Buscar

oriente medio e a democracia

Prévia do material em texto

1
INFORMATIVO DO GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL − N 25 − ANO 7 − MAI/JUN 05
ORIENTE MÉDIO
O ORIENTE MÉDIO RUMO
À DEMOCRACIA?, 1
ENSAIO
DE VOLTA À ESTACA ZERO, 4
AMÉRICA LATINA
ESPERANÇAS E FRUSTRAÇÕES
LATINO-AMERICANAS, 6
ENSAIO
 ARGENTINA PÓS-MORATÓRIA, 8
COMÉRCIO INTERNACIONAL
TUDO COMO D’ANTES NO
QUARTEL D’ABRANTES, 10
ENSAIO
UMA NOVA GEOMETRIA
DE INTERESSES NA OMC, 12
ÁSIA
CORÉIA DO NORTE E IRÃ SOB
A ÓTICA DA NÃO PROLIFERAÇÃO, 14
D A C O N J U N T U R A I N T E R N A C I O N A L
PANORAMA
O
 ORIENTE MÉDIO RUMO
À DEMOCRACIA?
GACINT
Oriente Médio entrou num período turbulen-
to. Seus passos rumo à democratização se com-
provarão sólidos e duradouros? Ou será a “de-
mocracia” apenas a plataforma de decolagem
de novos ditadores ou regimes fundamentalis-
tas? A questão não é idêntica, mas interage com
outra crucial: o Oriente Médio entrará numa
nova corrida armamentista incentivada pela
nuclearização do Irã – com conseqüências crí-
ticas para a segurança mundial, que já vem sen-
do ameaçada pelo terrorismo islamista?
TRÍPLICE IMPASSE
A atual conjuntura médio-oriental é o resul-
tado de três “derrotas recíprocas” nos últimos
quatro anos: o fracasso palestino em interna-
cionalizar a intifada e o israelense em supri-
mi-la; o fracasso de Osama bin Laden em pro-
vocar um jihad global contra os EUA e o esta-
dunidense em vencer a “guerra contra o ter-
ror”; e o fracasso do Iraque em pacificar a re-
sistência contra a ocupação estadunidense, e
desta em expelir os EUA ou bloquear seu pro-
jeto democrático. No fim de 2004 estivemos
num tríplice impasse, quando uma série de
eleições e movimentos de emancipação popu-
lar começaram a sacudir a areia – no Afeganis-
tão, na Palestina, no Iraque, com notáveis efei-
tos no Líbano, Arábia Saudita, Egito e até Pa-
quistão. Embora todos tenham raízes locais –
resultado da fragmentação política do arco
islâmico – eles são também interligados.
Em Israel/Palestina a intifada já estava nas
últimas quando a morte de Arafat abriu um
espaço político inesperado. Mahmud Abbas,
crítico corajoso, mas pouco carismático, da vio-
lência anti-israelense, era o candidato por inér-
cia, mas sua eleição foi o prelúdio do cessar-
fogo mais prometedor dos últimos anos. Im-
possível prever se a calma se manterá. Depen-
derá do líder palestino impor um controle so-
bre as facções mais
extremistas, sem pro-
vocar uma guerra ci-
vil intrapalestina ou
novos ataques contra
Israel, pois estes pro-
porcionariam à direi-
ta israelense o pretex-
to ideal para parar a
retirada da Faixa de
Gaza. Para Sharon, a
retirada serve só para
consolidar a posse is-
raelense da Cisjor-
dânia. Porém, se a re-
tirada se realizar, que-
brará um tabu israe-
lense e abrirá uma
caixa de Pandora que
o PM israelense não
conseguirá mais con-
PETER DEMANT*
ORIENTE MÉDIO
2
trolar. Uma vez retomadas as negociações,
ambos os lados reenfrentarão os dilemas res-
ponsáveis por seu fracasso em 2000. É impro-
vável que Sharon ofereça um Estado viável aos
palestinos. Porém, a maioria dos israelenses é
mais progressista e com ambas as populações
ansiosas pela paz, um ideal mutuamente acei-
tável poderia estar ao alcance – com ou sem
Sharon.
