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A Abstração Reflexionante e a Produção do Conhecimento Matemático

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A Abstração Reflexionante e a Produção do Conhecimento Matemático
Reflexive (réfléchissante) Abstraction and Mathematical Knowledge Production
Clélia Maria Ignatius Nogueira1
Regina Maria Pavanello2
Resumo
Piaget afirma que a abstração reflexionante é o processo por excelência de produção do conhecimento matemático. Este trabalho teve por objetivo identificar a presença da abstração reflexionante ou de seus componentes (reflexionamento e reflexão) na descrição que matemáticos fazem da forma como produzem novos conhecimentos e discutir possíveis implicações pedagógicas deste processo nas aulas de Matemática.
Palavras-chave: Educação Matemática. Abstração reflexionante. Conhecimento matemático.
Abstract
Piaget assumes that reflexive (réfléchissante) abstraction is the process by which
mathematical knowledge is produced. The aim of this article is to confirm to identify the
presence of the reflexive abstraction or its components (réfléchissement and reflection)
in mathematicians description of the way they produce mathematical new knowledge as
well as to discuss possible pedagogical implications of this process in Mathematics classrooms.
Keywords: Mathematical education. Reflexive abstraction. Mathematical knowledge. Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130
1 Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática da Universidade Estadual de Maringá (UEM). clelia@wnet.com.br. 2 Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática da Universidade Estadual de Maringá. reginapavanello@hotmail.com. 112 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130
O conhecimento matemático
Desde os primórdios da civilização o conhecimento matemático tem fascinado a humanidade. Este fascínio inicialmente levou os homens a atribuírem caráter sagrado aos números e às formas geométricas, tanto que, como enfatiza Omnès (1996, p.72), “sempre houve um sentimento de perfeição, de divino, nos números e nas figuras”. Para além do misticismo, desde Platão até os dias atuais, a natureza do conhecimento matemático tem intrigado os filósofos e epistemólogos que, mais do que os próprios matemáticos, têm se debatido, procurando entender, entre outros aspectos, o que é Matemática, onde ela existe, quais são seus objetos de estudo e quanta Matemática pode existir (DAVIS e HERSH, 1986, p. 31-51).
A Matemática recebe um tratamento diferenciado em praticamente todos os sistemas filosóficos, por si só e pelo fato deste conhecimento ser, ao mesmo tempo, um objeto de cultura e uma ferramenta para o desenvolvimento das diferentes ciências, além de se constituir em instrumento de comunicação interdisciplinar. Assim é que, para o filósofo grego Platão (427- 347a.C), a Matemática faria parte do mundo das idéias e, o matemático, utilizando apenas a razão, o raciocínio dedutivo, “descobriria” as “verdades matemáticas”, que jamais poderiam ser verificadas mediante uma experiência com objetos do mundo real. Para Aristóteles (384-322 a.C.), a Matemática seria constituída de construções elaboradas pelos matemáticos a partir das percepções sensoriais que estes teriam dos objetos do mundo real e, portanto, suas verdades poderiam ser comprovadas a partir de experiências com objetos do mundo real. Descartes (1596-1650) concebia alegoricamente o conhecimento como uma grande árvore, cujas raízes seriam a metafísica, o tronco a física e que teria como ramos a astronomia, a medicina, etc. Na concepção cartesiana, a Matemática representaria a seiva, a própria condição de possibilidade de conhecimento.
Segundo Machado (2005), tanto os filósofos racionalistas, como Leibniz, quanto os empiristas, como Hume, dividem as proposições em duas classes que se excluem mutuamente e esgotam o universo das proposições: as analíticas, que englobam as verdades da razão e as empíricas, que expressam Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 113 os fatos. Uns e outros concordam, todavia, que as proposições da Matemática são analíticas, reduzindo suas discordâncias para a interpretação que dão às proposições empíricas.
A Matemática ocupa uma posição especial no sistema elaborado pelo filósofo alemão Kant (1724 - 1804). Para este pensador, os resultados da
Matemática seriam obtidos no mundo das ideias, mas poderiam ser aplicados e comprovados no mundo real. Dito de outra forma, as verdades matemáticas seriam obtidas mediante a dedução (raciocínio do matemático, razão), mas poderiam ser comprovadas empiricamente, ou seja, as proposições matemáticas são analíticas e, ao mesmo tempo, concordam com a realidade.
De maneira ampla, a concepção kantiana da Matemática extrapola a dicotomia do conhecimento matemático independer da observação dos fenômenos ou se originar a partir de questões colocadas pela observação empírica.
Apesar da solução kantiana, estas duas concepções, a de que a Matemática é uma axiomática - podendo ser construída sem que necessariamente exprima o mundo real ou se origine deste - e a de que a
Matemática é um exercício de observação - podendo ser desenvolvida a partir de atividades práticas, ou da experiência – são ainda atuais e reproduzem o que Piaget (1896-1980) chama de “problema central da epistemologia”.
Os problemas epistemológicos da Matemática
De acordo com Piaget (1975), como o mundo das construções geométricas e analíticas extrapola o mundo real ao mesmo tempo em que concorda com ele, compreender esta correspondência e esta superação tem inspirado todas as epistemologias metafísicas desde Platão a Descartes e desde Kant a Husserl.
A possibilidade de uma ciência matemática rigorosamente dedutiva e que ao mesmo tempo se adapte exatamente à experiência constitui, desde sempre, o problema central da epistemologia. A questão é mais perturbadora ainda do ponto de vista genético.
De fato, por um lado a Matemática concorda com a realidade física de modo muito detalhado. Nunca sucede que o físico - por múltiplas e diversas que sejam as estruturas ou as
A Abstração...
114 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 relações que descobre no mundo material - encontre uma estrutura que não possa expressar-se com precisão em linguagem matemática, como se existisse uma espécie de harmonia pré-estabelecida entre todos os aspectos do universo físico e os marcos abstratos da geometria e da análise. Além disso, há algo mais: acontece que este acordo se realiza não só no momento do descobrimento de uma lei física, ou a posteriori, como os esquemas matemáticos antecipam, com anos de distância, o conteúdo experimental que logo será inserido neles. As formas geométricas e analíticas podem elaborar-se sem preocupação alguma com a realidade, se tem a segurança não só de que a experiência jamais poderá questioná-las, como também de que - e este é o ponto paradoxal - a experiência as levará em conta, cedo ou tarde e se adaptará perfeitamente a elas. (PIAGET, 1975, p.63).
Quando se envereda pelo caminho da análise epistemológica da Matemática surgem, além da natureza do conhecimento matemático e seu acordo com o real, outras questões igualmente intrigantes: o de ela se impor de maneira necessária, permanecendo rigorosa apesar de seu caráter construtivo, e o de sua fecundidade, apesar de partir de poucos conceitos e axiomas relativamente pobres. Estes dois últimos problemas podem ser resumidos numa única questão, a de “como é possível a Matemática? ”. E mais, se o desejo for unificar estes dois problemas com o que se refere ao acordo da Matemática com a realidade, a única questão a ser respondida será a da natureza dos “seres” matemáticos, e isto é surpreendente: em se tratando de uma ciência exata e rigorosa, não existe consenso sobre o que são os “seres” matemáticos.
O problema epistemológico da fecundidade da Matemática se evidencia quando se constata que estão sendo produzidos novos conhecimentos matemáticos em praticamente todos os países do mundo e, como assinalam
Davis e Hersh (1986, p.35), “mesmoas chamadas nações emergentes desejam todas criar programas de Matemática atualizados nas universidades”. Ainda segundo os mesmos autores (p.43), a produção matemática existente é tal que, ao final da década de 1940, von Neumann estimava que um bom matemático conseguiria saber apenas dez por cento do conhecimento disponível
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 115 naquela época, o que torna razoável se perguntar se esta produção pode continuar indefinidamente, sem que haja a possibilidade de saturação.
Para analisar a questão da fecundidade, Piaget parte do pressuposto de que ela existe, o que caracteriza um problema que é, ao mesmo tempo, genético e histórico-crítico pela própria natureza das contínuas novidades que surgem em decorrência do trabalho dos matemáticos e que não são nem invenções e nem descobertas. Não são invenções porque lhes falta o grau de liberdade próprio das invenções; ao contrário, cada nova relação estabelecida ou nova estrutura determinada já traz consigo uma necessidade, uma espécie de “só poderia ser desta forma” (NOGUEIRA, 2007, p. 135). Não são também descobertas, pois não existem de antemão, como entendia Platão.
Não sendo então as novidades em Matemática nem invenções e nem descobertas, “elas só podem ser construções e mais, construções necessárias, levantando, por conseguinte, a questão de seus mecanismos constitutivos” (NOGUEIRA, 2007, p. 135).
A Epistemologia Genética se encarrega de mostrar, no que se refere aos mecanismos constitutivos da construção da Matemática, a convergência existente “entre o que dizem os matemáticos e o que revela a análise dos estágios elementares” pelos quais passam os indivíduos em seu processo de desenvolvimento cognitivo, e levanta as possíveis hipóteses acerca das “raízes psicológicas e mesmo biológicas de tais construções” (PIAGET, 1990, p.78).
