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18. Ferreiracorpo e significado

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Organizadora:
Ondina Fachel Leal
T- Edição
Editora
da Universidade
IMvmHade ftdml do Ho Gnmk do Sul
SEMIOLOGIA DO CORPO
Jaqueline Ferreira
Este trabalho faz parte de uma etnografia realizada em uma
vila de classe popular, a Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto
Alegre. Seu objetivo é analisar a Semiologia Médica sob uma pers-
pectiva antropológica, aliando assim minha formação em medici-
na com a antropologia (Ferreira, 1994).
A Semiologia Médica é a área da medicina que estuda os
métodos de exame clínico. Estes métodos se relacionam à bus-
ca de sintomas e sinais da doença. O estudo dos sintomas e si-
nais diz respeito à Semiologia Médica, de modo a buscar o cor-
po como gerador de signos, da mesma forma que a Semiologia
Geral preocupa-se com a linguagem como geradora de signos.
É na procura dos sintomas e sinais que o médico coordena to-
dos os elementos para construir o diagnóstico e deduzir o
prognóstico.
O sintoma diz respeito única e exclusivamente ao doente,;
é o caráter invisível da doença, pois nada mais é do que sensa-
ções que o indivíduo experimenta e só pode expressar por meio
de palavras. Já o sinal, como manifestação objetiva, faz parte
do aspecto visível da doença e diz respeito principalmente ao
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domínio médico, pois se constitui da observação clínica e do
exame físico.
Meu objetivo é demonstrar como os sintomas e os sinais fa-
zem parte de um sistema de representações à medida que a inter-
pretação da doença se faz a partir de categorias cognitivas cons-
truídas socialmente. Desse modo, tendo como foco analítico a Se-
miologia Médica, busco as representações sobre sintomas, £orpp
e doença dos pacientes e as representações médicas dos sinais da-
das pela literatura médica e pela minha prática incorporada.
Meu foco etnográfico privilegiado é a consulta médica, con-
textualizada na vila Lomba do Pinheiro. A apropriação do espaço
da consulta médica para a pesquisa antropológica requer uma aná-
lise deste espaço onde a constante relativização de meu olhar mé-
dico foi de fundamental importância para dar conta da perspectiva
antropológica. Portanto, se pensarmos a consulta médica como uma
ação que se desenrola em um tempo e espaço definidos, em que os
atores sociais - no caso, o médico e o paciente - possuem atosjí
falas que seguem uma sequência determinada, podemos,entender
este contexto como um drama social, na mesma perspectiva de
Goffman (1985). Goffman, quando se refere ao drama social, o faz
em analogia a uma peça teatral, em que cada ator tem uma posição,
uma fala e uma ação determinadas, ou seja, um papel a desempe-
nhar. O que caracteriza o drama são atores representando um de-
terminado papel em que contracenam entre si, de forma que suas
falas e ações adquiram sentido dentro da trama. Goffman procura
mostrar que a realidade social é análoga a uma representação tea-
tral, já que os indivíduos desempenham comportamentos específi-
cos, isto é, papéis sociais que são ditados pelas regras sociais. A
consulta médica, portanto, é um espaço de interação simbólica, uma
vez que, segundo esta perspectiva, o comportamento humano en-
volve não somente uma resposta direta às atividades, mas também
uma resposta às intenções dos outros. Dessa forma, quando os ges-
tos de um ser humano adquirem sentido comum, ele passa a com-
partilhar significados com seu semelhante.
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A consulta médica é um momento exclusivo com etapas bem
definidas, no qual duas representações - a do paciente e a do mé-
dico - se defrontam. O paciente discorre sobre seus sintomas e res-
ponde às perguntas de seu médico. O médico, por sua vez, desde o
momento em que o paciente entra no consultório já passa a colher
dados que possam auxiliar na sua interpretação: o andar, o trajar e
a linguagem do paciente são alguns dos elementos que fazem parte
dos dados colhidos. Após, parte para as etapas da consulta, os atos
para os quais concorrem cenas e falas específicas.
