Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Sobrevivência do princípio da insignificância diante das disposições da Lei 9099/95 Maurício Macêdo dos Santos * Viviane Amaral Sega** SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. PARTE I - ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 1 O PRINCÍPIO IMPLÍCITO DA INSIGNIFICÂNCIA. 2 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 3 CONCEITO E IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 4 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL CONSAGRADO PELO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. 4.1 Princípio da Legalidade. 4.2 Princípio da Intervenção Mínima. 4.3 Princípio da Fragmentariedade. 4.4 Princípio da Subsidiariedade. 4.5 Princípio da Adequação Social. 4.6 Princípio da Proporcionalidade. 4.7 Princípio da Lesividade. 5 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PERANTE A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA. PARTE II - ANÁLISE DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. 1 FUNDAMENTOS POLÍTICOS-CRIMINAIS DA LEI Nº 9.099/95. 1.1 A Crise do Judiciário. 1.2 O Acesso à Justiça. 1.3 A Decadência da Pena Privativa de Liberdade. 2 ORIGEM DA LEI Nº 9.099/95. 3 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL CONSAGRADOS NA LEI Nº 9.099/95. 3.1 Princípio da Intervenção Mínima (Fragmentariedade e Subsidiariedade). 3.2 Princípio da Proporcionalidade. 4 INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. 5 CRITÉRIOS OU PRINCÍPIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS. 5.1 Oralidade. 5.2 Simplicidade. 5.3 Informalidade. 5.4 Economia Processual. 5.5 Celeridade. 6 A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS COMO UM NOVO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL. 6.1 Inovações trazidas pela Lei nº 9.099/95. 6.1.a Descriminalização, Despenalização, Diversificação e Descarcerização. 6.1.b Conciliação. 6.1.c Composição dos Danos. 6.1.d Necessidade de Representação nos Crimes de Lesões Corporais Leves e Culposas. 6.1.e Transação. 6.1.f Suspensão Condicional do Processo. PARTE III - CONSIDERAÇÕES FINAIS. 1 A RELEVÂNCIA DA DISTINÇÃO ENTRE AS INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO E OS CRIMES DE BAGATELA. 2 SOBREVIVÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA DIANTE DAS DISPOSIÇÕES DA LEI Nº 9.099/95. OBRAS CONSULTADAS. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é averiguar qual a condição do princípio doutrinário da insignificância após a edição da Lei nº 9.099/95, ou seja, se o princípio sobrevive ou foi incorporado pelas disposições da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Cabe ressaltar, que o princípio da insignificância tem mostrado grande relevância para o cenário jurídico-penal, social e político, visto que baseia-se na desconsideração da tipicidade das infrações penais tidas como levíssimas, isto é, evitar que casos de baixa ameaça a bens jurídicos protegidos sobrecarreguem o tão assoberbado Poder Judiciário, vinculando-se, desse modo, ao movimento que busca um direito penal mínimo. Enquanto que, a Lei dos Juizados Especiais parece ter surgido com o mesmo objetivo, como podemos observar na introdução de instrumentos despenalizadores e descarcerizadores, além de tentar desburocratizar a prestação jurisdicional, representando, portanto, a concretização de um direito penal baseado na mínima intervenção, mas, ao mesmo tempo, na garantia dos direitos fundamentais. O que nos motivou à elaboração deste trabalho foi ter encontrado material muito escasso na doutrina e na jurisprudência, onde pouquíssimos artigos tratam vagamente sobre este tema tão importante e, pouco esclarecido dentro da política criminal moderna. Portanto, nosso trabalho visa preencher esta lacuna, demonstrando a sobrevivência, ou não, do princípio da insignificância diante das disposições da Lei nº 9.099/95, embasando nossos argumentos através de estudos doutrinários e jurisprudenciais, sob uma visão sistemática e teleológica do ordenamento jurídico-penal. PARTE I ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA 1 O PRINCÍPIO IMPLÍCITO DA INSIGNFICÂNCIA Princípios, segundo Miguel Reale são: "Verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes, também se denominam princípios, certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes de validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários"(1). Desse modo, os princípios são vigas mestras, a base de sustentação de todo o sistema jurídico(2) e, diferem das regras, pelo seu maior grau de abstração e inferior grau de aplicabilidade, mas em contra partida, possuindo maior valor para o sistema como um todo, visto que concretizam os valores deste. Sendo assim, nos diz Celso Antônio Bandeira de Mello: "Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma" (3) e, nesse mesmo sentido, afirma Renato Lopes de Becho que: "os princípios são mais importantes que as regras, pois auxiliam na interpretação do sistema, no julgamento das causas e na própria elaboração de novas leis"(4). É sabido que, em nosso ordenamento jurídico, há princípios explícitos e implícitos. Como afirma Ferrara "o direito não é só o conteúdo imediato das disposições expressas, mas também, o conteúdo virtual de normas não expressas, porém incitas no sistema"(5) (grifos nossos). Nesse sentido sustenta Rudolf Von Jhering: "O direito existe para se realizar. A realização é a vida e a verdade do direito, é o próprio direito. O que não se traduz em realidade, o que está apenas na lei, apenas no papel, é um direito meramente aparente, nada mais do que palavras vazias. Pelo contrário, o que se realiza como direito é direito, mesmo quando não se encontre na lei e, ainda que, o povo e a ciência dele não tenham tomado consciência"(6). (grifos nossos). É importante salientar, que os princípios implícitos são tão importantes quanto os explícitos e constituem, como estes, verdadeiras normas jurídicas (normas- princípios), até porque não há uma hierarquia entre princípios e, ainda, a aplicação de um não exclui a aplicação de outro(7). Por isso, desconhecê-los é tão grave quanto desconsiderar quaisquer outros princípios. Nessa ótica, são improcedentes os argumentos de que o princípio da insignificância não constitua-se num verdadeiro princípio, visto que caracteriza-se como um princípio implícito, por estar integrado aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, já que tenta resguardar a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade da aplicação da pena aos casos de mínima relevância, impedindo que se cometam injustiças. 2 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA O princípio da insignificância, ou, de acordo com os doutrinadores alemães, a "criminalidade de bagatela" - Bagatelledelikte, surge de forma significativa na Europa, a partir deste século, devido às crises sociais decorrentes das duas grandes guerras mundiais. O excessivo desemprego e a falta de alimentos, dentre outros fatores, provocou um surto de pequenos furtos, subtrações de mínima relevância, que receberam a denominação "criminalidade de bagatela"(8). Como podemos constatar, essa origem fática reveste-se pelo caráter de patrimonialidade de seu destino, ou seja, a existência de um dano patrimonial mínimo, que não caracterize prejuízo considerável a outrem, é considerada uma bagatela, e, como bagatela, não carece dos rigores do direito penal. Há quem afirme, que o princípio da insignificância tem sua origem histórica no direito romano, como sustenta Diomar Ackel Filho: "no tocante à origem, não se pode negar que o princípio já vigorava no direito romano, onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela, consoante a máxima contida no brocardode minimis non curat praetor"(9). Contudo, convém registrarmos a posição de Maurício Antônio Ribeiro Lopes, que nos é mais conveniente, a qual realiza uma crítica a essa origem histórica, devido à ausência de especificidade do princípio, que servia para justificar menos a ausência de providências estatais na esfera penal do que no direito civil. Afinal, os romanos tinham bem desenvolvido o direito civil, porém não tinham a mínima noção do princípio da legalidade penal. Logo, existe naquele brocardo romano apenas uma máxima e não um estudo mais calculado(10). Com esse argumento, pretende o autor concluir que é precipitado creditarmos ao direito romano a origem histórica do princípio da insignificância, ficando este apenas com a origem fática do mesmo, que, como recém salientamos, ocorreu ainda neste século, na Europa, mais notadamente na Alemanha. O princípio da insignificância teve sua origem e evolução através dos tempos fortemente ligada ao princípio da legalidade, em matéria penal - nullum crimen nulla poena sine lege -, passando por transformações que foram delineando o seu conteúdo, de forma a limitar-se aos desígnios criminalizadores(11). A partir do movimento Iluminista, com a propagação do individualismo político e desenvolvimento do princípio da legalidade, vários autores jusnaturalistas e iluministas propuseram um estudo mais sistematizado do princípio da insignificância. Jescheck, vinculou a origem do princípio da legalidade à teoria do contrato social, concluindo, então, que a função do