Na perspectiva piagetiana, do ponto de vista dos matemáticos, a fecundidade da Matemática se deve, de maneira geral, à possibilidade de introduzir, indefinidamente, operações sobre operações, além de ser possível a combinação de estruturas. Assim, por ser traduzida como uma “construção de estruturas” e pelo fato de tal construção ser indefinidamente aberta, a fecundidade da Matemática estaria estabelecida.
Dessa forma e sob esse aspecto, de acordo com Nogueira (2007), os “seres” matemáticos assumem um novo sentido, deixando de constituir uma espécie de objetos “ideais”, com existência interior ou exterior ao sujeito (dependendo da corrente de pensamento) perdendo, portanto, o caráter ontológico. Em outras palavras, os objetos matemáticos, à medida que mudam de nível, mudam de função, de modo que determinados objetos matemáticos,
A Abstração...
116 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 ao deixarem de ser considerados isoladamente, passam a ser estudados como estruturas em função do relacionamento existente entre eles (por exemplo, os números inteiros, ao serem estudadas as relações existentes entre eles, dão origem ao Anel dos Inteiros); porém essas estruturas convertem-se, em um outro patamar, em objeto de teoria (o Anel dos Inteiros é um objeto de estudo da Teoria dos Grupos); e assim sucessivamente, de forma que tudo pode tornar-se um “ser”, dependendo do estágio em que está sendo analisado.
Ao contrário das aprendizagens exógenas e das teorias empíricas, o próprio das estruturas lógico-matemáticas é jamais desprezar ou invalidar as precedentes, mas, sim, superá-las, integrando-as a título de subestruturas, mantendo as imperfeições iniciais dentro das fronteiras excessivamente estritas das formas de partida. A continuidade das formas gerais de coordenação é assegurada por um fenômeno análogo.
Piaget considera a Matemática como um “sistema de construções que se apoiam igualmente, nos seus pontos de partida, nas coordenações das ações e nas operações do sujeito e procedendo igualmente por uma sucessão de abstrações reflexionante em níveis mais elevados”. Dessa forma, do ponto de vista genético, para compreender o estatuto epistemológico do conhecimento matemático importa buscar nos seus primórdios, as conexões entre as estruturas matemáticas nascentes e as estruturas operatórias do sujeito.
(PIAGET et al, 1980, p.339).
Embora possa ser considerada irreverência a comparação entre um matemático e uma criança, Piaget reconhece ser quase impossível negar a semelhança existente entre essa “contínua construção intencional e refletida de operações sobre operações e as primeiras sínteses ou coordenações inconscientes que permitem a construção dos números ou das medidas”, bem como das adições, multiplicações, proporções, entre outras operações (PIAGET, 1990, p.80).
Tal interpretação da Matemática contraria a opinião da grande maioria dos cientistas e historiadores das ciências para os quais não existe nenhuma relação entre a formação das noções e operações em seus estágios mais elementares e a sua evolução nos níveis superiores. Esse reduzido interesse que, em geral, é dedicado aos estágios elementares é decorrente da “concepção
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 117 comum de um desenvolvimento dos conhecimentos que seria linear, substituindo-se cada etapa à etapa precedente”, o que levaria a um contato de cada última etapa apenas com a imediatamente anterior e nunca com as primeiras (PIAGET e GARCIA, 1987, p.17).
Como os sucessivos estádios de construção do saber matemático são sequenciais, isto é, “cada um é, ao mesmo tempo, o resultado das possibilidades abertas pelo precedente e condição necessária do subsequente”, cada estádio começa pela reorganização, em outro patamar, das principais novidades dos níveis precedentes, o que estabelece a “integração nos estádios superiores de determinadas ligações, cuja natureza só é explicada na análise dos estádios elementares”, de modo que o mecanismo essencial a esta construção é a abstração reflexionante (PIAGET e GARCIA, 1987, p.17).
Assim, a Matemática se constitui em um notável exemplo de construção do saber mediante a abstração reflexionante.
De fato, historicamente falando, são três os grandes períodos de evolução da Matemática, a Matemática grega, o período entre os séculos XV e XIX e a produzida a partir do século XIX até os dias atuais, e:
[...] o realismo grego, que apenas se ocupa dos estados permanentes (figuras e números), forneceu-nos, entretanto, um conjunto de conhecimentos prévios, necessários à descoberta das transformações algébricas e infinitesimais do século XVII, e a análise destas últimas era indispensável para que pudessem constituir-se as estruturas específicas das Matemáticas do século XIX e de hoje (PIAGET e
GARCIA, 1987, p.18).
A abstração reflexionante
Matemática e abstração sempre estiveram relacionadas, tanto que, segundo Machado (1990), um dos slogans que caracterizam a Matemática é que “a Matemática é abstrata”. Uma representação social da Matemática que, ainda segundo este autor, serve como justificativa para as dificuldades assumidas por um grande número de pessoas em relação a esta disciplina escolar.
Esta imbricação entre Matemática e abstração pode ter sua origem na
A Abstração...
118 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 crença de que a Matemática se originou não da necessidade do homem de contar os objetos, mas do processo de abstração necessário para esta contagem, isto é, do fato de o número não depender dos objetos a serem contados. Esta abstração, que se apoia, mas não depende dos objetos, é denominada por Davis e Hersh (1986) de abstração como extração e, na teoria piagetiana, de abstração pseudo- empírica. No caso das representações de entes geométricos, por exemplo, a abstração que se faz presente é a que Davis e Hersh (1986) denominam de Abstração como Idealização e, coincide com a concebida por Aristóteles.
Aristóteles já destacava a importância do processo da abstração na elaboração de conhecimentos. Por isso, para ele, as formas inteligíveis seriam extraídas por abstração a partir do mundo sensívelmediante os seguintes passos: o ponto inicial é a realidade; as abstrações são feitas, a partir da base, levando em consideração as características comuns dos objetos; na elevação de um nível para o seguinte posterior, os objetos são agrupados a partir de suas classes de equivalências, e o conceito genérico - significando todas as determinações nas quais os objetos estão de acordo - é o supremo da pirâmide e diz respeito à representação abstrata da coisa ou idealização.
Já em 1950, Piaget insistia sobre a necessidade de distinguir entre dois tipos de abstração, segundo suas fontes exógenas e endógenas: uma apoiada sobre objetos, que é denominada de abstração empírica, e outra, procedente de ações ou operações do sujeito, denominada de abstração reflexionante.
A abstração empírica consiste em extrair de uma classe de objetos suas características comuns. Porém, mesmo em suas formas mais elementares, ela não se constitui apenas em puras percepções porque para ser abstrair qualquer propriedade de um objeto, como seu peso ou sua cor, é necessário utilizar instrumentos de assimilação (estabelecimento de relações, significações, etc.), oriundos de esquemas sensório-motores ou conceituais, presentes no próprio sujeito e não fornecidos pelos objetos. A abstração do ponto de vista aristotélico - ou abstração como idealização como referida por Davis e Hersh - corresponde, na teoria piagetiana, à abstração empírica.
Piaget considera os aportes da abstração empírica como indispensáveis
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 119 por fornecerem conteúdos de conhecimento, por permitirem controlar as antecipações e levantarem questões. Esses aportes são, todavia, secundários, pois não são eles que estão em jogo na formação de instrumentos de conhecimento (classificação lógica, as operações aritméticas, a possibilidade de combinatória, etc.), instrumentos estes que não se encontram como tais na realidade, pois são coordenações ou estruturas de atividades intelectuais do sujeito. Assim, toda abstração empírica necessita, para se efetivar, de quadros de conhecimentos que foram criados graças a uma abstração reflexionante prévia.
Por sua vez, a abstração reflexionante se apoia tanto sobre estruturas que permitem ao sujeito captar um determinado conteúdo como sobre as atividades cognitivas do sujeito (esquemas ou coordenações de ações, operações, etc.) para extrair novos caracteres e utilizá-los para outras finalidades (novas adaptações, novos problemas, etc.). Desta forma, em todos os níveis, enquanto a abstração empírica fornece os dados, a abstração reflexionante é estruturante e comporta sempre dois componentes inseparáveis: Reflexionamento, isto é, a projeção (como por um refletor) sobre um patamar superior daquilo que é extraído do patamar inferior (por exemplo, a representação simbólica de uma ação), o que caracteriza o continuum da construção do conhecimento segundo a Epistemologia Genética; Reflexão é o ato de reconstrução e reorganização sobre o patamar superior daquilo que foi transferido do inferior, ou seja, ela reconstrói sobre o novo plano B o que foi colhido no plano de partida A, ou estabelece uma relação entre os elementos extraídos de A com os já situados em B. É assim que se elaboram os conceitos ou se generalizam propriedades.
Com os seus dois componentes, a abstração reflexionante pode ser observada em todos os estágios do desenvolvimento humano. Desde o nível sensório-motor, por exemplo, o bebê já é capaz, para resolver um problema novo, de valer-se de certas coordenações de estruturas já construídas para reorganizá-las em função de novos dados. Em níveis superiores, quando a reflexão é obra do pensamento, isto é, sempre que uma abstração reflexionante se tornar consciente, ela é denominada abstração refletida. Na verdade, trata-se de uma reflexão consciente sobre a reflexão, enquanto aspecto da
A Abstração...
120 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 abstração reflexionante (na Matemática, por exemplo, a álgebra é o resultado de uma abstração refletida sobre a aritmética). O relacionamento entre abstração reflexionante e empírica é complexo e não simétrico, pois se a primeira se torna cada vez mais autônoma (ela é a única a operar na lógica e na Matemática puras), a segunda só avança porque se apoia sobre a primeira.