Uma das etapas da consulta, a entrevista, é de importância
crucial para a relação médico-paciente, sendo um dos determi-
nantes de sua eficácia. Eficácia, tomada no mesmo sentido dado
por Lévi-Strauss (1989). Neste ato, o paciente discorre sobre as
sensações corporais que foram por ele interpretadas como sinto-
mas. Õ médico, por sua vez, procurará interpretar estas sensa-
ções de acordo com seu repertório de conhecimentos. Vários as-
pectos envolvem estas representações. As palavras com que o
paciente se dirige ao médico, por exemplo, variam muito de acor-
do com as características individuais e do grupo social. Há tam-
bém o que não foi dito, o que o paciente não quis ou não conse-
guiu expressar por meio de palavras, mas que pode ser analisado
por comportamentos não-verbais, como a postura corporal, ges-
tos e expressões faciais, por exemplo, que fornecem informações
tão importantes quanto um relato verbal.
Dessa forma, o paciente tem que traduzir suas sensações para
o médico. Este, por sua vez, terá de retraduzir estas sensações de
forma que elas possam adquirir significados de doença. Isto impli-
ca que podem ser entendidos diferentes significados entre médico
e paciente quanto às interpretações da localização e intensidades
dos sintomas, a natureza das enfermidades e demais representações
de corpo envolvidas.
Outro ato da consulta médica diz respeito ao exame físico,
em que o instrumento básico, instrumento aqui na perspectiva de>
Leroi-Gourhan (1985), são os sentidos do médico: visão, tato e au-"
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dição, principalmente. Estes procedimentos fazem parte de uma téc-
nica. Refiro-me à técnica na mesma tradição das técnicas corpo-
rais preconizadas por Mauss (1974), que dizem respeito a um con-
junto de métodos e conhecimentos práticos essenciais à execução
de uma atividade.
As técnicas de exame físico variam histórica e socialmente, o
que é pertinente a todo ato tradicional eficaz em que os homens em
diferentes sociedades sabem servir-se de seus corpos. Isto as faz
adquirir sentido como técnicas corporais. Isto implica uma cons-
trução histórica e social na Semiologia Médica.
Assim, por exemplo, a escola hipocrática se utilizava quase
que exclusivamente da sintomatologia para chegar ao diagnóstico.
A doença neste contexto nada mais era do que uma coleção dos
sintomas. Nesta perspectiva, o sintoma é o próprio signo da doen-
ça. Dessa forma, a nosologia da doença podia ser determinada se-
gundo o órgão atingido: dores nopeito, no estômago, no fígado. Os
sinais passaram a ter relevância com a introdução da anatomia pa-
tológica, como bem observa Foucault (1980) em sua obra O nasci-
mento da clínica. Fundada com base empírica e na observação
ordenada pela anatomia patológica, a doença se desloca de uma
essência nosológica indo se localizar no corpo do doente. A partir
daí, o sintoma não mais abarca sozinho todo o significado da do-
ença. Esta nova perspectiva não diz respeito a um caráter evoluti-
vo da Semiologia Médica, mas sim a uma ruptura epistemológica,
em que o acesso ao olhar no interior do corpo faz com que a doen-
ça deixe de ser uma entidade nosológica para ser uma realidade
existente no corpo.
Do ponto de vista do doente, a interpretação da doença não se
faz apenas com base em sensações fisiológicos, uma vez que a pró-
pria leitura destas sensações é uma construção social. Isto signifi-
ca que a percepção das sensações como alterações faz parte de um
aprendizado que diz respeito a significados socialmente comparti-
lhados. Quanto a este fato, Becker (1977) já havia demonstrado
como os usuários de marijuana necessitam "aprender" a reconhe-
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cer os sintomas que dizem respeito aos efeitos desta droga. Este
aprendizado faz parte de um conhecimento que é dado pelo grupo
social e que acaba por influenciar a percepção dos sintomas e a
maneira como são interpretados:
• [...] e eu acredito que de alcance mais geral, podemos investigar a Soci-
ologia do funcionamento fisiológico normal: a respiração que está "mais
curta" do que a normal, o apetite que está "menor" do que o normal, a
dor que está além da expectativa normal, o movimento dos intestinos que
é "pouco comum", e assim por diante. (Becker, 1977, p.203)
Portanto, a ideia á de que o corpo é um reflexo da sociedade I
que articula significados sociais e não um receptáculo de proces-
sos exclusivamente biológicos. í
Dessa maneira, desenvolvo neste trabalho a ideia de corpo
enquanto sígnico, partindo da perspectiva da Semiologia Médi-
ca. Assim, o corpo doente porta significados sociais, à medida
que sensações corporais experimentadas pelos indivíduos e as
interpretações médicas dadas a estas sensações são feitas de acor-
do com referenciais específicos a estes dois pólos. A capacida-
de de pensar, exprimir e identificar estas mensagens corporais
está ligada a uma interpretação que procura determinada signifi-
cação. Esta interpretação está na dependência direta da represen-
tação de corpo e de doença vigente em cada grupo. Analogamen-
te, o corpo pode ser tomado como um texto, passível de leitura e
interpretação, tanto pelo doente na expressão dos sintomas como
pelo médico na busca dos sinais.
