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TRADUÇÃO REESCRITA MANIPULAÇÃO - Andre Lefevere

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''A tradução é, evidentemente, uma reescritura de um texto original. Toda rees-
critura, qualquer que seja sua intenção, reflete uma certa ideologia e uma poéti-
ca e, como tal, manipula a literatura para que ela funcione dentro de uma 
sociedade determinada de uma forma determinada. Reescritura é manipulação, 
realizada a serviço do poder, e em seu aspecto positivo pode ajudar no desen-
volvimento de uma literatura e de uma sociedade. Reescrituras podem introduzir 
novos conceitos, novos gêneros, novos artifícios, e a história da tradução é igual-
mente a história da inovação literária, do poder formador de uma cultura sobre 
outra. Mas a reescritura pode também reprimir a inovação, distorcer e conter, e, 
em uma era de crescente manipulação de todos os tipos, o estudo dos processos 
de manipulação da literatura, tal como exemplificado pela tradução, poderá nos 
ajudar a nós tornarmos mais atentos ao mundo em que vivemos. f f 
ISBN 978·85-7460-318-6 la 
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9 788574 603186 
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E ste livro lida com aqueles que estão no meio, homens e mulheres que não escrevem 
literatura, mas a reescrevem. Mostra 
como a reescritura - tradução, antolo-
gização, historiografia, crítica, edição -
influencia a recepção e a canonização 
de obras literárias. Também demonstra 
como a reescritura manipula obras lite-
rárias, visando a fins ideológicos e poe-
tógicos diversos. 
Situando firmemente a produção e a 
recepção de literatura dentro da moldu-
ra mais vasta de uma cultura e de sua 
história, André Lefevere fornece uma 
revalorização do contexto social e histó-
rico da literatura num sentido pós-mar-
xista. Ele igualmente fornece uma visão 
controversa de alguns mitos da literatu-
ra, tais como "originalidade", "inspira-
ção" e "excelência estética". O livro 
abrange de forma ampla várias literatu-
ras, incluindo a latina clássica, a france-
sa e a alemã, e agradará a estudantes e 
especialistas interessados em teoria lite-
rária, literatura comparada, história da 
literatura e estudos de tradução. 
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- ~ ED~C 
Lefevere, André. 
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária I André Lefevere ; 
tradução Ctaudia Matos Seligm,_ann. -- Bauru, SP : Edusc; 2007. 
· 264 p.; 21 cm. -- (Coleção Signum) 
Inclui bibliografia. 
Título original: Translation, rewriting and the manipulatfon of literaty 
fame, c1992. 
ISB~ 978-85-7 466--318-6 
\ .' 
1. Tradução - Lh1guística. 2. Crítica literária. 3. Literatura comparada. 
I. Título. II. Série. ' 
ISBN 0-415-07699-4 / 0-415-07700-l(original) 
Copyright© By Rotledge - First publiched 1992 
, Copyright© de ·tradução - EDUSC, 2007 
Tradução realizada a partir da edição de 1992 
Direitos exclu~ivos de publicação em língua portuguesa 
para o Brasil adquiridos pela 
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO.SAGRADO CORAÇÃO 
Rua Irmã Arminda, 10-50 · 
CEP 17011-160- Bauru-SP 
CDD 418.02 
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Fone (.14) .2107-7111 ~Fax (14) 2107-7219 / 
e-mail: edusc@edusc.com.br 
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.·TRADUÇÃO, REESCRITA 
·E ·MANIPULAÇÃO DA 
FAMA LITERÁRIA 
Este livro trata com a 'ueles que são .intermediários, ho-
mens e mulheres que não escrevem _llieratura, mas a reescrevem, 
Mostra como a reescritura - tradução, antologiza ão, historiogra-
Íia!. crítica, ediÇ°ão - influencia a rece ão e ~ ç;.anoniza~llo__de o s 
literárias. Tamb, m..demonstra como a reescritura manipula obras 
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literárias visando fins ideológicos e poetológicos diversos. · 
Situando firmeinente a produção e a recepçãÔ diliteratu-
ra dentro da moldura mais· vasta de uma cultura e. de sua histó-
ria, André Lefevere apresenta· uma revaloriz°ação do contexto so- . 
~ial e histórico da literatura num sentido pó~-marxista. Ele 
igualmente fornece uma visão controversa de alguns mitos da li-
teratura, tais como "originalidade", "inspiração" e "excelência es: 
tética". O livro abrange de forma ampla várias literatÚras, in-
cluindo a latina clássica, a francesa e a alemã, e agradará a estu-
dantes e especialistas interessados em teoria literária, literatura 
comparada, histÓria da literatura e estudos da tradução·. 
Ançlré Lefevere é professor no Departamento de Línguas 
Germânicas e Literatura. Comparad~ da Universidade do Texas, 
em Austin. 
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Grace Marks
Grace Marks
Grace Marks
SUMÁRIO 
11 Prefácio geral dos organizadores 
' ( > 
13 CAPITULO 1 
Pré-escrever 
Referências bibliográficas 
1 
29 CAPITULO 2 
O sistema: mecenato 
Referências bibliográficas 
51 CAPITULO 3 
O sistema: poéticas 
Referências bibliográficas 
73 CAPITULO 4 
Tradução: as categorias 
, . Linhas da vida, narizes, perna!i, maç~netas: 
\ o Lysistrata de Aristófanes 
Referência§ bibliográficas 
'I 
Sumário 
101 CAPÍTULO 5 
Tradução: ideologia 
Sobre a construção de ·diferentesAnne Franks 
Referências bibliográficas 
121 CAPÍTULO 6 
Tradução: poéticas 
O c;aso do qasidah ausente 
Referências bibliográficas 
143, CAPÍTULO 7 
161 
181 ~ 
201 
223 
Tradução: Universo de Discurso 
"Holy Garbage, tho by !Jomer cook't" 
Referências bibliográficas 
CAPITULO 8 
Tradução: língua 
Os mujtos pardais de Catulo 
Referências bibliográficas 
r 
CAPÍTULO 9 
Historiografia 
Do best-seller a não-7pessoa: 
Williem Godschalk van Focquenbroch 
Referências bibliográficas 
CAPITULO 10 
Antologia 
Antologizando a África 
Referências· bibliográficas 
CAI'ITUL0-11 
Crítica 
Sumá,-io 
Para além do próprio gênero: Madame de Stael 
Referências bibliográficas 
241 CAPÍTULO 12 
Edição 
1Salvação por meio da mutil~çào: A Morte de Danton 
de Büchner 
Referências bibliográficas. 
257 ÍNDICE 
.. 
' 1 
PREFÁCIO GERAL 
DOS ORGANIZADORES 
O aumento dos estudos sobre Tradução como uma discipli-
na i.ndependente é uma história de sucesso dos anos 80. O tema se 
desenvolveu em muitas partes do· mundo e está evidentemente 
destinado a continuar se desenvolvendo século 21 adentro. Os es-
tudos sobre Tradução aproximam trabalhos em Um.a.grande varie-
da4e de áreas, incluindo: Lingüística, Estudos Literários, História, 
Antropologia, Psicologia e Economia. Este livro refletirá, em parte, 
a amplitude dos trabalhos em estudos da Tradução e possibilitará 
aos leitores compartilhar dos novos e estimúlantes desenvolvimen-
tos que estão ocorrendo no presente momento. 
' A Tradução é, certamente, uma reescritura de um texto 
original. Toda reescritura, qualquer que seja sua intenção, reflete 
~-- - . ---. 
uma certa ideologia e um;põética e, como tal, manipula a litera-
tura para que ela funcione clent;, de uma sociedade determina'-
, da e de uma forma determinada. Reescritura é manipulação, r~a­
lizad_a a serviço do poder, e em seu aspecto positivo pode ajudar 
. ,-:_ . 
no desenvolvimento de uma literatura e de mná sociedade. Rees-
crituras podem introduzir novos conceitos, novos gêneros, novos 
11 
Grace Marks
Grace Marks
Grace Marks
Grace Marks
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artifícios e a história da tradução é também a da inovação literá-
ria, do poder formador de uma cultura sobre outra. Mas a rees-
critura pode reprimir a inovação, distorcer e conter, e, em uma 
era de crescente manipulação de todos os tipos, o estudo dos pro-
' cessos de manipulação da literatura,
exemplificado pela tradu-
ção, poderá nos ajudar a nos tornarmos mais atentos ao mundo 
em que vivemos. 
Este livro pertence a uma série. que se refere aos estudos da 
Tradução, e como é a primeira desse tipo deverá se preocupar 
com sua própria genealogia. A série pretende publicar textos do 
passado que ilustren:i suas preocupações no presente, bem como 
textos de natureza mais teórica que abordem diretamente essas 
preocupaçõ~s, juntamente com estudos de caso, ilustrando ma-
nipulações por meio da reescritura em diversas literaturas. Ela 
será de natureza comparativa e abrangerá muitas tradições literá-
rias tanto ocidentais quanto não ocidentais. Por meio do concei-
to de reesc.ritura e manipulação, essa série tem como finalidade 
lidar com os problemas da ideologia, da mudança e do poder na 
literatura e na sociedade, afirmando a funÇão central da Tradu-
ção como força modeladora. 
Susan Bassnett 
. ,,, . 
André Lefevere 
' 1990 
[ 
·' 
Capítulo 1 
PRÉ-ESCREVER 
É uma diversão para mim tomar todas as Liberdades que 
1 
, queira com os persas, que (como penso) não são Poetas 
",' o bastante para amedrontar alguém que queira 
fazer tais investidas e, além disso, eles precisam 
de um pouco de Arte para mol~á-los. 
(FITZGERALD, 1902, v. 6, p. xvi) ' 
Este livro lida com os intermediários, homens e mulhe-
res que não escrevem literatura, mas a reescrevem. Isso é impor-
, 
tante porque eles são, no presente, co-responsáveis, em igual ou 
maior pràporção que os escritores, pela recepção geral e pela· 
sobrevivência de obras literárias entre leitores não-profissio-
nais, que constituem a grande maioria dos leitores em nossa 
cultura globalizada. 