Piaget distingue ainda um outro tipo de abstração, a abstração pseudo empírica, que embora se encontre presente na psicogênese do conhecimento matemático, não participa da elaboração do saber matemático científico. Nas abstrações pseudo-empíricas, apesar da leitura dos resultados ser feita a partir de objetos materiais, como se fossem abstrações empíricas, as propriedades constatadas são, na realidade, introduzidas nesses objetos por atividades do sujeito (por exemplo, contar pedrinhas). De fato, ela é uma variedade da abstração reflexionante, pois conta com a ajuda de observáveis exteriores, porém construídos graças a ela. Dito de outra forma, a abstração é pseudoempírica, sempre que o objeto for modificado pela ação do sujeito e enriquecido por propriedades retiradas de coordenações já construídas por este (por exemplo, ordenar os elementos de um conjunto).
O conceito de abstração reflexionante permite mostrar a continuidade que sustenta a formação de conhecimentos mesmo por ocasião da aparição de formas novas, além de dar conta dos progressos incessantes da ciência, que podem ser produzidos, também, na ausência de experimentação.
O estudo
O estudo que relatamos é parte do projeto “A pesquisa enquanto eixo formador no curso de Licenciatura em Matemática”, desenvolvido durante os anos de 2005 e 2006, e do qual participaram as autoras e seis acadêmicos do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Estadual de Maringá (UEM), quatro do terceiro e dois do quarto ano, que se dispuseram a participar de uma pesquisa em Educação Matemática, fato inédito até então para estes licenciados acostumados à pesquisa em Matemática. O projeto tinha dois grandes objetivos, um dos quais era proporcionar aos acadêmicos a participação em atividades de investigação no âmbito da Educação Matemática
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 121 e, o outro, analisar o impacto dessa participação em sua formação e em sua concepção de pesquisa.
O principal objetivo da investigação na qual os acadêmicos atuaram como pesquisadores foi investigar, mediante a aplicação do método clínico piagetiano, as relações entre área e perímetro em crianças e adolescentes ouvintes e surdos e em adultos escolarizados ou não, com a finalidade de compreender o conceito piagetiano de abstração reflexionante. Os acadêmicos envolvidos no projeto participaram de seminários teóricos nos quais foram abordados tópicos da teoria piagetiana, principalmente o processo da abstração reflexionante e a Epistemologia da Matemática à luz da Epistemologia Genética.
Durante a realização dos seminários, percebemos a dificuldade dos acadêmicos, não acostumados a discussões filosóficas sobre a natureza da Matemática, em estabelecer as relações entre a produção deste conhecimento e a abstração reflexionante, conforme defende Piaget. Desta forma, ampliamos as atividades do projeto e incluímos uma investigação cujo objetivo era procurar identificar a presença da abstração reflexionante ou de seus componentes (reflexionamento e reflexão) na descrição que matemáticos fazem da forma como produzem novos conhecimentos. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com seis pesquisadores da UEM nas quais se buscava levar os entrevistados a discorrer sobre o seu processo pessoal de produção do conhecimento matemático.
Os entrevistados foram escolhidos em função de terem produção sistemática e reconhecida entre seus pares, nacional e internacionalmente, e por serem oriundos de diferentes cursos de graduação e pós-graduação, inclusive no exterior, e por já terem sido pesquisadores em outras instituições.
Como, além disso, possuem especialidades variadas, MatemáticaAplicada; Topologia Algébrica e Análise, entre outras, esperávamos que suas respostas pudessem denotar diferentes concepções sobre a produção do conhecimento matemático.
As entrevistas foram realizadas pelos acadêmicos a partir de um roteiro do qual constavam, entre outras, as seguintes questões: O que é pesquisa em Matemática? De onde surgem os problemas ou o que os intrigam, o que os
A Abstração...
122 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 motivam a pesquisar em Matemática? O que é produzir em Matemática?
Quando um objeto matemático tem significado? Quando e como é possível a criação de novos objetos matemáticos? Quando uma estrutura Matemática torna-se um objeto matemático e quando este é incorporado a uma nova estrutura? Existe criação em Matemática?
As entrevistas foram gravadas e transcritas e os depoimentos colhidos foram analisados em consonância com o objetivo proposto, ou seja, identificar, na descrição que os entrevistados fazem da forma como produzem novos conhecimentos em Matemática, a presença dos componentes da abstração reflexionante (reflexionamento e reflexão).
Os matemáticos e o processo de abstração reflexionante
Não esperávamos que nossos entrevistados tivessem familiaridade com os conceitos piagetiano em foco, motivo pelo qual baseamos nossa análise na identificação, em seus depoimentos, de falas que explicitassem as principais características da abstração reflexionante: o continuum dos conhecimentos, no caso do reflexionamento, e a generalização ou reorganização destes para a reflexão.
a) O reflexionamento
Nossos entrevistados, ao discorrerem sobre como são produzidos novos conhecimentos em Matemática, defendem ou a concepção platônica de que os conhecimentos já existem previamente e só precisam ser “descobertos”, ou de que podem ser inventados. Isto pode ser confirmado com os depoimentos a seguir:
[...] eu acredito que a Matemática já existe, que ela está aí. O que a gente tem que fazer é descobrir. Quando eu falo que está aí, por exemplo, as relações já existem, as relações entre os objetos. Ninguém vai inventar, eu não acredito nisso. Ninguém inventa, por exemplo, os números complexos e nem mesmo os números, isso já existe. [...]
Então a Matemática para mim não é inventada e nem criada, ela está aí, todas as relações, como na física,
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 123 ninguém vai inventar a lei da gravitação, ela já existe e alguém a entendeu (P2).
Eu acho que a Matemática é inventada por nós. Somos seres com deficiências e assim construímos, mesmo que com toda dedicação, de maneira que falta sempre algo para completar. Não acredito que exista divindade na Matemática, que a mesma é produto disso, mas que ela é inventada por nossas mentes (P4).
O matemático P5 demonstra perceber que os novos conhecimentos se apoiam em anteriores, indicando uma concepção de conhecimento como processo, e, portanto, elaborado mediante construção. Todavia, ao não ter clareza desta concepção epistemológica a situa como uma mistura entre criação e descoberta.
Logo eu poderia resumir para você o seguinte, você pode
pegar em qualquer artigo de Matemática, você vai olhar
a bibliografia e vai perceber que o matemático está
fazendo no artigo alguma coisa que outro parou de fazer,
ou não foi na direção que este está indo. Mas o conteúdo
é algo que já foi plantado há algum tempo e que isso ai,
muitas vezes, está perdido no passado. [...] É uma mistura
de criação e descoberta (P5).
Apesar de alguns dos entrevistados terem explicitado que a elaboração do conhecimento matemático se dá por descoberta, invenção, criação, ou uma mistura delas, todos, em outros trechos de suas falas afirmam que para produzir conhecimento novo em Matemática é necessário apoiar-se em conhecimentos anteriores, o que caracteriza o reflexionamento no sentido piagetiano. É o que se pode depreender pelos destaques em negrito nos depoimentos a seguir:
O interessante é que na Matemática nunca se descarta o que já foi feito e demonstrado, ao contrário, você sempre utiliza o anterior para ampliar um pouco mais e avançar um pouco mais (P1).
Quanto aos problemas, podem vir de duas maneiras em geral: uma delas seria você já ter lido um trabalho científico
A Abstração...
124 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 e você já fechou um determinado problema e aí você questiona, será que vale para outro caso? E em um caso mais geral? Esse é um caminho, a partir de um resultado você tenta generalizar (P2).
Pra mim (a Matemática) é um conhecimento que permite uma divisão segundo cada afirmação posterior é baseada numa afirmação anterior. Pode ser obtida usando lógica.
Cada afirmação posterior pode ser obtida de uma afirmação anterior. [...] dado o primeiro tijolo, cada um posterior é um corolário do anterior, corolário lógico (P3).
Tem áreas que estão em formação e assim sendo, novas descobertas parecem coisas isoladas, mas que podem mais tarde ter ligações. Pode-se ter também os complementos de teorias já bem formadas (P4).
[...] primeiro você tem que estar inserido numa área e saber o que está acontecendo naquele momento nesta área, senão você não vai fazer pesquisa, vai fazer apenas coisas que já foram feitas. [...] Observa-se, por exemplo, determinado resultado e analisa-se se podem ser utilizadas outras técnicas mais sutis para se chegar no mesmo resultado (P6).
Fica assim caracterizada a crença de nossos entrevistados na existência de um continuum na produção do conhecimento matemático, pois consideram o conhecimento como processo em um devir constante, o que evidencia um dos componentes da abstração reflexionante: o reflexionamento.
b) A reflexão
Ao discorrerem sobre como são produzidos novos conhecimentos em Matemática, nossos entrevistados descrevem ações que se caracterizam como reorganização de conhecimentos anteriores (estabelecimento de novas relações; novas propriedades; novos métodos de resolução para um mesmo problema; generalização de resultados), enfim, movimentos próprios da reflexão, na perspectiva piagetiana.