Estado seria garantir a proteção efetiva dos direitos do homem, ou seja, somente é ilícito aquilo vedado por lei(12). Tais pensadores achavam necessária a contenção do arbítrio judicial com a conseqüente submissão do magistrado à norma, único elemento capaz de estabelecer o que é antijurídico e as sanções pertinentes(13). Dentro deste contexto, Cesare Beccaria, com sua obra Dei delitti e delle pene, de 1764, argumentava ser o legislador o único agente capaz de estabelecer normas, por representar toda a sociedade unida por um contrato social, e que, apenas estas leis, poderiam indicar as penas de cada delito(14). Quanto à medida dos delitos, Beccaria entende que "a exata medida do crime é o prejuízo causado à sociedade"(15). Assim, o princípio da legalidade foi agregado às constituições inglesa e americana, e, também, sendo o princípio da insignificância absorvido por elas de forma implícita. Já a França, com a sua Declaração Universal do Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, traz notável expressão do princípio da legalidade, bem como do princípio da insignificância em seu art. 5º, ao dizer que a lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade(16). Porém, foram distorcidos tais princípios pelos regimes totalitários, como o da Alemanha nazista, "se nenhuma lei determinada pode se aplicar diretamente ao fato, este será castigado conforme a lei cujo conceito básico melhor corresponder". Também o direito penal soviético baseava-se em conceitos como "consciência socialista do direito", dando uma ilimitada discricionariedade na avaliação das condutas delituosas, concepções estas, que foram extintas pela reserva legal nestes países (17). Com o advento da legalidade, lege praevia, reconheceu-se procedentes às idéias garantidoras dos princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal incriminadora e, adiante, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Para evitar-se a eleição consuetudinária de comportamentos penais típicos, criou-se a máxima nullum crimen nulla poena sine lege scripta(18). Após, para complementar o princípio da legalidade, houveram três desdobramentos que foram delineando seu conteúdo(19), a saber: lege stricta, com o intuito de evitar o uso da analogia na configuração dos delitos; lege certa, para proibir incriminações vagas e imprecisas e o nullum crimen nulla poena sine iuria, que pressupunha a necessidade da relevância do mal que justificasse a aplicação de pena(20). Nessa "máxima" podemos observar, sem via de dúvida, a busca de evitar que as lesões insignificantes a bens jurídicos protegidos ensejem uma sanção penal. Logo, o princípio da insignificância teve sua origem e evolução vinculado ao princípio da legalidade; todavia, somente obtendo uma maior importância dentro do universo jurídico a partir deste século. 3 CONCEITO E IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA O conceito de delito de bagatela não encontra-se definido em nossa legislação, porém, a interpretação doutrinária e jurisprudencial tem permitido delimitar as condutas tidas como insignificantes, sob o condão de um direito penal mínimo, fragmentário e subsidiário. Sendo assim, segundo Diomar Ackel Filho: "O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes"(21). Conforme nos diz Assis Toledo, o princípio se vincula a "gradação qualitativa-quantitativa do injusto que permite ser o fato insignificante excluído da tipicidade penal"(22). Alberto Silva Franco, adere o princípio da insignificância à antijuridicidade material(23) e Aldo Montoro, acrescenta que além deste limite quantitativo-qualitativo não há racional consistência de crime, nem justificação de pena, sendo irrelevante os fatos que se encontrem abaixo deste limite(24). Na lição de Vico Mañas: "O princípio da insignificância é um instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal"(25). Cabe destacar que concordamos com a lição do autor, data vênia, não achamos correta a afirmação de que, através do princípio da insignificância se chegue a descriminalização de condutas, pois sua função é apenas desconsiderar a tipicidade da conduta no caso concreto, enquanto a descriminalização já requer todo um processo legislativo. Nossa interpretação, é de que os crimes de bagatela são delitos que, num primeiro momento, se moldam ao fato típico, mas que, posteriormente, tem sua tipicidade desconsiderada por tratarem-se de ofensas a bens jurídicos que não causam uma reprovabilidade social, de maneira a não fazer-se necessária a atuação do direito penal. Ao analisarmos a importância deste princípio doutrinário nos remetemos às lições de Diomar Ackel Filho, que nos lembra a seriedade da função jurisdicional, como atividade através da qual o Estado, com eficácia vinculativa plena, elimina a lide, realizando o direito objetivo. Atividade-poder, de tal magnitude, implicando em ato de soberania do próprio Estado, não deve deter-se, de qualquer forma, para considerar bagatelas irrelevantes, de modo a vulnerar os valores tutelados pela norma penal(26). O princípio da insignificância é importante também, pois serve como um instrumento de limitação da abrangência do tipo penal às condutas realmente nocivas à sociedade, resguardando, assim, o ideal de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime(27). Assim sendo, podemos retirar do direito penal ações cujo conteúdo se revela ínfimo para a atuação da Justiça Penal, evitando-se assim a saturação de seus órgãos, com a retirada de umsem número de processos que podem ser resolvidos por outros meios. 4 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL CONSAGRADOS PELO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNICA Para termos uma visão mais abrangente do que vem a ser o princípio doutrinário da insignificância no mundo jurídico-penal, devemos relacioná-lo a outros princípios, como por exemplo, o princípio da legalidade, proporcionalidade, mínima intervenção, fragmentariedade, subsidiariedade, adequação social e o da lesividade. 4.1 Princípio da Legalidade Conforme já verificamos, o princípio da legalidade possui quatro desdobramentos - a lei deve ser prévia, escrita, estrita e certa - para ser válida e eficaz ao caso concreto, de modo a garantir a correta e justa cominação das normas penais. Como se isso não bastasse, a marca evolutiva do princípio da legalidade levou à construção do nullum crimem nulla poena sine iuria(28), ou seja, não há crime sem dano relevante a um bem jurídico penalmente protegido, como já tivemos a oportunidade de salientar, este desdobramento do princípio da legalidade é o que mais se relaciona ao princípio da insignificância, visto que traz como premissa o espírito deste, isto é, casos que não tenham relevância social não sobrecarreguem o Poder Judiciário, pois não acarretam um resultado significante, assim, desconsidera-se a tipicidade, já que não houve um dano considerável a um bem jurídico protegido. Alguns autores, como Vani Benfica, afirmam ser inaplicável o princípio da insignificância por não estar previsto na legislação e, portanto, não incorporado ao ordenamento jurídico(29). Esta é, sem dúvida, uma posição mais formalista, que, ao nosso ver, não procede, pois nem todos os princípios estão necessariamente expressos nos documentos jurídicos de que se extraem. Assim, existem princípios que são normativos e outros que são meramente doutrinários, como é o caso do princípio da insignificância, o que não implica considerá-lo menos importante, já que não está em hierarquia inferior a nenhum outro princípio, pois como já tivemos a oportunidade de salientar os princípios não possuem hierarquia entre eles, aliás eles podem aplicar-se simultaneamente. 4.2 Princípio da Intervenção Mínima O princípio da intervenção mínima tem o intuito de limitar ou eliminar o arbítrio do legislador, já que o princípio da legalidade impõe apenas limites ao arbítrio judicial, mas não impede que o Estado, obedecendo a reserva legal, crie penas imperfeitas e cruéis(30). É sabido que a pena criminal não repara a situação fática anterior, não iguala o valor dos bens jurídicos postos em confronto e impõe um sacrifício social alto. Logo, o direito penal deve ser a última ratio, ou seja, a intervenção do direito penal só se faz aceitável em casos de ataques relevantes a bens jurídicos tutelados pelo Estado. O princípio da mínima intervenção, surge por ocasião do movimento social de ascensão da burguesia (Iluminismo) e, julgava ser legítima a criminalização de um fato somente se a mesma constitui o único meio necessário para a proteção de um determinado bem jurídico(31). Assim, para corroborar esta idéia, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu art. 8º, determinou que "a lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias ..."(32). O princípio da intervenção mínima, segundo René Ariel Dotti: "Visa restringir a incidência das normas incriminadoras aos casos de ofensas aos bens jurídicos fundamentais, reservando-se para os demais ramos do ordenamento jurídico a vasta gama de ilicitudes de menor expressão, em termos de dano ou perigo de dano. A aplicação do princípio, resguarda o prestígio da ciência penal e do magistério punitivo contra os males da exaustão e da insegurança que a conduz a chamada inflação legislativa"(33). A exemplo do que ocorre com o princípio da insignificância, este princípio não é explícito nas legislações penais e constitucionais contemporâneas, porém, devido ao seu vínculo com outros postulados explícitos, e mesmo com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, deve o mesmo se impor aos olhos do legislador, e inclusive ao do intérprete(34). 