O que é usualmente chamado de "valor intrínseco" de 
uma obra literária possui um papel muito menor nesse proces-
so dó que normalmente se-pressupõe. Como se sabe, a poesia de 
John Donne permaneceu relativamente desconhecida e não 
lida, desde algumas décadas após a sua morte até sua redesco- , 
13 
Grace Marks
r 
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária 
berta por T. S. Eliot e outros modernistas. No entanto, é seguro 
supor que 'o "valor intrínseco" de seus poemas deve ter perma-
necido o mesmo todo o tempo. , ' 
De forma semelhante, muitos clássicos feministas 
"esquecidos", originalmente publicados nos anos 20, 30 e 40 do 
século 20, foram republicados no final dos anos 70 e 80. O con-
teúdo dos romances era, supostament~, não menos feminista 
do que é agora, uma vez que estamos lidando com os mesmos 
textos. A razão' pela qual os clássicos feministas são republica-
dos não se encontra no valor intrínseco dos téxtos, ou mesmo 
na (possível) falta desse valor, mas no fato de que eles estão 
sendo agora editados sobre o pano de fundo de um impressio-
nante conjunto de crítica feminista, que os anuncia, os incor-
pora e os suporta. · 
· Aqueles que identificam o objetivo dos estudos literários 
com a interpretação de textos não terão qualquer explicação para 
esses fenômenos, ou então apresentarão algum recurso embara-
çoso para noções vagas com~ a de destino. Insisto, de minha par-
te, que o processd que resulta na aceitação ou rejeição, canoniza-
ção ou não-canonização de trabalhos literários não é dominado 
pela moda, mas por fatores bastante concretos que são relativa-
mente fáceis de discernir assim que se decide procurar por eles, 
isto é, assim que se evita a interpretação como o fundamento dos 
estudos literário_s e se começa a ·enfre.ntar questões como o poder, 
a ideologia, a instituição e a manipulação. Quando isso ocorre, 
logo também se percebe 'que a reescritura, em todas as suas for-
mas, ocupa uma posição central entre os fatores concretos aos 
quais acabamos de nos referir. Este liv'ro é uma tentativa de enfa-
tizar tanto a importância da reescri~ura, como força motriz por 
trás da evolução literária, .quanto a necessidade de mais e~tudos 
aprofunda~os sobre o fenômeno. 
14 
1. 
1 
1 
Pré-escrever 
• Ã 
Reescritores sempre estiveram presentes erí.tre nós. O es-
cravo na Grécia organizava antologias dos clássicos gregos p_ara 
ensinar aos filhos dos senhores romanos. O erudito do Renasci-
mento coletava vários manuscritos e trechos de manuscritos, a 
fim de publicar uma edição-mais ou menos confiável de um clás-
sico grego ou romano. Destacam-se, também, os compiladores 
das primeiras histórias da literatura grega e latina no século 17 
que nãÓ foram escritas nem em latim nem em grego, e os críticos 
· do século 19, que explicavam a doçura e a clarezà contidas nos 
trabalhos de literatura clássica ou moderna a um público cada 
vez menos interessado. Chega-se ao tradutor do século 20, que 
tenta "transportar o original através" das culturas, como tantas 
gerações de tradutores tentaram antes dele e, ao compilador dos 
''.Guias de Leitores" contemporâneos que fornecem réferências 
rápid~s sobre autores e, livros que deveriam ter sido lidos como 
parte da educação dos leitores não-profissionais, mas· que cada 
vez mais não são. 
Seu papel, no entanto, mudou e por duas razões-principais: 
o fim de um período, ao menos na civilização ocidental, em que o 
livro ocupava uma posição central tanto no ensino da escrita 
quanto na -transmissão de valores, e a divisão entre "alta" e "baixa" 
literatura, que começou a aparecer por volta de meados do sécu-
lo 19 e que levou à conc;omital).te divisão entre "altà' e "baiXa" es-
critura de literatura, entre "alta:' e "baixa" reesc~itura. 
Em seu discurso presidencial -aos membros da Modern 
Language Association of America [Associação Americana da Lín-
gua Moderna], em 1986,J. Hillis Miller observou que "nossa cul-
tura comum, por mais que ,desejemos que não seja assim, é cada 
vez menos uma cultura do livro e cada vez mais uma cultura do 
cine):Ila, da televisão e da música popular" (285a). Leitores pro-
fissionais de literatura (uso o termo para âesignar tanto profes-
15 
Grace Marks
.. 
Tmduçiio, reescrita e 111anip11laçM da fama literária 
sores quanto estudantes de literatura) reconhece~ o processo 
que está ocorrendo e podem talvez reagir, de forma· pessoal, a 
essa situação com indignação, cinismo, ou resignação, mas a 
mai9ria deles continua a conduúr seus trabalhos como sempre, 
mesmo porque a posição que eles ocupam dentro das institui-
ções que os abrigam deixa a eles, de fato; pouquíssima escolha: é 
necessário conceder diplomas, gerenciar cargos, cuidar das pr.o-
moções e outorgar títulos. 
O fato de a "altâ' literatura ser, cada vez mais, lid~ apenas 
no contexto educa,cional (tanto secundário quanto superior), e 
não constituir o conteúdo de leitura preferido pelos 1eitores não-
profissionais, também tem limitado, cada vez mais, a influência 
dos leitores profissionais ao âmbito das instituiyões de ensino. Ne-
nhum crítico atual pode reclamar para si a posição na sociedade 
que certa vez foi ocupada de forma natural p'or, di_gamos, Mat-
thew Arnold. Talvez a explicação mais óbvia desse isolam:ento 
contemporâneo, tanto da "alta" literatura quanto de seu estudo, 
possa ser fornecida pelo· impacto muito diverso da desconstrução 
sobre leitores profissionais e não-profissionais. i;-:nquanto leitores 
profissionais parecem mais ou menos convencidos de que a des-
construção de fato derrubou os fundamentos de toda a metafísj-
ca ocidental, não se pode dizer que l~itorés não-profissionais te-
nham prestado muita atenção, a esse fato importantíssimo. Certa-
mente não se pode comparar a atenção prestada por ~les a ques-
tões mundanas, tais como ao seguro de saúde e à estabilidade de · 
instituições financeiras com a ate~ção dedicada à descoJ trução. 
Se instituições educacionais funcionam cada vez mais 
como uma "reserva': onde a "altâ' literatura, seus leitores e seus 
praticantes podem vagar numa liqerdade relativa, ainda que não , 
nece_ssariamente relevante,
elas também contribuem para o isola-
16 
/ 
Pré-escrever 
mento do leitor profissional. Leitores profissionais precisam publi-
çar para avançar na profissão e a pressão por publicação inevitavel-
mente conduz à "triviali~ção progressiva qos temas", que de fato 
tem feito do encontro anual da Modem Language Association of 
America "um motivo de ri:sos para a imprensa nacional" (Walter 
Jackson Bate, apud JOHNSON, 1978,·p. 1). Não é necessário dizer 
que es.sa "progressiva trivialização" também serve para solapar ain-
da mais o prestígio do leitor profissional fora do círculo privilegia-
do construído à sua volta pelas instituições educacionais. 
Não obstante, dentro dessas instituições, os trabalhos 
continuarem, como sempre, aparentemente a maioria dos leito-
res profissionáis ainda !}ão se deu conta da _mudança paradoxal 
que o,correu. A maioria dos leitores profissionais de literatura 
normalmente não se "rebaiXaria" para produzir reescrituras do 
tipo cuja evolução, através dos séculos, foi caracteiizada sucinta-
mente acima. Eles veriam o seu "real" trabalho como aquilo que 
leifores não-profiss10nais certamente estariam tentados a classi- 1 
ficar sob a rubrica de "progressiva trivialização''. Tal trabalho, é 
seguro afirmar, quase nunca ...:alcança o leitor não-profissional. 
Paradoxalmente, o único trabalho produzido dentro do círculo 
privilegiado, que ~inda atinge aquele leitor, é precisamente . o 
tipo de reescritura que a maioria dos profissionais tenderia a 
tratar com um certo desdém. 
No entanto, a tradµção, a edição e a antologização de tex-
tos, a compilação de histórias da literatura e obras de referência e 
a produção do tipo de crítica que ainda alcança para além do cír-
culo privilegiado, principalmente na forma de biografias e rese-
' nhas de livros, não funcionam inais como atividades típicas de 
baixo-Ílível dentro do contexto maior da interação entre leitores 
profissionais e não-profissionais, entre as instituições de educação 
e a sociedade como um todo. Esses tipos de reescrituras eram con-
17 
( 
Trnduçiio, reescrita e 111a11ip11/nçiio ria fa111n literária 
siderados atividades de uma espécie mais "auxiliar': No entanto, 
de forma alguma eles sempre têm essa função - testemunha disso 
é o enorme impacto que produziram algumas traçluções, como a 
da Bíblia por Lutero, tanto sobre a literatura quanto sobre a socie-
dade de sua época e de épocas posteriores. Hoje, no entanto, elas 
se tornaram a linha vital que liga, de forma cada vez mais tênue, a 
'\alt f" literatura ao leitor não-profissional. · 
O leitor não-profissional mais freqüentemente deixa dele~ 
a literatura tal como ela foi escrita pelos seus autores, mas a lê 
reescrita por seus reescritores. Sempre foi assim, mas isso nunca 
pareceu tão óbvio como hoje. Também no passado, um número 
muito maior de pessoas lia a Versão Autorizada da Bíblia em vez 
de lê-la nas línguas originais. Poucos tinham acesso aos manuscri-
tos considerados clássicos e a maior parte dos leitores se conten-
tava ou tinha de se contentar em lê-los em uma edição. De fato, a \ 
confiança 9eles era tamanha que podiam até ser enganados por \ 
edições aparentemente convincentes de manuscritos não existen- \ 
.tes, como no caso do Ossian de McPherson. Byron, bem como sua } 
geração, não leu o Fausto de Goethe em alemão, mas na versão 
francesa abreviada contida no best~seller De l'Allemagne (Sobre a 
Alemanha) de Madame de Stael. Pushkin leu o Byron que ele ad-
mirava em francês, não em inglês, e certamente não em russo, 
uma língua que ele falava apenas com seus criados. Erza· Pound 
inventou a poesia chinesa para o ocidente por meio de uma anto-
lQgia de poemas "traduzidos", da dinastia de poetas T'ang, e Sa: 
muel Johnson obviame~ influenciou· a recepção s~bseqüente 
dos poetas que~clui.;:;'. (e dos que ele não incluiu) em sua Li-
ves of the English P~ets (Vida dos poetas ingleses). 
