o contrá-
rio, o sof r imento com a existência alheia ao sujeito, bem como 
o amor a essa existência — aliás, sua harmonia não é propriamen-
te nada mais que a consonância recíproca desse sofrimento e desse 
amor. Os versos de Goethe " Warte nur, balde / ruhest du auch" 
[Espera u m pouco, logo / tu repousarás também] ainda têm o 
gesto de consolação: sua abissal beleza é inseparável daquilo que 
eles ca l am, da representação de um mundo que rejeita a paz. 
Somente ao compar t i lha r o luto por essa situação o tom do poe-
ma reaf i rma que , apesar de tudo, há paz. Quase seríamos tenta-
dos a ir buscar em auxí l io, no poema vizinho de mesmo título, 
o verso "Ach, ich bin des Treibens miide" [Ah, estou cansado da 
faina] , para servir de interpretação ao "Wanderers Nachtl ied" 
[Noturno do andar i lho ] . Este poema certamente deve sua gran-
deza ao fato de que não fala de nada al ienado e perturbador, de 
que, nele próprio, o desassossego do objeto não é contraposto ao 
sujeito: pelo contrár io, o poema reverbera o desassossego do pró-
prio sujeito. E promet ida u m a segunda imediat idade: o que é 
humano , a própr ia l inguagem, aparece como se fosse ainda uma 
vez a criação, enquan to tudo o que vem de fora se extingue no 
eco da a lma . Esse e lemento humano , porém, é mais que aparên-
cia, torna-se verdade integral porque, graças à expressão verbal 
do bom cansaço, a inda pa i ra sobre a concil iação a sombra do 
anseio, e mesmo da morte : no verso "Warte nur, balde" a vida 
inteira se transforma, com enigmático sorriso de tristeza, no breve 
instante que antecede o adormecer . O tom de paz testemunha 
que a paz não foi a lcançada , sem que entretanto o sonho tenha 
sido rompido. A sombra não tem nenhum poder sobre a ima-
gem da vida que retorna a si mesma, mas somente ela confere 
ao sonho, como ú l t ima lembrança de sua deformação, a pesada 
profundidade sob a canção sem peso. No semblante da nature-
za em repouso, do qual se apagaram os traços de qua lque r seme-
lhança humana , o sujeito interioriza sua própria nu l idade . Im-
perceptivelmente, a ironia roça em si lêncio o que há de conso-
lador no poema: os segundos que antecedem a bem-aventurança 
do sono são os mesmos que separam da mor te a curta v ida . Essa 
sublime ironia, depois de Goethe, decaiu em sarcasmo. Mas sem-
pre foi burguesa: a exaltação do sujeito l ibertado traz consigo, 
como sua sombra, o rebaixamento do sujeito à condição de algo 
permutável , de mero ser para outro; a persona l idade traz consi-
go a humilhação do "O que você pensa que é?". A autent i c ida -
de do "Noturno", entretanto, está em seu instante: o que está por 
trás de sua força destrutiva afàsta-o da esfera do jogo, enquan to 
essa capacidade de destruição a inda não exerce n e n h u m a violên-
cia sobre o poder não-violento da consolação. Cos tuma-se dizer 
que um poema lírico perfeito tem de possuir tota l idade ou un i -
versalidade, tem de oferecer, em sua l imitação, o todo; em sua 
finitude, o inf in i to . Se isso for a lgo mais que u m luga r - comum 
daquela estética que tem sempre à mão, como panacé ia univer-
sal, o conceito do s imból ico, então isso mostra que em cada poe-
ma lírico devem ser encontrados , no médium do espír i to subje-
tivo que se volta sobre si mesmo, os sed imentos da relação his-
tórica do sujeito com a objet iv idade, do ind iv íduo com a socie-
dade. Esse processo de sed imentação será tanto ma is perfe i to 
quanto menos a composição lírica temat izar a relação entre o eu 
e a sociedade, quan to mais invo lunta r i amente essa relação for 
cristalizada, a part ir de si mesma, no poema. 
Os senhores poderão objetar-me que, de te rminando as coi-
sas desse modo, eu teria sub l imado a tal ponto a relação entre lí-
rica e sociedade, por temer o sociologismo grosseiro, que no fun-
do nada mais resta dessa relação: exatamente o não-social no poe-
ma lírico seria agora o seu e lemento social. Poder i am recordar-
me aquela car icatura de Gustave Doré, de u m deputado ultra-
reacionário que vai in tens i f icando seu louvor ao Ancien Regime, 
até chegar à exc lamação : "E a quem, meus senhores, devemos 
agradecer pela revolução de 1789, a quem, senão a Luís XVI?". 