4.3 Princípio da Fragmentariedade O princípio da fragmentariedade decorre dos princípios da legalidade e da intervenção mínima e, tem como fundamento que somente as condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens jurídicos relevantes carecem dos rigores do direito penal(35). O legislador, ao prever o tipo penal, tem em mente apenas o prejuízo relevante que o comportamento incriminado possa causar à esfera social e jurídica, sem ter, contudo, como evitar que tal disposição legal atinja, de roldão, também os casos leves, de maneira desproporcional. Então, como nos ensina Vico Mañas, "O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal"(36). Entendemos, portanto, que o direito penal possui um caráter fragmentário, ou seja, deve ocupar-se somente daqueles casos em que há uma ameaça grave aos bens jurídicos tutelados pelo Estado, logo, nunca disciplinando bagatelas irrelevantes. 4.4 Princípio da Subsidiariedade A subsidiariedade do direito penal, que presume a sua fragmentariedade, deriva de sua consideração como um remédio sancionador extremo, que deve ser ministrado apenas quando nenhum outro se mostrar suficiente para resolver o conflito. Assim, a intervenção do direito penal só se legitima quando os outros ramos do direito se revelarem ineficazes em sua intervenção. Segundo Muñoz Conde, a intervenção do direito penal só ocorre quando fracassam as demais formas de tutela do bem jurídico predispostas pelos demais ramos do direito(37). Devemos ressaltar, ainda, que, uma vez utilizado o direito penal, na possibilidade plena de o conflito ainda poder vir a ser resolvido satisfatoriamente por outros ramos do direito, estaremos diante de um caso de ilegitimidade, de uma ameaça à paz pública, pois podemos ter efeitos que contrariem os princípios do direito. 4.5 Princípio da Adequação Social A teoria da adequação social, formulada por Welzel, surgiu como um princípio geral de interpretação dos tipos penais. Através dele, não são consideradas típicas as condutas que se movem por completo dentro do marco de ordem social normal da vida, por serem consideradas socialmente toleráveis(38). Tal princípio é muito útil em sistemas jurídicos defasados de atualização e/ou reciclagem legislativa, quando as normas são dificilmente atualizáveis frente à realidade econômico-social em constante transformação(39). O princípio da adequação social, então, exclui, desde logo, a conduta do âmbito de incidência do tipo, situando-a entre os comportamentos atípicos, ou seja, como comportamentos normalmente tolerados. Welzel considera que o princípio da adequação social por si só é suficiente para excluir certas lesões insignificantes(40). Entretanto, não podemos concordar com tal conclusão, pois o princípio da adequação social não engloba o princípio da insignificância, uma vez que no princípio da adequação social a conduta é socialmente tolerável, já no princípio da insignificância ela não é tolerável, e sim, desconsiderada por tratar-se de bem jurídico insignificante. 4.6 Princípio da proporcionalidade O princípioda insignificância relaciona-se, também, com o da proporcionalidade, pois, como nos diz Zaffaroni, o fundamento do princípio da insignificância está na idéia de proporcionalidade que a pena deve manter em relação à significância do crime(41). Logo, quando houver ínfima relevância ao bem jurídico, o conteúdo do injusto é irrelevante e não consiste em razão para o fator ético da pena. Conforme Sanguiné, ainda que fosse aplicada uma pena mínima, esta seria considerada demasiada em relação à irrelevante significação social do fato(42). Ao analisar a proporcionalidade com relação ao princípio da insignificância, Maurach afirma que: "Aplicar um recurso mais grave quando se obtém o mesmo resultado através de um mais suave: seria tão absurdo e reprovável criminalizar infrações contratuais civis quanto cominar ao homicídio tão só o pagamento das despesas funerárias"(43). Na visão de Muñoz Conde, o princípio da proporcionalidade, quando desrespeitado, afasta a idéia de uma finalidade do direito penal compatível com as bases de sustentação de um Estado Social e Democrático de Direito(44), isto é, o direito penal deve sustentar-se na proporcionalidade, uma vez que o direito deve garantir os direitos fundamentais do ser humano buscando ser um direito mínimo e garantista. Por fim, faz-se relevante destacar que o Superior Tribunal de Justiça acata a tese de que a pena deve ser proporcional ao delito praticado, como podemos observar no voto do Exmo. Sr. Min. Fernando Gonçalves ao "Caso dos Minhocuçus": "O ato dos réus em apanhar quatro minhocuçus não tem relevância jurídica. Incide aqui o princípio da insignificância, porque a conduta dos acusados não tem poder lesivo suficiente para atingir o bem jurídico tutelado pela Lei nº 5.197/67. A pena por ventura aplicada seria mais gravosa do que o dano provocado pelo ato delituoso"(45). (grifos nossos) 4.7 Princípio da Lesividade Através do princípio da lesividade, só pode ser penalizado aquele comportamento que lesione direitos de outrem e que não seja apenas um comportamento pecaminoso ou imoral; o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade e além desse limite não está legitimado e, nem é adequado, para a educação moral dos cidadãos. As condutas puramente internas ou individuais, que se caracterizem por ser escandalosas, imorais, esdrúxulas ou pecaminosas, mas que não afetem nenhum bem jurídico tutelado pelo Estado não possuem a lesividade necessária para legitimar a intervenção penal(46). Então, o princípio da insignificância tem uma relação importante com o princípio da lesividade, porque através deste o direito penal só pode ser utilizado se afetar bens jurídicos relevantes, ou seja, o fato deve causar uma lesividade tal que legitime a intervenção penal. 5 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PERANTE A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA Como nos diz Odone Sanguiné, o princípio da insignificância teve, pela primeira vez, seu acolhimento "expresso" pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 1988 (RHC nº 66.869-1, 2º turma, votação unanime). No julgamento o STF decidiu arquivar a ação penal com o fundamento de que uma equimose, de três centímetros de diâmetro, decorrente de um acidente automobilístico, escapa ao interesse punitivo do Estado em virtude do princípio da insignificância - não acolhendo a tese do Tribunal inferior e da Procuradoria-Geral da República que sustentavam que a lesão preenchia os requisitos necessários para a existência da tipicidade penal, ainda que de nenhuma conseqüência funcional - alegando que o prosseguimento da ação penal não lograria nenhum resultado, só sobrecarregaria mais os serviços da Justiça e incomodaria inutilmente a vítima(47). Configurando-se, portanto, como uma diretriz jurisprudencial da mais alta valia e, servindo como precedente aos Tribunais inferiores. A jurisprudência tem adotado o princípio da insignificância, principalmente, nos casos de furto, lesão corporal, descaminho e crimes contra a fauna. Entretanto, o entendimento adotado segue sempre uma mesma linha, ou seja, a lesão ou o fato praticado, por ser insignificante, torna-se atípico, além dos argumentos da proporcionalidade, da mínima intervenção, da fragmentariedade e da subsidiariedade. Por fim, mesmo não estando tipificado em nenhum instituto legal, o princípio da insignificância vem, ultimamente, sendo utilizado e invocado pela jurisprudência brasileira. Assim, vislumbra-se uma aplicação cada vez maior dos conceitos trazidos pelo princípio doutrinário da insignificância, como podemos observar em inúmeras decisões dos Tribunais Estaduais e Federais, como também do Superior Tribunal de Justiça. Os Tribunais Estaduais tem aplicado o princípio da insignificância mais comumente aos casos de furto e lesões corporais leves e levíssimas consoante aos argumentos de irrelevância social e econômica da res furtiva,(48) aliados à ausência de perigosidade da conduta incriminada, e os argumentos da falta de potencialidade ofensiva do fato, a natureza levíssima das lesões causadas e a falta de ameaça danosa ou concretamente perigosa que justifique a imposição de uma pena. Com relação ao furto, podemos exemplificar com a jurisprudência do TJGO: "Furto qualificado. Apelação da acusação. Botijão de gás. Crime de bagatela. Pequeno valor da ‘res’ em relação ao patrimônio das vítimas. Apreensão e devolução imediatas. Ausência de prejuízo. Aplicação do princípio da insignificância. Absolvição - O furto de um botijão de gás sem prejuízo, ínfimo que seja para a vítima, diante da imediata apreensão e devolução, decorrente do flagrante, sem também, maiores conseqüências ao adquirente do bem furtado, é fato de nenhuma relevância social na escala de valor atual da norma incriminadora, a merecer a movimentação