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1 INFORMATIVO DO GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL − N 25 − ANO 7 − MAI/JUN 05 ORIENTE MÉDIO O ORIENTE MÉDIO RUMO À DEMOCRACIA?, 1 ENSAIO DE VOLTA À ESTACA ZERO, 4 AMÉRICA LATINA ESPERANÇAS E FRUSTRAÇÕES LATINO-AMERICANAS, 6 ENSAIO ARGENTINA PÓS-MORATÓRIA, 8 COMÉRCIO INTERNACIONAL TUDO COMO D’ANTES NO QUARTEL D’ABRANTES, 10 ENSAIO UMA NOVA GEOMETRIA DE INTERESSES NA OMC, 12 ÁSIA CORÉIA DO NORTE E IRÃ SOB A ÓTICA DA NÃO PROLIFERAÇÃO, 14 D A C O N J U N T U R A I N T E R N A C I O N A L PANORAMA O ORIENTE MÉDIO RUMO À DEMOCRACIA? GACINT Oriente Médio entrou num período turbulen- to. Seus passos rumo à democratização se com- provarão sólidos e duradouros? Ou será a “de- mocracia” apenas a plataforma de decolagem de novos ditadores ou regimes fundamentalis- tas? A questão não é idêntica, mas interage com outra crucial: o Oriente Médio entrará numa nova corrida armamentista incentivada pela nuclearização do Irã – com conseqüências crí- ticas para a segurança mundial, que já vem sen- do ameaçada pelo terrorismo islamista? TRÍPLICE IMPASSE A atual conjuntura médio-oriental é o resul- tado de três “derrotas recíprocas” nos últimos quatro anos: o fracasso palestino em interna- cionalizar a intifada e o israelense em supri- mi-la; o fracasso de Osama bin Laden em pro- vocar um jihad global contra os EUA e o esta- dunidense em vencer a “guerra contra o ter- ror”; e o fracasso do Iraque em pacificar a re- sistência contra a ocupação estadunidense, e desta em expelir os EUA ou bloquear seu pro- jeto democrático. No fim de 2004 estivemos num tríplice impasse, quando uma série de eleições e movimentos de emancipação popu- lar começaram a sacudir a areia – no Afeganis- tão, na Palestina, no Iraque, com notáveis efei- tos no Líbano, Arábia Saudita, Egito e até Pa- quistão. Embora todos tenham raízes locais – resultado da fragmentação política do arco islâmico – eles são também interligados. Em Israel/Palestina a intifada já estava nas últimas quando a morte de Arafat abriu um espaço político inesperado. Mahmud Abbas, crítico corajoso, mas pouco carismático, da vio- lência anti-israelense, era o candidato por inér- cia, mas sua eleição foi o prelúdio do cessar- fogo mais prometedor dos últimos anos. Im- possível prever se a calma se manterá. Depen- derá do líder palestino impor um controle so- bre as facções mais extremistas, sem pro- vocar uma guerra ci- vil intrapalestina ou novos ataques contra Israel, pois estes pro- porcionariam à direi- ta israelense o pretex- to ideal para parar a retirada da Faixa de Gaza. Para Sharon, a retirada serve só para consolidar a posse is- raelense da Cisjor- dânia. Porém, se a re- tirada se realizar, que- brará um tabu israe- lense e abrirá uma caixa de Pandora que o PM israelense não conseguirá mais con- PETER DEMANT* ORIENTE MÉDIO 2 trolar. Uma vez retomadas as negociações, ambos os lados reenfrentarão os dilemas res- ponsáveis por seu fracasso em 2000. É impro- vável que Sharon ofereça um Estado viável aos palestinos. Porém, a maioria dos israelenses é mais progressista e com ambas as populações ansiosas pela paz, um ideal mutuamente acei- tável poderia estar ao alcance – com ou sem Sharon. DOMINÓ DEMOCRÁTICO No Iraque, independentemente dos motivos da invasão norte-americana, 80% da popula- ção – os xiitas e curdos oprimidos pelo regime de Saddam Hussein – ficou aliviada com sua queda e acabou abraçando o projeto de auto- determinação proposto pelo ocupador (sem por isso se tornarem pró-americanos!). Os 20% restantes, os sunitas ex-dominadores, reagiram com violência, conseguindo, por enquanto, impedir a reconstrução da nação “auxiliados” por gravíssimos erros estadunidenses. O caos e as atrocidades seguintes – amplamente publicadas – pareceram tornar o ‘modelo iraquiano’ motivo de gozação, solapando a es- perança do “dominó democrático” dos neocons norte-americanos. Afinal, está acontecendo uma virada neste jogo? Dois fatores recentes apontam nesta di- reção. Primeiro, apesar das circunstâncias difi- cílimas e do maciço boicote sunita, as eleições tiveram grande adesão. A corajosa participação popular deslegitimou a “resistência”, que mais e mais usa de terror antixiita para fomentar uma guerra civil, e criou a base para uma solução política não-violenta dos problemas do Iraque. Negando aos xiitas uma vitória eleitoral total, os iraquianos realmente obrigam seus deputa- dos a buscar fórmulas constitucionais consen- suais para permitir a coexistência entre as co- munidades. Essas devem incluir (esperemos que com um significativo input sunita): uma ênfase substancial, mas não exclusiva, no islã como fonte da legislação, mantendo o essenci- al dos direitos das mulheres; uma autonomia federal ampla, mas não completa para os curdos; e a retirada gradual das tropas estran- geiras – de mãos dadas com a capacitação das forças de segurança iraquianas, treinadas pelos EUA. De fato, isto é o segundo fator crucial. A resistência sofreu uma série de reveses. Uma ofensiva do tipo “Tet” à vietnamita não mais aponta no horizonte. Não é menos importante que as próprias forças iraquianas tenham um papel cada vez mais visível, além dos sinais de que a população civil não suporta mais as táti- cas sangrentas dos insurgentes. Neste contexto eclodiu a crise libanesa. Ela não é conseqüência direta da questão iraquiana, mas não pode ser desvinculada dela. Por longo período, o Líbano foi a sociedade árabe mais urbanizada e secularizada. Ao mesmo tempo, permaneceu muito fragmentada por divisões sectárias e étnicas, a ponto de efeitos do con- flito israelo-palestino (a presen- ça de uma ampla minoria de re- fugiados palestinos, e as inva- sões israelenses que eles atraí- ram) causarem a implosão de seu frágil sistema político. A guerra civil de 1975 a 1990 ter- minou com a dupla saída, tanto de Israel quanto da OLP – mas ao preço de um protetorado sírio. De sua parte, a Síria fora durante décadas o epicentro do nacionalismo pan-árabe e nun- ca aceitou a “cirurgia imperia- lista” que criou um Líbano in- dependente e ocidentalizado a partir de pedaços cortados do “território árabe nacional”. A intervenção síria no Líba- no, vizinho mais desenvolvido, acabou trazendo a nêmese. Após a guerra civil, que terminara com a exaustão mútua dos ad- versários, os libaneses se entre- garam com energia à reconstru- ção que trouxe a modernização e tornou o pesado controle sírio cada vez menos aceitável. Assim o assassinato de Rafiq Hariri, o político que encarnou as aspirações “globalizantes” do Lí- bano, provocou uma maciça reação anti-síria. A pressão começa a dar frutos. Contudo, duas perguntas continuam assombrando a cena da retirada Síria. Em primeiro lugar, conseguirá o Líbano, que ainda é uma sociedade muito fra- turada, a paz e a estabilidade internas? Muito dependerá do Hezbollah. O “Partido de Deus” xiita possui uma substancial milícia, fortemente anti-israelense. Desligar-se de seus protetores sírio e iraniano será difícil; desarmar-se, quase impossível. Porém, uma democracia libanesa precisará disto para funcionar. Em segundo lugar, quanto tempo a ditadura de Asad sobre- viverá à retirada? Se todos os vizinhos se de- mocratizarem, seus dias estarão contados. Isto Não é menos importante que as próprias forças iraquianas tenham um papel cada vez mais visível, além dos sinais de que a população civil não suporta mais as táticas sangrentas dos insurgentes. 