Sendo assim, os fenómenos corporais, no caso os sintomas
e os sinais, podem ser reconhecidos como tais por outros indiví-
duos do seu grupo. Isto os torna parte de um processo de comuni-
cação, em que ideias são transmitidas e compartilhadas no pro-
cesso interativo entre os indivíduos. Neste caso, as mensagens
emitidas pelo corpo - os sintomas e os sinais - tornam possível
que ambas as partes (médico e paciente) realizem uma leitura
destas mensagens que serão interpretadas como sintomas e sinais
levando a um significado de doença ou à ausência dela. Dessa
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forma, o indivíduo é doente segundo a sua sociedade e de acordo
com os critérios e modalidades que ela fixa.
A Lomba do Pinheiro é um bairro territorialmente extenso e
de grande densidade populacional. O bairro, em toda a sua exten-
são, é cortado por uma estrada principal onde há grande número
de residências, atividades de comércio variadas, presença de al-
guns consultórios médicos e dentários. Lateralmente à estrada prin-
cipal, há uma série de núcleos populacionais onde predominam
moradias do tipo malocas com saneamento básico precário. A po-
pulação em geral identifica a Lomba do Pinheiro como periferia,
definida assim em relação ao centro urbano. Desta forma é imedi-
atamente associada à pobreza e, além disso, à violência, uma vez
que há sempre relatos pela imprensa de gangues que assaltam e de-
predam residências e ônibus no local. O bairro possui cerca de
100 mil habitantes e se distancia do centro urbano cerca de vinte
quilómetros, o que faz o percurso de ônibus durar aproximadamente
uma hora, numa viagem bastante desconfortável e cansativa.
Cada parada de ônibus denomina uma região, já que lateralmente
à estrada principal há uma série de núcleos populacionais. As casas
localizadas na estrada principal por onde transita o transporte coleti-
vo são, de maneira geral, pequenas casas de alvenaria. A paisagem
urbana de casas comerciais e residências é quebrada por áreas verdes
pertencentes a sítios e chácaras onde pastam bois, vacas, cavalos e
carneiros, tornando a travessia por esta paisagem visualmente muito
agradável. Os núcleos de pobreza do bairro não são visíveis desta
estrada, pois estão localizados em alguns pontos, cujo acesso se dá
por ruas perpendiculares laterais, e ali sim, predominam malocas.
Na Lomba do Pinheiro, quanto ao perfil dos moradores que
buscavam atendimento médico, grande parte provém do interior do
Estado. A média de renda mensal é de dois salários mínimos, e a
maioria das consultas era feita por mulheres.
Dessa forma, são meus colaboradores tanto pacientes, mora-
dores do local, que realizavam a consulta médica, como as pesso-
as com quem estabeleci contato através do trabalho de campo.
A partiLdaçonsultório, rgalizaviui vi sita às casas, o que
era uma oportunidade de aprofundar minhas relações, uma vez
que as casas são sempre frequentadas por parentes e amigos, ali-
ada ao fato de que muitas delas são contíguas às dos vizinhos,
permitindo que estes também se tornassem colaboradores. Estas
visitas eram permeadas por conversas que diziam respeito ao
universo feminino: cotidiano de uma dona de casa ou a crise eco-
nómica que atingia a organização doméstica. Mas oprincipal as-
sunto na minha presença eram as doenças. Assim, eram-me rela-
tadas as doenças da família, diagnósticos e tratamentos realiza-
dos. Todo o trabalho de observação participante a longo prazo
acaba por apresentar as respostas que se procuram sem serem
necessárias muitas perguntas. Ali não foi diferente.