No passado, assim como no resente, reescritores criaram 
imagens de um.:..escritor, de uma obra, de um período, de um gê-
nero e, às vezes, de toda um~atu~. Essas imagens existia~ 
18 
Pré-escrever 
ao lado das originais com as gQais elas competiam, mas as ima-
( . ' -
gens sempre tenderam a alcançar mais_pessoas do ~e a original 
c orrespondente e, assim, certarp.ente o fazem hoºe. No entanto, a 
criação dessas imagens e seu impacto não foi freqüentemen;e es-
tudado no passado e continua não sendo objeto de estudo deta-
lhado. Isso é bastante estranho, uma vez que o poder exercido 
por elas e por seus produtores é enorme. Porém, o fato torna-se 
bem menos estranho se refletirmos por üm momento que as 
reescrituras são produzidas a serviço, ou sob as ·restrições, de 
certas cor~e~tes ideológicas e/ou poetológicas, e que tais• corren-
tes não consideram vantajoso chamar a atenção para si mesmas 
como se fossem apenas "uma corrente entre outras". Ao contrá-
rio, é !Iluito mais vantajoso identificarem-se com algo menos 
partidário, mais prestigioso, e complet~mente irreversível como 
"o curso da história". · 
O leitor não-profissional de literatura alemã, por exemplo, 
teria que se esforçar muito pàra encontrar qualquer poema de 
Heinrich Heine em antologias de ·poesias alemãs publicadas en- ' 
tre ,1933 e 1945. De fato, o único poema de sua autoria incluído 
nessas antologias, o popular (popular demais para ser excluído) 
"Loreley", era etiquetado como "anônimo". Evidentemente, aque-
les leitores profissionais da história alemã que compilaram essas 
antologias sabiam que suas carreiras profissionais não seriam be-
neficiadas se eles atribuíssem o poema a Heinrich Heine. Eles se-
riam beneficiados ainda menos se, num ataque inexplicável de 
honestidade profissional, tivessem revelado numa introdução, ou 
numa nota de rodapé; o motivo de essa ação não beneficiar suas 
1 
carreiras profissionais. Histórias da literatilra publicadas no mes-
mo período teriam relatado igualmente a leitores profissionais e 
não-profissionais, como Adolf Bartels o fez em sua história da li-
teratura alemã, que "somente a vanidade-e a arrÓgância de Heine 
' 
19 
Í 
Tmriução, reescrita e 111a11ipt1lação da fanza literária 
foram alguma vez gigantes, e gigante foi a estupidez do povo-ale-
mão que acreditou por tanto tempo naqueles que diziam que ele 
era um de seus maiores escritores" (335). Como ele, orgulhosa-
mente, anunciava no prefácio à edição de sua história de 1943, 
Bartels foi recompensado pela corrente' ideológica dominante: 
ele não só recebeu a mais alta medalha por realizações no campo 
cultural, mas ainda uma carta pessoal de cumprimentos de Adolf 
Hitler no seu aniversário daquele ano. 
O exemplo daAl~manha entre 1933 e 1945 é algo extremo, 
assim como seria o exemplo da Alemanha Oriental entre ;1945 e 
1989. No entanto, a existência da imagem e sua construção prévia 
é o ponto importante em tudo isso. Imagens construídas por rees-
critores desempenham um papel tão importante em sociedades de 
natureza mais aberta quantó nas mencionadas acima; apenas exis-
tem mais imagens para escolher. Se leit9res não-profissionais de li-
teratura precisassem saber quem foi Christopher Marlowe, por 
exemplo, muito provavelmente eles não iriam ler as obras comple-
tas de Marlowe. Em vez disso, e~es possivelmente buscariam o 
nome em uma reescritura, como 9 Oxford Companion to English 
Literature (Guia Oxford de Literatura Inglesa). Se eles precisassem 
ou quisessem saber mais, consultariam algumas das histórias da li-
teratura alemã disponíveis. Talvez eles também se recordassem de 
encenações do Dr. Fausto para o teatro ou para o cinema. 
Quando leitores não-profissionais de literatura (e deve 
estar claro a essa altura que o termo nãõ implica qualquer julga-
mento de valor, referindo-se simples~ente à maioria dos leito-
res nas sociedades contemporâneas) dizem que "leram" um li-· 
vro, o que
eles querem dizer é qu~ eles têm uma certa imagem, 
1 
um certo constructo daquele livro em suas cabeças. Esse cons-
tructo é freqüentemente baseado de forma frouxa em algumas 
passagens selecionadas do livro em questão (fragmentos incluí-
20 
Pré-escrever 
dos em antologias'usadas na educação secundária ou universitá-
ria, por exemplo), suplementado por outros textos que reescre-
vem o texto original, de uma forma ou de outra, tais como: re-
sumos de enredos em histórias da literatura ou obras de referên-
cia, rese~has em jornais e revistas ou revistas especializadas; al-
guns artigos críticos, montagens para te~tro e, por último, mas 
não menos importante, as traduções. , 
Como os leitores não-profissionais de literatura são, no 
presente, expostos à literatura mais freqüentemente por meio. 
de reescrituras do que por escritura, e já que se pode demons-
trar que a reescritura teve um impacto não .desprezível sobre a 
evolução das literaturas no passado, o estudo das reescrituras 
não deve ser mais negligenciado. Os envolvidos nesse estudo 
terão de se perguntar quem escreve, por que, sob -que cir~uns- -
tân:"éias e-par~ que público. Eles devem a Santo Agostin~o. 
áquilo que é provavelmente um dos primeiros enunciados da 
"doutrina" da reescritura na literatura ocidental. Quand9 de-
frontado com o fato de que um 'número razoável' de p·áginas 
da Bíblia, para expressá-lo brandamente, poderia não corres-
ponder de perto " ao comportamento esperado dos meipbros 
da, então, relativamente jovem Igreja Cristã, ele sugeriu que 
essas págimis deveriam simplesmente ser interpretadas, "rees-
critas", ,até que se conseguisse fazer com que elas correspon-
dessem aos ensinamentos da Igreja. Se uma passagem da escri-
tura, observava Agostinho, "parece recomendar ou o vício ou 
o crime, ou cond\!nar a utilidade :ou a beneficência", tal passa-
gem d~ve ser considerada "figurativa" e "submetida ao exame 
atencioso até que uma interpretação que contribua para o rei-
no da caridade seja produzida" (.93). 
A situação de Agostinho é exemplar para todos os reescri-
tores. Ele, obviamente, foi influel)ciado pelo fato de ocupar uma 
21 
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária 
posição determinada em uma determinada instituição, como o são 
todos os reescritores. Perto do final de sua vida, ele ocupava úma 
posição relativamente elevada em uma organização fundamentada 
em uma ideologia que tinha, portanto, um interesse definiti;o na 
preservação daquela ideologia e no combate e na destruição de 
ideologias rivais. Outros reescritores ocupari51Jl1 posições em cor-
tes, ení instituições educacionais e em casas editoriais. 
Se algumas reescrituras são inspiradas por' motivações 
ideológicas, ou produzidas sob restrições ide~lógicas, dependen-
do da"identificação ou não do reescritor com a ideologia domi-
nante de sua época, outras reescrituras são inspiradas por motiva-
ções poetológicas, ou produzidas sob restrições poetológicas. 
Quapdo Rufus Griswold publicou o The Poets and Poetry of Ame-
rica (Os poetas e a poesia da América) em 1842, declarou no pre- · 
fácio que a poesia americana "é do mais puro caráter moral" 
(GOLDING, 1984, p. 289). Ele: certamente, desejava que ela con-
tinuasse assim e recusou a inclusão de poetas tardios, cujo caráter 
ele considerava duvidoso, como Walt Whitman. Portanto, sua an~ 
tologia projetava uma imagem distorcida, "mas que funcionou 
como realidade para gerações de leitores igualmente profissionais 
e não-profissionais:' Uma vez que era vastamente lida e que aspi-
rantes a poeta olhavam para ela à busca de modelos para emular, 
' "ela efetivamente controlou o âmbito moral e intelectual do con-
teúdo na poesia.canônica" (GOLDING, 1984, p. 289). 
Quando W. B. Yeats escreveu um Memoir de William Bla-
ke para · a edição dos trabalhos . daquele . poeta que ele produzia 
com Edwen Ellis, e que foi publicado em 1893, ele literalmente 
inventou os seguintes antepassados para Blake: "o avô de William 
Blake e'ra um aristocrata irlandês chamado John O'Neil, que ado-
. tou o nome de sua esposa, 'uma mulher desconhecida' e se tor-
nou 'Blake' pàra escapar de prisão por dívida" (DORFMAN, 
22 
.. 
Pré-escre,,er 
,, 1969, p. 205). Ao dar a Blake um avô irlandês e, portanto, uma li-
' nhagem celta, Yeats pode ligar.Blake ao Celtic Twilight ("Alvore-
cer Celta"), tão importante para ele naquele momento de seu 
próprio desenvolvimento poético. Não é necessário dizer que o 
Blake "construído" por Yeats e Ellis "funcionou" como o Blake 
"verdadeiro" para os leitores da ediÇão de 1893, ainda que Yeats 
também tenha desvergonhadamente reescrito linhas de Blake 
consideradas inferiores por ele. 
. Um dos mais impressionantes exemplos da combinação de 
( ~?tivações/restriçõe1s ideológicas e poetológicas é a epígrafe deste 
,,. '\;\, 'capítulo, retirado de uma carta êscrita por Edward Fitzgerald, o ex-J tremamente popular escritor vitoriano, reescritor do poeta persa 
Omar Khayyam. De fato, o Rubayyat de Fitzgerald é uma das rees-
, crituras mais eficazes do século passado, e sua influência pode ser 
sentida avançando no século 20 adentro. Ideologicamente, Fitzge-
rald, obviamente, considera os persas inferiores aos seus colegas 
ingleses vitorJanos, uma postura qMe lhe permitiu reescrevê-los de 
uma forma que nunca, nem em sonho, reescreveria Homero ou 
Virgílio. Poetologicamente, ele acreditava que os poemas deveriam 
ser produzidos de forma a possibilitar uma leitura mais parecid,a à 
corrente dominante da poesia de sua própria época. 