3 PETER DEMANT é responsável pela área temática Oriente Médio. deixaria o Irã, regime explicitamente antioci- dental, combinando traços teocráticos e demo- cráticos, outrora ‘darling’ regional da esquerda internacional, como único pária – uma Cuba médio-oriental? O papel regional do Irã deve aumentar, tan- to pela sua proximidade com o Iraque quanto porseus esforços em desenvolver armas nu- cleares. O Irã tem muitas razões para desen- volver energia nuclear e ADMs: uma depen- dência demasiada no petróleo; vizinhos nucle- ares; a hostilidade dos EUA, que só um escudo nuclear pode amortizar. Também reune as precondições necessárias. Islamistas naciona- listas radicais derrotaram a oposição reformis- ta e a renda petrolífera torna a liderança imune às pressões. É duvidoso que uma política con- junta americana-européia ainda consiga desviá- lo de seu percurso. Apenas um renascimento das próprias forças progressistas internas con- seguiria isto, mas estas parecem estar desgasta- das. Uma intervenção militar (estadunidense ou israelense) parece complicada. Um Irã nu- clear engatilhará uma corrida armamentista regional? INTERESSES CONTRADITÓRIOS A neutralização dessa ameaça se condiciona ao êxito do processo de democratização regional? Medidas experimentais – talvez blefes para apa- ziguar os EUA, talvez arautos de mudanças mais significativas – observam-se no Egito, onde Mubarak prometeu eleições presidenci- ais multipartidárias; Arábia Saudita, país pivô rasgado por tensões culturais-identitárias, rea- lizou eleições municipais limitadas aos homens. Porém, a imagem não é tão clara. O atual e ex- plícito comprometimento norte-americano com a democracia – vista como antídoto ao ex- tremismo islamista – contradiz seu apoio ante- rior a ditadores anticomunistas, durante e de- pois da Guerra Fria, despertando suspeitas. Não é completamente consistente, nem destituído de motivos menos nobres. Por exemplo, no caso do Paquistão, onde condições de segurança superam os “credos” democráticos – graças a sua postura contra al-Qaeda – o ditador Mu- sharraf continua se beneficiando do apoio es- tadunidense. Nesse país empobrecido, cuja identidade islâmica nunca foi satisfatoriamen- te resolvida, a emancipação não pode ter outra cor senão islamista. Um eixo real Islamabad- Teerã-Damasco será bem mais perigoso do que o “Eixo do Mal” de Bush... Apesar de alguns sinais positivos, não te- mos garantias que a democratização será ple- namente realizada ou se tornará a panacéia para os males do Oriente Médio. Diferentemente das sociedades da Europa Oriental e da Améri- ca Latina, a democratização encara, nas socie- dades médio-orientais, significativos desafios internos. Contra-forças antidemocráticas estão presentes em certos movimentos populares. Islamistas constituem a maior oposição em pa- íses da Tunísia e do Egito até a Arábia Saudita e o Paquistão. Isto não quer dizer que o islã é em si incompatível com a democracia (Turquia, Bósnia e Indonésia desmentem tal argumen- to), nem que islamistas não podem funcionar num contexto democrático. Em primeiro lugar, em países sem consoli- dação institucional da democracia e sem inte- gração de valores democráticos na cultura po- lítica, o islamismo radical constitui uma tenta- ção totalitária que pode estragar a transição de- mocrática. Em segundo, por mais encorajado- res que pareçam as ondas democráticas, elas acontecem por razões erradas. Os palestinos vo- taram para se livrar dos israelenses, os iraquia- nos dos americanos e os libaneses dos sírios. Em todos esses casos a democracia é instru- mentalizada por fins nacionalistas. A constru- ção certa da democracia pede motivos mais puros. Em terceiro lugar, não há certeza de que a “paz democrática” (democracias não travam guerras entre si) é valida no Oriente Médio. A paz com Israel é mais impopular no Egi- to e Líbano do que entre palestinos. Finalmen- te, tirar o poder dos potentados árabes para outorgá-lo aos povos gerará regimes mais legí- timos, mas não necessariamente mais pró-oci- dentais. Na hipótese de que as regras do jogo parlamentar, por fim, acabarão mitigando os pi- ores rancores (e há muita folga neste “por fim”!), uma multidão de interesses e valores opostos continuará existindo. Aceitar democra- tas antiocidentais constituirá a prova da since- ridade dos EUA. Apesar das precauções, o movimento rumo ao “poder popular” seria uma esperança para o Oriente Médio. Só democracias permitem que populações aprendam com seus erros. Devemos torcer para que o mecanismo da auto-correção, embutido na democracia, modifique, no longo prazo, o modo dos muçulmanos médio-orien- tais se relacionarem com sua religião, suas mu- lheres e minorias não-muçulmanas ou não-ára- bes e – finalmente – com o próprio ocidente. 4 O DE VOLTA À ESTACA ZERO ENSA IO primeiro ministro de Israel Ariel Sharon e o líder palestino Mahmoud Abbas (Abu Mazen) chegaram a um acordo para transferir à Auto- ridade Palestina o controle de cinco das cida- des palestinas ocupadas por Israel. Os otimistas verão o evento como o início de uma nova fase de aproximação entre as par- tes, de colheita dos resultados das negociações, iniciadas após o desaparecimento de Arafat do cenário. Já vimos este filme: negociações, tré- gua, retirada de tropas, autonomia limitada. Is- rael retirou suas forças das principais cidades palestinas, como resultado dos acordos de Oslo em 1993, somente para reocupá-las, há três anos, em resposta à onda de atentados suicidas que caracterizaram a renovada Intifada. Ainda hoje discute-se até que ponto a vio- lência esteve sob controle da Autoridade Pa- lestina. A retomada da violência teve variadas justificativas: 1) com o objetivo político de ob- ter suporte popular para a reabertura dos acor- dos de 1993, permitindo, assim, a inclusão do tema dos refugiados em uma futura decisão; 2) dar legitimidade à Autoridade Palestina (AP), desgastada por acusações de corrupção, favori- tismo e condições econômicas cada vez mais precárias da população; 3) melhorar a posição da AP na disputa interna com os grupos islâ- micos como o Hamas, embora aí houvesse uma diferença de opinião interna. As facções pales- tinas favoráveis à violência assumiram que po- deria repetir-se a experiência do sul do Líbano, com uma retirada israelense que gerasse uma posição de força em futuras negociações sobre Jerusalém e os refugiados. Os mais moderados, engajados nas nego- ciações (e beneficiados pela cooperação com os israelenses) reconheciam a superioridade mi- litar israelense e o risco de uma brutal retalia- ção por parte das forças armadas de Israel. Uma coisa é certa: os palestinos nunca po- deriam imaginar que suas ações levariam à con- solidação de uma maioria israelense solidamen- SAMUEL FELDBERG* te postada por trás de um governo de união nacional, com a esquerda israelense pratica- mente neutralizada. Este governo logrou der- rotar a Intifada armada com ações retaliatórias de grande amplitude, construiu a barreira de separação física, incorporando ao território is- raelenses significativas áreas fora da Linha Ver- de, e gerou o plano de desengajamento unila- teral de Gaza que, dizem seus críticos, permi- tirá a Sharon concentrar-se na ocupação dos territórios da Margem Ocidental. Após mais de quatro anos de uma espiral de violência que parecia não ter fim, a volta às origens de 1993 representa sem dúvida uma derrota para os palestinos. Não serão repetidas as ofertas de Camp David, nem estão mais em vigor as propostas de Clinton, que assumiam a existência “de facto” de um Estado palestino. As propostas do ‘Mapa da Estrada” deixam em aberto a questão das fronteiras, mantém as re- soluções 242 e 338 da ONU como base para futuras negociações, e condicionam a retoma- da do diálogo ao controle, por parte da Autori- dade Palestina, das ações contra Israel. Talvez seja simbólico o fato da atual retira- da ocorrer inicialmente na área de Tulkarem, de onde saiu o terrorista suicida que cometeu o último atentado em Tel Aviv, que matou cin- co israelenses e quase interrompeu a trégua recém-estabelecida. Demonstra, talvez, o envolvimento do atual governo israelense, e sua capacidade de conter-se e não reagirà pro- vocação que tem por objetivo óbvio descarrilar o processo de desengajamento e manutenção das negociações com o governo de Abu Mazen. As pesquisas de opinião pública, em Israel, mostram que 60% a 70% da população apóia a proposta de retirada israelense da Faixa de Gaza, aliada à idéia de um Estado palestino in- dependente coexistindo lado a lado com Isra- el. Entretanto, ao mesmo tempo, o governo israelense de união nacional promove, parale- lamente à retirada, a extensão de assentamen- 5 SAMUEL FELDBERG é membro titular do Gacint. tos na Margem Ocidental que muito prova- velmente definirão a fronteira entre os dois Estados. Fica no ar a pergunta: que efeito terá a retirada de Gaza se não houver continuidade no processo que permita o surgimento de um Estado palestino viável. O conflito entre israelenses e palestinos representa, no momento, somente uma fração das questões regionais, provavelmente não a mais importante. O Iraque continua ocupado por tropas norte-americanas, com amplas ati- vidades de insurgentes impedindo a normali- zação da vida no país; a Síria, somente dispõe- se a movimentar suas tropas no Líbano frente à intensa mobilização internacional. No pró- prio Líbano surge o espectro da renovada vio- lência, tão