Isto pode ser confirmado com os depoimentos a seguir:
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 125 Em geral, você parte de algo que você já conhece e gostaria de melhorar. [...] Depois você define novas coisas, com certas propriedades que ainda não existem na Matemática e assim vai criando Matemática [...]. Depois com este objeto novo, vai se buscar relações com outros objetos já criados, o que perpetua o processo (P1).
Vou dar um exemplo. Fiquei sabendo há pouco tempo que surgiu uma nova teoria chamada geometria tropical, porque foi criada aqui no Brasil, em São Paulo, ela só funciona aqui por causa dos trópicos e está sendo muito utilizada. De início surgiu para problemas computacionais, nada ligado à Matemática abstrata. Mas observou-se que determinados objetos se ligavam a outras estruturas. Então você percebe que ela tem ligações que não eram vistas a princípio, mas que hoje já são. E a combinação com estas estruturas produzem resultados próprios. De início o pessoal falou legal, bonito, ta ali isolado. Mas o que aconteceu foi que percebeu-se muitas ligações e que aquilo fazia parte de uma estrutura maior ainda (P2). Sempre tem vice e versa. Um exemplo também que me vem a mente é a relação entre a Matemática e a mecânica quântica. O conceito de aceleração surgiu na época para
Newton no conceito abstrato de derivada e depois se tornou um conceito puramente matemático de várias aplicações na mecânica nova. Então de um lado, a mecânica newtoniana de início, empurrou um movimento matemático e objetos matemáticos que foram construídos, tais como a derivada e a integral, e que depois foram aplicados em outro desenvolvimento da própria mecânica (P3).
É importante que se tenha pelo menos o conhecimento suficiente para analisar e perceber outras maneiras de se observar aquele conteúdo. [...]. O para que fazer a produção se resume a complementar coisas ainda incompletas ou solucionar outros problemasque ainda não possuem respostas (P6).
[...] primeiro você tem que estar inserido numa área e saber o que está acontecendo naquele momento nesta área, senão você não vai fazer pesquisa, vai fazer apenas
A Abstração...
126 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 coisas que já foram feitas. [...] Observa-se, por exemplo, determinado resultado e analisa-se se podem ser utilizadas outras técnicas mais sutis para se chegar no mesmo resultado (P6).
Os depoimentos deixam evidente que, para nossos entrevistados, a produção de novos conhecimentos em Matemática está intimamente ligada à reorganização, em um patamar superior, de conhecimentos anteriores, o que caracteriza a reflexão.
c) A abstração reflexionante
Os objetos matemáticos, ao deixarem de ser considerados isoladamente, passam a ser estudados como estruturas, estruturas essas que, por sua vez, convertem-se, em um outro patamar, em objeto de teoria, e assim sucessivamente. Esta possibilidade de, em Matemática, se construir indefinidamente estruturas que, por sua vez, convertem-se, em um outro patamar do conhecimento, em objeto de teoria e assim sucessivamente, implica, ao mesmo tempo, em considerar o conhecimento anterior à luz de novas condições e, então, a reorganizá-lo. Este duplo movimento, continuidade (reflexionamento) e transformação (reflexão), caracteriza a abstração reflexionante, detectada nos trechos de depoimentos que seguem:
[...] Qualquer estrutura matemática é também um objeto de estudo, quando se tem um interessado em estudar aquilo.
Esta se fortalece quando se consegue resultados interessantes com ela em outras áreas, por exemplo. Neste momento ela se estabelece completamente na Matemática (e se torna um objeto) (P1).
Então eu acredito que as estruturas matemáticas podem aparecer a princípio isoladas, mas sou fiel de que a Matemática é tudo uma coisa só, uma coisa universal, tudo é harmonioso. Por mais que se faça as coisas isoladas, tudo pode se juntar e uma hora vai. Esse é o meu ponto de vista. A combinação de estruturas faz parte de algo maior (P2).
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Bem, as estruturas são criadas e depois podem ser aplicadas em outras teorias tornando-se um objeto desta nova teoria. Então estas aplicações servem para auxiliar na construção de novas estruturas (P5).
Bem, em algum momento toda estrutura vira ferramenta [...] No fundo eu não consigo separar muito, pois uma ferramenta é uma estrutura e uma estrutura é uma ferramenta. Acredito que seja como um ciclo; começa com uma estrutura a princípio “isolada” e que depois possui aplicações a outras teorias que formam novas estruturas (P6).
De início, se tem um primeiro resultado em formato simples. É a estrutura recém formada. Depois você começa a utilizar este novo resultado em outros locais. Começam a ocorrer aplicações ou desenvolvimentos maiores nesta estrutura. Um bom exemplo que posso usar é a utilização que faço de alguns teoremas. Uso-os para muitas coisas, são os meus objetos ou ferramentas. No início eram de certa forma uma estrutura nova sem nenhuma aplicação (P4).
As falas de nossos entrevistados evidenciam que, para se avançar em Matemática, geralmente se procuram generalizações, aplicações a novas situações, mudança de condições iniciais ou novos métodos de resolução para um mesmo problema. Para dar conta desses desafios, o matemático precisa inicialmente retirar do conhecimento que já possui aquilo que deseja manter em outro nível, isto é, projetar o que deve permanecer do conhecimento anterior para um novo patamar (reflexionamento) e então reorganizar, reestruturar esse novo conhecimento, mediante as novas condições ou necessidades (reflexão). Dessa forma, o conhecimento anterior não se perde, mas fica embutido no novo, reorganizado, reestruturado e isto, desde os conhecimentos mais elementares até os mais sofisticados. Ora, reflexionamento e reflexão são os dois componentes da abstração reflexionante.
Uma vez tendo identificado a abstração reflexionante no processo de produção do conhecimento matemático pelos matemáticos entrevistados, cabe discutir agora se este fato teria implicações na elaboração do conhecimento matemático em sala de aula.
A Abstração...
128 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130
O processo de abstração reflexionante e a Educação Matemática
A ênfase atribuída aos problemas epistemológicos e a ausência de preocupações didático-pedagógicas nos estudos de Piaget acarretaram relações controvertidas e mesmo conflituosas entre a Epistemologia Genética e a educação escolar, particularmente em função do caráter geral da primeira.
Desta forma, poderia parecer estranho comparar o processo de produção de conhecimento pelos matemáticos, em suas pesquisas, e a construção dos conhecimentos matemáticos escolares pelos aprendizes. Este fato é reconhecido pelo próprio Piaget: Ora, apesar da irreverência que pode aparentemente haver, na comparação entre um matemático e uma criança, dificilmente negaríamos um certo parentesco entre essa contínua construção intencional e refletida de operações sobre operações e as primeiras sínteses ou coordenações inconscientes que permitem a construção dos números ou das medidas, das adições ou multiplicações, das proporções, etc. (PIAGET, 1990, p.79/80).
No entanto, essa discussão é necessária quando se observa, nas aulas de Matemática, o predomínio de atividades que enfatizam a memorização de definições, de fórmulas e de regras, o treino intensivo nos procedimentos algorítmicos, em detrimento da construção dos conhecimentos - e tudo isso coexistindo, muitas vezes, com um discurso impregnado de inspiração piagetiana.
A teoria piagetiana, por descrever as leis gerais do processo de construção do conhecimento do sujeito epistêmico, possui caráter universal e, portanto, de aparente inaplicabilidade na sala de aula, habitada por sujeitos particulares confrontados com uma situação específica. Embora possa parecer complexa esta aplicação, algumas recomendações da Educação Matemática para uma ação pedagógica que extrapole o paradigma da transmissão de conteúdos e da sequência de apresentação euclidiana dos conhecimentos matemáticos (exemplos e exercícios), traduzem para a sala de aula, mesmo que de maneira implícita, a essência do processo de abstração reflexionante.
De fato, se a abstração reflexionante se apoia, como dito anteriormente,
Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 129 sobre todas as atividades cognitivas do sujeito (esquemas ou coordenações de ações, operações, conhecimentos já elaborados, etc.), para delas retirar novos caracteres e utilizá-los para outras finalidades (novas adaptações, novos problemas, novos conceitos, etc.), traduzir isto para a sala de aula significa nada mais nada menos do que seguir a orientação de “partir do conhecimento prévio” do aluno, ou seja, considerar o seu “repertório matemático” como ponto de partida para a elaboração de novos conhecimentos.
Uma dificuldade para uma ação pedagógica fundamentada neste pressuposto pode estar em conhecer o “repertório matemático” dos alunos.
Para isso, é necessária uma diagnose inicial que pode ser concretizada mediante a proposição, em sala de aula, de atividades exploratórias relacionadas ao novo conceito que se pretende apresentar. A observação criteriosa dos alunos enquanto estes se desincumbem da tarefa proposta e a análise de suas produções permitem ao professor apreender seus conhecimentos e suas dificuldades.
Outra dificuldade é saber utilizar os conhecimentos já construídos pelo aluno como ponto de partida para as novas construções, de modo a, em linguagem piagetiana, provocar o reflexionamento, que é um componentes da abstração reflexionante. Para isso, as hipóteses, elementos ou condições envolvidas nas atividades exploratórias devem ser modificados ou ampliados de maneira a provocar o necessário desequilíbrio que desafie o aluno a refletir sobre o conhecimento elaborado, projetando-o para um patamar superior.