Os senhores poder i am apl icar isso à m inha concepção de lírica 
e sociedade: nela a soc iedade desempenhar ia o papel do rei exe-
cutado, e a l í r ica o papel daque les que o combateram; mas a lí-
rica pode tão pouco ser expl icada a part ir da sociedade quanto 
o méri to da revolução pode ser a t r ibu ído ao monarca que ela 
derrubou, m e s m o que as tolices do rei tenham contribuído de-
c is ivamente para que ela irrompesse naquele momento históri-
co. Resta saber se o deputado de Doré era efetivamente apenas 
um propagandis ta es túp ido e cínico, tal como o desenhista o ri-
dicular izou, ou se em sua p iada involuntár ia não há mais verda-
de do que admi t e o saudável bom senso; a fi losofia da história 
de Hegel ter ia m u i t o com que contr ibuir para a reabilitação da-
quele deputado . N o entanto , a comparação não é inteiramente 
justa. Não se trata de deduzir a lírica da sociedade; seu teor so-
cial é j u s t amente o espontâneo, aqui lo que não é simples conse-
qüência das relações vigentes em dado momento. Mas a filoso-
fia — novamente a de Hegel — conhece a proposição especula-
tiva que d iz que o ind iv idua l é mediado pelo universal e vice-
versa. Ora , isso que r dizer que t ambém a resistência contra a 
pressão social não é nada de absolutamente individual ; nessa re-
sistência agem ar t i s t icamente , através do indivíduo e de sua es-
pontaneidade, as forças objetivas que impelem para além de uma 
situação social l im i t ada e l imitante , na direção de uma situação 
social d igna do h o m e m ; forças, portanto, que fazem parte de uma 
const i tuição do todo, não meramente da individual idade infle-
xível, que se opõe cegamente à sociedade. Se, em virtude de sua 
própria subje t iv idade , pode-se falar do teor lírico como sendo 
objetivo — caso contrár io não seria possível explicar o simples 
f i to que f u n d a m e n t a a possibi l idade da lírica como gênero ar-
tístico: seu efeito sobre outros que não o poeta e m monó logo 
consigo mesmo —, isso só ocorre se a obra de arte l írica, ao re-
trair-se e recolher-se em si mesma, em seu d i s t anc i amen to da 
superfície social, for motivada socia lmente , por sobre a cabeça 
do autor. O meio para isso, porém, é a l inguagem. O paradoxo 
específico da configuração lírica, a subje t iv idade que se reverte 
em objetividade, está l igado a essa pr imazia da conformação l in-
güística na lírica, da qual provém o p r imado da l inguagem na 
criação literária em geral, até nas formas em prosa. Pois a pró-
pria l inguagem é algo duplo. Através de suas conf igurações , a 
l inguagem se molda inte i ramente aos impulsos subjet ivos; u m 
pouco mais, e se poderia chegar a pensar que somente ela os faz 
amadurecer. Mas ela cont inua sendo, por outro lado, o meio dos 
conceitos, algo que estabelece u m a inelutável referência ao un i -
versal e à sociedade. As mais altas compos ições líricas são, por 
isso, aquelas nas quais o sujeito, sem qua lquer resíduo da mera 
matéria, soa na l inguagem, até que a própr ia l i nguagem ganha 
voz. O auto-esquecimento do sujeito, que se entrega à l ingua-
gem como a algo objetivo, é o mesmo que o caráter imed ia to e 
involuntár io de sua expressão: ass im a l i nguagem estabelece a 
mediação entre lírica e sociedade no que há de mais intr ínseco. 
Por isso, a lírica se mostra mais p ro fundamen t e assegurada, em 
termos sociais, ali onde não fala conforme o gosto da sociedade, 
ali onde não comunica nada, mas s im onde o sujeito, a lcançan-
do a expressão feliz, chega a u m a s in ton ia com a própria l ingua-
gem, seguindo o caminho que ela mesma gostaria de seguir . 
Mas a l i nguagem, por outro lado, t a m b é m não deve ser 
absolutizada enquanto voz do Ser, oposta ao sujeito lírico, como 
agradaria a mui tas das teorias ontológicas da l inguagem em voga 
atua lmente . O sujeito, cuja expressão é necessária, em face da 
mera significação de conteúdos objetivos, para que se alcance essa 
camada de objet iv idade l ingüíst ica, não é u m adendo ao próprio 
teor dessa camada , não é algo externo a ela. O instante do auto-
esquec imento , no qual o suje i to submerge na l inguagem, não 
consiste no sacr i f íc io do sujeito ao Ser. Não é um instante de 
violência, nem sequer de violência contra o sujeito, mas um ins-
tante de reconci l i ação : a l inguagem fala por si mesma apenas 
quando deixa de falar como algo alheio e se torna a própria voz 
do sujeito. O n d e o eu se esquece na l inguagem, ali ele está in-
te iramente presente; senão a l inguagem, convertida em abraca-
dabra sacral izado, sucumbi r i a à reificação, como ocorre no dis-
curso comunica t ivo . M a s isso nos leva de volta à questão da re-
lação real entre ind iv íduo e sociedade. Não apenas o indivíduo 
é soc ia lmente med i ado em si mesmo, não apenas seus conteú-
dos são sempre , ao mesmo tempo, também sociais, mas, inver-
samente, t ambém a sociedade configura-se e vive apenas em vir-
tude dos indiv íduos , dos quais ela é a quintessência [ I n b e g r i f f ] . 