DOMINÓ DEMOCRÁTICO
No Iraque, independentemente dos motivos
da invasão norte-americana, 80% da popula-
ção – os xiitas e curdos oprimidos pelo regime
de Saddam Hussein – ficou aliviada com sua
queda e acabou abraçando o projeto de auto-
determinação proposto pelo ocupador (sem por
isso se tornarem pró-americanos!). Os 20%
restantes, os sunitas ex-dominadores, reagiram
com violência, conseguindo, por enquanto,
impedir a reconstrução da nação “auxiliados”
por gravíssimos erros estadunidenses. O caos
e as atrocidades seguintes – amplamente
publicadas – pareceram tornar o ‘modelo
iraquiano’ motivo de gozação, solapando a es-
perança do “dominó democrático” dos neocons
norte-americanos.
Afinal, está acontecendo uma virada neste
jogo? Dois fatores recentes apontam nesta di-
reção. Primeiro, apesar das circunstâncias difi-
cílimas e do maciço boicote sunita, as eleições
tiveram grande adesão. A corajosa participação
popular deslegitimou a “resistência”, que mais
e mais usa de terror antixiita para fomentar uma
guerra civil, e criou a base para uma solução
política não-violenta dos problemas do Iraque.
Negando aos xiitas uma vitória eleitoral total,
os iraquianos realmente obrigam seus deputa-
dos a buscar fórmulas constitucionais consen-
suais para permitir a coexistência entre as co-
munidades. Essas devem incluir (esperemos
que com um significativo input sunita): uma
ênfase substancial, mas não exclusiva, no islã
como fonte da legislação, mantendo o essenci-
al dos direitos das mulheres; uma autonomia
federal ampla, mas não completa para os
curdos; e a retirada gradual das tropas estran-
geiras – de mãos dadas com a capacitação das
forças de segurança iraquianas, treinadas pelos
EUA.
De fato, isto é o segundo fator crucial. A
resistência sofreu uma série de reveses. Uma
ofensiva do tipo “Tet” à vietnamita não mais
aponta no horizonte. Não é menos importante
que as próprias forças iraquianas tenham um
papel cada vez mais visível, além dos sinais de
que a população civil não suporta mais as táti-
cas sangrentas dos insurgentes.
Neste contexto eclodiu a crise libanesa. Ela
não é conseqüência direta da questão iraquiana,
mas não pode ser desvinculada dela. Por longo
período, o Líbano foi a sociedade árabe mais
urbanizada e secularizada. Ao mesmo tempo,
permaneceu muito fragmentada por divisões
sectárias e étnicas, a ponto de efeitos do con-
flito israelo-palestino (a presen-
ça de uma ampla minoria de re-
fugiados palestinos, e as inva-
sões israelenses que eles atraí-
ram) causarem a implosão de
seu frágil sistema político. A
guerra civil de 1975 a 1990 ter-
minou com a dupla saída, tanto
de Israel quanto da OLP – mas
ao preço de um protetorado
sírio. De sua parte, a Síria fora
durante décadas o epicentro do
nacionalismo pan-árabe e nun-
ca aceitou a “cirurgia imperia-
lista” que criou um Líbano in-
dependente e ocidentalizado a
partir de pedaços cortados do
“território árabe nacional”.
A intervenção síria no Líba-
no, vizinho mais desenvolvido,
acabou trazendo a nêmese. Após
a guerra civil, que terminara
com a exaustão mútua dos ad-
versários, os libaneses se entre-
garam com energia à reconstru-
ção que trouxe a modernização
e tornou o pesado controle sírio
cada vez menos aceitável. Assim
o assassinato de Rafiq Hariri, o político que
encarnou as aspirações “globalizantes” do Lí-
bano, provocou uma maciça reação anti-síria.