Em meu trabalho na Lomba do Pinheiro, que corrobora com a^
os estudos da demanda ambulatorial, dois sintomas estão sempre";
presentes: dor e fraqueza. Devido a esta recorrência, procuro de-
senvolver aspectos por mim observados que estão envolvidos na
representação destes dois sintomas.
No que diz respeito à dor, é difícil descrevê-la, pois é uma sen-
sação subjetiva, e qualquer informação sobre ela há de provir apenas
daquele que a sente. Porém, o fato de ser uma resposta biológica uni-
versal e individual a estímulos nocivos, advindos do interior do corpo
ou fora dele, não exclui que sua percepção e tolerância variem con-
forme o grupo social. A sensação de dor, os comportamentos que a
envolvem, quer verbais ou não até as atitudes que visam remover ou
não a sua fonte, modificam-se de acordo com o contexto social.
De acordo com a minha observação, a dor é indicada como
sensação desprazerosa, reportando à ideia de sofrimento. De fato,
alguns não se consideram doentes se não a sentirem. Já um tumor
indolor, por exemplo, que para o médico é indício de uma possí-
vel patologia pode ser desprezado pelo paciente simplesmente
"porque não dói". Ainda do ponto de vista médico, a dor não é
predominantemente negativa, à medida que é um indício de pato-
logias orgânicas.
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As representações de corgo são determinantes na interpretagãó
deste sintoma, quando, por exemplo, uma dor na perna pode não
ser interpretada como grave, tornando-se mais fácil de tolerar. Por
outro lado uma dor torácica é logo relacionada com a hipótese de
uma patologia cardíaca, o que faz com que o paciente procure al-
gum recurso de cura mais prontamente. Há também situações emque a dor é considerada um fenómeno normal, não implicando o
sentimento de estar doente, como é o caso da dor que acompanha o
período menstrual em que este fenómeno é encarado naturalmente
como fazendo parte da vida da mulher.
Há várias associações, metáforas e jogos simbólicos que os
indivíduos utilizam para descrever a sua dor. Muitos a descrevem
de acordo com as suas atividades cotidianas, como, por exemplo,
uma dona de casa que descreveu a sua dor como se estivessem "cor-
tando e botando sal e vinagre em cima", ou como um mecânico que
referia uma dor de ouvido que lhe dava a sensação de um "pneu
esvaziando".
Também o uso de metáforas como facadas, agulhadas e so-
cos são frequentes, representando este sintoma como agressão,
como algo socialmente identificado como violento, o que impli-
ca a representação da dor como uma qualidade de sofrimento,
tortura e de algo estranho ao corpo. Particularmente para os mo-
radores da Lomba do Pinheiro, a violência faz parte de seu coti-
diano. Além das baixas condições socioeconômicas da maioria
dos moradores, crimes são frequentes, o que faz o bairro ser iden-
tificado como violento pela população em geral. Com a violên-
cia fazendo parte da vida diária e tendo a dor como representa-
ção de agressão, é fácil entender o uso deste tipo de metáfora. O
relato de uma informante é um exemplo deste aspecto:
Eu tive uma dor em pontada no peito. Até falei: estão me esfaquean-
do. Qualquer dia eu morro do coração por causa desta dor. (Lúcia, 23
anos, dona de casa)
A dor sendo uma sensação desprazerosa torna^sempre im-
plícitajãjrelação cpmluma patologia. O fato de as palavras dor e
doença possuírem uma raiz etimológica comum (no latim dolor e
dolentia) é por si só bastante expressivo da íntima relação que
existe entre a experiência da dor e o reconhecimento de um esta-
do mórbido. Assim, da mesma forma que a doença é identificada
ocupando um espaço no corpo, é fácil entender como referências
do tipo de dor que "cria raiz", "cresce", "se espalha", tornam a
categoria espaço muito presente neste sintoma.