Se certa vez a g rande filosofia construiu a verdade, hoje sem dú-
vida desdenhada pela lógica da ciência, de que sujeito e objeto 
não ser iam pólos r íg idos e isolados, mas só podem ser determi-
nados a part ir do processo em que se elaboram e modif icam mu-
tuamente , então a l ír ica é a contraprova estética desse filosofema 
dialét ico. No poemalírico o sujeito nega, por identificação com 
a l inguagem, tanto sua mera contradição monadológica em re-
lação à sociedade, quan to seu mero funcionar no interior da so-
ciedade socia l izada. Q u a n t o mais cresce, porém, a ascendência 
desta sobre o sujeito, mais precária é a situação da lírica. A obra 
de Baude la i re foi a pr imeira a registrar esse processo, na medida 
em que, como a ma is alta conseqüência do Weltschmerz [dor do 
mundo ] europeu , não se contentou com os sofrimentos do in-
divíduo, mas escolheu como tema de sua acusação a própria mo-
dernidade, enquanto negação completa do lírico, extraindo dela 
suas faíscas poéticas, por força de uma l inguagem heroicamente 
esti l izada. Em Baudela i re já se anuncia u m elemento de deses-
pero, que se equi l ibra no cume do seu própr io caráter parado-
xal. Quando a contradição entre a l inguagem poét ica e a c o m u -
nicativa se intensificou ao extremo, toda l írica se tornou u m jogo 
de tudo ou nada; não porque tenha se tornado inintel igível , como 
pretenderia a opinião fi l ist ina, mas porque, un i c amente e m vir-
tude de ter tomado consciência de si mesma enquan to l ingua-
gem artística, através de seu esforço em alcançar u m a objet ivida-
de absoluta, não l imitada por qua lquer preocupação com a co-
municação, ela ao mesmo tempo se afasta da ob je t iv idade do es-
pírito, da l íngua viva, cr iando u m aparato poético que subst i tui 
uma l inguagem não mais presente. O momen to poet izante e ele-
vado, subjet ivamente violento, da enfraquec ida l ír ica posterior 
é o preço que ela tem de pagar para se manter objet ivamente viva, 
sem ser desf igurada ou macu lada ; seu falso esplendor é o com-
plemento do mundo desencantado do qual ela se desprende . 
Tudo isso, sem dúvida , precisa ser restr ingido para não ser 
mal interpretado. O que af i rmei foi que a conf iguração l ír ica é 
sempre, t ambém, a expressão subjet iva de um an t agon i smo so-
cial. Mas como o m u n d o objet ivo, que p roduz a l í r ica, é u m 
mundo em si mesmo antagoníst ico, o concei to de l ír ica não se 
esgota na expressão da subjet iv idade, à qual a l i nguagem confe-
re objet ividade. Não apenas o sujeito lírico incorpora de m o d o 
decisivo o todo, quanto mais adequadamen te se manifes ta , mas 
antes a própr ia subjet iv idade poética deve sua existência ao pri-
vilégio: somente a pouquíss imos homens , dev ido às pressões da 
sobrevivência, foi dado apreender o universal no mergu lho em 
si mesmos, ou foi permit ido que se desenvolvessem c o m o suje i -
tos autônomos, capazes de se expressar l ivremente . Os outros, 
contudo, aqueles que não apenas se encont ram al ienados, como 
se fossem objetos, d iante do desconcertado suje i to poét ico, mas 
que t ambém foram rebaixados l i t e ra lmente à condição de obje-
to da história, têm tanto ou mais dire i to de tatear em busca da 
própria voz, na qual se en l açam o sof r imento e o sonho. A afir-
mação desse d ire i to inal ienável tem sido u m a constante, a inda 
que de mane i ra impura e mut i l ada , f r agmentár i a e intermiten-
te, a única possível para aqueles que têm o fardo para carregar. 
U m a corrente subterrânea colet iva é o fundamen to de toda líri-
ca indiv idua l . Se esta visa efe t ivamente o todo e não meramente 
uma parte do privi légio, r e f inamento e del icadeza daque le que 
pode se dar ao luxo de ser de l icado, então a substanc ia l idade da 
lírica ind iv idua l deriva essenc ia lmente de sua part ic ipação nessa 
corrente sub te r r ânea colet iva , pois somente ela faz da l ingua-
gem o meio em que o sujeito se torna mais do que apenas sujei-
to. A relação do R o m a n t i s m o com o Volkslied [canção popular ] 
é o exemplo mais visível disso, mas cer tamente não o mais inci-
sivo. Pois o R o m a n t i s m o persegue programat i camente u m a es-
pécie de transfusão do colet ivo no indiv idua l , e por isso a l ír ica 
indiv idual buscava, através da técnica, a ilusão da criação de vín-
culos universais , sem que esses v ínculos surgissem dela mesma. 