Umavez estando construído o novo conhecimento, porém numa situação particular e contextualizada, o mesmo deve ser reorganizado para adquirir seu caráter geral e poder ser aplicado a outras situações, ou seja, realizar a reflexão, segundo a teoria piagetiana. Esta reorganização, que se dá pela consideração dos invariantes percebidos em cada uma das atividades realizadas e pelo estabelecimento de relações entre os conhecimentos anteriores e os em construção, pode ocorrer quando o professor apresenta exemplos de situações já conhecidas, porém que devem ser referenciadas ao tema em questão, ou quando, em conjunto com o aluno, formaliza os conhecimentos construídos. É assim que as generalizações, propriedades e conceitos são elaborados. A consciência deste conhecimento decorre do que Piaget chama
A Abstração...
130 Bolema, Rio Claro (SP), Ano 21, nº 30, 2008, pp. 111 a 130 de abstração refletida, que é a reflexão sobre a reflexão, ou a capacidade de expressar, de maneira escrita, oral ou pictórica, os conhecimentos construídos.
Diferentes tendências da Educação Matemática, como as Investigações Matemáticas, a Modelagem e a Resolução de Problemas por proporem situações que desafiam os alunos a questionar seus conhecimentos, de maneira a adaptá-los, complementá-los, reorganizá-los, generalizá-los, favorecem o processo de abstração reflexionante e possibilitam, a exemplo do relatado por nossos entrevistados, a construção de novos conhecimentos pelos estudantes.
Referências
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Alves, 1986.
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NOGUEIRA, C. M. I. Classificação, seriação e contagem no ensino do número: um estudo de Epistemologia Genética. Marília: Oficina Universitária Unesp, 2007.
OMNÉS, R. Filosofia da ciência contemporânea. São Paulo: EDUNESP, 1996.
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PIAGET, J. et al. Lógica e conhecimento científico. Porto: Civilização, 1980.
PIAGET, J.; GARCIA, R. Psicogênese e história das ciências. Lisboa: Dom Quixote,
1987.
Aprovado em janeiro de 2008
Submetido em setembro de 2007
Aula 2
A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget
Resumo
Nenhum aspecto da matemática foi tão analisado “à luz da teoria piagetiana” quanto o número. Os resultados encontrados por Piaget e Szeminska e publicados no livro A gênese do número na criança geraram, também, inúmeras publicações acerca das suas possíveis implicações pedagógicas. Para os pesquisadores, o número é elaborado a partir da síntese operatória da seriação e da classificação, estabelecendo um tertium entre as definições de número propostas por duas das principais correntes do pensamento matemático: o logicismo e o intuicionismo. Neste artigo expõe-se o debate entre intuicionismo e logicismo sobre o número e a posição epistemológica de Piaget que levou a uma nova concepção de compreender a gênese do número na criança.
Palavras-chave: definição piagetiana de número; logicismo; intuicionismo.
Introdução
Até 1940, Jean Piaget (1896-1980) já havia analisado as fontes práticas e sensório- motoras do desenvolvimento da criança e publicado seus resultados em duas obras clássicas: O nascimento da inteligência na criança e A construção do real na criança. Também já havia investigado os aspectos verbais e conceituais do pensamento infantil que resultaram em A formação do símbolo na criança. O próprio Piaget afirma, no prefácio da primeira edição do livro A gênese do número na criança, escrito em 1941, que era necessário “ultrapassar essas duas etapas preliminares e atingir os mecanismos formadores da própria razão”, ou seja,
Abstract The definition of number: a hypothesis over Piaget’s Theory Perhaps no aspect in Mathematics has been so thoroughly analyzed than the concept of number from Piaget’s point of view. Results by Piaget and Szeminska in their book “The Child’s Conception of Number” brought forth several publications on possible pedagogical implications on the issue. For researchers, the number concept is worked out from the operational synthesis of serializing and classification, while establishing a tertium between the definitions of number, which have been proposed by two of the main mathematical thoughts, namely logics and intuitionalism. In this article the debate between intuitionalism and logics on the number and Piaget’s epistemological stance that led to a new concept on the genesis of number in the child is provided.
Keywords: Piaget’s definition of number; logics; intuitionism.
R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006.
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Procurar compreender como os esquemas sensório-motores se organizavam no plano do pensamento em sistemas operatórios, o que, para ele, só seria possível mediante o estudo do número (Piaget; Szeminska, 1981, p. 11).
Do ponto de vista epistemológico, o problema “o que é o número? ” Intrigou filósofos e matemáticos desde a Antigüidade, evidenciando a existência de um forte contraste entre a clareza instrumental do número e a complexidade das teorias construídas para explicá-lo. Nenhuma das principais correntes do pensamento matemático, como o intuicionismo, o logicismo e o formalismo, até o século 20, conseguiu uma resposta satisfatória para explicar qual a origem do número. Tal desafio interessou a Piaget, para quem somente uma investigação genética poderia conduzir a uma resposta mais conclusiva.
Assim como a verdade técnica da aritmética está fora de toda discussão, a questão de se saber o que é o número deixa evidente a surpreendente incapacidade do pensamento para apreender qual é a natureza de certos instrumentos nos quais, entretanto, acredita compreender completamente e os utiliza em quase todos os seus atos.
Este contraste entre a evidência instrumental do número e a confusão das teorias epistemológicas para explicá-lo deixa claro a necessidade de uma investigação genética: o desconhecimento do pensamento em relação às engrenagens essenciais de seu próprio mecanismo é, com efeito, o índice psicológico de seu caráter elementar e, em consequência, da necessidade de se remontar aos primórdios de sua formação para poder alcançá-las (Piaget, 1975, p. 67-68).
Piaget, em parceria com Alina Szeminska, realizou esta investigação genética; os resultados obtidos foram relatados no livro La genèse du nombre chez l’enfant, publicado em 1941, definindo número como “a síntese da classificação e da seriação”.
No texto em questão apareceu, pela primeira vez, a resposta à pergunta: O que é número? Piaget e Szeminska se propuseram a apresentar, a partir de observações precisas, uma explicação teórica coerente da construção do número na infância. O interesse despertado pela obra, desde sua publicação, jamais diminuiu, apesar ou por causa das críticas teóricas que o livro contém e dos novos fatos experimentais nele apresentados.
Os sujeitos da pesquisa foram restritos a crianças do período intuitivo, não porque não existissem indicativos da presença do número em crianças mais jovens, mas porque toda análise metodológica necessita fixar “começos”. Para não ficar remontando indefinidamente às origens, Piaget e Szeminska estabeleceram que os sujeitos de sua investigação deveriam ser capazes de realizar tarefas inerentes às provas cognitivas programadas, limitando-os, então, ao período intuitivo ou pré-operatório.
Para a determinação das provas, Piaget e Szeminska se fixaram nas principais “qualidades” ou “necessidades” do número para existir – a conservação de quantidades (condição de todo e qualquer conhecimento), a correspondência termo a termo (essencial para a contagem), a determinação da cardinalidade e doprincípio ordinal (aspectos indissociáveis do número) – , e, em todas elas, é possível perceber que os autores buscam confirmar a hipótese, não colocada abertamente, de que o número é a síntese da classificação e da seriação.
Como Piaget e Szeminska formularam essa hipótese é o tema que investigamos, mediante pesquisa bibliográfica sobre a construção do número, objetivando compreender o contexto científico e filosófico no qual os pesquisadores estavam inseridos.
O número pela história e pela filosofia: algumas considerações
Até o século 18, embora já inteiramente dedutiva, a matemática estava particularmente ligada aos algoritmos, e pouca ou nenhuma preocupação existia quanto à natureza de seus elementos ou quanto aos seus fundamentos. De uma maneira geral, à exceção do período clássico, na Grécia
Antiga, a evolução das ideias matemáticas prosseguiu, até aí, de uma maneira praticamente linear, sem maiores revoluções.
Esta história, vista hoje, parece indicar que a matemática se desenvolveu de uma maneira praticamente “esperada”. Tal não é, todavia, o panorama do século 19, no qual, após a descoberta de R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006. Clélia Maria Ignatius Nogueira um novo mundo na geometria, a matemática passou a ser reconhecida não mais como uma ciência natural, decorrente da observação da natureza, ou que buscasse descrevê-la, mas como uma criação intelectual do homem. Em decorrência dessa nova concepção surgida no século 19, com o advento das geometrias não-euclidianas, a aritmetização da análise e da álgebra, a adoção da lógica simbólica como a linguagem da matemática e com a libertação da matemática do real, eclodiu o que ficou conhecido como “a crise dos fundamentos” da matemática. Surgiram então, como vamos descrever a seguir, diferentes formas de conceber a matemática e, consequentemente, diferentes definições para número.
As principais correntes do pensamento matemático
Por quase todo o século 19, o mito de Euclides (c.450-c.380 a.C.) era inabalável tanto para os filósofos como para os matemáticos.
A geometria euclidiana era considerada por todos “como o mais firme e
confiável ramo do conhecimento” (Davis;
Hersh, 1986, p. 371).
A descoberta das geometrias não euclidianas, contudo, implicou a perda da certeza da geometria, abalando, consequentemente, não só os alicerces da matemática, mas de todo o conhecimento. Os matemáticos do século 19 enfrentaram o problema e buscaram uma outra fonte segura para fundamentar seus trabalhos, elegendo a aritmética como a “nova base sólida”.