Porém, o fato de a dor ser representada como constituindo um
espaço nem sempre significa que este sintoma fique restrito a um
espaço fixo, uma vez que a ideia de mobilidade e trajetória é muito
comum na dor. Um exemplo deste aspecto é o relato que segue:
A dor que eu tenho começa no ouvido esquerdo e caminha para o lado
direito e vai até a perna. (Francisca, 61 anos, dona de casa)
A possibilidade de um percurso da dor com início em de-
terminado ponto indo findar em outro indica a autonomia desta.
Isto nos mostra como a dor pode ser percebida como dotada de
energia própria, como um agente poderoso e interruptor do es-
tado de harmonia e da ideia de uma suposta inércia do corpo,
do silêncio orgânico significativo de saúde.
Igualmente a categoria tempo é representada nesse sintoma.
Dessa maneira, a dor tem o seu tempo de aparecimento e de térmi-
no que muitas vezes é identificado como o término da doença. En-
tretanto, a categoria de tempo da dor não se exprime somente em
termos de início e término, como também em termos de sua dura-
ção, uma vez que tanto a dor como qualquer outra sensação desa-
gradável é experenciada como um tempo longo.
A dor também pode representar categorias de quente/frio e
de diferentes estados de matéria, pois estas são experiências fami-
liares ao indivíduo. Isto fica claro em relatos que expressam sen-
sação de "queimação" ou de "gelo" nas referências a um fenómeno
doloroso.
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Quanto aos estados de matéria, a dor pode ser representada
como líquida, dando a ideia de um fluxo fora de lugar e fora de
controle, ou sólida como as representações do tipo de "bola na bar-
riga" ou "bicho que come".
As metáforas para descrever a dor física, muitas vezes, são
usadas^ no cotidiano para explicitar qualquer tipo de sofrimento
moral, em que ela é tomada como o próprio sofrimento em si mes-
mo, em expressões do tipo: "tal fato foi muito doloroso".
O sintoma fraqueza igualmente abrange vários significados
que vão desde uma constituição física fraca e debilitada, como tam-
bém sugere desânimo, defeito ou mediocridade, sendo difícil se-
parar aspectos físicos e morais pertinentes a esse sintoma.
Quanto ao aspecto físico, a fraqueza pode sugerir alterações
transitórias, correspondendo a hábitos pouco saudáveis como tam-
bém a doenças orgânicas mais graves.
Do ponto de vista antropológico, os autores que abordam
fraqueza, Duarte (1986), Boltanski (1984) e Loyola (1984) por
exemplo, sempre o fazem referindo-se ao par de oposição for-
te/fraco. Compartilho com estes autores a ideia de utilizar a
noção de forte/fraco como um princípio norteador das repre-
sentações em relação ao corpo, saúde/doença.
É muito comum a associação de fraqueza com desânimo, falta
de disposição. Às vezes, esta referência pode dizer respeito sim-
plesmente ao excesso de atividade física como também a um desâ-
nimo diante das atividades rotineiras. No caso em que o indivíduo
se sente "fraco para trabalhar", mais uma vez a fraqueza físicaj^
origem e resultado de uma fraqueza moral no sentido de que uma
desorganização económica pode tornar o indivíduo um "fraco"
perante a sociedade. À medida que o indivíduo se percebe doente
a partir de uma incapacidade de exercer suas tarefas cotidianas, a
fraqueza é um sintoma recorrente e também pode ser compreendi-
da como consequência de um desgaste físico no trabalho.
A sensação de fraqueza do corpo também pode refletir a fra-
queza que o indivíduo experimenta em um sentido mais geral. Este
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episódio vem ao encontro do que Montero (1985) refere em rela-
ção à fraqueza, que, segundo ela, exprime ao mesmo tempo "causa
e expressão de uma desordem mais ampla".
A principal referência ao sintoma fraqueza diz respeito, sem
dúvida, à alimentação. Para muitos moradores da Lomba do Pi-
nheiro, a carência de alimentos não é uma experiência desconheci-
da. A associação de alimentação forte ou fraca com organismo forte
ou fraco é feita de forma direta. Nesta perspectiva de alimentação
relacionada à força muscular, é comum virem à consulta mães em
busca de remédios fortificantes e remédios para "abrir o apetite".