Em contraste, os poetas que desdenhavam qua lquer emprés t imo 
da l inguagem colet iva f r eqüentemente par t ic ipavam dessa cor-
rente subterrânea colet iva, em vir tude de sua experiência histó-
rica. C i to Baudela i re , cuja l ír ica não apenas é um tapa na cara 
do juste milieu, como t a m b é m de todo esse sent imento burguês 
de compa ixão social , que no en tan to , e m poemas como "Les 
petites viei l les" [As ve lh inhas ] ou o da servente de grande cora-
ção dos Tableanxparisiens [Quad ros par is ienses] , era mais fiel 
às massas, para as qua i s voltava sua máscara trágica e arrogante, 
do que toda a poesia sobre gente pobre [Armeleutepoesie•]. Hoje , 
quando o pressuposto daque le conceito de lírica que tomo como 
ponto de par t ida , a expressão ind iv idua l , parece aba lado até o 
âmago na crise do ind iv íduo , a corrente subterrânea da l ír ica 
aflora com violência nos mais diversos pontos, pr imeiro como 
mero fermento da própr ia expressão indiv idua l , mas logo tam-
bém como possível antecipação de u m a s i tuação que ul trapassa 
a mera individual idade. Se as traduções não enganam , Garc ia 
Lorca, que os agentes de Franco assassinaram e que n e n h u m re-
g ime totalitário teria podido suportar, é portador de tal força; e 
o nome de Brecht se impõe como o do l írico que soube preser-
var a integridade da l inguagem sem que tenha s ido obr igado a 
pagar o preço do esoterismo. Abstenho-me de ju lgar se aqu i o 
princípio poético de individuação foi efet ivamente superado em 
um princípio superior, ou se o fundamento disso é a regressão e 
o enfraquecimento do eu. Talvez o vigor colet ivo da l í r ica con-
temporânea se deva, em larga medida , aos rud imentos l ingüís -
ticos e anímicos de uma condição a inda não in te i r amente ind i -
viduada, pré-burguesa no sent ido mais a m p l o do t e rmo — o 
dialeto. A lírica tradicional, porém, como a ma is r igorosa nega-
ção estética dos valores da burguesia , tem permanec ido até hoje , 
justamente por isso, l igada à sociedade burguesa . 
Mas porque considerações de pr inc íp ios não são suf ic ien-
tes, eu gostaria de concretizar, em a lguns poemas, a relação que 
o sujeito poético, que sempre representa u m sujeito coletivo mu i -
to mais universal, man t ém com a real idade social que lhe é an-
titética. Nesse processo, os e lementos mater ia is , dos qua i s ne-
nhuma composição de l inguagem, nem m e s m o a poésie pure, é 
capaz de despojar-se inte i ramente , precisarão de interpretação 
tanto quanto os assim chamados e lementos formais . Será espe-
cialmente enfatizado o modo como ambos se interpenetram, pois 
somente em virtude dessa interpenetração o poema lírico captura 
realmente, em seus l imites, as badaladas do tempo histórico. N o 
entanto, não gostaria de me ater a poemas como o de Goethe , 
do qual já comentei a lguns aspectos sem anal isá- lo a fundo , mas 
s im escolherei obras mais recentes, versos que não se s ingular i -
zam por aquela au ten t i c idade incond ic iona l que caracter iza o 
"Noturno" . As duas composições sobre as quais quero dizer al-
go part ic ipam, certamente , da corrente subterrânea coletiva. Mas 
gostar ia de c h a m a r a a t enção dos senhores sobre tudo para o 
modo como, nelas, diversos graus de u m a relação contradi tór ia 
f undamen ta l da soc iedade são expostos por in te rméd io do su-
jeito poético. Devo repet ir que não se trata da pessoa privada do 
poeta, nem de sua psicologia , nem de sua chamada "posição so-
cial", mas do própr io poema, tomado como relógio solar histó-
rico-fí losófico. 
Em pr ime i ro lugar, gostar ia de ler para os senhores o poe-
ma "Auf einer W a n d e r u n g " [Em u m a caminhada ] , de Mõr ike : 
In ein freundliches Stãdtchen tret ich ein, 
In clen Strassen liegt roter Abendschein. 
Aus ei nemojfnen Fenster eben, 
Über den reichsten Blumenflor 
Hinweg hortman Goldglockentõne schweben, 
Und e ine Stirnme scheint ein Nachtigallenchor, 
Dass die Bliiten beben, 
Dass die Liifte leben, 
Dass in hõherem Rot die Rosen leuchten vor. 
Lang hielt ich staiinend\ lustbeklommen. 
Wie ich hinaus vors Tor gekommen, 
Ich weiss es wahrlich selber nicht. 
Ach hier\ wie liegt die Welt so licht! 
Der Himmel wogt in purpurnem Gewiihle, 
Rückwãrts die Stadt in goldnem Rauch; 
Wie rauscht der Erlenbachy wie rauscht im Grund die Mühle! 
Ich bin wie trunken, irrgefiihrt — 
O Muse, du hast niein Herz berührt 
Aíit einem Liebeshauch! 
Entrei n u m a amável c idadez inha , 
Nas ruas o rubor da tarde resplandecia . 