Ao alicerçar a matemática sobre a aritmética, porém, se estava, em última instância, fundamentando-a sobre o número natural, e verificou-se, então, que este não possuía uma definição matemática formalizada, a ponto de o alemão Kronecker (1823-1891) haver dito que “Deus fez os números inteiros, todo o resto é criação do homem” (Eves, 1995, p. 616).
Estava desencadeada a “crise dos fundamentos” na matemática. A partir daí surgiram diversas correntes buscando soluções para os profundos problemas apresentados, soluções estas que se resumiam em tornar a matemática, novamente, uma ciência confiável.
Dessas correntes, três se destacaram: o logicismo, o intuicionismo e o formalismo.
Estas três correntes continuam, até hoje, a dividir os matemáticos quanto aos fundamentos da matemática.
O logicismo
O matemático alemão Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-1925) acreditava que a solução para o impasse seria a redução da aritmética à lógica. Para realizar esta tarefa, pretendia efetivar a consecução de dois grandes objetivos: o primeiro seria definir toda expressão aritmética em termos lógicos e com isso mostrar que a toda expressão aritmética equivale uma expressão lógica determinada; caso conseguisse realizar tal tarefa, o segundo objetivo consistiria em mostrar que as proposições lógicas obtidas poderiam ser deduzidas de leis lógicas imediatamente evidentes.
Frege eliminou qualquer recurso à intuição e à linguagem comum, procurando mostrar que a aritmética poderia ser considerada como um ramo da lógica e que suas demonstrações não necessitavam se fundamentar nem na experiência e nem na intuição. Observou, então, que a matemática necessitava de uma profunda revisão crítica, como nunca acontecera antes. Acreditava que seriam necessárias demonstrações de proposições que, anteriormente, se aceitavam como evidentes e que conceitos relativamente novos, como de função, de contínuo, de limite, de infinito, etc., precisavam ser reexaminados. De maneira geral, seria necessário examinar todos os campos da matemática com o rigor de demonstração, delimitação precisa da validade dos conceitos e sua exata definição, a partir já do próprio conceito de número.
Além da perda de credibilidade da geometria como base sólida, é preciso recordar que, praticamente na mesma época, apareceram as várias antinomias da teoria dos conjuntos, abalando todo o edifício matemático e fortalecendo a ideia de Frege, de que apenas uma análise minuciosa dos fundamentos da matemática, “graças ao novo instrumento lógico, poderia salvar a coerência das matemáticas” (Grize, apud
Piaget et al., 1980, p. 121). 
O programa apresentado por Frege não encontrou eco até ser acatado por B. Russell (1872-1970) e A. Whitehead (1861-1947). Os dois retomaram a tese de Frege e procuraram demonstrar que a matemática pura (incluída aí a geometria) poderia ser inteiramente deduzida da lógica. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006. A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget
Embora até então tivessem sido tratadas, historicamente falando, como estudos distintos, a matemática sempre relacionada com as ciências e a lógica com o idioma grego, o desenvolvimento de ambas, durante o século 19 e início do século 20, de acordo com Russell, aproximou definitivamente lógica e matemática, a lógica tornando-se cada vez mais matemática e a matemática, cada vez mais lógica, de maneira a ser, para Russell, inteiramente impossível traçar uma linha entre as duas; na verdade, as duas são uma. Diferem entre si como rapaz e homem: a lógica é a juventude da matemática e a matemática é a maturidade da lógica” (Russell, 1974, p. 186).
A tese do logicismo é que a matemática é um ramo da lógica. Assim, a lógica, em vez de ser apenas um instrumento da matemática, passa a ser considerada como a geradora da matemática. Todos os conceitos da matemática têm que ser formulados em termos de conceitos lógicos, e todos os teoremas da matemática têm que ser desenvolvidos como teoremas da lógica; a distinção entre matemática e lógica passa a ser uma questão de conveniência prática. (Eves, 1995, p. 677).
O formalismo
O embrião da escola formalista foi um estudo postulacional realizado pelo matemático alemão David Hilbert (1862-1943) sobre a geometria, em 1899. Nesse estudo, Hilbert aprimorou o método matemático desde a axiomática considerada material, dos tempos de Euclides, à axiomática formal do século 20. Algum tempo depois, tentando solucionar a crise instaurada pelas antinomias na teoria dos conjuntos e para responder ao desafio à matemática clássica, estabelecido pelos intuicionistas, Hilbert dedicou-se, seriamente, à elaboração do programa formalista.
A tese do formalismo é que a matemática é, essencialmente, o estudo dos sistemas simbólicos formais. De fato, o formalismo considera a matemática como uma coleção de desenvolvimentos abstratos em que os termos são meros símbolos e as afirmações são apenas fórmulas envolvendo esses símbolos; a base mais funda da matemática não está plantada na lógica mas apenas numa coleção de sinais ou símbolos pré-lógicos e num conjunto de operações com esses sinais. Como, por esse ponto de vista, a matemática carece de conteúdo concreto e contém apenas elementos simbólicos ideais, a demonstração da consistência dos vários ramos da matemática constitui uma parte importante e necessária do programa formalista. Sem o acompanhamento dessa demonstração de consistência,todo o estudo perde fundamentalmente o sentido.
Na tese formalista se tem o desenvolvimento axiomático da matemática levado a seu extremo (Eves, 1995, p. 682).
O intuicionismo
 Embora não tenha sido ele matemático e nem tenha vivido a maior parte da sua vida no século 19, o pensamento filosófico de Immanuel Kant (1724-1804) influenciou profundamente o desenvolvimento científico e cultural dos séculos 19 e 20, inclusive o da matemática, de modo que é oportuno um breve interstício para algumas considerações acerca da posição da matemática no sistema kantiano.
Até Kant, tanto os filósofos racionalistas quanto os empiristas dividiam as proposições matemáticas em duas classes mutuamente excludentes e que esgotavam o universo das proposições: as analíticas, que englobam as verdades da razão e cuja negação conduz a não-contradições, e as empíricas ou não-analíticas, que expressam os fatos. Kant reapresentou o problema da classificação das proposições oferecendo uma outra: as proposições poderiam ser analíticas e sintéticas, e a principal diferença entre Kant e seus antecessores é que ele faz a distinção de duas classes de proposições sintéticas – as empíricas ou sintéticas a posteriori e as sintéticas a priori, que não são empíricas.
As proposições matemáticas seriam, segundo Kant, sintéticas a priori, pois seriam as formas puras da intuição, o espaço e o tempo, que permitiriam fundamentar e legitimar os juízos sintéticos a priori (e também toda a matemática) expressando a especificidade da matemática. Em outras palavras, a matemática se referiria à realidade concreta, mas utilizaria, para apreendê-la, conhecimentos a priori de tempo e de espaço, o primeiro fundamentando o número e, conseqüentemente, toda R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006. Clélia Maria Ignatius Nogueira
139a aritmética, e o segundo alicerçando a geometria. Estas idéias, que exerceram enorme influência nos matemáticos no século 19, constituíram a base do intuicionismo de Poincaré. Jules Henri Poincaré (1854 1912) é considerado o matemático mais importante do período transitório entre os séculos
19 e 20, e, de acordo com diversos historiadores, nenhum de seus contemporâneos dominou tanta diversidade de assuntos, enriquecendo todos eles. Interessou-se pelas geometrias não-euclidianas, mas, ao contrário do que depois se comprovou, de que todas possuíam o mesmo grau de veracidade, preocupou-se sobremaneira em investigar qual a “verdadeira geometria”.
Para Piaget isto pode ter sido o fato que impediu Poincaré de “descobrir” a Teoria da Relatividade. Poincaré produziu mais de 500 artigos técnicos e mais de 30 livros, tendo sido também um dos principais e mais hábeis divulgadores da matemática e da ciência, mediante uma série de obras populares e semitécnicas, entre as quais se destaca A ciência e a hipótese (1906), um texto de característica semipopular, em que apresenta uma “teoria da matemática na qual é sensível a influência de Kant” (Costa, 1971, p. 92).
Bastante influenciado pelo sistema kantiano, Poincaré, porém, não se contentava apenas com o fato de que os postulados matemáticos fossem juízos sintéticos a priori; era preciso, também, que os conceitos aos quais se referissem correspondessem a certas intuições materiais, intuições estas que seriam indispensáveis à construção da ciência. Assim, tal como em Kant, a matemática para Poincaré se apóia em “intuições”, principalmente na de número, razão pela qual é considerado um dos “fundadores” do intuicionismo.
Para Poincaré, o número possui o duplo caráter de conceito puro e de forma intuitiva. É conceito puro enquanto esquema do conceito de grandeza, isto é, “a parte sem a qual não se pode passar da grandeza pura à sua imagem no espaço e no tempo”. É forma intuitiva porque representa a sequência aditiva de uma unidade a outra unidade e “realiza a síntese de um mesmo objeto no espaço e no tempo” (Costa, 1971, p. 93). 
Poincaré concluiu que o princípio de recorrência é sintético, porque não se reduz à lógica do princípio da não-contradição, e a priori, porque só poderia ser provado mediante um número infinito de experiências, o que é impossível. Deste modo, Poincaré enxergou no método matemático um elemento intuitivo, e, para ele, “intuição”, como o número, possuía o duplo sentido de “fonte de noções puras ou como instinto inventivo” (Costa, 1971, p. 94).