presente na memória da recém en- cerrada guerra civil, com o Hizbollah apostan- do no aumento de sua capacidade de influen- ciar a sociedade libanesa após a eventual retira- da Síria. O Irã tornou-se o centro das atenções dos EUA como mais novo candidato a membro do diram por uma interrupção da violência con- tra Israel, permitindo substituir o conflito por uma retomada das negociações. A renúncia à violência é tão importante no contexto da dis- puta israelo-palestina (permitindo ao sucessor de Arafat contornar a exigência do “Mapa da Estrada” de desarmar as estruturas dos grupos islâmicos radicais – o que poderia gerar uma sangrenta disputa) quanto para a consolidação do novo governo eleito da Autoridade Palesti- na, encerrando o período de anarquia provo- cado pela Intifada armada e a fuga de seu con- trole dos grupos armados engajados, não só em ataques contra os israelenses, mas também no estabelecimento de “feudos” principalmente nos territórios da Margem Ocidental. Os acordos talvez sejam o prenúncio de uma incorporação do Hamas e da Jihad Islâ- mica ao processo político palestino (“a la Hizbollah”) ficando pendente, assim como no Líbano, a desmilitarização das duas organiza- ções. Assim, o Hamas poderá colher nas urnas o resultado de seu engajamento nos quatro anos de Intifada, conseguindo eventualmente até uma maioria que lhe permita vetar decisões da cúpula palestina em futuras etapas das negoci- ações com Israel. Por outro lado, se a liderança do Hamas (o que dela restou) estiver conside- rando um possível fracasso das negociações e uma retomada da violência, um período de tranqüilidade certamente permitirá a recons- trução de suas forças após a efetiva repressão israelense dos últimos anos. Assim que diminuir a violência no Iraque e a relação Líbano/Síria estiver estabilizada, a questão palestina voltará a estar no centro das atenções dos membros do Quarteto que cria- ram o Mapa da Estrada. Terão então que deci- dir se esta será vista como uma temática ligada ao terrorismo (com todas as implicações de- correntes do 11 de Setembro) ou como uma questão de auto-determinação, eleições livres e de uma população lutando contra a discrimi- nação e o apartheid. Enquanto isto, o governo israelense, ainda que com algumas dissidências em relação a seus planos, avança com objetivos concretos e bem definidos, com a conivência – quando não com o declarado apoio – dos EUA, aproveitando-se de um momento em que os palestinos não são capazes de decidir quem é o responsável por seu futuro. clube nuclear, talvez imune às ameaças dos EUA de ações unilaterais que venham a des- truir sua capacidade de proces- samento de urânio (bem dis- persas e protegidas, ao contrá- rio do reator iraquiano destruí- do pelos israelenses). Alguns analistas acreditam que so- mente uma intervenção norte- americana, forçando a reversão das ações israelenses, poderia garantir a continuidade do pro- cesso de paz e a estabilidade do governo palestino, que não su- portaria a criação de novas re- alidades por parte dos israelen- ses nos territórios. Se a retira- da da Faixa de Gaza não se se- guir a uma ampla retirada da Margem Ocidental, a conclu- são da população palestina, provavelmente, será de que Abu Mazen estava errado e que a dimi- nuição da violência e a aposta nas negociações com os israelenses tampouco são capazes de produzir os resultados que os atentados não ob- tiveram. Do lado palestino houve importantes mu- danças: além da eleição de Abu Mazen (em um processo surpreendentemente democrático), em 17/03/2005 a Fatah, Hamas, a Jihad Islâmica, e várias organizações palestinas menores, deci- O conflito entre israelenses e palestinos representa, no momento, somente uma fração das questões regionais, provavelmente não a mais importante. 6 N ESPERANÇAS E FRUSTRAÇÕES LATINO-AMERICANAS a história dos países latino-americanos depara- mos com ciclos de esperanças e de grandes frus- trações. Como estamos hoje? Se olharmos a Bolívia ou o Haiti – os paí- ses mais pobres segundo estatísticas da ONU – estamos em fase de frustrações, ainda que essa tendência não deva ser considerada absoluta. Se olharmos o Uruguai – com a posse recente do presidente Tabaré Vásquez – vislumbramos esperanças, mas não certezas. BOLÍVIA Na Bolívia, após a crise de 2003, assiste-se, nes- tes primeiros meses de 2005, a repetição de si- tuações que poderiam sugerir um clima de ingovernabilidade. A origem imediata, dessa nova fase crítica, está no referendo de julho de 2004. A origem remota está na história de ex- trema pobreza, na marginalização das popula- ções indígenas e no sentimento de inexistência de direitos e do respeito. Entre os pontos, apro- vados no referendo, está o que estabelece que sejam “cobrados impostos e direitos de explo- ração às empresas petroleiras até 50% do valor da produção de gás e petróleo, em favor do país”. Torna-se, assim, evidente que o resulta- do do referendo está sujeito a interpretações. O governo do presidente Carlos Mesa pro- curou usar o espaço da indefinição para tentar uma solução que conciliasse o nível de reivin- dicações de tendências políticas – como o Mo- vimento ao Socialismo (MAS) dirigido por Evo Morales, a Central de Trabalhadores Campo- neses e uma parte da Central Operária Bolivi- ana (COB) – com a possibilidade de manu- tenção de investimentos estrangeiros, que pa- recem necessários para a continuidade da ex- ploração econômica da maior riqueza bolivia- na atual: o gás. Para isso, o governo propõe a manutenção da taxa de 18% na cobrança de royalties, ao que se acrescentaria um imposto complementar sobre hidrocarbonetos de 32%, com alíquota sujeita a descontos e compensa- TULLO VIGEVANI* AMÉRICA LATINA ções, viabilizando, desse modo, um espaço de negociação com as empresas instaladas ou que pretendem investir no país. Contrariamente a isso, na interpretação de Evo Morales, se hou- vesse a cobrança de direitos de exploração no valor de 50% se resolveriam, definitivamente, as questões do déficit fiscal e haveria recursos adicionais para investimentos e para políticas sociais de parte do Estado. Novamente, encontramo-nos frente ao dilema, discutido A crescente onda de protestos na Bolívia, tendo seu centro a cidade de El Alto, fez ressurgir o quadro de outubro de 2003, que levou à renúncia de Lozada. por Max Weber, da separação entre justiça e realidade. Observe-se que o Brasil – que tem interesses econômi- cos e políticos na região, que pauta sua política exterior pro- curando equacionar a compre- ensão de situações específicas(medidas de cooperação eco- nômica e realismo) – frente ao debate boliviano é levado a afirmar, na declaração da mi- nistra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, que se a tri- butação for elevada a 50% inviabilizará novos investi- mentos e bloqueará os proje- tos de cooperação, já em anda- mento, entre os dois países. A crescente onda de pro- testos, nas duas primeiras se- manas de março, para depois temporariamen- te decrescer, tendo seu centro a cidade de El Alto, fez ressurgir o quadro de outubro de 2003, que levou à renúncia do presidente Sánchez de Lozada. Carlos Mesa buscou algumas solu- ções, evidenciando a questão da governabili- dade, e colocando os movimentos sindicais, políticos e étnicos frente à necessidade de co- laborarem para achar alguma saída. Seu pedi- do de renúncia, em 8 de março parece ter tido esse objetivo. Rejeitado logo depois pelo con- gresso, manteve o mandato presidencial até 7 TULLO VIGEVANI é responsável pela área temática América Latina. 