Prod'uzindo traduções, histórias da literatura ou' suas pró-
prias compilações mais .compactas, obras de referência, antologias, 
críticas ou ediÇões, reescritores adaptam, manipulam até um certo 
ponto os originais com os quais eles trabàlham, normalmente para~ 
;dequá-iõs à cor; ente, ou a uma das correntes ideológica ou poe-
.tológica dominante de sua época. Novamente, isso pode ser mais 
óbvio em sociedades totalitárias, mas as diferentes "comunidades 
interpretativas" existentes em sociedades mais abertas influencia-
ram a produção da reescritura de forma semelhante. Pode-se de-
monstrar, por exemplo, que Madame de Stael foi reescrita em ter-
23 ' 
I 
Tmd11çiio, reescrita e manip11laçâo da fama literária 
mos pró e antinapoleónico e pró e antigermânico durante· as Se-
gunda e Terceira Repúblicas Francesas, que se orgulhavam de ser 
uma das sociedades mais abertas de seu tempo. 
A reescritura manipula e é eficiente. Mais uma razão, por-
tanto, para 'estudá-la. De fato, o estudo da reescritura poderá 
mesmo ser de alguma relevância para além do círculo privilegia-
do das instituições educacionais, é uma forma,de restaurar para 
, 
o estudo da literatm~a um pou~o da relevância social que os estu-
d<;>s literários como um todo perderam. Os estudantes agora "vi-
vem.na çultura mais manipuladora que os seres humanos jamais 
experimentaram"·(SCHOLES, 1985, p. 15). Estudar, os processos 
relativos à r~escritura da literatura não dirá aos estudantes como 
viver su~s vidas ,(muito rr:ais provavelmente eles se voltarão para 
o cinema em busca desse tipo de modelo), nem os ensinará a es-
crever bem, o~tra justificativa para o e~sino tradicional da litera-
tura. Mas poderá servir como uma espécie de modelo que lhes 
possibilitará, até certo gonto, "ver através das manipulações de 
todos os tipos de textos em todos os tipos de mídia" (SCHOLES, 
1985, p. 15). O estudo de reescritura não dirá aos estudantes o 
que fazer, mas poder;4mostrar à eles· formas de nã~ permitir a 
outras pessoas que lhes digam o que fazei. 
O mesmo processo-básico de reescritura funciona para tra-
dução, ·hístoriografia, antologização, críticas e edições. Ele t<µn-
bém está, obviamente, presente em outras formas de reescritura, 
como adaptações ,para cinema e televisão, mas estas estão fora d~ 
minha
áréa de conhecimento e, portanto; não serão discutidas 
aqui. Uma vez que_ªJra_dução é a forma mais reconhecível de ·rees-
critura e a potencialmente.mais influente por sua capacidade de 
projetar a imagem de um autor e/ou de uma (série de) obra(s) em 
; 
outra cultura, elevando o autor e/ou as obras para além dos limi-
24 
'1 
Pré-escrever 
tes de sua cultura de origem, quatro capítulos deste livro serão de-
dicados ao estudo da literàtura traduzida. Quatro outros serão de-
dicados a cada uma das outras formas principais de reescritura. 
Farei uso do conceito de "sistema" como um constructo heurísti-
co para o estudo da reescritura, primeiramente introduzido no 
domínio dos estudos literários pelos Formalistas Russos, na con-
vicção de que seus modelos poderiam, de fato, "fornecer uma di-
reção para indagações futuras" (MORSON, 1986, p. 2). Optei por 
esse conceito porque seus princípio~ básicos são relativamente fá-
ceis de serem explicados, o que possui uma distinta vantagem pe-
clagógic~; porque ele promete ser "produtivo" no sentido de reve-
lar problemas de importância para o estudo da reescritura, não 
revelados por :outros cons,tructos heurísticos; porque ele é "pfau-
sível" no sentido de que é também usado em outras disciplinas, . 
não só nos estudos literários, e com alguma vantagem, pois pode-
rá trabalhar contra o crescente isolamento dos estudos literários 
dentro das instituições educacionais; e porque ele fornece uma -
moldura neutra, não etnocêntrica, para a discussão sobre o poder 
e as relações moidadas ·pelo p9der, que poderiam beneficiar-se de , 
uma aborçlagem menos ªP.aixonada. Introduzirei o conceito de 
"si~tema" mais adiante no capítulo 2. 
Com Alastair Fowler, acredito que '<em última instância a 
te~ria literária é tão compreensiva e tão penetrante quanto as lei-
! 
turas nas/quais ela se baseia" (apud COHEN, 1989, p. xiii). Por-
fanto, tentei construir este -livro a partir de leituras retiradas de 
diferentes lit~raturas: grego clássico, latim, franc&s e alemão. Ao 
fazê-lo, espero ter escapado de "uma ironia das teorias correntes 
sobre diferenças históricas", cujo fato é que "elas ignoram larga-
mente diferentes histórias" (MORSON, 1986, p. 2). Por último, 
numa tentativa de superar o provincianismo do conhecimento 
. literário, estendi minhas leituras de forma a abarcar as literaturas 
25 
• 
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária 
afro-inglesa e holandesa. Um número razoável de exemplos tam-
bém foi retirado do chinês, do árabe e de outras literaturas não 
ocidentais, numa tentativa de livrar este livro dos sintomas do 
provincianismo literário "que são uma ignorância alastrada sobre 
literaturas não ocidentais [e] uma ignorância quase absoluta das 
literaturas ocidentais menores" (WARNKE, 1988, p. 49) . Como 
resultado, uma pàrte do material mencionado está citada sob a 
forma da mais óbvia de todas as_ reescrituras: a tradução. Todas as 
traduções são de minha autoria. · 
Numa época em que o avanço na carreira e outras consi-
deraçÕes institucionais tendem a fomentar, ou mesmo necessitam 
da produção de "altas" rees'crituras de literatura na forma bastan-
te especulativa praticada por diversos gurus (muitos jovens na 
profissão', possivelmente, alcançarão posição estável o'u serão pro-
ipovidos sob a base de publicações escritas em uma forma de dis-
curso que eles mesmos seriam os primeiros a abolir de qualquer 
curso de composição que eles ministram), eu formulei o pressu-
posto deste livro com base na evidência daquilo que deve estar 
documentado, e está. Como parte deste material não é provavel-
mente familiar ao leitor médio desse tipo de livro, fiz uso livre de 
citações de fontes geralmente -consideradas como de autoridade. 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -
AUGUSTINE, St. On Christian Doctrine. New York: Liberal Arts 
Press, 1958. 
BARTELS, Adolf. Geschichte der deutschen Literatur. Brauns-
chweig: Westermann, 1943. 
COHEN, Ralph. Introduction. ln: The Future of Literary Theory. 
Edited by Ralph Cohen. London: Routledge, 19~9 . p. vii-xx. 
26 
Pré-escrever 
DORFMAN, D. Blake in the Nineteenth Century. London: Yale 
University Press, l 96Q. 
. 1 h FITZGERALD, Edward. Letter to E. B. Crowell. ln: . T e 
Variorum and Definitive 'Edition of the Poetical and Prose Wri- · 
tings. New York: Doubleday, 1?02. v. 6. 
GOLDING, Alan C. A History of American Poetry Antholo,gies . . 
ln: Canons. Edited by Robert von Hallberg. Chicago: University 
of Chicago Press, 1984. p. 279-308. · ' 
JOHNSON, Barbara. A World of Difference. Baltimore: Johns 
Hopkins University Press, 1987. 
MILLER, J. Hillis. Presidential Address l986. The Triumph ?f 
, Theory, the Resistance to Reading, and the Question of the Ma-
terial Base. Publications of the Modern Language Association, 1021 
p. 281 -291, 1987. 
MORSON, Gary Saul. Introduction: Literary History and the 
Russian Experience. ln: Literature and History. Edited by Gary 
Saul Morson. Stanford: Stanford University Press, 1986. p. 1-30. 
SCHOLES, Robert. Textual Power. New Haven: Yale University 
Press, 1985. 
WARNKE, Frank. The Comparatist's Canon. ln: The Compara-
tive Perspective on Literature. Edited by Clayton Koelb and Susan 
Noakes. Ithaca: Cornell University Préss, 1988. p. 48-56. 
27 
' 
, Capítulo 2 
Ü SISTEMA: MECENATO 
Poetrias ineditas 
scribam tibi, si me ditas. 
(ARCHIPOETA, 1985, p. 376) 
O conceito de sistema foi introduzido na moderna teoria 
literária pelos Formalistas Russos. Eles compreendiam uma cul-
tura como 
um complexo "sistema de sistemas" composto de vários subsiste-
mas tais C011fO literatura, ciência e tecnologia. Dentro desse sistema 
geral, fenômenos não literários se relacionam com a literatura não 
na forma de peças independentes, mas como um interjogo entre 
sistemas determinado pela lógica da cultura à qual eles pertencem. 
(STEINER, 1984, p. 112) 
• 
Algumas variáveis da crítica sociológica, algumas críticas 
baseadas na teoria das comunicações e várias correntes da críti-
ca baseadas _em respostas do leitor [reader-response criticism] 
contribuiriam muito para criar um clima no qual é novamente 
possível se pensar a literatura -em termos de sistema. Tentativas 
recentes de elabor~r uma abordagem sistêmica dentro da teoria 
literária foram empreendidas por Claudio Guillen, Itamar Even-
29 
Tradução,' reescrita e manipulação da fatna literária 
( 
Zohar, Felix Vodicka e Siegfried J. Schmidt. Fora dos estudos li-
terários, a abordagem sistêmica foi defendida, em anos rec~ntes, 
principalmente por Niklas Luhmann, enquanto A Condição Pós-
Moderna de Lyotard se apóia na "concepção de sociedade de ' 
Parson como um sistema auto-regulador" (11). 