Como “fonte de noções puras”, a intuição direciona o espírito para a noção de número inteiro e, como instinto inventivo, impulsiona o profundo trabalho do espírito na descoberta científica.
Desta forma, para Poincaré, o número teria um caráter sintético e irredutível, enquanto para Russell, conforme será explicitado posteriormente, o número cardinal seria a “classe das classes”. Isto retrata a oposição existente entre as correntes de pensamento matemático logicismo e intuicionismo, que, juntamente com o formalismo de Hilbert, pretenderam resolver a “crise dos fundamentos” no século 20.
O intuicionismo de Poincaré ganhou força como corrente quando o holandês L. E. J. Brouwer (1881-1966) conseguiu reunir em torno das idéias intuicionistas os oposicionistas do formalismo de Hilbert e do logicismo de Russell. Para os seguidores do intuicionismo, os elementos e axiomas da matemática não são tão arbitrários como possam parecer. Segundo Brouwer (1974, p. 448), “a linguagem e a lógica não são pressuposições para a matemática, a qual tem sua origem na intuição que torna seus conceitos e inferências imediatamente claros para nós...”.
A tese do intuicionismo é que a matemática tem de ser desenvolvida apenas por métodos construtivos finitos sobre a seqüência dos números naturais, dada intuitivamente. Logo, por essa visão, a base última da matemática jaz sobre uma intuição primitiva, aliada, sem dúvida, ao nosso senso temporal de antes e, depois, que nos permite conceber um objeto, depois mais um, depois outro mais, e assim por diante, indefinidamente. Dessa maneira obtêm-se seqüências infindáveis, a mais conhecida das quais é a dos números naturais. A partir dessa base intuitiva (a seqüência dos números naturais), a elaboração de qualquer outro objeto matemático deve ser feita necessariamente por processos construtivos, mediante um número finito de passos ou operações. Na R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006.
A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget tese intuicionista o desenvolvimento genético da matemática é levado a extremos (Eves, 1995, p. 679).
Segundo Machado (1987), o intuicionismo considera a matemática como uma atividade autônoma, uma construção de entidades abstratas a partir da intuição dos matemáticos, e, como tal, prescinde tanto de uma redução à lógica quanto de uma formalização rigorosa em um sistema dedutivo, o que era defendido por Hilbert e seus seguidores.
Na transição do século 19 para o século 20, ocorreram muitos congressos internacionais de matemática (o primeiro foi em Chicago, em 1893). No segundo, realizado na cidade de Paris, em 1900, Hilbert proferiu a conferência principal, na qual apresentou uma lista com 23 problemas, que, segundo ele, seriam os focos das atenções dos matemáticos do século 20. No mesmo congresso, Poincaré apresentou um trabalho em que comparava os papéis da lógica e da intuição na matemática. A partir desse congresso, Hilbert se envolveu, com Poincaré, em uma das maiores controvérsias do século. Hilbert admirava o Mengenlehre de Cantor, ao passo que Poincaré o criticava fortemente. As teorias de Cantor, como os abstratos espaços de Hilbert, pareciam muito afastadas da base intuitivo empírica que Poincaré e alguns de seus contemporâneos preferiam (Boyer, 1974, p. 448).
Os matemáticos da época agruparam-se em torno das três principais correntes de pensamento: o intuicionismo de Poincaré, o formalismo de Hilbert e o logicismo de Russell, esta última ligada ao formalismo (ambas valorizam a lógica), mas não identificada com ele.
Todavia, como o sucesso ou o fracasso do programa formalista estavavinculado à resolução do problema de consistência, o sonho dos seguidores do formalismo teve curta existência, pois, em 1931, o então jovem matemático Kurt Gödel (1906-1978), discípulo de Hilbert, provou de maneira inconteste, por seguidores das três principais correntes, que não é possível provar a consistência de um sistema dedutivo formalizado capaz de abranger toda a matemática clássica, com todos os seus princípios lógicos, conforme era idealizado por
Hilbert e seus seguidores. Desta forma, o debate acerca dos fundamentos da matemática se centralizou em torno do logicismo e do intuicionismo.
São estes, portanto, o cenário e o instrumental lógico de que dispunha Piaget quando realizou sua investigação sobre a construção do número.
As principais concepções de número
Como dissemos, no livro A gênese do número na criança, Piaget e Szeminska queriam confirmar a hipótese, não explicitamente exposta por eles, de que a noção de número seria a síntese operatória da seriação e da classificação. Reafirmamos que esta hipótese estaria implícita, uma vez que, no prefácio, escrito em 1941, da edição francesa da referida obra, o pesquisador afirma que “foi unicamente o problema da construção do número em relação com as operações lógicas” que despertou o seu interesse (Piaget; Szeminska, 1981, p. 12).
Ainda no prefácio em questão, Piaget esclarece a hipótese que direcionou a pesquisa realizada:
A hipótese da qual partimos é, obviamente, que esta construção é correlativa do desenvolvimento da própria lógica e que ao nível pré-lógico corresponde um período pré-numérico (Piaget; Szeminska, 1981, p. 12).
Os resultados a que chegaram Piaget e Szeminska (1981, p. 12) confirmaram que a hipótese por eles estabelecida, de que [...] o número se organiza, por etapa, em solidariedade estreita com a elaboração gradual dos sistemas de inclusões (hierarquia das classes lógicas), com as relações assimétricas (seriações qualitativas) e com a sucessão dos números, constituindo- se, assim, em síntese operatória da classificação e seriação.
Todavia, uma análise mais acurada da investigação desenvolvida por Piaget e Szeminska nos permite inferir, uma vez que as provas estabelecidas parecem conduzir para isso, que a hipótese de que o número se constituiria a síntese da R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006. Clélia Maria Ignatius Nogueira classificação e da seriação estava presente durante todo o desenvolvimento da pesquisa realizada. O que teria motivado Piaget a formular tal hipótese?
Para responder a esta pergunta, entra em cena o forte apelo epistemológico das soluções insatisfatórias para a questão “o que é número? ”, particularmente o longo e antigo debate, sem vencedor, entre logicistas e intuicionistas. A este debate acrescentem-se as convicções de Piaget de que o conhecimento não está nem no sujeito (apriorismo, implícito no logicismo) e nem no objeto (empirismo, pano de fundo do intuicionismo), mas na interação entre ambos, uma interação particular que acontece internamente ao sujeito. Pode-se inferir, assim, que Piaget procurava uma solução intermediária entre Russell e Poincaré.
Dito de outra forma, do mesmo modo como a concepção de inteligência de Piaget pode ser considerada como um tertium entre o lamarckismo e o neodarwinismo, que a sua posição acerca da construção do conhecimento fica a meio-caminho entre o empirismo e o apriorismo, ele terminaria por considerar o número também como uma espécie de tertium entre Russell e Poincaré, ao “conceber como recíprocas e não mais unilaterais a relação entre a lógica e a aritmética” (Piaget; Szeminska, 1981, p. 13).
Para confirmar nossa hipótese, a de que Piaget estaria procurando finalizar o debate entre logicistas e intuicionista acerca da construção do número, nos apoiamos em considerações, discussões e argumentações do próprio Piaget sobre esses modelos teóricos, extraídas dos prefácios da primeira e da terceira edição francesa do livro A gênese do número na criança, e de estudos posteriores do autor, particularmente na obra Introducción a la epistemologia genética. 1. El pensamento matemático.
O número no logicismo de Russell e Whitehead
Partidários da idéia de Frege, Russell e Whitehead tinham o ambicioso plano de “reduzir” a matemática à lógica. Assim, apresentaram a aritmética como um ramo da lógica pura. Para isso, o “plano” era “traduzir” os axiomas de definição do número natural estabelecidos pelo matemático italiano Giuseppe Peano (1858-1932) em termos puramente lógicos, e definiram número em termos de classes e de relações, com o aspecto cardinal sendo estabelecido pelas classes, e o ordinal, pelas relações assimétricas, porém de forma independente.
Um outro fator que decorre dessa concepção é que os números se constituem isoladamente, a partir de classes independentes entre si, e, portanto, não existiria uma iteração que culminaria com a sucessão dos números inteiros. Para verificar se esta explicação era satisfatória, para Piaget (1975, p. 91) o problema se resumiria em “determinar se os processos formadores do número são ou não os mesmos a partir dos quais derivam as classes e as relações”.
A teoria de Russell e Whitehead para o número começa com a descrição do que é uma “classe de classes”. Ou seja, duas classes consideradas em sua extensão dão origem a uma mesma classe de classes se é possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre seus elementos. O número cardinal é definido como estas “classes de classes”, e, assim, o número 1 é a classe de todas as classes unitárias, o número 2 é a classe de todos os pares possíveis, o número 3 é a classe de todas as ternas, etc. O número ordinal é igualmente constituído por meio de classes, só que de relações assimétricas “semelhantes”, e esta “semelhança” é obtida também mediante uma correspondência biunívoca.
Apesar de estas “definições” terem sido aprovadas por muitos matemáticos e quase todos os lógicos, houve muitas objeções que podem ser agrupadas em duas vertentes: as que defendem a existência de um círculo vicioso e as que preconizam a existência de diferenças funcionais entre a classe lógica e o número.