A pressão começa a dar frutos. Contudo, duas
perguntas continuam assombrando a cena da
retirada Síria. Em primeiro lugar, conseguirá o
Líbano, que ainda é uma sociedade muito fra-
turada, a paz e a estabilidade internas? Muito
dependerá do Hezbollah. O “Partido de Deus”
xiita possui uma substancial milícia, fortemente
anti-israelense. Desligar-se de seus protetores
sírio e iraniano será difícil; desarmar-se, quase
impossível. Porém, uma democracia libanesa
precisará disto para funcionar. Em segundo
lugar, quanto tempo a ditadura de Asad sobre-
viverá à retirada? Se todos os vizinhos se de-
mocratizarem, seus dias estarão contados. Isto
Não é menos
importante que
as próprias
forças
iraquianas
tenham um
papel cada vez
mais visível,
além dos sinais
de que a
população civil
não suporta
mais as táticas
sangrentas dos
insurgentes.
3
PETER DEMANT é responsável pela área temática Oriente
Médio.
deixaria o Irã, regime explicitamente antioci-
dental, combinando traços teocráticos e demo-
cráticos, outrora ‘darling’ regional da esquerda
internacional, como único pária – uma Cuba
médio-oriental?
O papel regional do Irã deve aumentar, tan-
to pela sua proximidade com o Iraque quanto
porseus esforços em desenvolver armas nu-
cleares. O Irã tem muitas razões para desen-
volver energia nuclear e ADMs: uma depen-
dência demasiada no petróleo; vizinhos nucle-
ares; a hostilidade dos EUA, que só um escudo
nuclear pode amortizar. Também reune as
precondições necessárias. Islamistas naciona-
listas radicais derrotaram a oposição reformis-
ta e a renda petrolífera torna a liderança imune
às pressões. É duvidoso que uma política con-
junta americana-européia ainda consiga desviá-
lo de seu percurso. Apenas um renascimento
das próprias forças progressistas internas con-
seguiria isto, mas estas parecem estar desgasta-
das. Uma intervenção militar (estadunidense
ou israelense) parece complicada. Um Irã nu-
clear engatilhará uma corrida armamentista
regional?
INTERESSES CONTRADITÓRIOS
A neutralização dessa ameaça se condiciona ao
êxito do processo de democratização regional?
Medidas experimentais – talvez blefes para apa-
ziguar os EUA, talvez arautos de mudanças
mais significativas – observam-se no Egito,
onde Mubarak prometeu eleições presidenci-
ais multipartidárias; Arábia Saudita, país pivô
rasgado por tensões culturais-identitárias, rea-
lizou eleições municipais limitadas aos homens.
Porém, a imagem não é tão clara. O atual e ex-
plícito comprometimento norte-americano
com a democracia – vista como antídoto ao ex-
tremismo islamista – contradiz seu apoio ante-
rior a ditadores anticomunistas, durante e de-
pois da Guerra Fria, despertando suspeitas. Não
é completamente consistente, nem destituído
de motivos menos nobres. Por exemplo, no
caso do Paquistão, onde condições de segurança
superam os “credos” democráticos – graças a
sua postura contra al-Qaeda – o ditador Mu-
sharraf continua se beneficiando do apoio es-
tadunidense. Nesse país empobrecido, cuja
identidade islâmica nunca foi satisfatoriamen-
te resolvida, a emancipação não pode ter outra
cor senão islamista. Um eixo real Islamabad-
Teerã-Damasco será bem mais perigoso do que
o “Eixo do Mal” de Bush...
Apesar de alguns sinais positivos, não te-
mos garantias que a democratização será ple-
namente realizada ou se tornará a panacéia para
os males do Oriente Médio. Diferentemente
das sociedades da Europa Oriental e da Améri-
ca Latina, a democratização encara, nas socie-
dades médio-orientais, significativos desafios
internos. Contra-forças antidemocráticas estão
presentes em certos movimentos populares.
Islamistas constituem a maior oposição em pa-
íses da Tunísia e do Egito até a Arábia Saudita e
o Paquistão. Isto não quer dizer que o islã é em
si incompatível com a democracia (Turquia,
Bósnia e Indonésia desmentem tal argumen-
to), nem que islamistas não podem funcionar
num contexto democrático.