2007. As soluções apresentadas pelo governo apóiam-se em alguns pontos: 1) manter o equi- líbrio entre o máximo de vantagens nacionais com a preservação das exportações e dos in- vestimentos; 2) buscar um acordo nacional que garanta produção, emprego e inclusão social; 3) eleição de prefeitos, autonomia dos depar- tamentos e assembléia constituinte; 4) neces- sidade de por fim aos bloqueios e à desordem. O caso boliviano demonstra o contexto no qual alternam-se expectativas e frustrações. As ri- quezas naturais da nação – como foi o estanho no início dos anos cinqüenta – são entendidas pelos marginalizados como próprias. A construção da esperança produz a neces- sidade da apropriação para o bem de todos. Como ensinam todas as teorias econômicas oci- dentais (e este é um ponto do debate), o valor da riqueza não está na existência de bens natu- rais em si mesmos, depende do valor de uso e do valor de troca. Isso rebate nos vínculos com o mercado. Daí essa gangorra da história. Em alguns Estados e em algumas culturas, surge e ressurge a idéia da autarquia, ainda que sob diferentes formas, que vão do nacionalis- mo puro ao desinteresse pela produção e a de- fesa de formas alternativas de vida – bucólicas ou auto-sustentáveis. Nesse exato momento, essas perspectivas têm peso e influência naque- les países onde a presença de antigas e fortes culturas – cuja incidência na vida social, polí- tica e econômica é grande – levam à perma- nente busca de saídas diferentes daquelas esti- muladas pela globalização e pela expansão do capital. Por isso, ao mesmo tempo há esperan- ça, às vezes com conteúdos místicos, e frustra- ção. Esta última resultante das dificuldades na formulação de sólidos projetos de desenvolvi- mento. HAITI No Haiti encontramos uma situação onde as frustrações parecem predominar. Como expli- car a evolução do governo Jean-Bertrand Aristide, destituído em fevereiro de 2004, re- sultado de um movimento contra o absolutis- mo dos Duvalier? O atual primeiro ministro Gerard Latortue, segundo intelectuais como Laënnec Hurbon, parece tampouco ter um projeto definido para o país, tanto no que tange à segurança, quanto à implantação de políticas sociais e de desenvol- vimento. Nesse caso, o perigo da situação afe- tar as forças da ONU ali presentes, cuja Mis- são para a Estabilização do Haiti (Minustah) está sob o comando brasileiro, é evidente. Latortue parece ter dúvidas sobre o papel da Missão, ao queixar-se, em entrevista ao Le Monde, que “por questões de segurança, em relação à vida de seus homens, a Minustah recusa-se a levar avante operações conjuntas com a polícia haitiana. Ela se satisfaz com o enquadramento das operações com os seus blindados”. Essa questão não pode ser subestimada e haveria indícios de que os esforços internacio- nais não conseguem contribuir para a constru- ção de políticas de longa duração. O governo brasileiro parece ciente disso e os esforços, no sentido de colaborar para um acordo político no Haiti, estão no centro das ações diplomáti- cas e pára-diplomáticas. Ao não desenvolver- se uma sociedade civil e política com a solidez mínima, que viabilize a construção do Estado, as esperanças que poderiam surgir correm o risco de serem frustradas. URUGUAI Em linha diferente estaria o caso do Uruguai. Este país, próspero e equilibrado durante os primeiros sessenta anos do século XX – graças às suas exportações competitivas de carne e lã – a partir da década de sessenta entrou em fase de decadência. O crescimento da Frente Am- pla, iniciado nos anos oitenta e que tem o seu auge em 2005, com a eleição de Tabaré Vasquez, pode trazer uma renovada esperança ao país, que terá, no entanto, que lidar com alguns pro- blemas. A base produtiva do Uruguai foi destruída, mantendo-se relativamente compe- titiva em alguns poucos produtos, sobretudo agrícolas, lácteos e arroz. A modernização das estruturas financeiras brasileira e argentina e os novos avanços no ordenamento financeiro internacional, provavelmente diminuirão a im- portância do Uruguai como praça off shore. O fortalecimento do Mercosul poderia trazer novas oportunidades, mas as dificuldades do bloco colocam em dúvida esse caminho. Certa semelhança ideológica com os governos argen- tino e brasileiro não assegura concordância na substância das políticas, com mostram as posi- ções diferentes no tocante à OMC e ao Con- selho de Segurança da ONU. Desse modo, a esperança renovada da população uruguaia, que encerrou a secular alternância de blancos e colorados, deve ser vista com cautela. 8 ARGENTINA PÓS-MORATÓRIA O ENSA IO ANA MARIA STUART* governo argentino passou por uma grande pro- vação e é necessário avaliar as posições presen- tes no governo e na sociedade à luz do sucesso do operativo de reestruturação de parte da dí- vida. Os 76,15% de adesão ao programa legiti- maram a estratégia do governo em busca de uma saída honrosa para a moratória decretada em fins de 2001. Em primeiro lugar, chama a atenção a re- percussão positiva na grande imprensa argen- tina. Era razoável esperar reações muito críti- cas ao governo por parte de setores que histo- ricamente tem aderido aos preceitos estabele- cidos pelo establishment financeiro internacio- nal, mas há que reconhecer que o governo, e em especial o ministro de Economia Lavagna, conseguiu contornar todos os obstáculos e an- gariar apoios internos e externos, como o do próprio governo Bush que, em inusitada liga- ção telefônica no último 29 de março, elogiou o progresso da economia argentina prometen- do trabalhar para aumentar os investimentos no país. A estratégia do governo Kirchner de res- ponsabilizar os organismios internacionais como partícipes da crise financeira argentina está no centro da explicação desse sucesso. Rodrigo de Rato, diretor gerente do FMI con- firma: “Las autoridades argentinas han reconocido que las políticas inconsistentes del pasado contribuyeron al aumento de la deuda externa. Yo sugeriría también que el sector financiero internacional analice el rol que tuvo facilitando ese sobreendeudamiento, y colocando una parte importante de esa deuda en manos de in- versores minoristas relativamente poco sofisticados” 1 É imperativo usar diversas lentes para in- terpretar a realidade argentina atual em toda sua complexidade. Do ponto de vista da política, o presidente Kirchner continua em alta e seu governo está muito bem avaliado pela socieda- de. No mês de março a confiança no governo aumentou 17% em relação ao mês anterior. Segundo Sergio Berensztein, da universidade Di Tella e responsável por essa pesquisa, a ex- plicação encontra-se na percepção positiva da população sobre a capacidade do governo de resolver seus problemas (75% dos entrevista- dos pensa que o governo está resolvendo os problemas do país e sabe como fazê-lo). 2 Do ponto de vista da economia, a vedeteé o expressivo crescimento econômico. Duran- te 2004 o PIB aumentou 9%, com base no au- mento das exportações e do consumo interno. Quatro itens contribuíram com aproximada- mente 60% dessa melhora: indústria, comér- cio, construção e logística (transporte, arma- zenagem e comunicações). Os setores vincu- lados a serviços foram responsáveis por 47,4% do crescimento total do PIB, enquanto que al- gumas atividades primárias registraram retro- cesso. Entre estas, a agricultura, a pecuária e a caça (queda de 1%), a mineração (queda de 0,4%) e a pesca (queda de 19%). Outro dado interessante do relatório do INDEC é a queda de 5,5% do setor de intermediação financeira. Os setores que apresentam tendência de maior dinamismo para 2005 são a indústria química, do papel, de alimentos e bebidas e a automotiva. Enfim, a economia conseguiu recuperar o ter- reno perdido desde o início da recessão em 1998. Mesmo quando os índices sociais estão ainda muito deteriorados, com importantes setores submergidos na pobreza e na indigên- cia, os dados do crescimento da economia per- mitem percepções otimistas. Não obstante, há nuvens no horizonte pró- ximo e elas carregam a pior das ameaças possí- veis para o imaginário popular: inflação. Por- que a memória desse fenômeno é muito ex- tensa na Argentina e as terríveis conseqüências da hiperinflação (governo Alfonsín) ainda re- percutem no subconsciente popular, o presi- dente Kirchner agiu rapidamente. Como in- terpreta o cientista político Juan Manuel Abal Medina: “frente a un fantasma inflacionario capaz de malograr la recuperación económica, el gobierno 9 ANA MARIA STUART é membro titular do Gacint. puede enfrentarse solo con los débiles instrumentos estatales de política monetaria o “politizar” la discusión, incitar la participación ciudadana, desde la legitimidad del Presidente.” Essa é uma explicação plausível para a ação aparentemente intempes- tiva de Kirchner contra a Shell, acusando a empresa de aumento desmedido do preço da gasolina e chamando o povo a boicotar os pos- tos. O objetivo foi deixar clara a condenação do Presidente às empresas que aumentarem os preços. É uma estratégia arriscada que o gover- no Kirchner já usou em outros momentos e que parece estar dando certo. Como 2005 é ano eleitoral, a política deverá reger os movimen- tos sobre a economia e a sociedade. Os setores sociais organizados, em especial o movimento sindical, estão manifestando suas preocupações. Assim, o titular da CGT, Hugo Moyano, enfrentou abertamente o