do caro mecanismo judiciário num direito penal clássico como o nosso"(49). (grifos nossos) Com relação as lesões corporais leves, cita-se a jurisprudência do TJSC: "A insignificância da lesão sofrida pela vítima afasta a tipicidade do crime previsto no artigo 129 do CP, impondo-se a solução absolutória"(50). Os Tribunais Regionais Federais são os órgãos que mais se utilizam da aplicação do princípio da insignificância para a resolução dos litígios, sendo, em certos casos, como nos delitos de descaminho(51), aplicado o princípio de forma pacífica, sob os argumentos de que descaminho de mercadoria de valor irrisório não chega a causar lesão relevante; também é muito utilizado nos crimes contra a fauna(52), sob os argumentos de que nos crimes contra a fauna, o direito penal não deve preocupar-se com ações insignificantes, que pela sua natureza não causam um dano ao bem jurídico tutelado. Com relação aos crimes de descaminho, jurisprudência do TRF 4º Região: "Pacificou-se a jurisprudência desta 1º Turma no sentido de que o descaminho de mercadorias de valor irrisório não chega a causar lesão relevante, que justifique o prosseguimento da ação penal, devendo nessas hipóteses, ser aplicado o princípio da insignificância"(53). Com relação aos crimes contra a fauna, jurisprudência do TRF 5º Região: "A comercialização de 17 (dezessete) borboletas não pode ensejar uma pena de 2 a 5 anos de reclusão. Homenagem ao princípio da insignificância"(54). A jurisprudência observada no Superior Tribunal de Justiça denota uma maior aplicação do princípio da insignificância aos delitos de descaminho ou contrabando, sob o mesmo argumento dos Tribunais Federais, ou seja, que as mercadorias de ínfimo valor não caracterizariam crime de descaminho ou contrabando(55). Nesse sentido jurisprudência,do STJ: "Descaminho. Princípio da insignificância. No caso ‘sub examine’, a pequena quantidade e o ínfimo valor da mercadoria de procedência estrangeira, apreendida em poder do acusado autoriza a aplicação do princípio da insignificância"(56) Cabe lembrar também, a discussão que se deu em torno de quatro minhocuçus, onde o STJ sabiamente aplicou o princípio da insignificância, como podemos observar no extrato jurisprudencial abaixo: "A apanha de apenas quatro minhocuçus não desloca a competência para a Justiça Federal, pois não constitui crime contra a fauna, previsto na Lei nº 5.197/67, em face da aplicação do princípio da insignificância, uma vez que a conduta não tem força para atingir o bem jurídico tutelado"(57). (grifos nossos) Cabe ressaltar, também, que nosso Supremo Tribunal Federal não rejeita o princípio da insignificância, muito pelo contrário, o aceita, em determinados casos, devendo ser analisado caso a caso. Desse modo, jurisprudência do STF: "...a aplicação do princípio da insignificância deve ser feita caso a caso"(58). É importante, também, salientar que o próprio Ministério Público Federal (MPF) aceita e aplica a tese do princípio da insignificância, como podemos observar no 3º ofício criminal, com relação aos autos nº 940011453/2, onde o MPF solicita o arquivamento do inquérito policial de descaminho, com base no princípio da insignificância, da irrelevância do valor da mercadoria apreendida(59). Podemos observar, nos extratos jurisprudenciais aquilo que viemos defender, ou seja, que através do princípio da insignificância podemos desconsiderar a tipicidade do fato, pois evidenciada a falta de potencialidade ofensiva social ou econômica do ato delituoso, servindo, também, como um método auxiliar de interpretação(60) que versa sobre a atipicidade do fato. PARTE II ANÁLISE DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS 1 FUNDAMENTOS POLÍTICO-CRIMINAIS DA LEI Nº 9.099/95 Em primeiro lugar, devemos destacar que o direito penal brasileiro sempre apresentou uma característica clássica: tutelar, fragmentária e de intervenção mínima(61). Todavia, nestes últimos anos verifica-se alguns desvios destes traços fundamentais do direito penal, isso se deve basicamente ao modelo apresentado pelo que se chama de "Movimento de Lei e Ordem" (movimento este que acredita ser o direito penal um direito de máxima intervenção, um direito capaz de resolver todo e qualquer problema social através da imposição de leis). Porém, esse modelo "expansionista" não resolve, sem via de dúvida, os verdadeiros problemas pelos quais a sociedade passa, como por exemplo, a falta de segurança (devido ao aumento da criminalidade) e a falta de garantia dos seus direitos, entre outros. Então, o Movimento de Lei e Ordem, somente acarreta uma "inflação legislativa", pois novas leis são editadas a todo o momento, criando novos tipos penais, aumentando as penas cominadas aos crimes e suprimindo as garantias do acusado durante o processo; leis estas mal elaboradas, sem técnica legislativa, formando um emaranhado confuso e contraditório(62). Como podemos observar, por exemplo, em erros absurdos de técnica legislativa, como o ocorrido no artigo 30 da Lei nº 9.605/98 que diz: "exportar para o exterior...", ou como o artigo 49 da mesma Lei, onde verifica-se gritante violação ao princípio da proporcionalidade, uma vez que, de acordo com o artigo 49 desta Lei, "maltratar" uma planta ornamental ou infligir maus tratos a um animal, são mais severamente apenados que os maus-tratos ao ser humano(63). Assim, através do que se chama Movimento de Lei e Ordem, o direito penal passou a ser um direito simbólico, promocional e intervencionista e, segundo Calhau, este Movimento, busca apenas embriagar a população com medidas demagógicas(64) e, é neste cenário que surge a Lei nº 9.099/95, para resgatar e garantir a característica clássica do direito penal brasileiro. Então, o direito penal brasileiro, hoje, busca ser um direito penal mais civilizado, um direito penal pouco radical nas suas diretrizes político-criminais, uma ordem que seja capaz de equilibrar as diversas abordagens possíveis. Não obstante, essa busca da harmonia é um fenômeno recente na história penal. Entretanto, ainda há desorientações, por exemplo, às vezes - num curto período de tempo - são editadas leis completamente contraditórias do ponto de vista político-criminal como, por exemplo, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072) editada em 1990 (que adota como característica principal a premissa da máxima intervenção penal, maior severidade e repressão a direitos e garantias) e a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099) editada em 1995, incrivelmente proposta pelo mesmo Deputado, Sr. Michel Temer, (que ao contrário da outra é uma lei de mínima intervenção, mais liberal, despenalizante e orientada por postulados político-criminais de reforço às garantias fundamentais). Logo, ainda há essas oscilações, porém são meros desvios, pois a política criminal brasileira, nas ultimas décadas, vem tentando manter essa consistência, esse ponto de equilíbrio, isto é, um direito penal baseado na mínima intervenção, um direito penal que garanta os direitos fundamentais e individuais, um direito penal mais liberal, mas que, ao mesmo tempo, traga à sociedade a devida segurança. Isto se verifica, principalmente, após a edição da Lei nº 7.209/84 (que reformulou a parte geral do CP de 1940) onde houve uma humanização das sanções penais, uma adoção a penas alternativas de prisão, etc. e, também, após a promulgação da própria Constituição Federal de 1988 a qual se fundamenta nos direitos e garantias individuais. Seguindo esta linha, veio a lume em 1995 - para confirmar essa posição clássica - a Lei nº 9.099/95 com o intuito de agilizar e desburocratizar a prestação jurisdiconal, atuando, não só como um novo procedimento, mas sim como um novo sistema penal baseado no consenso e no direito penal mínimo(65). Nessa mesma linha, jurisprudência do STJ: "A Lei nº 9.099/95, resultante do disposto no artigo 98 da Constituição da República, não é mero procedimento processual penal. É sistema; como tal, conjunto de princípios e normas (a melhor expressão a ser usada aqui seria regras, visto que normas é gênero do qual são espécies os princípios e as regras). Não obstante guardar harmonia com o Código de Processo Penal é autônomo"(66). (grifos acrescentados) 1.1 Crise do Judiciário A crise do Judiciário está relacionada ao grande desenvolvimento e às grandes transformações sociais, econômicas e políticas, ou seja, o Judiciário não conseguiu acompanhar as novas demandas trazidas pelas modificações na sociedade. Em conseqüência disso, a sociedade vive insatisfeita com a Justiça, como um todo, pois esta não evoluiu para lhe dar um resultado significativo. De acordo com Pedro Manuel Abreu et alii, os problemas do Judiciário só poderão ser enfrentados com uma dotação orçamentária mais adequada, que lhe possibilite uma melhor infra-estrutura material e pessoal(67). Nesse sentido, a Lei dos Juizados Especiais não visa resolver a crise do Judiciário(68), mas simplesmente atenuá-la, oferecendo uma alternativa ao Poder Judiciário, com o escopo de torná-lo mais rápido e eficiente, a fim de que se possa desburocratizar este lento e sobrecarregado Poder da Justiça. 