De uma janela aberta , então, 
Por entre floreiras r i camente em flor 
E botão, ouv iam-se os sons de u m d o u r a d o car r i lhão , 
E uma voz que parecia rouxinóis em coro, 
Fazendo as flores t remerem, 
Fazendo os ares reviverem, 
Fazendo qual brasa br i lharem as rosas e m fogo. 
Ali fiquei parado, extas iado de prazer . 
E na verdade não consigo perceber 
C o m o os porrões da c idade eu t ranspus . 
Ah, como aqui o m u n d o é pura luz! 
O céu ondula em pú rpu ro corvel inho 
F lá atrás desvanece a c idade em d o u r a d o íu l gor ; 
C o m o m u r m u r a o r iacho entre os a lnos , c o m o m u r m u r a 
[ao f u n d o o m o i n h o ! 
Estou ébrio, perd ido em confusão — 
O Musa , rocasre o meu coração 
C o m u m sopro de amor ! 
A imagem que se impõe é a daque la promessa de fel ic ida-
de ainda hoje proporc ionada a quem visita, no dia certo, u m a 
cidadezinha do sul da Alemanha , mas sem a menor concessão ao 
pitoresco, ao idílio da c idade pequena. O poema transmite o sen-
t imento de calor e de abrigo em u m espaço estreito, e no entanto 
é ao mesmo tempo uma obra de estilo elevado, não macu l ada 
pelo tom do confortável e do aconchegante , nem disposta a lou-
var sent imenta lmente a estreiteza contra a vast idão, ou a fel ici-
dade em cada esquina . Rud imenta re s , a fábula e a l i nguagem 
auxi l iam, em igual medida , a un i f icar a r t i s t i camente a utopia da 
prox imidade ma is p róx ima com a da mais extrema distância . A 
fábula conhece a c idadez inha apenas como cenár io fugid io , não 
como parade i ro . A g randeza do s en t imen to que se prende ao 
encanto causado pela voz da rapar iga , e não escuta apenas aque-
la voz, mas a de toda a natureza, em coro, só se manifes ta para 
além do cenário l imi tado, sob a ondulação purpura do céu, onde 
a c idade dourada e o r iacho m u r m u r a n t e se con jugam em ima-
go. Para isso contr ibu i , no p lano da l inguagem, u m e lemento de 
antigüidade, c o m o de u m a ode, imponderave lmente ref inado e 
quase impossível de ser fixado no detalhe. C o m o se soassem de 
longe, os r i tmos livres evocam estrofes gregas sem r ima, assim 
como, por exemplo , o pathos que i r rompe no verso final da pri-
meira estrofe, cu jo efeito é obt ido apenas com o mais discreto 
dos recursos, a inversão da ordem das palavras: ^Dass in hdherem 
Rot die Rosen leuchten vor" [Fazendo qual brasa br i lharem as ro-
sas em fogo] . Decis iva é a palavra Muse [Musa ] , no final do poe-
ma. É como se essa palavra , u m a das mais desgastadas do Clas-
sicismo a lemão , bri lhasse u m a vez mais, como que à luz do sol 
poente, por estar a t r ibu ída ao genius loci [espírito do lugar] da 
amável c idadez inha . É como se, mesmo a ponto de desaparecer, 
ela a inda possuísse todo aque le poder de encan tamento que, em 
invocações à M u s a com termos da l inguagem moderna , costu-
ma descambar em algo s implesmente cômico. Em prat icamen-
te n e n h u m outro aspecto se prova tão perfeita a inspiração do 
poema quan to 110 fato de que, no ponto crít ico, a escolha da pa-
lavra mais chocante, cu idadosamente preparada pelo latente gesto 
l ingüístico grego, resgata a intensa d inâmica do todo, como u m a 
cadência musica l . A l í r ica consegue, no espaço mais exíguo, ter 
êxito naqu i lo que a épica a lemã, mesmo em concepções como 
Hermann and Dorothea de Goethe, tentava em vão alcançar. 