Nas representações de forte/fraco está implícita a relação com
as categorias de magro e gordo. A valorização da "magreza" é re-
lativa à situação social, uma vez que o meio material de subsistên-
cia das classes populares muitas vezes é a atividade física, onde a
força muscular é identificada visivelmente pela gordura.
São de consenso geral as repercussões de que a carência
alimentar pode acarretar uma fraqueza no organismo, tanto no
sentido de fraqueza muscular como na incapacidade de resistir
às doenças. Duarte (1986), ao relacionar fraqueza com alimen-
tação, refere-se à carência de comida com um caráter distintivo •
entre as classes trabalhadoras. Para esse autor, os efeitos da fome
são determinantes no resultado de uma fraqueza do indivíduo
no sentido de um enfraquecimento corporal direto que pode le-
var a um enfraquecimento moral como, por exemplo, a ideia de
"cara revoltado".
A associação de organismo forte/fraco também pode se rela-
cionar às medicações, segundo variam a suscetibilidade, a depen-
dência e a eficácia. Um corpo fraco é mais suscetível à dependência
de um medicamento mais forte (drogas e psicotrópicos, por exem-
plo), assim como há ineficácia do medicamento quando este é per-
cebido como fraco em relação ao corpo, ideia muito recorrente
quanto aos anticoncepcionais orais.
Muito mais pode ser explorado sobre fraqueza, pois, conforme
já referido, este termo abrange muitas representações que vão des-
99
de uma simples sensação física até um caráter moral mais abran-
gente no qual pode estar implícita uma falha de comportamento,
como em expressões do tipo: "foi uma fraqueza da minha parte".
Na semiologia dos órgãos estão relacionadas muitas vezesas simbologias que portam esses órgãos e que são compartilhadas
socialmente. Assim, a cabeça, o coração e o sangue são exem-
plos deste aspecto.
A cabeça, sendo o continente das ideias, relacionada ao cé-
rebro subjacente, mostra que a dor nesta região muitas vezes in-
dica o temor de uma ameaça à integridade do pensamento, capaz
de levar a um desequilíbrio gerando a "loucura". Este sintoma é
tão alusivo a sofrimento e desconforto que esta expressão em nosso
cotidiano não configura apenas a sensação física, pois define tam-
bém qualquer perturbação moral desagradável, como bem obser-
va Duarte (1986) quando cita a expressão: "este menino só me dá
dor de cabeça".
O coração, nas mais remotas culturas, é o órgão relacio-
nado às emoções. Nas tradições modernas, o coração tornou-se
um símbolo de amor profano, de caridade como amor divino,
da amizade e da retidão.
Embora atualmente nas civilizações ocidentais haja a racio-
nalização de que o órgão em si não é a sede das emoções, ele con-
tinua sendo representado como o portador dos sentimentos. Assim,
muitas sensações decorrentes de conflitos emocionais são ricas em
sintomas como dor no peito atribuível ao coração.
Como as dores na região cardíaca tanto podem significar do-
ença de suma gravidade como também possuir outras causas que
não cardíacas, o médico sempre procura informações detalhadas
sobre esta dor para interpretar este sintoma. Assim, sabendo ele
que a dor de origem cardíaca é percebida como uma dor constriti-
va, relatos de dores que dão esta ideia, como por exemplo "dor em
aperto", podem ser interpretados como de origem cardíaca.
O sangue, sendo relativo a um fluxo de vida e sendo sua
perda excessiva fatal, faz com que a sua visualização fora dos
100
limites corporais seja encarada com medo ou repugnância. Dou-
glas (1976) explica esse fato indicando que qualquer elemento
que ultrapassa os limites externos do corpo é considerado peri-
goso. Assim, qualquer orifício corporal elimina materiais margi-
nais considerados perigosos: saliva, sangue, leite, urina, fezes
ou lágrimas. Nesta linha de raciocínio, o sangue menstrual é
extremamente perigoso e poluente.