1.2 Acesso à Justiça Segundo Eduardo A. Zannoni, o direito deverá realizar a justiça como uma ordem que possa garantir a cada indivíduo o que é seu, isto é, o direito deve dar a cada um as possibilidades de realização pessoal em convivência(69). O acesso à justiça, segundoMauro Cappelletti, é um direito fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos(70). Assim, tratando-se de um Estado Democrático de Direito (como explicita nossa Carta Maior em seu artigo 1º: "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito..."), o acesso à justiça é um direito de todos (CF, art. 5º, XXXV "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" e LXXIV "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos") e é um dever deste Estado assegurá-la para todos, não para uns poucos. Nessa linha, a Lei nº 9.099/95 surge como um novo modelo, como o marco de um novo tempo, é uma esperança que, dentre outras, deverá lograr sucesso para o bem da sociedade, trazendo uma justiça mais acessível, digna e mais perto de quem precisa: o povo(71). 1.3 A Decadência da Pena Privativa de Liberdade A pena privativa de liberdade encontra-se, em descrédito, pois ela não consegue cumprir com suas finalidades, ou seja, não consegue ser eficaz na defesa da sociedade, como também, não garante aos presos seus direitos fundamentais (por exemplo, a dignidade - CF, art. 1º, III - e o respeito a integridade física e moral - CF, art. 5º, XLIX), visto que o sistema prisional brasileiro encontra-se, atualmente, em precárias condições para garantir tais direitos. Nesse sentido, José Celso de Mello Filho em entrevista à Revista Veja afirmou: "A organização penitenciária brasileira é um instrumento de degradante ofensa às pessoas sentenciadas. O condenado é exposto a penas que não estão no CP, gerados pela promiscuidade e pela violência"(72). Em conseqüência disto, verifica-se que a pena, em alguns casos, é desproporcional à gravidade do crime, como também legitima o desrespeito aos direitos humanos estigmatizando o ser humano(73);enfim, a prisão ultimamente - só funciona como uma máquina de reprodução do crime. A pena de prisão, então, encontra-se, de acordo com César Bittencourt, falida(74), já que não consegue reduzir a criminalidade. Sua imposição também acarreta a superpopulação carcerária (porque não há um sistema penitenciário adequado) e sua aplicação não consegue recuperar ninguém, uma vez que a maioria esmagadora daqueles que passaram pelo sistema prisional voltam a delinqüir. No Brasil, por exemplo, a reincidência chega a 90 % (noventa porcento), enquanto a média mundial chega a 70% (setenta porcento)(757), por isso podemos dizer que a prisão além de não recuperar ninguém(76), é a "faculdade do crime"(77). Assim, faz-se necessário que a pena privativa de liberdade seja imposta somente em último caso (ultima ratio), ou seja, só em relação aos crimes mais graves e aos delinqüentes de intensa periculosidade. Nos outros casos, deve ser substituída pelas medidas de penas alternativas se não forem solucionadas por outros ramos do direito, esta é a posição das Nações Unidas evidenciada no IX Congresso da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo (abril/maio de 1995)(78). Nesse sentido, a Lei dos Juizados Especiais Criminais traz como objetivo a evitabilidade da pena privativa de liberdade (art. 62, in verbis: "o processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade"(79)), então, esta somente será aplicada quando não houver outro meio para reparar o dano. Logo, busca-se, antes de mais nada, a conciliação e a solução para o conflito e não apenas a decisão (formalista) do caso(80), levando-se em conta, portanto, os princípios fundamentais do direito penal (fragmentariedade, subsidiariedade e da intervenção mínima), assim como a garantia aos direitos fundamentais. 2 ORIGEM DA LEI N1 9.099/95 Foi na Associação dos Magistrados de São Paulo que desenvolveram-se as primeiras idéias a respeito da Lei nº 9.099/95, por volta de 1985/86, enquanto ainda se desenvolvia o processo constituinte. Durante a constituinte de 1988, havia uma grande preocupação com a chamada morosidade do Poder Judiciário. O que era buscado naquela oportunidade era a experiência dos Juizados de Pequenas Causas, paralelamente com os Juizados Informais de Conciliação. Marco Antônio Marques da Silva, juntamente com Pedro Gagliardi, elaboraram um esboço quanto à aplicação dos Juizados Especiais Criminais e apresentaram essa minuta de anteprojeto à Associação de Juizes e ao Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Após, o juiz Manoel Veiga de Carvalho constituiu um grupo de trabalho para examinar a minuta do anteprojeto. Dentre os componentes do grupo, destacam-se Antônio Magalhães e Scarance Fernandes que auxiliaram Ada Pellegrini Grinover a elaborar um projeto mais complementado, que foi discutido e aperfeiçoado na seccional da OAB em São Paulo e apresentado ao, então, Deputado Michel Temer(81). A Constituição Federal de 1988, no seu art. 98, inciso I, estabeleceu a necessidade de criação, na Justiça Estadual, Distrital e nos Territórios, dos Juizados Especiais, providos por juizes togados ou togados e leigos, competentes para a conciliação, julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juizes de primeiro grau. Seguindo esta disposição constitucional, Michel Temer , apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 1480- A, de 1989, que definia as chamadas "infrações de menor potencial ofensivo" e disciplinava o Juizado Especial Criminal. Ao mesmo tempo, o então Deputado Federal Nelson Jobim apresentou frutos de reuniões com juizes e ministros do STJ sobre a regulamentação do preceito constitucional do Juizado Especial Cível, que resultou no projeto 3.698/89(82). Diante dos dois projetos, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, com a finalidade de aproveitar ambos os trabalhos, opinou pela apresentação do Projeto Substituto, que englobou o Projeto Jobim, na parte alusiva aos Juizados Cíveis, bem como o Projeto Temer, relativo aos Juizados Criminais(83) e, desta fusão, portanto, originou-se a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099/95). 3 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL CONSAGRADOS NA LEI Nº 9.099/95 Os princípios fundamentais do direito penal têm a função de limitar e regular o poder punitivo do Estado, assim como, orientar o legislador a adotar um sistema penal voltado para os direitos humanos, embasado num direito penal mínimo e garantista(84). 3.1 Princípio da Intervenção Mínima (Fragmentariedade e Subsidiariedade) O princípio da intervenção mínima passou a ser consagrado pelo iluminismo a partir da Revolução Francesa(85), porém só ganhou importância e destaque a partir deste séc., mais precisamente, após os trabalhos desenvolvidos pelo que se chamou criminologia crítica(86). Este princípio, como já salientamos, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico(87). Desse modo, a Lei nº 9.099/95 está fundamentada em postulados de mínima intervenção, pois é um sistema que tem como intuito a despenalização e a evitabilidade da pena privativa de liberdade. Assim, advéma lei em resposta ao modelo expansionista e simbólico oferecido pelo "Movimento de Lei e Ordem"(88). Como resultado do princípio da intervenção mínima advém os princípios da fragmentariedade (onde temos a limitação do direito penal tão somente aos casos mais graves, aos casos de ataque aos bens jurídicos relevantes e não, portanto, a todo e qualquer caso; logo, o direito penal, deve ser resguardado somente para os casos de relevância jurídica e social), e o da subsidiariedade (que parte da idéia de que o direito penal só deve intervir quando os outros ramos do direito fracassarem, prevalecendo, então, a máxima da ultima ratio). Logo, o direito penal deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelam-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. Portanto, quando for possível solucionar o caso por outro ramo do direito, a intervenção do direito penal é ilegítima(89). 3.2 Princípio da Proporcionalidade O princípio da proporcionalidade serve para avaliação das medidas restritivas de direitos fundamentais, isto é, sempre que uma lei ou um ato do Estado restringir os direitos fundamentais que a Constituição Federal outorga, necessariamente, esses atos, essas leis deverão passar pelo crivo da prova de constitucionalidade, pois só se justificam as restrições aos direitos fundamentais quando tais restrições forem razoáveis, proporcionais(90). Assim, através do princípio da proporcionalidade examinaremos se uma lei ou um ato administrativo se revela idôneo, necessário e proporcional em sentido estrito. A idoneidade é a adequação dos meios aos fins, logo, dizer que algo é idôneo é dizer que algo se presta ao cumprimento de um objetivo, à satisfação de um fim. A necessidade, talvez, seja um dos requisitos mais importantes do direito penal, pois através desta avaliaremos até que ponto uma lei ou um ato administrativo é indispensável, devemos examinar se não há outro modo menos rigoroso de combater a realidade criminal. Então, só serão tomadas medidas penais quando estas sejam estritamente necessárias e, principalmente, quando fracassarem os outros meios jurídicos. Por fim, há que se examinar a proporcionalidade em sentido estrito da lei ou do ato administrativo, assim, o sacrifício deve ser razoável ao mal social causado. Portanto, se algum desses requisitos não for preenchido, a lei ou o ato administrativo serão imputados inconstitucionais, porque violam o princípio constitucional da proporcionalidade, princípio este implícito, pois decorre do Estado Democrático de Direito, visto que a proporcionalidade está subordinada a noção de direito fundamentais, bem como a proibição de excessos a estes direitos(91). Nesse sentido, Lênio Luiz Streck diz que se uma norma não guardar a devida proporcionalidade, a inconstitucionalidade poderá ser decretada(92). 