A interpretação social de tal êxito diz respeito ao grau de 
experiência histórica que se ev idencia 110 poema. Em nome da 
humanidade , da universal idade do humano , o Class ic i smo ale-
mão havia pretendido desembaraçar o impulso subjet ivo, amea -
çado de contingência em uma sociedade na qual as relações en-
tre os homens já não eram imediatas , mas p e r m a n e c i a m me-
diadas apenas pelo mercado. O Class ic ismo aspirava a u m a ob-
jetivação do subjetivo, assim como Hegel na f i losofia , e tentava 
superar as contradições da vida real dos homens através de sua 
reconciliação no espírito, na idéia. A persistência dessas contra-
dições na realidade, entretanto, acabou comprome t endo a solu-
ção espiritual: d iante de uma vida desprovida de sent ido, u m a 
vida que se esgota na azáfama dos interesses concorrentes , u m a 
vida que a experiência artística percebe como prosaica; d iante de 
um mundo em que o dest ino dos homens ind iv idua i s se c u m -
pre na obediência a leis cegas, a arte cuja forma dá a impressão 
de falar em nome de uma human idade real izada converte-se e m 
mero palavrório. O conceito de h o m e m que o C lass i c i smo ha-
via alcançado se retrai, por isso, na existência pr ivada do h o m e m 
singular, e também em suas imagens ; somente nelas o h u m a n o 
parecia a inda estar a salvo. A burgues ia teve necessar iamente de 
renunciar, tanto na polít ica quan to nas formas estéticas, à idéia 
da humanidade como um todo capaz de au tode te rminação . É 
a fixação obtusa nessa esfera restrita do que a inda está preserva-
do, também ela resultado de u m a coerção, o que torna tão sus-
peitos, então, ideais como os de conforto e aconchego . O pró-
prio sentido está v inculado à cont ingênc ia da fe l ic idade ind iv i -
dual, à qual se atr ibui , por u m a espécie de usurpação , u m a d ig -
nidade que ela só a lcançar ia junto com a fe l ic idade do todo. A 
força social da genia l idade de Mõr ike , porém, consiste na art i -
culação das duas experiências, a do estilo e levado do Class ic i smo 
e a da miniatura privada do Romant i smo, reconhecendo os l imi-
tes de ambas as possibi l idades e equ i l ib rando-as rec iprocamen-
te, com incomparável t ino. Em n e n h u m impu l so expressivo ele 
vai a l ém daqu i lo que pod ia ser verdade i ramente a lcançado em 
sua época. A tão ac l amada organ ic idade de sua produção nada 
mais é, provave lmente , do que esse t ino histórico-fi losófico, que 
quase n e n h u m outro poeta de l íngua a l emã possuiu na mesma 
medida . Os traços supos tamente doent ios de Mõr ike , ident i f i -
cados e re latados pelos psicólogos, e mesmo o es tancamento de 
sua produção no ú l t imo per íodo, são o aspecto negat ivo de sua 
extrema compreensão do que é possível. Os poemas desse pároco 
h ipocondr íaco de Cleversu lzbach, que cos tuma ser inc lu ído no 
rol dos art istas ingênuos , são peças de v i r tuos ismo jamais supe-
radas por n e n h u m mestre da l'artpour 1'art. M õ r i k e é tão sensí-
vel ao que há de vazio e ideológico no esti lo e levado quanto ao 
que há de t acanho , de apat ia pequeno-burguesa e de cegueira 
d iante da tota l idade , no esti lo Biedermeier , per íodo em que se 
situa a maior parte de sua lírica. Nele, o espír i to é levado a com-
por, pela ú l t ima vez, imagens que não se traem nem pelo requinte 
do d rapeado nem pela vu lga r idade da conversa de bo tequ im, 
nem pela g r and i loqüênc i a de u m dó-de-pe i to nem pelos maus 
modos à mesa. C o m o sobre o fio da navalha, em Mõr i ke a inda 
ressoam as remin iscênc ias do esti lo elevado, j un to com os sinais 
de u m a vida imed ia ta que a i nda p r o m e t i a m realização, quando 
já estavam, na verdade , condenadospela tendência histórica. A 
ambos saúda o poeta, em u m a caminhada , apenas quando estes 
estão prestes a desvanecer . Ele já compar t i lha o caráter parado-
xal da l ír ica na inc ip iente era industr ia l . T ã o vaci lantes e frágeis 
como essas p ione i ras soluções de Mõr i ke foram t ambém as so-
luções de todos os g randes l ír icos que o sucederam, mesmo dos 
que parecem separados dele por u m abismo, como aque le Bau-
delaire, cu jo esti lo C laude l descreveu como u m misto de Rac ine 
e dos jornal is tas de seu tempo. Na sociedade industr ia l , a idéia 
lírica da imed i a t i d ade que se auto-regenera torna-se, na medida 
em que não evoca impotente o passado romântico, cada vez mais 
um súbito lampejo, em que o possível t ranscende sua própr ia 
impossibi l idade. 
O curro poema de Srefan George, sobre o qual gostaria ain-
da de lhes dizer algo, surgiu em u m a fase m u i t o mais tardia des-
se desenvolvimento. É uma das célebres canções de Der Siebente 
Ring [O sétimo anel] , um ciclo de composições ex t r emamente 
densas, que apesar da leveza do r i tmo estão sobrecarregadas de 
substância e livres de todo ornamento Jugendstii Sua a r ro jada 
ousadia só foi resgatada do vergonhoso conservador i smo cu l tu -
ral do Círculo de George quando o grande compos i tor Anton 
von Webern a musicou; em George, a ideologia e o teor social 
estão separados por um abismo. A canção diz: 
Im windes-weben 
War meine frage 
Nur tràumerei. 
Nur lacheln war 
Was du gegeben. 
Aus nasser nacht 
Ein glanz entfacht — 
Nun d rangi der mai 
Nun rnuss ich gar 
Um dein aug und haar 
Alie tage 
In sehnen leben. 
N o tecer do vento 
Foi meu ped ido 
Só devane io . 