• Infelizmente, como nota Dieter Schwanitz: "Um grande 
obstácúlo, no entanto, para a recepção da teoria ~os sistemas 
por parte de acadêmicos de literatura é o seu baixo nível de abs-
tração" (290). Isso é certamente ~confirmado tanto em Luh-
mann quanto em Schmidt. No entanto, como o presente livro 
não tem intenção de ser uma colaboração para ulteriores elabo-
raçõ.es da Teoria Geral dos Sistemas, mas !enta antes fazer uso 
de sistemas como um constructo heurístico, simplesmente in-
troduzirei os principais conceitos dos pensamentos sistêmicos 
. ) 
e mostrarei como eles podem ser aplicad?s ao estudo de rees-
crituras de forma produti~a. 
Quando uso a palavra "sistemà' nestas páginas, o termo não 
tem relação alguma com "o Sistemà' (usualmente escrito com S 
maiúsculo) que aparece cada vez mais freqüentemente no uso co-
loquial para se referir ao aspecto mais sinistro dos poderes existen-
tes, e contra os quais não há qualquer recurso. Para os pensamen-
tos sistêmicos, o termo "sistemà' não tem nenhum desses colori-
dos katkianos. Antes, pretende-se que ele seja um termo neutro e 
descritivo, usado para
designar fim conjunto de elementos inter-
relacionados que poS6uem certas características que os sepáram de 
outros elementos percebidos como não pertencentes ao sistema. A 
"Literatura;' nas palavras de Schmidt, 
30 
pode ser analisada como um complexo sistema social de ações 
porque possui uma estrutura determinada, uma diferenciação 
dentro-fora, é aceita pela sociedade e desempenha funções que 
nenhum outro sistema pode cumprir nessa sociedade. (563) 
' 
1 • ) 
11< (1 ,.J 
O siste1na: 111ecenato 
A Literatura '_ uma literatura - pode ser analisada em ter-
mos sistêmicos. Segundo o pensamento sistêmico, ela poderia ser 
identificada como um sistema "artificial", por co~stituir-se tanto 
de textos- (objetos) quanto de agentes humanos que lêem, escre-
~....-vem e reescrevem textos. Entretanto'. o sistema educacional, espe-
. cialmente no caso dos. clássicos, dá a impressão de que textos pro-
duzidos por homens e mulheres de gênio estão suspensos num 
vácuo de atemporalidade, para nossa subseqüente edificação, 
"textos clássicos, independentemente de serem, driginalmente, 
escritos ou não por gênios, certa~ente tem sido e;critos e rees-
crit.os por gerações de professores e críticos que sobrevivem por 
meio deles" (TOMPKINS, 1985, p. 37). O fato de que a literatu-
ra é um sistema "artificial". deve nos tornar cautelosos diante de ' 
qualquer tentativa de forçar uma· analogia com os sistemas físicos / 
ou biológicos, que são adirnatáveis a descrições mais rígidas. 
A literatura não é um sistema determinativo, não é "algo" 
que "tomará o controle" e "conduzirá as coisas': destruindo a liber-
dade do leitor, escritor ou reescritor individual. Esse tipo de con-
cepção errônea pode remontar ab uso coloquial do termo e deve 
ser descartada como irrelevante. Antes, o sistema age como uma 
série de "restrições", no sentido mais amplo da palavra, sobre o lei-
tor, o escritor e o reescritor. Não é a minha intenção dar ã irnpres-, , 
são de que existe "lá fora" uma gangue rude, sem princípiGs e ex-
cessivamente malévola de tradutores, críticos, historiógrafos, edi-
tores e antologistas, regozijando, enquanto sistematicamente 
"traem" qualquer obra de literatura com as quais eles lidem. 1 
' ,.. AÓ contrário, a maior parte dos reescritores de literatura é 
- - -· 
..n_ormalmente meticul9sa, trabalhadora, bem-lida e tão honesta 
Q,uanto é humanamenfe po~sível. Eles vêem o que estão fazendo 
como o. correto, como a única form~ possÍvel, me~o q~ssa 
forrga t~_nha mu~ ; o lo~s séc!c!los. Tradutores, dê uma 
31 
Tradução, reescrita e manipulação da fama literáda 
<"'~,,\o/-. 1 
_ \ ~vez por todas, têm de ser traidores, mas eles não o sabem na 
\...,('!IJ• (;\ - _..____ . . 
\ .- maior parte Cio tempo e quase sempre não têm nenhuma outra 
- -
escolha, não enquanto permanecerem dentro dos limites da cul-
t~ra -;m que nasc;eram ou gue adqtaram - não, port; nto, en-
~cJ.uanto_ tentarem influenciar a..e.vo1ução daquela cultura, o que é 
um; coisa extremamente lógica _pai:_a ele§ qµerer~m fazer. 
. . _ O q ue f oi dito ~e-;;;critores também vale para escri-
tore~. Ambos podem escolher adaptar-se ao sistema, permane-
cendo dentro dos parâme.troS' delimitados por s1,1as restrições - e 
muito do que é percebido como grande literatura faz exatamel}-
te isso -, ou eles podem escolher opor-se ao sistema, tentando 
operar fora .de suas restrições; lendo, por e~mplo, obras lite~-
. ...,vJ rias de forma diferente de como elas foram recebi~as, escreven:._ 
\.. \. do obras de literatufãde formas -diferentes daquelas prescritas 
O , / ou consideradas como aceitáveis num momento e num lugar~ 
. t.;\ \' ' ~ula;es, ou ; screvendo obras lit~Jári~ de maneira q~e elas 
não se encaixem na poética domirlante ou na ideologia de um 
dado tempo ;u l_ugar. -
Aqui estão, por exemplo, as restrições com as quais Sha-
kespeare teve de lidar: 
32 
Como qualquer outro súdito do rei, ele tinha de satisfazer - ou. 
pelo menos não desagradar - o soberano e sua corte; a Rain4a, com · 
boa razão, era sensível a qualquer desIDo à legitimidade da monar-
quia, e sua palavra poderia pôr um fim à carreira de Shakespeare, 
se não ·à sua vida. Igualmente ele tinha de evitar a censura das au-
, toridades de Londres, cujo puritanismo militava contra qualquer 
produção dramática, considerando-as decadentes, frivolidades su-
persticiosas e que buscavam desculpas para fechar os teatros. Como 
um novo tipo de empreendedor ideológico, ainda trabalhando no 
contexto das relações tradicionais de mecenato da produção literá-
ria, Shakespeare tinha de se manter nas graças de seus mecenas da 
corte - no caso, o poderoso Lord Chamberlain - que fornecia a 
proteção política da companhia e, literalmente, sua licença para 
O sistema: mece11ato 
trabalhar; ao mesmo tempo, ele deveria manter o interesse de um 
público mais amplo, advindo das classes de mercadores, artesãos e 
trabalhadores de Londres. (KAVANAGH, 1985, p. 151) 
·A Literatura, para retornar à descrição dos teóricos Forma-
listas Russos, é um dos sistemas que con~titui o "complexo 'sistema , 
de sistemas"' conhecido como cultura. Dito de outr.a fo;hia, uma 
cultura, uma sociedade é o ambiente do sistema literário. Este e os 
outros sistemas pertencendo' ao sistema social são abertos uns aos 
outros: eles se influenciam mutuamente. Segundo os Formalistas, · 
eles. interagem num "interjogo entre subsistemas, determinado 
pela lógíca da cultura à qual eles pert~ncem". Porém, quem contro-
la a "lógica da cultura"? 
Aparentemente existe um duplo fator de controle que ga-
rante ao sistema literário não perder demais o passo em relação 
aos demais subsistemas constituintes da sociedade. Um fator de 
controle pertence inteiramente ao sistema literário; o outro se 
encontra fora desse sistema. O primeiro fator tenta cont;olar o 
sistema literário de dentro por meio dos parâmetros estabeleci-
dos pelo segundo fator. Em termos concretos, o primeiro fator é 
representado pelo "profissional'~ que é 
capacitado para "ofetecer um serviço" em vez de produzir um bem 
de consumo, é um serviço que somente ele, ~omo profissional, pode 
fornecer. Esse último aspecto do profissionalismo é o que imbui seus 
praticantes de autoridade e status: eles são _vistos como possuidores 
de um monopólio de competência em seu "campo" particular. 
(WEBER, 1987, p. 25) . 
Dentr? do sistema li,térárjo, os profis~ionais são os críticos, 
resenhistas, professores e tradutores. Ocasionalmente eles rejei-·, 
--- b - -tam alguma obra literária que se oponha de forma muito eviden-
' 1; a~~ito dominante~ c;io que a literatura deveria (ser permiti-
33 
Tradução, r·eescrita e manipulação da fama literária 
do) ser - sua oética -~que_a sociedad,_e deveria (ser permiti-
da) ser - ideologia. Pçrém, muito mais freqüentemente eles rees-
~ creverão obras literárias, até que elas se tornem aceitáveis à poéti-
~\ -O f\. \ ca e à ideologia de uma determinada época e lugar, como Karl 
~ ,, Gutzkow reescreveu, por exemplo, o Dan.tons Tod [A morte de 
J ~ ~ Danton] de Georg Büchner "porque as coisas que Büchner tinha 
• _....,.. \\ t 1 - 1 . . , \Y"\ ' v pos o em pape , as ~xpressoes que e e se permitm usar, não podem 
ser publicadas hoje em dia" (84). Além disso, Gutzkow fez isso 
porque ele não queria "dar ao censor o prazer de retirar passa-
gens" (84). Usurpando o território de um colega profissional, ele 
portanto "cumpriu a tarefa" (84) ele mesmo. Em outras palavras, 
porque ele queria que o Dantons Tod fosse lido e porque Büchner 
se opunha tanto à poética quanto à ideologia dominant~s, Gutz-
kow adaptou o texto até o ponto em que ele se tornou aceitável 
para aquel~ poética e ideologia. O escritor escolheu opor-se às res-
trições;. o reescritor escolheu adaptar-se à elas. 
O segundo fator de controle, que opera na maior párte 
das vezes fora do sistema
literário, será chamado aqui de "mece-
nato': devendo ser entendido como algo próximo dos poderes 
(pessoas, instituições) que podem fomentar ou impedir a leitu-
ra, escritura e reescritura de literatura. Importante é entender 
"poder", aqui, no sentido foucaultiano,- não só, nem mesmo 
prioritariamente, como uma força repressiva. Antes: 
\ 
aquilo que faz c_om que o poder seja durável; o que o faz aceitável, 
é que ele n~o só pesa sobre nós como uma força que diz não, mas 
que ele atravessa e produz coisas, induz prazeres, constrói conheci-
mento, produz discurso. (FOUCAULT, 1980, p. 119) 
O mecenato está comumente mais interessado nfl ideologia 
daliteratura do que em sua poética, poder-se-ia dizer que o mecenas 
"delega autoridade" ao profissional no que diz respeito à poética. 