4 INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO De acordo com o artigo 98, inciso I, da Constituição Federal, são de competência dos Juizados Especiais Criminais os procedimentos cabíveis quanto às infrações de menor potencial ofensivo. Procedimentos estes, que possuem uma carga inovadora, por terem como objetivo, a resolução dos conflitos sem a necessidade de intervenção estatal. O artigo 61 da Lei nº 9.099/95 considera como sendo de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes com pena máxima cominada não superior a um ano, excetuando-se os casos em que a lei preveja procedimento especial, trazendo inovações à jurisdição desses delitos, como o instituto da transação, que será abordado em hora oportuna. Um dos critérios utilizados pelo legislador para a definição de infrações de menor potencial ofensivo foi a quantidade de pena cominada ao delito, que não pode ultrapassar a um ano, sendo indiferente se tiver natureza dolosa ou culposa, simples ou qualificada, importando somente a quantidade: 1 (um) ano. Contudo, há uma exceção aos crimes com pena não superior a um ano, isto é, aqueles em que haja a previsão de um procedimento especial não são de competência dos Juizados Especiais Criminais, onde são processados e julgados apenas os crimes que possuam um procedimento comum. Sendo assim, os delitos que tiverem procedimentos regulados em leis especiais, mesmo que a pena máxima cominada não seja superior a um ano, não estarão sob o condão da Lei nº 9.099/95 - artigo 61 (por exemplo, o crime de injúria - procedimento especial previsto no CPP, arts. 519 a 523)(93). No tocante às contravenções penais, via de regra, estas possuem menor lesividade do que os fatos definidos como crimes, sendo da essência da contravenção penal o menor potencial ofensivo(94), considerando-se assim, que todas as contravenções criminais são de competência dos Juizados Especiais Criminais(95), independente de seus ritos de procedimento especiais, logo, a existência de previsão de procedimento legal afasta a competência dos Juizados Especiais Criminais somente com relação aos crimes e não às contravenções. Nesse sentido, a Comissão Nacional de Interpretação da Lei nº 9.099/95 em sua resolução oitava diz: "As contravenções penais são sempre da competência do Juizado Especial Criminal, mesmo que a infração esteja submetida a procedimento especial"(96). 5 CRITÉRIOS OU PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA LEI Nº 9.099/95 De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello: "Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo- lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico"(97). A utilidade dos princípios reside na sua capacidade conformadora do raciocínio interpretativo da lei como forma de se manter a coerência e unidade das interações normativas fundamentais(98). Os princípios são preceitos morais, verdades fundamentais, essência em que se baseia o sistema jurídico. Já os critérios são menos abrangentes, são mais um modo de apreciação, uma propriedade de distinção do falso e do verdadeiro, não possuindo o suporte fundamental que os princípios detém. Sendo assim, o legislador equivoca-se ao referir-se como "critérios" o que, na verdade, são verdadeiros "princípios" orientadores do processo dos Juizados Especiais Criminais, já consagrados na teoria geral do processo e, também, pelos principais doutrinadores(99). Assim, não podemos concordar com os argumentos que sustentam denominar de critérios(100), com o intuito de evitar que a palavra princípios supostamente pudesse indicar que estes fossem exclusivos aos Juizados Especiais, porém já é sabido que os princípios não orientam apenas uma lei ou outra, mas sim, a todo ordenamento jurídico. O legislador dispôs nos artigos 2º e 62 da Lei nº 9.099/95 que o processo nos Juizados Especiais orientar-se-á pelos "critérios" da oralidade, informalidade, economia processual, simplicidade e celeridade, porém, a expressão mais adequada para a apreciação deste artigo, como bem salientamos, é a de "princípios". Devemos salientar a importância da efetiva aplicação dos princípios que orientam o Juizado Especial, de forma a atender aos fins colimados com a criação destes, facilitando o acesso das partes à prestação jurisdicional e à satisfação imediata dessa prestação, contribuindo ainda para o descongestionamento do Juízo Comum(101). 5.1 Oralidade O princípio da oralidade é utilizado para dar maior celeridade à atuação dos Juizados Especiais Criminais, disciplinadoem vários artigos, como o art. 77, caput (denuncia oral); o art. 77 § 3º (queixa oral) e o art. 81, caput (debates orais). Segundo registra Frederico Marques "a oralidade do procedimento é o sistema segundo a qual as declarações frente aos juizes e tribunais só possuem eficácia quando formulados através da palavra oral"(102). No entanto, a forma escrita não foi excluída e os atos essenciais deverão ser escritos, conforme o disposto no art. 65, § 3º onde consta que "serão objeto de registo escrito exclusivamente os atos havidos como essenciais. Os atos realizados em audiência de instrução e julgamento poderão ser gravados em fita magnética ou equivalente". Do princípio da oralidade decorrem outros princípios que o complementam, sendo os mais considerados o princípio da concentração, do imediatismo e o princípio da identidade física do juiz. O princípio da concentração, estabelece que todos os atos deverão ser começados e finalizados na mesma solenidade (audiência preliminar). Já o princípio do imediatismo estabelece que o juiz deve ter contato direto com as partes e as provas e, deste, decorre o princípio da identidade física do juiz, que preconiza o magistrado ser sempre o mesmo e acompanhar pessoalmente o processo do início até seu término(103). 5.2. Simplicidade Este princípio pretende minorar a burocracia dos meios aplicados para solucionar os casos concretos, simplificando o montante de materiais utilizados sem comprometer o resultado da atividade jurisdicional. Mesmo não estando expresso no art. 62 como princípio de orientação do processo no Juizado Especial Criminal, não quer dizer que não mereça relevância, basta que seja observado o art. 77, § 2º, onde haverá um encaminhamento ao Juízo Comum dos casos que se apresentarem mais complexos, ou seja, se os casos complexos devem ser encaminhados à Justiça Comum busca-se então, a simplicidade como princípio dos Juizados Especiais Criminais. Portanto, a simplicidade mesmo não estando tratada no art. 62 da Lei nº 9.099/95 não pode ser letra morta no texto, ou seja, o artigo 2º deve aplicar-se tanto para os Juizados Especiais Cíveis quanto para os Criminais, por tratar-se de um dispositivo geral (geografia legislativa) e, inclusive, porque o princípio da simplicidade envolve o acesso fácil ao judiciário(104), acesso este, que é um direito fundamental. 5.3 Informalidade Este princípio decorre do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC) e demanda que seja dado ao processo um andamento que retire as formalidades inúteis, erradicando o excessivo rigorismo formal do processo dos Juizados Especiais(105). Não se deve olvidar que o juiz deva observar um mínimo de regras e formalidades que, são indispensáveis. A informalidade objetiva não exclui atos processuais necessários, mas retira atos solenes sem utilidade prática que impedem a célere realização da justiça(106). 5.4 Economia Processual Segundo o princípio da economia processual, entre múltiplas alternativas deve ser escolhida a que trouxer menos encargos para as partes ou para o Estado. Este princípio, imprime um resultado máximo na prestação jurisdiconal à mínima utilização de atividades procedimentais (o máximo de resultado com o mínimo de esforço)(107), como exemplo desta orientação temos a realização de toda a instrução e o julgamento em uma única audiência(108). 5.5 Celeridade A evolução da sociedade deu origem a exigência de soluções imediatas aos conflitos de interesses e o princípio da celeridade vem atender a este imediatismo, preconizando a resposta célere da Justiça Criminal com rapidez nos procedimentos, agilizando a prestação jurisdicional, minorando o tempo entre a infração e a solução e, assim, atribuindo maior credibilidade à Justiça. Tanto é assim, que os atos processuais poderão se realizar à noite em qualquer dia da semana (art. 64 da Lei nº 9.099/95), nenhum ato será adiado (art. 80) e a citação poderá ser feita no próprio Juizado (art. 66)(109). 