ministro de Economia Lavagna que havia criticado a cen- tral sindical por reivindicar aumento do salá- rio mínimo de 450 pesos para 630 pesos. A Argentina já foi caracterizada como um país onde sempre existiu uma intensa disputa distributiva entre o mundo da produção e o mundo do trabalho, em especial depois da ex- periência do governo de Perón (1945-1955). A tentativa de desmantelamento do Estado, gran- de mediador dessa disputa, foi objetivo central dos governos ditatoriais (1976-1983) e do go- verno Menem (1989-1999). Depois da crise final do governo De la Rua (dezembro de 2001) houve um esforço importante do governo Duhalde para restabelecer as relações do Esta- do com a sociedade fortemente abaladas pela queda completa de representatividade do go- verno da Aliança União Cívica Radical (UCR)- Frente País Solidário (FREPASO). Hoje, o go- verno Kirchner enfrenta o desafio de continu- ar na mediação de interesses, sem perder a pers- pectiva de recuperar as perdas dos setores que sofreram mais fortemente os impactos da crise econômica.3 A palavra de ordem no governo argentino é “conciliar interesses”. Vários representantes de diferentes esferas governamentais fizeram declarações sobre a necessidade de compatibi- lizar as possibilidades reais do setor produtivo, sem afetar o crescimento da economia. Logi- camente, os representantes sindicais alegam que a recuperação do poder aquisitivo dos sa- lários vai garantir a continuidade do processo de crescimento da economia, mas o ministro Lavagna discorda e sustenta que os aumentos de salários devem ficar atrelados a critérios de produtividade, rejeitando a tese do aumento geral. A projeção de uma inflação de dois dígi- tos e a queda das taxas de desemprego aumen- tam a tensão em torno do debate. A sociedade argentina, submetida às con- seqüências do agravamento da desigualdade social (aumento da marginalidade e da crimi- nalidade, principalmente) não apresenta mu- danças significativas, apesar dos avanços polí- ticos e econômicos. Um recente trabalho do sociólogo Artemio López, demonstra que a queda da pobreza não teve impacto no padrão de distribuição da riqueza. Resumidamente, os resultados da pesquisa apontam que a diferen- ça entre a faixa dos 10% mais ricos e dos 10% mais pobres aumentou em 35% desde a déca- da de noventa, considerada a década mais re- gressiva da história argentina até a explosão da crise de 2001 e a desvalorização cambial poste- rior. A conclusão é que as melhoras substan- ciais nos indicadores macroeconômicos não se refletem automaticamente nos indicadores só- cio-econômicos, que são os que têm impacto direto no cotidiano dos cidadãos. No plano institucional, o caso do bispo Antonio Baseotto tornou-se um exemplo dos avanços do governo Kirchner para democrati- zar o Estado. O governo, por decreto presiden- cial, retirou o cargo de “capelão” e o salário que o bispo recebia do Estado depois das declara- ções de Baseotto que condenaram duramente as opiniões do ministro de Saúde, Ginés González Garcia, sobre a necessidade de polí- ticas para descriminalizar o aborto. Com apoio da sociedade: em recente pesquisa da consul- tora Equis, 83% da população de Buenos Aires rejeitou as expressões do bispo e 62% manifes- tou-se a favor da descriminalização do aborto. A abertura da possibilidade de revisão do tratado firmado com o Vaticano em 1957, que criou o “vicariato castrense”, é um grande passo na direção certa de reconhecer o caráter laico do Estado. O problema de fundo é o artigo 21 da Constituição Nacional que obriga o Estado a sustentar o culto católico, apostólico e roma- no. A firmeza do governo em negociar um novo status de relação com o Vaticano prenuncia no- vos tempos. NOTAS 1 La Nación, Buenos Aires, 3/4/2005. 2 El Cronista Comercial, Buenos Aires, 29/3/2005. 3 No período 2001-2003 os pobres passaram de 37% da popula- ção para 51%. Em 2004 caiu para 44% mas ainda é muito alto se comparado à média histórica. 10 TUDO COMO D’ANTES NO QUARTEL D’ABRANTES A LUIZ OLAVO BAPTISTA* conjuntura do comércio internacional não apresentou mudanças significativas nos últimos meses. Nem a decisão definitiva no caso dos subsídios ao algodão dados pelos EUA, nem o caso dos subsídios dados pela União Européia ao açúcar – pendente de apreciação pelo Ór- gão de Apelação da OMC – tiveram o condão de mudar o panorama do comércio dessas comodities, ou afetaram o quadro das negocia- ções sobre a agricultura na Rodada Doha. Não afetaram as negociações porque não mudaram as regras que já existiam – apenas deixaram mais clara a interpretação a dar às mesmas. Não houve alteração no comércio, e as mudanças que ocorrerem no futuro, ainda não atingirão as metas que os agricultores aus- tralianos, brasileiros, tailandeses e outros espe- ram. COMBUSTÍVEL ESCASSO A UE poderá continuar com os subsídios de- clarados e que foram admitidos na Rodada do Uruguai, a não ser que a negociação em curso os exclua. O subsídio ao algodão afetará mais os produtores norte-americanos que o merca- do. Um pequeno aumento nos preços mundi- ais provocará uma corrida no plantio do algo- dão – planta de ciclo curto – e o aumento de produção resultante derrubará os preços. A fibra compete num mercado de pouca elasticidade com os sintéticos, a seda e outras, o que não permite grandes expectativas paraos agricultores. Haverá ganhos, mas serão limita- dos. Os EUA podem aproveitar a decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC para diminuir seu déficit orçamentário, atribu- indo a culpa pelo corte – com fundamento nos fatos – à sua obrigação de cumprir um acordo internacional. As negociações prosseguem em banho- maria, postas a “mijoter” na panela genebrina, sem que se perceba uma redução no molho. Falta ânimo e vontade, e estes só virão do com- COMÉRCIO INTERNACIONAL bustível interno dos Estados envolvidos, que é escasso. A previsão atual diz que a Rodada Doha será das pequenas, como a Rodada Kennedy foi me- nos impactante que as de Tókio e Uruguai. A tendência seguirá um padrão que vem desde o GATT, onde a cada Rodada importante suce- dem-se uma ou mais Rodadas de menor ex- pressão, em que poucas mudanças são intro- duzidas. Isto não significará, no entanto, o fim do livre comércio, nem o da OMC. A Alca, para felicidade de muitos, perma- nece na geladeira, e as negociações Mercosul/ UE, para infelicidade dos mesmos, seguem como um jogo de futebol onde os craques na finta são os europeus, e os marcadores que fi- cam perdidos são os do Mercosul. A UE preci- sa de tempo para, como a jibóia que comeu o bezerro, digerir os novos membros da União, e para chegar a uma constituição que oficialize seu estatuto de confederação, ou, como acham alguns, federação. Esse panorama nos mostra que, apesar das esperanças de multipolaridade – ao menos no campo do comércio internacional – grandes países como Índia, China, Brasil e Rússia, ain- da não têm peso suficiente para contrabalançar os da UE e os EUA. Estes são os pontos focais e continuam grandes personagens como vi- nham sendo até agora. Sem sombra de dúvida, os três grandes emergentes têm tido uma presença mais forte e marcante. Mas é como a de jovens doutores que ainda não chegaram ao nível de prestígio e poder dos catedráticos. O Brasil prossegue suas políticas tradicio- nais com mudanças no pessoal envolvido. A eleição do diretor geral da OMC será um teste da eficácia da política latino- americana e ter- ceiro-mundista do governo Lula. O apoio que for dado ao seu candidato será correspondente ao apoio que efetivamente tem e conquistou. Por esta razão, foi uma jogada política ousada 11 LUIZ OLAVO BAPTISTA é responsável pela área temática Comércio Internacional. de jogador de pôquer que paga para ver. Nas fichas colocadas em jogo estão postos importantes como a vaga na CIJ – imprescin- dível para quem quer estar no Conselho de Segurança da ONU – e presidência do BID, além de muitos outros na hierarquia dos orga- nismos internacionais. Aliás, se há uma falha de perspectiva nas políticas que vêm sendo seguidas pelo Brasil há decênios está o alheamento em relação à presença brasileira nas Organizações Interna- cionais. Sem dúvida, os brasileiros, que são fun- cionários internacionais, contribuem para o prestígio do país, como o exemplo de Rubens Ricupero e de Sergio Viera Mello mostram. Os eventuais fracassos são poucos em rela- ção ao sucesso. Mas, além desses cargos tão importantes, a presença nos escalões inferiores das