O intuicionismo de Poincaré e o número
O maior crítico ao reducionismo lógico foi o francês Henri Poincaré. Ele denunciava a existência de um círculo vicioso, porque o número já estaria presente ao se estabelecer a correspondência biunívoca entre os objetos singulares. Ele argumentava que na “expressão ‘um’ homem, etc., o objeto individual ou a classe singular já implica a presença do número 1" (Piaget, 1975, p. 92).
A contra-argumentação expunha que existe uma distinção entre o “um” lógico e R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006.
A definição de número: uma hipótese sobre a hipótese de Piaget o número 1, ou seja, o “um” lógico implicaria a “identidade” e não o número, da mesma forma como os termos lógicos “alguns”, “todos” ou “nenhum” se referem apenas à pertinência ou não dos indivíduos a uma determinada classe.
Segundo Piaget (1975, p. 92), tanto Russell quanto seus adversários desencadearam um embate sem saída, ao argumentarem com identidades e classes isoladas, pois o atomismo lógico possibilitava a justificativa em ambas as direções. A “[...] identidade pertence tanto à matemática como à lógica intensiva”, sendo que a especificidade lógica ou matemática só é passível de ser determinada em função da “estrutura de conjunto da totalidade operatória onde se inserem os elementos”.
No que se refere à diferença funcional entre classe e número, fica claro que a função da classe, como é constituída por indivíduos que gozam de uma determinada propriedade, é a de identificar, ao passo que a do número (que necessita abstrair as qualidades) é a de diversificar; daí se conclui que são funções fundamentalmente heterogêneas. Entretanto, novamente, esse argumento só seria válido se aplicado às totalidades operatórias e não aos elementos isolados.
Piaget analisou a solução logicista estudando a natureza da correspondênciabiunívoca estabelecida para se criar as classes equivalentes, para verificar se ela é puramente lógica (qualitativa) ou se já introduz explicitamente o número.
Para Piaget, na correspondência biunívoca lógica ou qualitativa os elementos se correspondem univocamente em função de suas qualidades, como, por exemplo, quando se analisam as semelhanças entre dois objetos (ou conjuntos de objetos) e, para isto, se estabelece a correspondência entre uma parte de um com a parte semelhante no outro. Por considerarem apenas as qualidades, as correspondências qualitativas independem da quantificação.
A correspondência biunívoca qualquer ou matemática não é estabelecida em função das semelhanças qualitativas, mas associando um elemento qualquer de um dos conjuntos a um elemento também qualquer do outro, com a única condição de que cada elemento seja colocado em correspondência uma única vez, o que implica uma quantificação, pressupondo a unidade.
O problema da concepção de Russell residia no fato de ele utilizar a correspondência biunívoca matemática ao estabelecer sua “classe de classes”. Deste modo, não é puramente a classe que gera o número cardinal, mas uma classe já quantificada pela correspondência qualquer.
Assim, quando Russell constrói o número 12 e faz corresponder um a um os apóstolos de Jesus Cristo com os marechais de Napoleão, o apóstolo Pedro não é associado ao marechal Ney em virtude de suas qualidades comuns (como quando um biólogo põe em correspondência os pelos dos mamíferos com as penas dos pássaros), mas simplesmente enquanto um constitui uma unidade qualquer do primeiro conjunto e o outro uma unidade qualquer do segundo (Piaget, 1975, p. 94).
Quanto ao número ordinal concebido como classe de relações assimétricas semelhantes, a primeira questão que se apresenta é saber qual é a “semelhança” que intervém na constituição de duas (ou mais) classes de relações assimétricas semelhantes, e, analogamente ao número cardinal, novamente é o tipo de correspondência biunívoca que é o determinante.
Russell, ao não estabelecer na sua dupla redução estas distinções genéticas que conduzem a uma distinção correlativa na lógica entre as operações como tais, e não somente entre as classes e as relações isoladas, se encerra, assim, em dois círculos viciosos (Piaget, 1975, p. 95).
Poincaré e a intuição racional do número
Poincaré não concordava com a tese de que o número poderia ser reduzido à lógica das classes e das relações. Ele entendia o número como o produto de uma intuição racional (sintética a priori) e irredutível às operações lógicas. Criticava os matemáticos que se deixavam guiar simplesmente pela intuição, pois “na primeira investida fazem conquistas rápidas, mas algumas vezes precárias, como se fossem ousados cavaleiros na linha de frente” (Poincaré, 1995, p. 13). De acordo com Poincaré, se no século 19 os matemáticos dividiam-se em duas R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 135-144, maio/ago. 2006.
Clélia Maria Ignatius Nogueira
correntes, uma que se apoiava na lógica e outra na intuição, uma releitura dos clássicos os enquadraria como intuicionistas.
E mais, como a intuição não oferece o rigor e nem mesmo a certeza, foi necessária uma evolução na ciência matemática, evolução esta que a encaminhou para a lógica.
Todavia, “para fazer aritmética, assim como para fazer geometria, é preciso algo mais que a lógica pura”, sendo a intuição este “algo mais”, ressaltando contudo que, sob esta denominação, diversas idéias estão subentendidas (Poincaré, 1995, p. 18).
A intuição se apresenta, pois, sob diversas formas, como um apelo aos sentidos e à imaginação; como generalização, por indução de procedimentos das ciências experimentais (representar um polígono de n lados, por exemplo) e, a que interessa particularmente a este trabalho, a intuição do número puro (princípio da indução) e da qual se originaria, para Poincaré, o verdadeiro raciocínio matemático, a única intuição que é passível de certeza.
A concepção de que o número (e, consequentemente, a matemática) é produto de uma intuição racional foi (e ainda é) sustentada por inúmeros matemáticos, existindo, porém, divergências quanto ao sentido de intuição, que varia desde “a intuição da essência estática do número até a intuição operatória” (Piaget, 1975, p. 95). Ao considerar que o número inteiro se funda sobre uma intuição sintética a priori que se traduz no raciocínio por indução ou recorrência, Poincaré, por mais convencionalista que tenha sido em muitas questões, como, por exemplo, sobre os vários tipos de números ou sobre os relacionamentos entre os diversos tipos de espaço, admite que tal intuição é operatória, ou seja, uma intuição isenta de contradição e que é “construída”.
A discordância de Piaget com os intuicionistas se fundamentava no fato de que a intuição do número puro não é a de um número específico e sim de um número qualquer, e seria, segundo o próprio
Poincaré (1943, p. 37), a “faculdade de conceber que uma unidade pode agregar-se a um conjunto de unidades”.
Assim, ao procederem de uma intuição que contém, de antemão, a noção de unidade, as operações numéricas se colocariam em oposição às operações lógicas. Entretanto, os resultados de inúmeras pesquisas realizadas por Piaget e outros sobre a gênese dos conceitos matemáticos mostram que:
Todos os conceitos de caráter extensivo e métrico como a medida, a proporção em geometria e o próprio número somente se constituem em sua forma operatória quando podem se apoiar em agrupamentos lógicos de caráter intensivo (Piaget, 1975, p. 96).
Isto não significa, porém, que exista um estádio caracterizado por estruturas lógicas, que poderia ser considerado pré-numérico, seguido de um estádio numérico; ao contrário, existe uma interdependência entre o lógico e o numérico e que é originária do conceito de conservação dos conjuntos como totalidades, sejam tais totalidades lógicas ou numéricas. E mais, esta conservação não se apresenta, absolutamente, como uma “intuição”, mas é construída, operatoriamente, num longo e complexo processo.
A faculdade de conceber que uma unidade pode agregar-se a um “conjunto de unidades”, que é assinalado por Poincaré como sendo o específico da intuição do número puro, supõe, então, a “faculdade” de conceber conjuntos invariantes encaixados uns nos outros e a “faculdade” de ordenar desde o início os elementos agregados (Piaget, 1975, p. 97).
No entanto, se a sucessão dos números não pode se apoiar em uma primeira intuição contendo de antemão a idéia de unidade, após sua construção, esta mesma sucessão produz uma intuição racional, em tudo semelhante à descrita por Poincaré, à diferença, porém, de ser final e não prévia, [...] no sentido de que o número é apreendido diretamente pelo espírito sem ser intermediado por raciocínios discursivos ou lógicos. [...] concentração instantânea de inumeráveis raciocínios anteriores (e esquecidos), esta intuição final é apenas a expressão da compreensão inteligente e não nos informa nada quanto à sua construção
(Piaget, 1975, p. 98).
 Piaget considerou que a intuição operatória do número puro, irredutível à lógica concebida por Poincaré, carecia de especificidade, enquanto que a redução de Russell não seria operatória o suficiente, e sua hipótese, então, é a de que haveria a possibilidade de um tertium entre as duas posições.
Sabe-se bem, com efeito, quantas discussões o problema das relações entre o número e a lógica ocasionou, com os logísticos procurando, com Russell, conduzir o número cardinal à noção de “classe de classes” e o número ordinal, dissociado do primeiro, à de classe de relações, enquanto seus adversários mantinham, como H. Poincaré e L. Brunschvicg, o caráter sintético e irredutível do número inteiro. É verdade que nossa hipótese, num certo sentido, permite escapar a essa alternativa, porque se o número é classe e relação assimétrica ao mesmo tempo, ele não deriva de tal ou qual das operações lógicas particulares, mas somente da sua reunião, o que concilia a continuidade com a irredutibilidade

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