6 A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS COMO UM NOVO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL 6.1 Inovações trazidas pela Lei nº 9.099/95 A Lei nº 9.099/95, como novo sistema consensual de justiça penal, "introduz" no mundo jurídico-penal instrumentos de despenalização, diversificação e descarcerização, vinculando-se à tendência político-criminal contemporânea baseada no direito penal mínimo(110). 6.1.a Descriminalização, Despenalização, Diversificação e Descarcerização No que tange a descriminalização, não podemos concordar com a posição adotada por alguns autores, dentre eles Lycurgo de Castro Santos(111), que sustentam ser a Lei nº 9.099/95 "um instrumento descriminalizador, não apenas no sentido de evitar a aplicação de pena privativa de liberdade (art. 62), mas também como amplificador da fronteira entre o punível e o impunível", pois a Lei dos Juizados Especiais não cuidou de nenhum processo de natureza descriminalizadora, já que, de acordo com Mauricio Antônio Ribeiro Lopes, "descriminalizar é técnica de processo legislativo, pautado por razões de política criminal de extinção de modelo de conduta pela superação, por qualquer meio, de sua estrutura típica, ilícita ou da culpabilidade"(112). E, nesse mesmo sentido, argumenta Edmundo Oliveira "a descriminalização opera-se quando o legislador subtrai uma determinada infração do mundo das normas penais"(113). Então, não houve, na lei, como já nos referimos, processo de descriminalização porque não se retirou de nenhuma infração penal o seu caráter ilícito. A despenalização está ligada à idéia de expulsar ou diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo(114), ou seja, o delito continua ilícito penal, porém, aplica-se as medidas alternativas à pena privativa de liberdade. De acordo com Luiz Flávio Gomes: "Despenalizar significa adotar processos ou medidas substitutivas ou alternativas, de natureza penal ou processual, que visam, sem rejeitar o caráter ilícito da conduta, dificultar ou evitar ou restringir a aplicação da pena de prisão ou sua execução ou, ainda, pelo menos sua redução"(115). Assim, a Lei dos Juizados Especiais Criminais surgiu como instrumento despenalizador(116) de maior relevância no mundo jurídico-penal inovando com a introdução de instrumentos como a transação penal do artigo 76, a necessidade de representação nos casos de lesões corporais leves e culposas - artigo 88 e a composição dos danos - artigo 74. A diversificação é a possibilidade legal de que o processo penal seja suspenso em certo momento e a solução ao conflito alcançada de forma não punitiva. Sem sombra de dúvida, esta idéia está inserida na Lei nº 9.099/95, não sendo à toa que o artigo 89 traz expresso o poder-dever do Ministério Público de propor a suspensão do processo, sendo esta uma das maiores inovações de caráter penal(117). A descarcerização consiste em evitar a prisão cautelar, que é a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Assim, a lei em discussão, também constitui- se num instrumento descarcerizador, visto que o artigo 69 § único dispõe: "o autor do fato que, após a lavratura do termo for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança". Portanto, ao criar institutos como a composição civil, a necessidade de representação, a transação penal e a suspensão condicional do processo, a Lei nº 9.099/95 está lançando um novo sistema político-criminal, introduzindo barreiras para que o Estado exerça o seu ius puniendi, atendendo a premissa do direito penal mínimo e garantista.6.1.b Conciliação A síntese dos princípios orientadores dos Juizados Especiais, já mencionados, encontra-se na conciliação, que é o objetivo maior a ser alcançado e, que traz um efeito mais proveitoso para todos(118). No Juizado Especial Criminal, o juiz presidirá a audiência preliminar, onde informará sobre as vantagens e os efeitos da conciliação, esclarecendo seus benefícios e alertando sobre os riscos e conseqüências de um litígio. Através da conciliação os conflitos podem ser neutralizados e solucionados, evitando um possível litígio, que é sempre moroso e desgastante, e esta conciliação (art.72) se processa através da composição dos danos (art. 74) e da transação (art. 76), deixando plena visão de que não há vencedor, que ambas as partes saem ganhando ao conciliarem-se. 6.1.c Composição dos Danos Há determinadas infrações que causam um dano diminuto que não gera na vítima o desejo de punibilizar o agente, apenas de ter seu prejuízo reparado, interessando, assim, somente o ato da composição do dano. A composição dos danos causados pela infração penal está prevista no artigo 74 da Lei nº 9.099/95 e se dá na audiência preliminar, onde as partes envolvidas terão a oportunidade de compor os danos civis. É uma proposta que deve ser, obrigatoriamente, apresentada às partes (quando tratar-se de ação penal de iniciativa privada ou ação penal pública condicionada à representação), por tratar-se de causa de extinção da punibilidade do agente. Aceita a proposta de composição dos danos pelas partes o juiz homologa esta composição, o que acarretará a renuncia ao direito de queixa ou representação e constitui- se em título executivo judicial de natureza civil. Não aceita a composição dos danos ou não sendo homologada pelo juiz, compete ao Ministério Público oferecer a proposta da transação e, se ainda esta não for aceita, possui a vítima a possibilidade de representar ou oferecer queixa oral contra o ofensor. 6.1.d Necessidade de Representação nos Crimes de Lesões Corporais Leves e Culposas O advento da Lei nº 9.099/95 trouxe em seu bojo "a forma mais inteligente e mais prudente de despenalizar condutas"(119) no seu art. 88, passando a ação penal dos crimes previstos nos arts. 129, caput e 129 § 6º do CP, de ação penal pública incondicionada a ser condicionada à representação da vítima(120). Sobre a natureza da representação nos casos do art. 88, é pacífico doutrinário de que a norma que dispõe sobre a ação e a representação, conquanto de natureza processual, pois regula a titularidade da ação, é também, recebida em efeitos materiais, porque intimamente ligada ao ius puniendi do Estado. Este condicionamento à representação do ofendido(121), em razão desta diminuição do ius puniendi estatal, tem forte caráter penal, e será retroativo a todos os processos não encerrados definitivamente, em virtude de ser mais benéfico ao autor do fato(123), ex vi dos artigos 51, XL da CF e, 21, § único do CP. Desse modo, o Estado atribui ao ofendido o direito de avaliar a conveniência e oportunidade de promover a ação penal(124), pois este terá ao seu arbítrio dar prosseguimento, ou não, à persecução penal, conforme suas convicções e razões subjetivas. 6.1.e Transação De acordo com Nereu José Giacomolli, este novo instituto encontra-se, em termos de política criminal, inserido no modelo liberal, em harmonia com o movimento de intervenção mínima do direito penal, iniciando um verdadeiro processo de despenalização(125). A transação (art.76) é o instituto onde o Ministério Público, nos casos de representação ou ação penal pública incondicionada, propõe ao cidadão autor de uma infração de menor potencial ofensivo a aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa, desde que este obedeça aos requisitos estabelecidos nos incisos I, II e III, do § 2º, do art. 76, da lei ora discutida(126). Aceita por este deve ser apreciada pelo juiz para que a homologue, trazendo os benefícios de não perder a primariedade, de não gerar efeitos civis e, ainda, não implicar em assunção da culpa, pois aceitando a transação o agente o faz por seu próprio arbítrio, com a finalidade de ver encerrada a questão, sem que seja abordada sua culpabilidade e, menos ainda, que signifique o autor do fato ter-se declarado culpado. Muitas críticas foram tecidas quanto à constitucionalidade deste instituto, sob o argumento de que ele vai de encontro aos direitos básicos constitucionais e aos princípios informadores do processo penal, como a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal e a presunção de inocência. Todavia, o artigo 98, I, CF, ao estabelecer os Juizados Especiais, permite a utilização da transação nos casos de menor potencial ofensivo, não fazendo qualquer restrição a forma e alcance desta(126). Assim, não há que se falar em inconstitucionalidade, visto que não se concebe no ordenamento jurídico brasileiro normas "constitucionais inconstitucionais". A transação é uma exceção constitucionalmente prevista ao princípio do devido processo legal(127), pois ambos encontram-se no mesmo nível hierárquico e decorrente do poder constituinte derivado. Nos diz Antônio Carlos B. Torres, que: "Trata-se, na verdade, de uma ‘sanção consentida’, de um acordo entre o particular (autor do fato) e o promotor (representante da sociedade), onde este propõe a transação. Cabe ao agente aceitar ou não a proposta e, ao aceitá-la estará realizando um critério de oportunidade e conveniência objetivando evitar as eventuais conseqüências de um processo penal"(128). Uma das características da transação é que sua aceitação é voluntária ao agente. Este tem sua vontade respeitada acima de tudo, não sendo, de forma alguma obrigado a transigir. Ele é esclarecido sobre as vantagens, desvantagens e funcionamento deste instituto, sendo de seu pleno consentimento que está abrindo mão de determinados direitos, como por exemplo, a possibilidade de ser absolvido. A presunção de inocência, de maneira alguma é violada, pelo simples fato de que na aquiescência da transação pelo agente, não há, em nenhuma hipótese, a discussão ou reconhecimento de culpa, assim, não importando em reincidência(129). Como nos diz Nilton Ramos Dantas Santos, "presume-se inocente todo aquele que não tem contra si declaração de culpabilidade"(130); Logo, dizer que a Lei nº 9.099/95 não observa o princípio da presunção da inocência é um equivoco. Uma outra característica do instituto da transação é que ela deve ser tecnicamente assistida, ou seja, não violando o princípio da ampla defesa e nem do contraditório. O autor do fato é assistido e informado pelo advogado de defesa, o que torna ainda mais clara a oportunidade do agente de optar ou não pela transação e, de conhecimento dos efeitos que serão gerados, só a ele cabe a escolha ou não de defender-se no processo. A transação penal representa grande economia e celeridade processuais, desobrigando o Estado de elevados custos com sua pesada e burocrática máquina judiciária, sendo apontada como uma das mais importantes formas de despenalizar, evitando, ao máximo, os efeitos criminógenos da prisão(131), com a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos ou pecuniária. 