34 
O sistema: mecenato 
O mecenato poder ser exercido por pessoas, como foram os 
Mediei, Maecenas, ou Luís XIV; mas também por grupos de pes-
soas, uma organização religiosa, um partido político, uma classe 
social, uma corte real, editores e, por último, mas não menos im-
portante, pela m_ídia, tanto jornais e r~vistas quanto grandes cor-
porações de televisão. Os mecenas tentam regular a relação entre o 
sistema literário e os outros sistemas que, juntos, constituem uma 
sociedade, uma cultura. Cómo regra, operam por meio de institui-
ções montadas para regular, senão a escritura de literatura, pelo 
menos sua distribuição: academias, dep~tamentos de censura, 
jornais de crítica e, de longe o mai0s importante, o estabelecimeu'to 
de ensino. Profissionais qrn~ representam a "ortodoxia reinante': a 
qualquer momento do desenvolvimento do sistema literário, estão 
próximos da ideologia dos mecenas que dominam aquela fase da 
história do sistema social no qual o sistema literário está inserido. 
De fato, o(s) mecenas conta(m) com esses profissionais para ali-
nha! o sistema literário com sua própria ideologia: 
Amenizando contradições, fechando-os texto~, a critica, por-
tanto, se torna cúmplice da ideologia. Tendo criado um cânone de 
textos aceitáveis, a crítica fornece então interpretações aceitáveis1 
censurando, neles, efetivamente, elementos que entrem em coli-
são com a ideologia dominante. (BELSEY, 1981, p. 109) 
O mecenato é constituído por !rês. elementos que po-
dem ser vistos interagindo de diferentes formas. Há um com-
ponente ideológico que age restringindo a escolha e o desen-
volvimento tanto da forma quanto do conteúdo. Não é neces-
sário _ dizer q1:1e "ideologia" está sendo usada, aqui, não apenas 
no sentido limitado à esfera do político, mas ao contrário, 
"ideologia parece ser aquele gradeado de forma, convenção e 
crença, que ordena noss~s ações" (JAMESON, 1974, p. 107). 
35 
I 
(1 
Tradução, reescrita e 111a11ip11/ação da fama literária 
1 
1 
Há também um componente econômico: o mecenas garante 
que escritores e reescritores sejam capazes de ganhar a viçla, 
dando-lhes uma pensão ou indicando-os para algum cargo. 
Chaucer, por exemplo, atuou co~ sucesso como "o emissário 
do Rei, o controlador de lã, couros e pele de carneiro na alfân-
dega, . [e] o 11ubsupervisor de florestas de North Petherton" 
(BENNETT, 1952, v; 1, p. 5). O contemporâneo de Chaucer, 
John Gower, por outro lado, era mecenas dele mesmo, sendo 
, ao menos nesse aspecto, "um gentil-homem independente do 
interior, cujos meios o permitiam escrever em latim, francês e 
inglês" (p. 6). Porém ele não era independentt' ho nível ideoló-
. gico: escreveu o Confessio Amantis: a pedido de Ricardo II e "es-
creveu uma passagem final .elogiando o Rei. Alguns anos de-
pois o poetã ach~m conveniente omitir essa passagem, inserin- ' 
do um novo prefácio, elogiando Henrique IV" ( p. 6). 
Os mecenas também pagam direitos autorais na venda de 
livros ou empregam os profissionais como professores e resenhis-
tas. Finalmente, há também um elemento de status envolvido. 
Aceitar o mecenato implica a integrar-se num grupo de apoio de-
terminado e ao seu estilo de vida, ainda que os agregados s~jam 
Tasso na corte de Ferrara, Beat reunindo-se ao redor da livraria 
City Lights em São Francisco, Adolf Bartel declarando orgulho-
samente que ele foi condec;orado por Adolf Hitler, ou o A,rqui-
poeta latino da Idade Média, que forneceu a epígrafe a este capí-
tulo,' onde se lê reescrito em inglês: "I shall write unheard of 
poems for you, if you give me wealth." (escrever-lhe-ei poemas 
inéditos se você me der riqueza). . 
O mecenato pode ser diferenciado ou indiferenciado, ou 
melhor, os sistemas literários podem ser controlados por um 
tipo de me~enato diferenciado ou indiferenciado por natureza. 
O mecenato é indiferenciado quando os seus três componen-
36 
/ 
O sistema: mecenato 
tes, o ideológico, o eçonômico e o componente de status, são 
todos fornecidps pelo mesmo mecenas, como era o caso da 
maioria dos sistemas literários no passado, no qual .um gover-
nante absolutista, por exemplo, ligava um escrjtor à sua corte 
dap.do-lhe uma pensão, como é o caso 'nos estados totalitários 
contemporâneos onde, ainda que não exista mais lima corte -
pelo menos no sentido em que usei a palavra -, subvenções e 
pensões permanecem. 
O mecenato é, por outro lado, diferenciado quando o su-
cesso econômico é relativamente independente de fatores ideoló-
gicos e não traz necessariamente status, ao menos não aos olhos 
da elite literária que preserva seu próprio estilo. ]:.. maioria dos 
autores contemporâneos de ·best-sellers ilustram bem esse ponto. 
Em sistemas de mecenato indifer~nciado, os esforços dos 
mecenas serão, primeiramente, direcionados para a · preservação 
da estabilidade do sistema social em geral, e a produção literária, 
aceita e ativamente encor~jada. dentro daquele sistema, · terá de 
perseguir esse àbjetivo ou, no mínimo, não se opor ativamente 
"aos mitos de autoridade de uma determinada formação cultural" 
(WHITE, 1987, p. x) que aqueles que estão no poder desejam coa, 
trolar, uma ~ez que seu poder depende deles. isso não quer dizer 
que não haverá nenhuma "outra" literatu~a produzida dentro da-
quele sistema sócial, mas que el<~ será chamada de "dissidente", ou' 
algo semelhante, e uma vez escrita ela terá grande dificuldade para 
sei; publicada por canais oficiais, ou será relegada.ao status de lite-
ratura "baixa" ou "popular': 
. Como resultado, uma situação de diglossia literária de facto 
tende a emergir,' como foi o caso em muitos sistemas literários de 
mecenato indiferenciádo, no qual a literatura é inquestionavel-
mente igualada à produção de um grupo coeso, maior ou menor, 
operando dentro da órbita do grupo de me~enas que se encontra 
37 
Tradução, reescrita e manipulação da fama.literária 
no poder. O Império Otomano, por exemplo, produziu uma lite-
ratura ligada a um grupo coeso, centrado na corte de· Istambul e 
modelada de perto em exemplos clássicos do Árabe, enquanto a li-
teratura produzida no país em geral, mo~elada nas tradições tur-
cas, nunca era levada a sério por aquele grupo e era sempre rejei-
tada como "popular", quando mencionada. Essa mesma literatura 
"popular" seria "elevada" à posição de literatura: nacional depois da 
troca de mecenato produzida pela revolução de Kemal Ata!~rk. 
· \'· Em certas situações, a pressão éontra a popularização era 
n l ~ tão grande que os próprios escritores preferiam restringir a circu-
'j..fa ~ (>J\lação de suas obras apenas entre os ~mtros membros do grupo coe-
'f. ~ so. A literatura 
1
inglesa Tudor é um exemplo. Escritores dependen-
}-l tes do mecenato da corte corriam o risco de perder o mecenato, ao 
()..}: ~ menos em p~te, se suas obras fo~sem vistas como muito popula-
~ ,W ;es entre as massas nas ruas. Daí a situação meio paradoxal, ao me-
[).. ~~ nos do nosso ponto de vista, na qual os escritores que tinham a im-
. , ,(tJ prensa à sua disposição para a divulgação de suas
obras, recusavam 
,;r,v J . . 
V' ter seus livros impressos, sobretudo em grandes edições, preferin-
e, 
do circulá-los em forma de manuscrito en~re os outros membros 
do grupo •coeso, reconhecidos como pessoas de gosto e discerni-
mento, ao invés de abandoná-las à mllltidão ignóbil. Essa últirn 1 
. tendia a encontrar seu te~a de leitura na continuidade dos roman1 
ces medievais e outros best-sellers, um tipo de escritura que mal soL 
1 
breviveu na história da literatura de nosso tempo, qúe freqüente-
mente só leva em conta a produção dos grupos coesos.A recusa em 
publicar sobreviveu mesmo um bom período após os T~dors: "Po~ 
isso, quase nada da poesia de Dmme foi publicada antes de 1633; 
dois anos após a sua morte, ainda que vintt: e cinco manuscritos 
r C_Qntendo g,oemas de· sua a~toria, e gu__Lcircularam durante SUc;t 
- . 
viqa, tenham sobrevividq" (BENNETT, 1952, v. 3, p. 193). 
- . 