Em primeiro lugar, em países sem consoli-
dação institucional da democracia e sem inte-
gração de valores democráticos na cultura po-
lítica, o islamismo radical constitui uma tenta-
ção totalitária que pode estragar a transição de-
mocrática. Em segundo, por mais encorajado-
res que pareçam as ondas democráticas, elas
acontecem por razões erradas. Os palestinos vo-
taram para se livrar dos israelenses, os iraquia-
nos dos americanos e os libaneses dos sírios.
Em todos esses casos a democracia é instru-
mentalizada por fins nacionalistas. A constru-
ção certa da democracia pede motivos mais
puros. Em terceiro lugar, não há certeza de que
a “paz democrática” (democracias não travam
guerras entre si) é valida no Oriente Médio.
A paz com Israel é mais impopular no Egi-
to e Líbano do que entre palestinos. Finalmen-
te, tirar o poder dos potentados árabes para
outorgá-lo aos povos gerará regimes mais legí-
timos, mas não necessariamente mais pró-oci-
dentais. Na hipótese de que as regras do jogo
parlamentar, por fim, acabarão mitigando os pi-
ores rancores (e há muita folga neste “por
fim”!), uma multidão de interesses e valores
opostos continuará existindo. Aceitar democra-
tas antiocidentais constituirá a prova da since-
ridade dos EUA.
Apesar das precauções, o movimento rumo
ao “poder popular” seria uma esperança para o
Oriente Médio. Só democracias permitem que
populações aprendam com seus erros. Devemos
torcer para que o mecanismo da auto-correção,
embutido na democracia, modifique, no longo
prazo, o modo dos muçulmanos médio-orien-
tais se relacionarem com sua religião, suas mu-
lheres e minorias não-muçulmanas ou não-ára-
bes e – finalmente – com o próprio ocidente.
4
O
DE VOLTA À ESTACA ZERO
ENSA IO
primeiro ministro de Israel Ariel Sharon e o
líder palestino Mahmoud Abbas (Abu Mazen)
chegaram a um acordo para transferir à Auto-
ridade Palestina o controle de cinco das cida-
des palestinas ocupadas por Israel.
Os otimistas verão o evento como o início
de uma nova fase de aproximação entre as par-
tes, de colheita dos resultados das negociações,
iniciadas após o desaparecimento de Arafat do
cenário. Já vimos este filme: negociações, tré-
gua, retirada de tropas, autonomia limitada. Is-
rael retirou suas forças das principais cidades
palestinas, como resultado dos acordos de Oslo
em 1993, somente para reocupá-las, há três
anos, em resposta à onda de atentados suicidas
que caracterizaram a renovada Intifada.
Ainda hoje discute-se até que ponto a vio-
lência esteve sob controle da Autoridade Pa-
lestina. A retomada da violência teve variadas
justificativas: 1) com o objetivo político de ob-
ter suporte popular para a reabertura dos acor-
dos de 1993, permitindo, assim, a inclusão do
tema dos refugiados em uma futura decisão;
2) dar legitimidade à Autoridade Palestina (AP),
desgastada por acusações de corrupção, favori-
tismo e condições econômicas cada vez mais
precárias da população; 3) melhorar a posição
da AP na disputa interna com os grupos islâ-
micos como o Hamas, embora aí houvesse uma
diferença de opinião interna. As facções pales-
tinas favoráveis à violência assumiram que po-
deria repetir-se a experiência do sul do Líbano,
com uma retirada israelense que gerasse uma
posição de força em futuras negociações sobre
Jerusalém e os refugiados.
Os mais moderados, engajados nas nego-
ciações (e beneficiados pela cooperação com os
israelenses) reconheciam a superioridade mi-
litar israelense e o risco de uma brutal retalia-
ção por parte das forças armadas de Israel.