6.1.f Suspensão Condicional do Processo A Lei dos Juizados Especiais dispõe em seu artigo 89 sobre sua maior inovação: a suspensão do processo, mediante a reparação do dano; relativa aos crimes com pena mínima igual ou inferior a um ano, abrangidos ou não por seus dispositivos, indicando, dessa forma, que a suspensão do processo se aplica aoutros crimes que não sejam os de menor potencial ofensivo ou contravenções. Partindo desse raciocínio, chegamos a outro, de que a suspensão do processo é autônomo frente aos Juizados Especiais(132), ou seja, não é de competência exclusiva dos Juizados Especiais, "aplicando-se em qualquer juízo, comum ou especial, estatal ou federal, de qualquer instância e não só nos Juizados"(133). A Lei nº 9.099/95 impôs em seu art. 89, caput, alguns requisitos para a obtenção da proposta de suspensão do processo: o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo por dois a quatro anos, desde que o acusado não tenha sido condenado por outro crime e presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP). Há, também, condições a serem observados sob pena de revogação da suspensão e prosseguimento do processo: o acusado será submetido a período de prova, sob as condições de reparação do dano, proibição de freqüentar determinados lugares, proibição de ausentar-se da comarca onde reside e de comparecimento obrigatório a juízo mensalmente (art.89 §§ 1º a 4º). A suspensão do processo é um procedimento novo no ordenamento jurídico- penal, semelhante ao sursis e à probation, porém diferencia-se por ser mais avançado, beneficiando mais o agente consoante ao propósito da intervenção mínima, provados nos seguintes elementos: 1) no sursis o que se suspende é a aplicação da pena e não o processo, já existe uma condenação e a imposição da pena deixará de ser executada sob alguma condições, contudo, o agente perde sua primariedade, o que não ocorre na suspensão do processo(134); 2) na probation são exigidas provas da culpabilidade do acusado e o que se suspende é a declaração da condenação. Na suspensão do processo o mérito da acusação não é apreciado, o réu não é considerado culpado e também não contesta a acusação(135), além de inexistir a possibilidade de perda da primariedade(136). A suspensão condicional do processo é direito subjetivo do acusado(137) e, não, como sustentam alguns autores, discricionariedade regrada(138) do Ministério Público ou Ato Consensual Bilateral(139), pois todo o autor do fato que preencher os requisitos previstos na Lei nº 9.099/95, o Ministério Público tem o poder-dever de propô-la, sob pena de ferir o princípio da isonomia. Caso não o faça, cabe ao autor do fato impetrar hábeas- corpus(140). A aceitação da proposta de suspensão de processo é facultada ao argüido e somente a ele cabe aceitar ou rejeitar a suspensão, por isso, no caso de divergência entre este e seu defensor prevalece a autonomia da vontade do argüido, que opta pela a alternativa de defesa que mais lhe convier(141). Cabe ressaltar, que a suspensão condicional do processo, após a edição da Lei nº 9.605/98 teve sua aplicação modificada para efeito de crimes ambientais, pois ex vi do disposto no artigo 28 da referida Lei, que explicita: "As disposições do artigo 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei,..." (sem grifos no original). Logo, a suspensão condicional do processo, para fins da Lei dos Crimes Ambientais, aplica-se somente aos crimes de menor potencial ofensivo, e não como o firmado na Lei nº 9.099/95 onde cabe a suspensão às infrações com pena mínima não superior a um ano. Como a Lei nº 9.605/98 não define quais sejam os crimes de menor potencial ofensivo, deduzimos tratarem-se, para seus efeitos, dos estipulados na Lei nº 9.099/95 (artigo 61), cuja pena máxima não seja superior a um ano. Sendo assim, há evidente conflito entre o disposto na Lei dos Juizados Especiais e a Lei dos Crimes Ambientais; entretanto, este é possível, pois trata-se ambos os diplomas de leis infraconstitucionais de mesma hierarquia. Como sendo a regra estabelecida pela Lei nº 9.605/98 posterior e específica, segundo as regras de hermenêuticas (critério cronológico e especial) prevalece sobre a norma geral dos Juizados Especiais Criminais(142), todavia, cremos que o disposto na Lei nº 9.605/98 vai de encontro aos objetivos estabelecidos pela suspensão condicional do processo e da moderna política-criminal. PARTE III - CONSIDERAÇÕES FINAIS 1 A RELEVÂNCIA DA DISTINÇÃO ENTRE AS INFRAÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO E OS CRIMES DE BAGATELA Como já salientamos anteriormente, as infrações de menor potencial ofensivo (art. 61) constituem-se em crimes e contravenções nos quais a pena cominada não seja superior a um ano - salvo os casos em que haja rito especial, porém, como também já enfatizamos, estes ritos especiais referem-se somente aos crimes, e não às contravenções, pois são da essência destas a baixa lesividade, o menor potencial ofensivo, sendo assim, todas as contravenções são de competência da Lei nº 9.099/95. A potencialidade ofensiva da conduta é proporcional à relevância do bem jurídico que a ação lesiva atingiu, assim nos casos de menor potencial ofensivo verifica-se a baixa relevância do bem jurídico, resultando daí a pequena reprovabilidade social ou a escassa repercussão social que autorizam, então, o tratamento diferenciado proposto pela Lei nº 9.099/95(143), a fim de tornar mais rápido e acessível o judiciário, ao contrário do que ocorre nos crimes de bagatela em que há uma mínima ou inexistente relevância jurídica, assim não deve incidir o tipo penal, visto que a relevância da ofensa ao bem jurídico não foi atingida, a ponto de resultar na imputação de pena ao agente. Como bem expõe Genacéia da Silva Alberton, "Ao falarmos em infração de menor potencial ofensivo, com procedimentos específicos para atendimento de tais infrações, estamos voltando-nos para infrações de baixa lesividade, procurando formas de ‘despenalização’ dentro da esfera de uma política criminal. Quando nos referimos a ‘crime de bagatela’, estamos em nível de atipicidade, declarando como atípica uma conduta infracional por ausência de lesividade, por baixíssima lesividade ou pela falta de proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a intervenção estatal"(144). Portanto, as infrações de menor potencial ofensivo são infrações que possuem uma relevância diminuta, mas que ao atingir seu resultado adquirem uma importância maior sendo, então, de competência dos Juizados Especiais - já que o bem juridicamente protegido foi atingido de uma maneira reprovável pela sociedade na qual acarretou a aplicação de uma sanção ou do emprego de um dos instrumentos despenalizadores ou descarcerizadores contidos na Lei nº 9.099/95. Já nos crimes de bagatela, a infração possui uma reprovabilidade social de mínima a inexistente e, ao atingir o resultado, verifica-se que não há relevância, pois o bem jurídico protegido não foi atingido de uma maneira significativa, assim, o direito penal não deve intervir, porque este deve reservar-se aos casos em que haja, "verdadeiramente", uma lesão considerável a um bem jurídico tutelado, obedecendo-se, então, a máxima da intervenção mínima (fragmentariedade e subsidiariedade). 2 SOBREVIVÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA DIANTE DAS DISPOSIÇÕES DA LEI Nº 9.099/95 Em primeiro lugar, devemos destacar que o princípio doutrinário da insignificância está vinculado a Lei dos Juizados Especiais Criminais, visto que, em ambos, há uma preocupação de tornar o direito penal baseado em seus princípios fundamentais (como por exemplo, a fragmentariedade, a proporcionalidade, etc.) e, numa ordem que seja capaz de garantir os direitos fundamentais dos indivíduos, preocupações estas que estão ligadas a característica clássica apresentada pelo direito penal: tutelar, garantista e de mínima intervenção - aliás, característica que deve ser
Compartilhar