Organizações Internacionais tem um efei- to positivo na formação de pessoas que pode- rão, mais tarde, atuar em vários setores das re- lações internacionais, ou marcar a presença da cultura e do modo brasileiro de ver e de pensar o mundo. Todos os protagonistas de relevo no campo internacional, como a UE, os EUA, o Canadá, a Austrália, a Índia e outros, têm fo- mentado e apoiado à presença de seus cidadãos nos quadros desses organismos. O papel das ONGs, no campo do comér- cio internacional e das negociações a ele liga- das, continua relevante, tanto quanto o das em- presas transnacionais. Hoje podemos dizer que há um desenho matricial das relações interna- cionais em que as atuações dos Estados se cru- zam, juntam-se ou chocam-se com a desses personagens. Mais ainda, esse relacionamento projeta-se do plano internacional para o interi- or dos Estados. INTERESSES INDIVIDUAIS No âmbito do Mercosul continuamos com o exercício de ficção de que todos queremos as mesmas coisas. Na realidade, continua-se com a organização, mas o relevo e o apoio dado à mesma varia entre os quatro parceiros. Na aca- demia continua o debate sobre a validade, ex- tensão e a aplicabilidade das regras mercosuli- nas; entre os operadores do comércio, conti- nua-se a exportar e importar usando suas van- tagens, mas com os percalços criados pela crise e pelo unilateralismo das atitudes do governo argentino. Da mesma maneira como informou aos velhinhos aposentados da Itália e de outros países, que seus investimentos nos títulos ar- gentinos valiam a quarta parte do dinheiro apli- cado, Nestor Kirchner informa a Lula sobre restrições que aplica a produtos brasileiros. Esse comportamento vem acumulando um capital de má vontade quanto ao Mercosul e suscitan- do uma hostilidade contra a Argentina que se imaginava ter sido enterrada. Do outro lado, o novo governo do Uru- guai vem mantendo a política externa de Battle, Até quando os bancos centrais dos países asiáticos e os investidores dessa região e do Oriente Médio continuarão sustentando o crescente déficit dos EUA. a qual ignora o Brasil e os in- teresses deste país que é o seu maior parceiro comercial. Agora aparecem problemas no Paraguai, decorrentes do maior rigor da aduana de Foz do Iguaçu. Enfim, não há consenso e harmonia, mas, isto sim, a bus- ca do interesse de cada qual. No âmbito financeiro, o real é apreciado pela entrada de moedas fortes carreadas pelo aumento das exportações e pe- los investimentos atraídos pe- los juros altos. A queda do va- lor relativo do dólar dos EUA continua constante ainda que mais lenta, e a indagação que mais se ouve é: até quando os bancos centrais dos países asiá- ticos e os investidores dessa região e do Orien- te Médio continuarão sustentando o crescente déficit dos Estados Unidos. Sem dúvida o maior risco, no futuro, será o da corrida desses aplicadores, vendendo os dólares para recorrerem a outras moedas, e como conseqüência assistiríamos a uma crise maior que a de 1929. Até mesmo a possibilida- de de medidas de austeridade pelo FED assus- tam os comerciantes internacionais, temerosos com a perda do poder de compra do maior mercado do planeta. A guerra civil que parece cada dia mais pro- vável no Iraque – se é que já não está em curso – é outra ameaça para a estabilidade do balanço norte-americano, pois os gastos, já muito ele- vados, tenderiam a aumentar. Talvez alguns aspectos estejam mais claros ou mais definidos no panorama internacional, mas o quadro geral não muda. É por isto que se pode dizer que tudo continua como d’antes no quartel d’Abrantes. 12 UMA NOVA GEOMETRIA DE INTERESSES NA OMC O ENSA IO ano de 2005 se destacará no calendário diplo- mático como um dos mais importantes da his- tória da ação brasileira na OMC. Em primeiro lugar, chama atenção o papel do país na lide- rança do G-20, o grupo de países em desenvol- vimento que busca avanços concretos na redu- ção dos subsídios agrícolas praticados princi- palmente pelos países desenvolvidos. Conside- rado a principal e a mais bem-sucedida cons- trução da política comercial do governo Lula, o G-20 está ajudando a tecer novas formas de con- senso, envolvendo uma nova geometria de de- cisões tomadas simultaneamente por países de- senvolvidos e em desenvolvimento, ao contrá- rio do que ocorria no Quad, abreviação que sim- bolizava as decisões do quadrilátero das gran- des potências (EUA, União Européia, Canadá e Japão) no antigo GATT. Na atual Rodada de Doha, o que se espera é que essa nova geome- tria produza medidas que, de fato, contribuam para um maior desenvolvimento das nações. O G-20, coalizão formada às vésperas da 5ª Reunião Ministerialda OMC, em Cancún, em 2003, tem a obrigação de buscar o cumprimen- to integral do Mandato de Doha, ou seja, a me- lhora substancial do acesso aos mercados, a eli- minação dos subsídios à exportação e medidas equivalentes, e a redução significativa dos sub- sídios domésticos distorcivos. Este é um ano chave para o sucesso da Rodada de Doha, pois serão definidas as “modalidades de negociação”, isto é, os critérios que nortearão as principais decisões sobre cortes de subsídios, advaloriza- ção de tarifas, fórmulas para redução tarifária e outros temas. Até julho, esperam-se avanços nessa direção para assegurar o sucesso da 6ª Reu- nião Ministerial da OMC, em Hong-Kong, em meados de dezembro, ocasião em que será pos- sível reavaliar o prazo de conclusão da Rodada. O Brasil, a Índia e a China, principalmente, têm tido uma participação ativa em todas as eta- pas da negociação sob o chapéu do G-20. Mas os três grandes do mundo em desenvolvimento, MARCOS JANK* por sua atuação na Rodada de Doha em outras áreas que não a agrícola, também põem em evi- dência um traço que podemos chamar de “uma nova geometria de interesses”. Essa nova geo- metria está longe de se assemelhar à “aproxima- ção Sul-Sul”, ventilada pela política externa do governo Lula, mas, sim, a uma nova conforma- ção que tem a ver, essencialmente, com interes- ses nem sempre convergentes desses três atores. Vejamos: o Brasil, por sua imbatível competiti- vidade agrícola, resultante de vários fatores, co- loca-se na linha de frente do comércio agrícola mundial, com interesses claramente ofensivos no tema. O país, porém, reage defensivamente a uma abertura mais ampla de suas tarifas indus- triais de seu setor de serviços. A China, com sua agressividade em exportações de produtos indus- triais de baixo custo, graças a um modelo que combina baixos salários, pesados investimentos em tecnologia, taxa de câmbio artificialmente desvalorizada e forte presença estatal na econo- mia, mostra-se reticente em abrir a sua agricul- tura e o seu mercado de serviços, mas será cada vez mais favorável à ampla liberalização dos bens manufaturados. A Índia deve tornar-se mais exi- gente em favor da abertura em serviços, mas tem posições moderadas quanto à redução de tarifas para bens agrícolas e industriais e totalmente de- fensivas em acesso ao seu mercado agrícola. Quando se trata de defender um maior discipli- namento dos subsídios agrícolas, Brasil, Índia e China falam a mesma linguagem. Contudo, quando o assunto é a ampliação do grau de aces- so aos mercados agrícolas, industriais e de servi- ços, eles divergem entre si. Uma outra característica da Rodada de Doha, que a difere da Rodada Uruguai, é uma profunda (e cada vez maior) divisão do chama- do mundo em desenvolvimento no tema aces- so a mercados. Os países de menor desenvolvi- mento relativo (PMDRs), presentes principal- mente na África, temem a erosão das preferên- cias históricas que recebem da Europa, EUA e 13 de outros países desenvolvidos, caso, por exem- plo dos chamados países ACP (África, Caribe e Pacífico), ligados à UE pelas convenções de Lomé e Cotonou. Eis mais uma razão que co- loca em relevo a importância da Rodada de Doha e os desafios para a diplomacia brasileira, pois a recente vitória do Brasil em primeira ins- tância, no caso do painel do açúcar, na OMC, contrapõe os interesses de livre comércio do Brasil aos interesses por comércio preferencial dos exportadores ACP, que gozam de tratamen- to preferencial para vender açúcar ao mercado europeu. Tais países desfrutam dos elevados preços domésticos praticados dentro da UE. A vitória do Brasil no painel da OMC e no Órgão de Apelação, no caso do algodão, deverá trazer desdobramentos importantes para a Ro- dada de Doha, em 2005, pois colocará enorme pressão externa sobre o