Só u m sorriso 
T u a resposta. 
A noite encharcada 
U m br i lho propaga — 
Agora o ma io t r ama 
Agora devo ao fim 
Por teus o lhos e teu s im 
Dias a fio 
Viver em c h a m a . 
Q u a n t o ao esti lo elevado, não há u m segundo de dúvida . 
A felicidade das coisas próximas, que a inda toca o poema tão mais 
antigo de Mõr i k e , está interd i tada . Foi ban ida jus tamente por 
aquele pathos n ietzscheano da distância , do qual George se re-
conhecia como herde i ro . Entre M õ r i k e e ele j azem os in t imi -
dai ! tes despojos do Romant i smo: os restos do idíl io estão irreme-
diave lmente envelhec idos e degeneraram em pieguice . Enquan-
to a poesia de George , a de u m ind iv íduo soberano, pressupõe 
como condição de sua poss ib i l idade a soc iedade individual is ta 
burguesa e o i nd iv íduo centrado em si mesmo, u m aná tema é 
lançado tanto sobre o e lemento burguês da forma convencional 
quanto sobre os conteúdos burgueses. No entanto, u m a vez que 
essa l ír ica não pode falar a part i r de n e n h u m a outra estrutura 
geral a lém da burguesa , que ela rejeita não apenas apriori e ta-
c i tamente , mas t a m b é m expressamente , então ela Pica represada 
e reflui : s imu la a part i r de si mesma , de forma autocrát ica , u m a 
condição feudal . É esse e l emento social que se esconde por trás 
daqui lo que o l uga r - comum denomina a a t i tude aristocrática de 
George. Ela não é a pose que exaspera o burguês , incapaz de 
manusear esses poemas, mas antes, por mais que seu gesto seja 
hostil à sociedade, ele é fruto da dialét ica social que nega ao su-
jeito lírico a ident i f icação com o status quo e seu repertório de 
formas, embora esse sujeito esteja i n t imamente l igado à real ida-
de vigente : ele não pode falar de n e n h u m outro lugar que não 
seja o de u m a soc iedade passada, ela mesma senhor ia l . Desse 
passado é tomado de emprés t imo o ideal de nobreza que dita a 
escolha de cada palavra, imagem e som no poema ; e a forma é 
medieval de um modo quase imperceptível , como algo impreg-
nado na configuração lingüística. Nesse sent ido, o poema, assim 
como o conjunto da obra de George, é efet ivamente neo-român-
tico. Não se evoca, porém, nem real idades nem sons, mas s im 
um estado de alma absorto. A latência do ideal , a r t i s t i camente 
conquistada, a ausência de qua lquer arca ísmo grosseiro, eleva a 
canção acima de toda ficção desesperada, que ela entre tanto ofe-
rece; é tão impossível confundi- la com a poesia que imita c o m o 
mero enfeite de parede os menestréis e a epopéia medieval quan -
to misturá-la com o repertório da lírica do m u n d o moderno ; seu 
princípio de estilização resguarda o poema do conformismo. O 
espaço deixado para a reconci l iação orgânica de e lementos con-
flitantes, no poema, é tão reduzido quanto o que em sua época 
havia para o seu apaz iguamento real: eles só são sub jugados por 
seleção e por elipse. O n d e as coisas mais próximas , aqu i lo que 
comumente se denomina experiências concretas imediatas , a in-
da são admit idas na lírica de George, elas são consent idas un i -
camente quando pagam o preço da mi to log i zação : n e n h u m a 
delas pode permanecer o que é. Assim, n u m a das paisagens do 
Sétimo anel, a criança que colhia amoras silvestres é me t amor -
foseada, sem uma palavra sequer, em uma cr iança de contos de 
fada, como se tivesse sido tocada pela mág ica brutal de u m a va-
rinha de condão. A ha rmon ia da canção é ex torqu ida de u m a 
extrema dissonância: ela se baseia naqui lo que Valéry denomina -
va refus, u m a implacável recusa a todos os meios pelos qua i s a 
convenção lírica imagina capturar a aura das coisas. Esse proce-
d imento retém apenas os modelos, as puras idéias formais e es-
quemas do lírico, que, ao rejeitarem toda e qua lquer cont ingên-
cia, falam mais u m a vez com intensa expressividade. Em plena 
Alemanha gu i lhermina , o esti lo elevado, do qual essa l ír ica po-
lemicamente se desvenci lha, não pode apelar a n e n h u m a tradi-
çáo, p r inc ipa lmente ao legado classicista. Esse estilo é alcança-
do não pelo recurso fácil a certas f iguras de retórica e a determi-
nados r i tmos, mas na med ida em que economiza ascet icamente 
tudo aqui lo que poderia d i m i n u i r a distância em relação à l in-
guagem degradada pelo comérc io . Aqui , para que o sujeito seja 
capaz de, em sua sol idão, resistir verdade i ramente à reif icação, 
ele não pode nunca mais se refugiar no que lhe é próprio, como 
se fosse sua propr iedade ; os vestígios de u m ind iv idua l i smo que, 