Uma coisa é certa: os palestinos nunca po-
deriam imaginar que suas ações levariam à con-
solidação de uma maioria israelense solidamen-
SAMUEL FELDBERG*
te postada por trás de um governo de união
nacional, com a esquerda israelense pratica-
mente neutralizada. Este governo logrou der-
rotar a Intifada armada com ações retaliatórias
de grande amplitude, construiu a barreira de
separação física, incorporando ao território is-
raelenses significativas áreas fora da Linha Ver-
de, e gerou o plano de desengajamento unila-
teral de Gaza que, dizem seus críticos, permi-
tirá a Sharon concentrar-se na ocupação dos
territórios da Margem Ocidental.
Após mais de quatro anos de uma espiral
de violência que parecia não ter fim, a volta às
origens de 1993 representa sem dúvida uma
derrota para os palestinos. Não serão repetidas
as ofertas de Camp David, nem estão mais em
vigor as propostas de Clinton, que assumiam a
existência “de facto” de um Estado palestino. As
propostas do ‘Mapa da Estrada” deixam em
aberto a questão das fronteiras, mantém as re-
soluções 242 e 338 da ONU como base para
futuras negociações, e condicionam a retoma-
da do diálogo ao controle, por parte da Autori-
dade Palestina, das ações contra Israel.
Talvez seja simbólico o fato da atual retira-
da ocorrer inicialmente na área de Tulkarem,
de onde saiu o terrorista suicida que cometeu
o último atentado em Tel Aviv, que matou cin-
co israelenses e quase interrompeu a trégua
recém-estabelecida. Demonstra, talvez, o
envolvimento do atual governo israelense, e
sua capacidade de conter-se e não reagirà pro-
vocação que tem por objetivo óbvio descarrilar
o processo de desengajamento e manutenção
das negociações com o governo de Abu Mazen.
As pesquisas de opinião pública, em Israel,
mostram que 60% a 70% da população apóia a
proposta de retirada israelense da Faixa de
Gaza, aliada à idéia de um Estado palestino in-
dependente coexistindo lado a lado com Isra-
el. Entretanto, ao mesmo tempo, o governo
israelense de união nacional promove, parale-
lamente à retirada, a extensão de assentamen-
5
SAMUEL FELDBERG é membro titular do Gacint.
tos na Margem Ocidental que muito prova-
velmente definirão a fronteira entre os dois
Estados. Fica no ar a pergunta: que efeito terá
a retirada de Gaza se não houver continuidade
no processo que permita o surgimento de um
Estado palestino viável.
O conflito entre israelenses e palestinos
representa, no momento, somente uma fração
das questões regionais, provavelmente não a
mais importante. O Iraque continua ocupado
por tropas norte-americanas, com amplas ati-
vidades de insurgentes impedindo a normali-
zação da vida no país; a Síria, somente dispõe-
se a movimentar suas tropas no Líbano frente
à intensa mobilização internacional. No pró-
prio Líbano surge o espectro da renovada vio-
lência, tão presente na memória da recém en-
cerrada guerra civil, com o Hizbollah apostan-
do no aumento de sua capacidade de influen-
ciar a sociedade libanesa após a eventual retira-
da Síria.
O Irã tornou-se o centro das atenções dos
EUA como mais novo candidato a membro do
diram por uma interrupção da violência con-
tra Israel, permitindo substituir o conflito por
uma retomada das negociações. A renúncia à
violência é tão importante no contexto da dis-
puta israelo-palestina (permitindo ao sucessor
de Arafat contornar a exigência do “Mapa da
Estrada” de desarmar as estruturas dos grupos
islâmicos radicais – o que poderia gerar uma
sangrenta disputa) quanto para a consolidação
do novo governo eleito da Autoridade Palesti-
na, encerrando o período de anarquia provo-
cado pela Intifada armada e a fuga de seu con-
trole dos grupos armados engajados, não só em
ataques contra os israelenses, mas também no
estabelecimento de “feudos” principalmente
nos territórios da Margem Ocidental.