coração da política de subsídios dos EUA. Os EUA precisam cortar gastos, pois o déficit anual no orçamento ame- ricano já atingiu mais de US$ 500 bilhões. Por isso, a nova Lei Agrícola, que deve ser aprovada até 2008, deve contemplar menos subsídios. O governo Bush anunciou que deseja introduzir cortes da ordem de 5% nos subsídios america- nos a partir de 2006. Esse anúncio, em realida- de, é a primeira etapa de um longo processo de discussão que durará entre dois e três anos. De fato, neste ano começam as audiências públicas no Comitê de Agricultura do Congres- so americano para discutir a próxima Farm Bill, pautadas pela proposta geral da administração re- publicana de enxugamento orçamentário e, em conseqüência, de redução de recursos para sub- sidiar os programas agrícolas. Em 2000, quando se iniciou a discussão da Lei Agrícola de 2002, o clima era de escalada nos gastos, com os agricul- tores se apropriando de uma crescente fatia do superávit anual de US$ 200 bilhões da econo- mia americana. Espera-se, neste e nos próximos anos, um forte movimento dos lobbies america- nos contra quaisquer cortes nos subsídios agrí- colas, embora as pressões externas, da mídia in- ternacional e das organizações não-governamen- tais (ONGs), deverão funcionar como um vetor para forçar os EUA não só a reduzirem os seus subsídios ao algodão, como também para reali- zarem reformas mais amplas em outros segmen- tos da sua agricultura. Essas seriam contribui- ções para o bom desenvolvimento da Rodada de Doha porque, neste ano, espera-se maior esfor- ço dos EUA, uma vez que a UE já fez parte de sua lição de casa em 2003, quando introduziu algumas reformas liberalizantes na Política Agrí- cola Comum (PAC). Os EUA têm, agora, uma ótima oportunidade para realizar cortes em seus subsídios agrícolas, reduzindo o seu déficit pú- blico e mostrando ao mundo que estão, de fato, comprometidos com um resultado que mante- nha a ambição do Mandato de Doha. Entretanto, os primeiros sinais vindos de Wa- shington são preocupantes e devem colocar o Brasil em estado de alerta, a julgar pelas declara- ções de autoridades americanas logo após a deci- são do Órgão de Apelação sobre o contencioso do algodão, em 3 de março. “As reformas pen- dentes podem ser feitas somente por meio de negociações multilaterais destinadas a corrigir as distorções no mercado global relacionadas a aces- so a mercado, competição das exportações e apoio doméstico”, disse J. B. Penn, subsecretário de Agricultura dos EUA. Logo em seguida, em 4 de março, Peter Allgeier, representante interino de Comércio (USTR), afirmou que “os EUA que- rem cumprir com as determinações do Órgão de Apelação da OMC por meio de negociações na Rodada de Doha e não no âmbito de entendi- mentos bilaterais com o Brasil”. Portanto, o go- verno brasileiro e o setor privado precisam redo- brar a atenção para o risco de os EUA “vende- rem” o todo ou parte da implementação das me- didas recomendadas pela OMC para o algodão no contexto da Rodada de Doha. Isso seria ina- ceitável para o Brasil, pois o que nos interessa é a mudança global das regras do jogo das políticas agrícolas protecionistas, contra as quais o G-20 está lutando em Genebra. O fator de estímulo para que os resultados do contencioso favoráveis ao Brasil não corram o risco de se transformar, simplesmente, no jar- gão “ganhou, mas não levou”, é a pressão da opi- nião pública mundial, que, espera-se, levantar- se-á na defesa dos interesses dos países em de- senvolvimento produtores de algodão. Organi- zações não-governamentais que defendem um comércio justo como a OXFAM são aliados im- portantes nesta causa e uma voz de peso contra eventuais manobras americanas para descumprir a sentença da OMC. Certamente, se os EUA levarem para as mesas de negociação, em Ge- nebra, o que deveriam resolver em Washington, isto é, se o governo Bush não mostrar resulta- dos concretos em direção a reformas liberali- zantes imediatas em seus programas agrícolas, é possível prever uma explosão de novos casos na OMC, como os relacionadosa subsídios ame- ricanos distorcivos ao milho, soja, trigo e arroz. MARCOS JANK é membro titular do Gacint. 14 CORÉIA DO NORTE E IRÃ SOB A ÓTICA DA NÃO PROLIFERAÇÃO ÁSIA ai-se tornando claro que ao indicar, ou – na verdade – indiciar o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte como integrantes de um assim dito “Eixo do Mal”, George W. Bush tinha a re- côndita aspiração de ver substituídos os regi- mes daqueles países. Ele próprio repete, ago- ra, que o caos no Iraque importa menos do que a deposição de Saddam Hussein. Isso tor- na compreensível, por sua vez, que os regi- mes de Teerã e Pionguiangue achem válidos todos os recursos para garantir a própria so- brevivência. Na abertura do segundo gover- no Bush, o cabo-de-guerra entre essas duas capitais e Washington veio a concentrar-se na questão da natureza e tamanho dos progra- mas nucleares de Irã e Coréia do Norte. E as evidências são de que os EUA não aceitam negociar meio-termos. Querem o abandono puro e simples de tais programas. QUADRO GEOPOLÍTICO Não disponho, evidentemente, de elementos de análise para opinar sobre os programas nu- cleares de Irã e Coréia do Norte. Posso ape- nas dizer que esses programas e os regimes por trás deles sobreviverão, ou não, conforme evolua o quadro geopolítico que os encerra. Como não há evidência de que os EUA dis- ponham de estratégia para enfrentar qualquer das duas situações, afora a ameaça de sanções ou coisa mais forte, tem-se que a evolução geopolítica vai depender da ação de outros países. No caso da Coréia do Norte, caberá à diplomacia chinesa estabilizar o Nordeste Asi- ático e convencer Kim Jong-il a enquadrar-se na nova realidade. No caso do Irã, União Eu- ropéia e Rússia terão de ajudar os aiatolás a compreender que o mundo mudou. E como mudou o mundo? No presente comentário procurarei pôr em realce altera- ções substanciais na ordem mundial pós- Guerra Fria, as quais estão tornando recomen- dável que países com programas nucleares, o AMAURY PORTO DE OLIVEIRA* V Brasil inclusive, revejam suas idéias a respei-to. Antes, porém, de tratar dessas alterações,será conveniente uma rápida atualização dosembates diplomáticos em torno dos progra-mas da Coréia do Norte e do Irã. No Nordeste Asiático, os quatro anos do primeiro governo Bush não fizeram avançar o conflito central, que foi um dos eventos No caso da Coréia do Norte, caberá à diplomacia chinesa estabilizar o Nordeste Asiático e convencer Kim Jong-il a enquadrar-se na nova realidade. definidores da Guerra Fria e se expressa na inexistência de um acordo para pôr fim jurídico à Guerra da Coréia. O armistício de 1953, assinado entre os EUA e a Coréia do Norte, mantém os dois países tecnicamente em guerra, sem que o regime de Pionguiangue consiga trazer os americanos de volta à mesa das negociações, apesar de todo o malabarismo diplomático, às vezes de puro blefe, com o qual Kim Jong-il vai eternizando seu falido regime. Na segunda metade dos anos 1990 chegou-se muito perto de um ajuste com a apa- ratosa visita de Madeleine Albright à Coréia do Norte e a expectativa de uma ida também do presidente Bill Clinton. A eleição de George W. Bush pôs fim a esse esforço de con- ciliação, fundamentado na “Política do Brilho do Sol”, do então presidente da CdS, Kim Dae-jung. Ao recebê-lo em Washington, em março de 2001, Bush lhe comunicou sem ro- deios que não ia dar continuidade aos contactos com Pionguiangue. Restabeleceu- se o impasse. Em outubro de 2002, Washington aumen- tou a pressão sobre Pionguiangue, suspenden- do incentivos que vinham sendo dados des- de 1994, nos termos de um acordo negociado pelo ex-Presidente J. Carter para manter os 15 norte-coreanos longe da proliferação nuclear. O cancelamento unilateral do acordo de 1994 baseou-se na acusação de que a Coréia do Norte o estava burlando, através de um pro- grama clandestino de enriquecimento de urâ- nio em grau bélico. As circunstâncias dessa acusação e a extensão do que estão realmente fazendo os norte-coreanos seguem muito con- fusas, e ao leitor interessado sugiro rever o n. l7 do PANORAMA (mai/jun 2003); a análise dutor de petróleo, com amplas reservas de hi- drocarbonetos, lança alguma dúvida sobre a explicação iraniana, mas a Rússia a referenda. Os russos ajudaram a levantar a central nu- clear de Bushehr e vão suprir o urânio baixamente enriquecido para o funcionamento da mesma, com a