nesse me io- tempo, já se entregou à tutela do mercado, nos su-
plementos l i terários, assustam: o sujeito precisa abandonar a si 
mesmo, na m e d i d a em que se cala. Ele precisa se converter no 
receptáculo, por ass im dizer, da idéia de u m a l inguagem pura, 
que os grandes poemas de George buscam resgatar. Formado nas 
l ínguas românicas , e espec ia lmente naque la redução da lírica ao 
mais s imples , pela qua l Ver l a ine a converteu em ins t rumento 
para o mais d i ferenc iado, o ouv ido do disc ípulo a lemão de Ma l -
larmé ouve sua própr ia l íngua como se fosse estrangeira . Supera 
a a l ienação da l í ngua mate rna , provocada pelo uso, e a intensifi-
ca até o e s t r anhamento de u m a l íngua que propr iamente já não 
é mais falada, u m a l íngua imaginár ia em cuja composição o poeta 
intui potenc ia l idades j amais realizadas. As quat ro l inhas: "Nun 
muss ich gar / Um ciein aug und ha a r / Alie tage / In sehnen leben 
[Agora devo ao f im / Por teus olhos e teu s im / Dias a f io / Vi -
ver em chama ] , que considero u m dos momentos mais fascinan-
tes da lírica a lemã, são como u m a citação, mas não de outro poe-
ta, e s im daqu i lo q u e foi i r reparave lmente perdido pela l íngua: 
os Minnesünger [poetas medieva is a lemães] ter iam conseguido 
trovar com êxi to esses versos, se u m a certa tradição da l í ngua 
a lemã, ou mesmo , ser íamos tentados a dizer, se a própria l íngua 
alemã tivesse t ido êxito. Era nesse espírito que Borchardt quer ia 
traduzir Dante . Ouv idos sutis têm tropeçado nesse el íptico "gar' 
[ao f im] ,que sem dúv ida subst itui "ganz und gar' [ao f im e ao 
cabo] e foi uti l izado, em certa medida , por questões de r ima . 
Pode-se admit i r tal crít ica, como se a d m i t e que a pa lavra , tal 
como foi encravada no verso, não oferece mais n e n h u m sent ido 
exato. Mas as grandes obras de arte são aque l a s que , e m seus 
pontos mais problemáticos, acabam sendo felizes. Assim como, 
por exemplo, as mais subl imes obras mus ica i s não se esgotam 
puramente na sua construção, mas a t r anscendem com u m par 
de notas ou compassos supérf luos, o mesmo ocorre nesse poe-
ma com o "gar", uma goetheana " sed imentação do absurdo" , 
pela qual a l íngua escapa da intenção subjet iva que trouxe a pa-
lavra ao texto. É provavelmente esse mesmo u ga r que estabelece 
a d ignidade do poema, com a força de u m déjà vir. através dele 
a melodia do poema se estende para a lém da mera s ignif icação. 
Na época em que a l inguagem decl ina, George capta na própr ia 
l inguagem a idéia que lhe foi negada pela marcha da história , e 
articula versos que soam, não como se fossem dele, mas como 
se tivessem existido desde o começo dos tempos, e devessem per-
manecer assim para sempre. No entanto , o caráter qu ixotesco 
dessa empreitada, a impossibi l idade de u m a tal poesia reparadora 
e o perigo do artesanato, reforçam a inda mais o teor do poema: 
o quimérico anseio da l inguagem pelo impossível torna-se expres-
são do insaciável anseio erótico do sujeito, que no outro se a l i -
via. Foi preciso que a ind iv idua l idade , in tens i f icada ao extremo, 
revertesse e m auto-an iqu i l ação — e qual é o s ign i f icado do cul -
to do ú l t imo George ao aman te M a x i m i n , senão u m a renúnc ia 
à individual idade, apresentada de maneira desesperadamente po-
sitiva — para alcançar essa fantasmagoria que a l íngua a lemã, e m 
seus maiores mestres, sempre tateou em vão: a canção popular . 
É somente em virtude de uma diferenciação levada tão longe a 
ponto de não poder mais suportar sua própr ia d i ferença , não 
poder mais suportar nada que não seja o universal l ibertado, no 
indiv íduo, da vergonha da indiv iduação, que a palavra l ír ica re-
presenta o ser-em-si da l i nguagem contra sua servidão no reino 
dos fins. M a s com isso a l ír ica fala em nome do pensamento de 
uma h u m a n i d a d e livre, m e s m o que a Escola de George o tenha 
diss imulado no cul to infer ior das alturas. A verdade da lírica de 
George reside e m sua consumação do part icular , na sensibi l ida-
de que repud ia tanto o banal como até mesmo o seleto, derru-
bando os muros da ind iv idua l idade . Se a expressão dessa verda-
de se condensou em u m a expressão ind iv idua l , inte i ramente sa-
turada com a substânc ia e exper iência da própr ia solidão, então 
é jus tamente essa fala que se torna a voz dos homens, entre os 
quais já não existe barreira .

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