Os acordos talvez sejam o prenúncio de
uma incorporação do Hamas e da Jihad Islâ-
mica ao processo político palestino (“a la
Hizbollah”) ficando pendente, assim como no
Líbano, a desmilitarização das duas organiza-
ções. Assim, o Hamas poderá colher nas urnas
o resultado de seu engajamento nos quatro anos
de Intifada, conseguindo eventualmente até
uma maioria que lhe permita vetar decisões da
cúpula palestina em futuras etapas das negoci-
ações com Israel. Por outro lado, se a liderança
do Hamas (o que dela restou) estiver conside-
rando um possível fracasso das negociações e
uma retomada da violência, um período de
tranqüilidade certamente permitirá a recons-
trução de suas forças após a efetiva repressão
israelense dos últimos anos.
Assim que diminuir a violência no Iraque
e a relação Líbano/Síria estiver estabilizada, a
questão palestina voltará a estar no centro das
atenções dos membros do Quarteto que cria-
ram o Mapa da Estrada. Terão então que deci-
dir se esta será vista como uma temática ligada
ao terrorismo (com todas as implicações de-
correntes do 11 de Setembro) ou como uma
questão de auto-determinação, eleições livres
e de uma população lutando contra a discrimi-
nação e o apartheid.
Enquanto isto, o governo israelense, ainda
que com algumas dissidências em relação a seus
planos, avança com objetivos concretos e bem
definidos, com a conivência – quando não com
o declarado apoio – dos EUA, aproveitando-se
de um momento em que os palestinos não são
capazes de decidir quem é o responsável por
seu futuro.
clube nuclear, talvez imune às
ameaças dos EUA de ações
unilaterais que venham a des-
truir sua capacidade de proces-
samento de urânio (bem dis-
persas e protegidas, ao contrá-
rio do reator iraquiano destruí-
do pelos israelenses). Alguns
analistas acreditam que so-
mente uma intervenção norte-
americana, forçando a reversão
das ações israelenses, poderia
garantir a continuidade do pro-
cesso de paz e a estabilidade do
governo palestino, que não su-
portaria a criação de novas re-
alidades por parte dos israelen-
ses nos territórios. Se a retira-
da da Faixa de Gaza não se se-
guir a uma ampla retirada da
Margem Ocidental, a conclu-
são da população palestina, provavelmente, será
de que Abu Mazen estava errado e que a dimi-
nuição da violência e a aposta nas negociações
com os israelenses tampouco são capazes de
produzir os resultados que os atentados não ob-
tiveram.
Do lado palestino houve importantes mu-
danças: além da eleição de Abu Mazen (em um
processo surpreendentemente democrático),
em 17/03/2005 a Fatah, Hamas, a Jihad Islâmica,
e várias organizações palestinas menores, deci-
O conflito entre
israelenses e
palestinos
representa, no
momento,
somente uma
fração das
questões regionais,
provavelmente
não a mais
importante.
6
N
 ESPERANÇAS
E FRUSTRAÇÕES
LATINO-AMERICANAS
a história dos países latino-americanos depara-
mos com ciclos de esperanças e de grandes frus-
trações. Como estamos hoje?
Se olharmos a Bolívia ou o Haiti – os paí-
ses mais pobres segundo estatísticas da ONU
– estamos em fase de frustrações, ainda que essa
tendência não deva ser considerada absoluta.
Se olharmos o Uruguai – com a posse recente
do presidente Tabaré Vásquez – vislumbramos
esperanças, mas não certezas.
BOLÍVIA
Na Bolívia, após a crise de 2003, assiste-se, nes-
tes primeiros meses de 2005, a repetição de si-
tuações que poderiam sugerir um clima de
ingovernabilidade. A origem imediata, dessa
nova fase crítica, está no referendo de julho de
2004. A origem remota está na história de ex-
trema pobreza, na marginalização das popula-
ções indígenas e no sentimento de inexistência
de direitos e do respeito. Entre os pontos, apro-
vados no referendo, está o que estabelece que
sejam “cobrados impostos e direitos de explo-
ração às empresas petroleiras até 50% do valor
da produção de gás e petróleo, em favor do
país”. Torna-se, assim, evidente que o resulta-
do do referendo está sujeito a interpretações.