38 
I 
' 1 
O sistema: mecenato 
A aceitação do mecenato implica, portanto, que escritores 
ou reescritores trabalhem dentro dos parâmetros estabelecidos 
por seus mecenas e que eles estejam dispostos a autenticar e se-
jam capazes de legitimar tanto o status quanto o poder de seus 
mecenas, como é .demostrad'o claramente, por exemplo, pela 
cantiga de elogio africana, uma coleção de epítetos honoríficos 
comemorando e celebrando os grandes e nobres feitos do mece-
nas, ou pelo panegírico no sistema islâmico, que ;ervia basica-
mente ao mesmo propósito, ou pelas muitas odes escritas para o 
'camarada J. Stalin, ou talvez, de forma menos forçada, pelas 
grandes odes de Píndaro. Uma forma ainda mais sutil do mes-
mo >fenômeno pode ser observ~do na Índia, anterior ao século 
18, onde "muitos poetas iam tãb longe a ponto de deixar os seus 
mecenas assumir a autoria de suas obr\ls, ou, ao menos, ajudá~ 
los em suas pretensões literárias, o que explicaria por que se en-
contra um número desproporcional de escritores reais na litera-
tura Indiaria" (GLASENAPP, 195.8, p. 192). 1 
Desenvolvimentos atuais no sistema literário, como existe 
na Europa e nas Américas, mostram que o mecenato indiferencia-
do não deve ser baseado principalmente em ideologia, como ele o 
era na maior parte dos sistemàs literários no passado. O compo-
nente econômico, o estímulo do lucro, poderá muito bem condu-
zir ao restabelecimento de um sistema de mecenato relativamen-
te indiferenciado, conforme é demostrado pelo: 
Crescimento de grandes redes de livrarias de varejo, pelos for-
tes concorrentes dos editores de edições de bolso nos espaços dedi-
cados às grandes vendas, pela computadorização dos sistemas de 
inventário e depósitos, 'pelo aparecimento "de um no"._o tipo de 
agente literário, pela influência de talk shows na televisão que regu-
larmente apresentam os autores como convidados, pelo controle 
por' parte dos conglomerad,os de entretenimento das companhias 
, de publicação de capa dura e de bolso, e coisas semelhantes, e.pelo 
' 39 
1 
/ . 
Trnrluçiio, reescrita e ma11ip11laçiió da fama litrrária 
envolvimento ativo crescente de Hollywood nos negócios de publi-
cação de livros. (WHITESIDE, 1980, p. 66) 
Instituições reforçam ou tentam reforçar a poética domi-
nante de um período, usando-a como a régua com a qual a pro-
dução corrente é medida. Desta forma, certas obras literárias se-
rão elevadas ao nível de "clássicos" num espaço curto de tempo 
depois de sua publicação, enquanto outras são rejeitadas, algu-
' . 
mas só alcançarão a elevada posição de um clássico mais tarde, 
quando a poética dominante tenha mudado. É significativo, no 
entanto, que obras literárias canonizadas há mais de cinco sécu-
los tendem a permanecer seguras ení suas posições, in.dependen-
temente da freqüência de mudança a que a poéti~a d'ominante 
esteja sujeita. ~~sa é uma in,slicjlção ~laEª das tendências conser-
vadoras do próprio sistema e. também d2,J?o(iei: aa r~escn üra, 
uma vez que, enquanto a obra literária, e~ si, permanece cano-
nizada, a ·interpretação .. "recebidà', ou mesmo _a interpretação 
----- .... 
"correta" em sistemas de mecenas indiferenciados, simplesmente 
muda. Em outras palavras, a obra é reescrita para alinhar-se à 
ct'nova" poética dominante;_ 
Um exemplo em larga escala desse processo é fornecido 
pela reconstituição dos cânones de diversas literaturas nacio-
nais depois ._das revoluções socialistas na Europa Oriental e 
União Soviética. Uma comparação dos autores que forarri cano-
nizados na ~epública Federal Alemã e na República Democrá-
tica Alemã, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, provavel-
l}lente revelará duas listas diferentes. Porém, quanto mais longe 
se afasta no tempo, mais as listas se sobrepõem. As obras literá-
rias canônizadas serão as mesmas,-mas•as reescrituras, por meio 
das quais elas são preservadas para seu público, diferem às ve~ 
zes de forma radical. É bastante comum que os clássicos sejam 
40 
./ 
O sistema: mecenato 
apresentados como adequados por ideologias e poéticas dife-
rentes, à medida que elas sucedem umas às outras, sendo de fato 
pressionadas a seu serviço. Obras literárias escritas a tempo su-
ficiente podem, portanto, "exibir" uma inteira concatenação de 
reescrituras contraditórias. 
A. tendência conservadora, de qualquer sistema literário 
torna-se um ponto ainda mais importante nos países menciona-
dos antes, quando o problema de decidir quais novas obras podem 
'ser admitidas com segurança no cânone tem de ser abordado. Uma 
vez que a poética dominante se subscreve abertamente ao "realis-
mo" e, portanto, está fortemente plantada no século 19, e como 
essa poética é feita para servir como parâmetro para medir a lite-
ratura produzida no século 20, tensões e conflitos são inevitáveis. 
Se um determinado tipo de instituição, como as acade~ 
mias ou as revistas literárias influentes e os editores reconhecidos 
de literatura culta, que cada vez mais têm tomado o lugar ocupa-
do pelas academias no passado, tem um papel importante na ad-
. missão de novas obras literárias ao cânone, outras instituições, 
tais como as universidades e os ·estabelecimentos de ensino, em 
geral, conservam o cânone mais ou ~enos vivo, basicamente pela 
seleção de textos para cursos de literatura. Os clássicos a sere~ 
ensinados perrÍianecem aqueles que continuam sendo impressos 
e, portanto, os clássicos que continuam sendo impressos serão os 
conhecidos pela maioria das pessoas expostas à educação na 
maior parte das sociedades contemporâneas. 
O processo seletivo também opera dentro das ob~as com-
pletas de um determinado autor,' comumente considerado uni 
clássico. Certos livros de certos autores, que são a espinha dorsal 
dos cursos em instituições de en~ino (superior), estarão ampla-
mente disponíveis, ao passo que outras obras do mesmo autor 
. serão difíceis de encontrar, a não ser em edições completas, cui-
41 
Tradt1ção, reescrita e manipulação da fama literária 
dadosas, nas prateleiras das bibliotecas. Nos países, de língua in-
glesa, por exemplo, o Doutor Fausto e A montanha mágica de 
Thomas Mann estão largamente disponíveis no momento em 
que estou eserevendo, Buddenbrooks, um pouco menos, e José e 
seus irmãos quase não está disponível, ainda que essa última 
obra tenha. sido traduzida - reescrita - em inglês e publicada 
pouco depois de ter saído em alemão, da mesma forma que to-
dos os outros livros de Thomas Mann. 
Seria apenas um pequeno exagero dizer que no estado 
atual do sistema educacional do Reino Unido e dos Estados Uni-
dos as listas de leiturãs planejadas para o exame de Mestrado e 
Doutorado em humanidades refletem de forma bastante precisa 
os cânones do momento histórico atual. Elas listam não somen-
te os escrito~es ingleses e americanos considerados dignos de es-
tudo e emulação, mas também aqueles de outras literaturas, ou, 
talvez mais precisamente,
aqµeles livros escritos por escritores 
em outras literaturas, . que são permitidos dentro dos sistemas 
britânico e americano por serem aceitos por várias ideologias e 
poéticas que dominam tais sistemas no rpomento. Em outras 
palavras, a·maior parte da literatura culta no Reino Unido e cer-
tamente nos Estados Unidos é mantida viva - um pouco artifi-
cialmente - por meio· de listas de leitura destinadas às institui-
ções de ensino (superior) que, por sua vez, garante uma rotati-
vidade substancial para as listas das edições de bolso de institui-
ções que publicam livros. 
A influência conservadora de instituições educacionais so-
bre o sistema literári~ talvez nunca tenha.sido tão aparente quan-
to no sistema Islâmico, onde poetas por um longo tempo tinham 
"aprendido sua arte exclusivamente por mei<? ?e interações pes-
soais com seus predecessores" (GIBB; LANDAU, 1973, p. 80). No 
entanto, quando escolas filológicas foram estabelecidas, primeira-
42 
O sistema: mecenato 
mente em Basra e em seguida em outras cidades, os poetas come-
çaram a ser ensinados por filólogos, com resultados óbvios: 
os poetas aproximaram-se de sua arte de forma mais ou menos fi-
lológica e aceitaram critérios filológicos como valores poéticos, es-
pecialmente no que dizia respeito à superioridade ostensivamente 
inalcançável da poesia pré-islâmica. Esse desenvolvimento é prova-
velmente muito mais responsável pela formalização da literatura 
Árabe nos séculos seguintes do que qualquer outro fator isolado. 
(GIBB; LANDAU, 1973, p. 81) 
A cano~ização (potencial) influencia grandemente a dis-
ponibilidade de uma obra literária. Candidatos à canonização, 
para não mencionar os próprios autores canonizados, serão 
muito mais facilmente .publicados por editoras influentes (ou 
por editoras "licenciadas" em sistemas de mecenato indiferen-
ciado), enquanto obras literárias que diferem de forma mais ou 
merws aguda da ideologia e/ou da poética dominante da época 
terão de se· contentar com publicações clandestinas de uma for-
ma ou outra, ou com a publicação em outro sistema literário. 
M~itos escritores negros e mulatos da África do Sul, por exem-
plo, tiveram suas obr~s publicadas primeiramente em inglês, em 
países da Europa Oriental, pa:rticularmente na República Demo-
crática Alemã. 
Aquilo que vai.contra a tendência dominante poderá tam-
bém ser ostensivamente publicado fora do sistema, ainda que 
com a intenção mais ou menos clara de operar dentro do siste-
ma. Na Fra~ça do século 18, por exemplo, muitas obras literárias 
(e' filosóficas), potencialmente subversivas, eram rotineiramente 
declaradas como publicadas em Amsterdã ou Estrasburgo, ou 
seja, fora do domínio do poder do sistema literário e da jurisdi-
ção do sistema político que elas estavam determinadas a ~esafiar. 
43 
•' 
Tradução, reescrita e 111a11ip11laçiio da fama literária 
A canonização aparece de ·forma mais óbvia e poderosa 
com a discriminação da educação de nível superior. Ela encon-
trou seu monumento atual mais impressionante - e mais lucra-
tivo - na publicação daquela cristalização híbrida da cooperação 
íntima e lucrativa entre editores e instituições de ensino supe-
rior: a antologia introdutória (para uso em poesia, drama, ou 
ficção 101), que oferece uma seleção de textos canonizados pre-
faciados com uma curta exposição da poétic;:a que garantiu sua 
canonização. Obras literárias são retiradas de seu contexto his-
tórico e toda a genealogia de influências e reescrituras da qual 
elas são parte é sile~ci~samente obliterada. Como resultado, o 
que sobreviveu a esse processo aparece como eterno, e aquilo 
que é eterno, obviamente, não deve ser questionado. 