Os sintomas e sinais percebidos pelo indivíduo e que dizem
respeito ao sangue se referem à ideia de qualidade e quantidade de
sangue. Assim "fraqueza", "palidez", "magreza" são atribuíveis tan-
to a uma má qualidade como a uma má quantidade. Duarte (1986)
também relaciona a qualidade do sangue em bom e ruim, em que
várias categorias morais são atribuídas ao sangue. Dessa maneira,
o sangue é pensado como substância transmissora de qualidades
físicas e morais, como constitutivo do corpo e do caráter. Através
dele, qualidades morais são transmitidas e perpetuadas e, deste
modo, o indivíduo se identifica com seus consanguíneos, de forma
que neste sistema não se reconhece no indivíduo uma indivi-
dualidade irredutível. Isto vem ao encontro de relatos que obtive
na Lomba do Pinheiro:
Eu sempre vou ser maloqueiro, tá no sangue. (Jorge, 13 anos)
Eu tenho sangue ruim de família. Minha família é de gente braba esta-
mos sempre de guerra. Toda a família é assim. Por isto que eu digo que
é sangue ruim de família. (Luciana, 23 anos, dona de casa)
Outra representação diz respeito à viscosidade do sangue no
que se refere ao "sangue grosso" ou "sangue fino". A estes as-
pectos se relacionam entidades patológicas definidas. O "sangue
grosso", por exemplo, popularmente indica "colesterol no san-
gue", ou seja, a ideia de sangue oleoso, capaz de "entupir veias e
artérias". Já o "sangue fino" ou o "sangue ralo" é relacionado à
anemia, por meio da qual o sangue torna-se "aguado" e perde seus
componentes essenciais. De acordo com estas duas lógicas de
101
oposição (óleo e água) que estão relacionadas às categorias grosso
e fino, o sangue perde seu equilíbrio.
Enfim, o corpo pode ser percebido segundo uma pluralidade
de aspectos. Para a Semiologia Médica, o corpo do outro é sujeito
a uma emissão de sintomas e sinais engendrada por sua prática es-
pecífica. O indivíduo, porém, também realiza sua interpretação
destes mesmos processos, que segue uma lógica particular, mas nem
por isto menos legítima.
Diante dessa perspectiva, a doença é uma constmção_social.
Do ponto de vista do paciente, as representações dos sintomas são
influenciadas por vários elementos: como suas representações de
corpo em geral, suas experiências individuais e as compartilhadas
por suas redes de relações. Contribui para as representações dos
pacientes a apropriação do discurso médico, que alia aspectos deste
discurso com suas próprias representações sobre o corpo e a do-
ença. O médico, por sua vez, ao interpretar os sintomas do pacien-
te se utiliza de seu saber legitimado pela ciência, aliado à aquisi-
ção de um saber sobre o popular, o que se dá através de sua prática
e que é enfatizado na sua formação médica.
As metáforas usadas pelos pacientes muitas vezes são in-
corporadas no próprio discurso médico. Tal fato advém tanto de
sua formação, e que a literatura médica se esmera em valorizar,
como também decorre do contato com os pacientes. É o caso do
termo "pontada", que os médicos empregam para fornecer aos seus
pacientes o diagnóstico de pneumonia. Dessa forma, termos como
"batata da perna", "grão do olho" e outros são apreendidos pelo
médico à medida que este consegue vislumbrar aspectos do coti-
diano de seus pacientes e que estão envolvidos nas representa-
ções de corpo. Da mesma forma, a familiarização com termos
técnico-científicos de uso clínico e a aquisição de novas catego-
rias de percepção do corpo pelos pacientes são o resultado do
contato com o médico. Neste sentido me refiro a uma circulari-
dade de saberes entre o médico e o paciente, na mesma perspec-
tiva~de"Ginzburg (1987).
102
Desse modo, tanto as representações dos pacientes como as
representações médicas são constituídas de saberes apropriados
de ambos os pólos. Isto implica que o processo saúde e doença
não é reduto exclusivo da medicina oficial. As representações so-
bre o corpo, saúde e doença populares influenciam diretamente na
maneira como essa medicina lidará com os seus pacientes tanto na
busca do diagnóstico como da terapêutica. A história da Medicina
nos mostra como o saber médico é uma construção influenciada
por concepções do senso comum como um trânsito de mão dupla
entre o saber científico e o saber popular.
Referências bibliográficas
BECKER, H. S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
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