garantia do retorno à Rússia do combustível irradiado. Já os europeus (Grã- Bretanha, França e Alemanha, mais precisa- mente), esforçam-se por fazer o Irã desistir da pretensão de enriquecer urânio e produzir plutônio. Em outras palavras, russos e euro- peus procuram cindir o domínio do ciclo do combustível nuclear de outras atividades mais tipicamente civis na geração nuclear da eletri- cidade, deixando somente estas últimas aos ira- nianos. Despontam, aí, aquelas alterações na or- dem mundial a que me referi de início. Sob a Guerra Fria, o horror de um cataclisma nu- clear foi sendo afastado pelo “equilíbrio do ter- ror”. O número de países com armamento nuclear era mantido pequeno pelas injunções do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de l968, e esses países tolhiam-se de atacar uns aos outros pela certeza de que também seriam devastados. Israel, Índia e Paquistão logra- ram contornar o TNP, e se Irã e Coréia do Norte puderem fazer o mesmo, tornar-se-á di- fícil conter a proliferação. A ampliação do número de paí- ses nuclearizados e a maior probabilidade do acesso de grupos terroristas a material nuclear pode levar a hecatom- bes atômicas. Na perspectiva da paz mundial, tornou-se im- perativo reavaliar toda a pro- blemática dos programas na- cionais voltados para o domí- nio do ciclo do combustível nuclear. Europeus e russos parecem estar dando um passo no bom sentido quando procuram afastar os ira- nianos de atividades como o enriquecimento ou o processamento, independentemente de quais sejam as verdadeiras intenções do regi- me de Teerã. Esse assunto é de importância magna e co- meçará a ser discutido agora em maio, em Nova York, numa reunião de revisão do TNT. Não se trata de impedir que países realmente Na perspectiva da paz mundial, tornou-se imperativo reavaliar toda a problemática dos programas nacionais voltados para o domínio do ciclo do combustível nuclear. Tem cabido à China manter aberto no Nordeste Asiático o caminho do entendimento diplomático, graças à sua atuação como principal promotor e sede de negociações hexagonais: EUA, China, Japão, Rússia e as duas Coréias. ali apresentada foi agora con- firmada e aprofundada por Selig S. Harrison (Foreign Affairs, Jan/Feb 2005). Conforme já observei, tem cabido à China manter aberto no Nordeste Asiático o caminho do entendimento diplomático, graças à sua atu- ação como principal promo- tor e sede de negociações he- xagonais (EUA, China, Japão, Rússia e as duas Coréias). Co- meçam, aliás, a surgir propos- tas para a transformação des- se foro multilateral, após a eventual superação do con- tencioso com a Coréia do Norte, numa instituição per- manente de cinco membros (sem a Coréia do Norte), en- carregada da segurança do Nordeste Asiático, em termos não militares. Ponto de semelhança en- tre os desdobramentos inter- nacionais em torno da Coréia do Norte e Irã é a parca cre- dibilidade das informações oriundas dos ser- viços especiais dos EUA, conforme ficou so- bejamente evidenciado pela desmoralização das acusações montadas contra o terceiro in- tegrante do “Eixo do Mal”, o Iraque. No caso da Coréia do Norte, a desinformação do lado americano combina-se com a quase-chanta- gem praticada por Kim Jong-il, tornando di- fícil saber o que de fato se passa no terreno da energia nuclear. Já no Irã, tem-se um regime sério, que confirma estar trabalhando nesse terreno.A controvérsia se instala quando os EUA alegam estarem os iranianos buscando a bom- ba atômica, e Teerã insiste em que se interessa apenas pela produção de energia nuclear para fins civis. O fato de o Irã ser importante pro- 16 PANORAMA DA CONJUNTURA INTERNACIONAL UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL Coordenador Geral: GILBERTO DUPAS Membros do Conselho Acadêmico BÓRIS FAUSTO (Presidente), CELSO LAFER, GUILHERME L. S. DIAS, LENINA POMERANZ, LUIZ OLAVO BAPTISTA, MARCOS JANK MARIA HERMÍNIA T. DE ALMEIDA MEMBROS RESPONSÁVEIS POR ÁREAS TEMÁTICAS Ásia: AMAURY PORTO DE OLIVEIRA América Latina: TULLO VIGEVANI EUA: GERALDO FORBES Europa: GILBERTO DUPAS Ex-Países Socialistas: LENINA POMERANZ Comércio Internacional: LUIZ OLAVO BAPTISTA Segurança Internacional: MARIO CESAR FLORES Oriente Médio: PETER DEMANT MEMBROS Rua do Anfiteatro, 181 - Favo 5 - Cidade Universitária 05508-900 - São Paulo - Brasil - Tels: (011)3091-3528/3091-3531 Fax: 3814-7342 - email: ccint@edu.usp.br - website: www.usp.br/ccint/gacint PR O JE TO G RÁ FI CO : S IL VI A M AS SA RO Reitor da USP: ADOLPHO JOSÉ MELFI Comissão de Cooperação Internacional (CCInt) MAGDA M. S. CARNEIRO SAMPAIO Os textos aqui reproduzidos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião oficial do Gacint AMAURY PORTO DE OLIVEIRA é responsável pela área temática Ásia. J ALBERTO PFEIFER ALEXANDRE RATSUO UEHARA ANA MARIA STUART CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA CELSO NUNES AMORIM CHRISTIAN LOHBAUER CLODOALDO BUENO EDUARDO BITTAR EDUARDO KUGELMAS ELIANA CARDOSO FLORÊNCIA FERRER GELSON FONSECA JR. GILMAR MASIEIRO GUILHERME LUSTOSA DA CUNHA HELGA HOFFMANN HÉLIO NOGUEIRA DA CRUZ HENRY PHILIPPE REICHSTUL JACQUES MARCOVITCH JOÃO SAYAD JORGE WILLHEIM LUIZ AFONSO SIMOENS DA SILVA MARCO AURÉLIO GARCIA MARIA HELENA TACHINARDI MARY JANE JUNQUEIRA MIRIAM DOLHNIKOFF NINA RANIERI OLIVEIROS FERREIRA OTAVIANO CANUTO PAULO EDGAR ALMEIDA RESENDE PAULO SOTERO PEDRO DALLARI RAFAEL VILLA RICARDO SENNES ROBERTO TEIXEIRA DA COSTA ROLF KUNTZ RUBENS BARBOSA SAMUEL FELDBERG SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ SÉRGIO AMARAL SÉRGIO FAUSTO VERA THORSTENSEN interessados na nucleoeletricidade e, fator de- cisivo, habilitados técnica e administrativa- mente a lidar com os processos extremamen- te complexos a serem enfrentados possam re- correr a esse vetor energético. Também não se trata de deixar ao talante das grandes potências a definição política de quem vai fazer o quê: deixar Israel interferir interessadamente na difusão internacional da nucleoeletricidade; ou o Paquistão seguir im- pávido, após reconhecer seu papel na origem de programas hoje sob contestação. Trata-se, sim, de avançar para um regime internacio- nal, possivelmente sob a supervisão da AIEA, com vistas a regularizar a utilização e circula- ção dos materiais e tecnologias ligados ao ciclo do combustí- vel nuclear, restringindo a mo- vimentação dos mesmos e aperfeiçoando os padrões e cri- térios a tudo correspondentes. É de prever muita resistência à instituição de um tal regime, que afetará o exercício da so- berania nacional consoante de- finido pelo Sistema de West- phalia. Mas a verdade é que a globalização já relativizou bas- tante a aplicabilidade desse sis- tema. E há outras considera- ções, de ordem prática. O mundo parece na imi- nência de ter de recorrer a uma Segunda Idade Nuclear: um novo surto do uso industrial da energia nuclear, apoiado em reatores e tecnologias imanen- temente seguros. As pesquisas a respeito estão adiantadas e a nucleoeletricidade segue sendo o único vetor energético já industrialmente rodado, com ca- pacidade para livrar os países da dependência dos hidrocarbonetos. Não porque estejam es- tes chegando ao fim, mas para impedir que acabem com o meio-ambiente do planeta. Deixar a governos nacionais, nem sempre ha- bilitados, a responsabilidade exclusiva pelo re- curso a etapas do ciclo do combustível nucle- ar, em particular a espinhosa e caríssima dis- posição dos dejetos radioativos, é por demais perigoso. A opinião pública mundial dificil- mente tolerará a Segunda Idade Nuclear se ocorrerem acidentes do tipo de Chernobil. De todo modo, é previsível que o assun- to seja absorvido em prazo médio pelo que JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA Gilberto Dupas, em livro recentíssimo, iden- tificou como o surgimento no cenário global de uma esfera de soberania, perfeitamente si- métrica à soberania estatal, mas oriunda da combinação da globalização econômica com o controle da ciência e da tecnologia por gran- des empresas transnacionais. Os materiais e tecnologias inovadores em que se esteará a Segunda Idade Nuclear estão sendo desenvol- vidos e testados nos laboratórios de grandes empresas, mesmo quando sob forte financia- mento governamental. O mundo parece inclinado a ter que recorrer a uma Segunda Idade Nuclear: um novo surto do uso industrial da energia nuclear, apoiado em reatores e tecnologias imanentemente seguros.
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