O peso conservador inerente às e.struturas das instituições 
_d~ mec~nato pode também ser observado na influência que elas 
exercem sobre aqueles que se envolvem com 'elas, especialmepte 
aqueles que antes tinham uma postu~a anti-institucional uu de 
vanguarda. Escritores que alcançafu um impacto notável e mes-
mo com potencial perturbador em suas primeiras (poucas) obras 
'-
se vêem absorvidos pouco tempo depois ao mainstream, parado-
xalmente porque eles foram cap51zes de introduzir um novo ele-
mento,.. dentro da po.ética dominapte ou propor uma função 
nova para a literatura, ou ambos, como no caso de Bertolt Brecht. 
Como suas inovações começam a ser aceitas e imitadas por 
outros escritores, são tachados de "epígonos" nos suplementos de 
, história da literatura, um efeito de corrente é criado, o-q~e neu~ 
traliza de forma mais ou menos eficiente o aspecto perturbador 
da novidade de suas obras. Mãe Coragerh, produzida em 1989, por 
exemrlo, aparece bastante diferente da Mãe Coragem produzida 
20 ou mesmo 40 anos antes, e não por qualquer culpa do autor. 
De fato, os próprios' escritores continuam a viver e trabalhar como 
,. 
44 
O sistema: mecenato 
mentores honrados, freqüentemente alcançando em suas vidas o 
exato ~posto daquilo que lutavam para alcançar com sua arte. 
Instituições de ensino e seus programas freqüentemente f 
deixam uma marca bastante conservadora na imaginação de au-
tores individuais. Nesse respeito, é instrutivo .comparar os mani-
festos escritos pelos autores (em que eles argumentam a favor da 1 
mudança) com as obras que eles produzem de fato, como ilus- . 
tração daqueles manifestos. Essas obras geralmente atestam es- 1 
' . 
tar muito mais próximas das obras dos autores canonizados que 
fizeram parte integrante da educação do "rebelde". Joachim du 
Bellay, autor da Défense et illustration de la Zangue française, é um 
caso em questão. Seu "manifesto" é normalmente. considerado · 
como a profetização de uma "nova" poesia renascentista .france-
sa, como a praticada pelos poetas da Plêiade. Para ilustrar a poé-
tica que ele advogava, du Bellay produziu três ciclos de poesia lí-
rica: Les Antiquités de Rome, Olíve e Les Regrets, todas as três "ba-
seadas largamente em suas próprias poesias latinas~' (FORSTER, 
1970, p. 30). O que era des.crito como novo dentro do sistema 
francês, de fato, era uma reescritura de uma reescritura·de obras 
literárias às quais du Bellay tinha sido expostc:> pois fizeram pru:-
te de sua educação. 
A IJ1Udança em um sistem,il literário está também ligada 
ao mecenato. A mudança ocorre devido a uma necessidade sen-
tida no ambiente de um sistema literário, no sentido de que para 
permanecer funcional é preciso mudar. Em outras palavras, o sis-
tema literário deve ter um impacto sobre o ambiente por meio 
das obras q~e ele prnduz, ou de suas reescrituras. Se essas expec-
tativas não são satisfeitas, ou são constantemente frustradas, os 
mecenas poderão exigir ou, pelo menos, encorajarão ativamente 
a produção de obras literárias que tenham mais chances de satis-
. fazer suas expectativas: "a necessidade de aumentar o potencial 
1 
45 
' ' 
,Tradução, reescrita e manipulação da fama literária 
subversivo de produtos estéticos ao longo do tempo relaciona-se 
a uma pressão para aumentar a novidade, incongruência e outras 
variáveis relacionadas" (MARTINDALE, 1978, p. 232). 
Em sistemas com mecenato diferenciado, o re~ultado é a 
crescente fragmentação do público leitor em uma profusão relati-
va de subgrupos. Em sistemas com mecenato 1indiferenciado, por 
out~o lado, a expectativa dos leitores é rríais restrita e a interpreta-
ção "correta" de várias obras tende a ser enfatizada por meio de vá-
rios tipos de re'escritura. Nos séculos 4.0 e 5.0 de nos~a era, a ree~­
critura foi aplic~da eín larga escala à literatura grega e latina, basi-
camente para alegorizá-la a ponto de pô-la a serviço da nova ideo-
logia cristã domµiante aceitável para os novos mecenas, e portan-
to permitindo que escapassem à destruição. Demostrava-se que a 
viagem de Odisseu de retorno à sua casa, na."realidade': represen-
tava a peregrinagem da alma para o céu,
e a "divina criançâ' evo-
cada por Virgílio em sua quinta écloga, que 'simplesmente objeti-
vava celebrar a eminência de um evento feliz na família de Augus-
to que não se materializou, ·foi inequivocamente identificada com 
o pr~prio Cristo. Essa última reescritura foi responsável pelo status 
privilegiado ,de Virgílio como 1;1Il1 proto-cristão ao longo de toda a 
Idade Média, como evidencia a sua escolha para guia de Dante nos 
primeiros dois livros da, Commedia. Uma correspondel,lte alegori-
zação marxista tem sido aplicada à autores do século 19, por críti-
cos como Georg Lukács que, digamos, insistia em afirmar que Bal-
zac era "objetivamente" um analista social progressista e comenta-
dor social, ainda que, poucos leitores tivessem sido capazes de ver 
isso na mera superfície de sua obra, que estava esperando pela in-
terpretação "correta': ' 
Se um sistema literário resiste à mudança como um todo, 
ele poderá-entrar em colapso sob a pressão crescente vinda de 
seu ambiente assim·que uma diferenciação de mecenato se esta-
46 
O sistema: mecenato 
belecer, geralmenté sob condições sociais análogas àquelas que 
prevaleciam nps Estados Iluministas da Europa Ocidental, ou 
quando um certo tipo de mecenato é sucedido por outro, de natu-
reza radicaÍmente diferente. De todos os sistemas'literários conhe-
cidos na história, o chinês clássico foi o que mais resistiu à mudan-
ça, precisamente porque um mecenato indiferenciado limitava 
tanto os produtores quanto os leitores de literatura a um grupo re-
lativamente pequeno e coeso, do{llinado pela corte e pelos manda-
rins, e também porque ele soube impor sua ideologia e sua poéti-
ca fazendo-as uma parte (considerável) dos requisitos a serem al-
- cançados por aqueles que desejassem participar do grupo. 
Mesmo aqueles qu~ nunca passavam nos exames impe-
riais, vivendo uma vida parca como marginalizados ou yaga-
bundos, continuavam a escrever nos termos da ideologia e da 
poética dominantes, pois eles dependiam, ao menos até certo 
ponto, da caridade de seus ex-colegas de classe ou outros man- . 
clarins, felizes por poderem gozar dà companhia de nobres cul-
tos (ainda que talvez sua aparência ostensivamente negasse esse 
fato) enquanto realizavam suas tarefas em províncias remotas. 
Esse estado de coisas poderia contim~ar-- e continuou -
somente enquanto o ambiente era, ele mesmo, relativamente 
homogêneq e seguro. O sistema literário continuou p~oduzin­
do obras literárias em uma língua não mais falada pela maioria 
da população e com po\;.ca ou nenhuma consideração para com 
o que estava acontecendo de fato no ambiente. Quando esse 
ambiente passou a sofrer uma pressão erescente de fora e quan-
do novos grupos, capazes de_ oferecer fontes alternativ.:as de me-
cenato, como a burguesia emergente, começaram a aparecer, o 
sistema literário desmoronou rapidamente,' sendo também ata-
cado de dentro por um grande número de reescritores, ou 
melhor, por traduções de obras das lHeraturas ocidentais, na 
47 
Trnd11çt10, reescrita e ma11ipulaçiio da fama Íiterária 
maior parte das vezes.com o intermédio dos japoneses, que for-
neceram os modelos para uma nova poética. 
1 
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- 1 
49 
'-
' ' 
·. 
Capítulo 3 
-Q SISTEMA: POÉTICÀS 
, 
Rien n'appartient à rien, tout appartlent à tous. 
Il faut être ignorant comme un maitre d'école 
Pour se flatter de dire une seule parole 
Que personne ici-bas n'ait pu dlre avant vous. 
[Nothing belongs to nothing, ali things belong to ali. 
Ignorant as a schoolmaster must you be called 
1To flatter yourself that you have said one single word 
Nobody e/se did not say before you on this earth.J 
(Nada pertence a nada;todas as coisas pertencem a todos. 
É preciso ser ignorante como um professor primário, / 
Para gabar-se de ter usado alguma palavra 
r Acreditando que ninguém a tivesse usado antes.) 
(MUSSET, 1922, p. 421) 
~demos. dizer que uma poética consiste de dois compo:... 
nentes: um deles é um inventário de recursos literários, gêneros, 
motivos, 'Personagens e situações protótipos, e símbolos; o _ou-
tro, uni conceito do que é, ou deveria ser, o papel da literatura~ 
no sistema social em geral. Esse último conceito influencia a eS-
colha de temas que devem ser relevantes ara o sistema social, 
--
51 
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária 
para que a obra literária seja notada. Em sua fast: de formação, 
uma poética reflete tanto os recursos quanto as "visões funcio-
1 
nais" da produção literária dominante em um sistema literário, 
quando sua poética foi primeiramente codifi~ada. 
Uma vez que uma poética é codificada, ela exerce uma 
tremenda influência conformativa sobre o desenvolvimento 
posterior do sistema literário. Nas palavras de Earl Miner: 
Uma poética sistemática emerge em uma cultura após um sis-
tema literário, propriamente dito, ter sido gerado, e quando con-
cepções críticas. importantes são baseadas em um gênero conside-
rado florescente ou normativo. A conjunção das críticas importan-
tes com o gênero em questão gera o sistema crítico. Foi porque Pla-
tão ,e Aristóteles tomaram o dram~ como a norma, que eles consi-
deraram a imitação um caráter essencial da literatura. (350) ' 
·E após isso, eles seguiram desenvolvendo um vocabulário 
crítico para descrever o drama, do qual muitos termos ainda estão 
em uso na maior parte das línguas européias, ainda que · tenham 
sido criados na Grécia clássica há mais de dois mil anos. 
O componente fu,ncional ,de uma poética está, mais pro-
ximamente ligado a influências ideológicas vindas de fora da 
esfera da poética e geradas por forças ideológicas no ambiente 
do sistema literário. A literatura africana tradicional, por 
exemplo,

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