O governo do presidente Carlos Mesa pro-
curou usar o espaço da indefinição para tentar
uma solução que conciliasse o nível de reivin-
dicações de tendências políticas – como o Mo-
vimento ao Socialismo (MAS) dirigido por Evo
Morales, a Central de Trabalhadores Campo-
neses e uma parte da Central Operária Bolivi-
ana (COB) – com a possibilidade de manu-
tenção de investimentos estrangeiros, que pa-
recem necessários para a continuidade da ex-
ploração econômica da maior riqueza bolivia-
na atual: o gás. Para isso, o governo propõe a
manutenção da taxa de 18% na cobrança de
royalties, ao que se acrescentaria um imposto
complementar sobre hidrocarbonetos de 32%,
com alíquota sujeita a descontos e compensa-
TULLO VIGEVANI*
AMÉRICA LATINA
ções, viabilizando, desse modo, um espaço de
negociação com as empresas instaladas ou que
pretendem investir no país. Contrariamente a
isso, na interpretação de Evo Morales, se hou-
vesse a cobrança de direitos de exploração no
valor de 50% se resolveriam, definitivamente,
as questões do déficit fiscal e haveria recursos
adicionais para investimentos e para políticas
sociais de parte do Estado. Novamente,
encontramo-nos frente ao dilema, discutido
A crescente onda
de protestos na
Bolívia, tendo
seu centro
a cidade de
El Alto, fez
ressurgir o quadro
de outubro
de 2003, que
levou à renúncia
de Lozada.
por Max Weber, da separação
entre justiça e realidade.
Observe-se que o Brasil –
que tem interesses econômi-
cos e políticos na região, que
pauta sua política exterior pro-
curando equacionar a compre-
ensão de situações específicas(medidas de cooperação eco-
nômica e realismo) – frente ao
debate boliviano é levado a
afirmar, na declaração da mi-
nistra de Minas e Energia,
Dilma Rousseff, que se a tri-
butação for elevada a 50%
inviabilizará novos investi-
mentos e bloqueará os proje-
tos de cooperação, já em anda-
mento, entre os dois países.
A crescente onda de pro-
testos, nas duas primeiras se-
manas de março, para depois temporariamen-
te decrescer, tendo seu centro a cidade de El
Alto, fez ressurgir o quadro de outubro de 2003,
que levou à renúncia do presidente Sánchez
de Lozada. Carlos Mesa buscou algumas solu-
ções, evidenciando a questão da governabili-
dade, e colocando os movimentos sindicais,
políticos e étnicos frente à necessidade de co-
laborarem para achar alguma saída. Seu pedi-
do de renúncia, em 8 de março parece ter tido
esse objetivo. Rejeitado logo depois pelo con-
gresso, manteve o mandato presidencial até
7
TULLO VIGEVANI é responsável pela área temática
América Latina.
2007. As soluções apresentadas pelo governo
apóiam-se em alguns pontos: 1) manter o equi-
líbrio entre o máximo de vantagens nacionais
com a preservação das exportações e dos in-
vestimentos; 2) buscar um acordo nacional que
garanta produção, emprego e inclusão social;
3) eleição de prefeitos, autonomia dos depar-
tamentos e assembléia constituinte; 4) neces-
sidade de por fim aos bloqueios e à desordem.
O caso boliviano demonstra o contexto no qual
alternam-se expectativas e frustrações. As ri-
quezas naturais da nação – como foi o estanho
no início dos anos cinqüenta – são entendidas
pelos marginalizados como próprias.
A construção da esperança produz a neces-
sidade da apropriação para o bem de todos.
Como ensinam todas as teorias econômicas oci-
dentais (e este é um ponto do debate), o valor
da riqueza não está na existência de bens natu-
rais em si mesmos, depende do valor de uso e
do valor de troca. Isso rebate nos vínculos com
o mercado. Daí essa gangorra da história.
Em alguns Estados e em algumas culturas,
surge e ressurge a idéia da autarquia, ainda que
sob diferentes formas, que vão do nacionalis-
mo puro ao desinteresse pela produção e a de-
fesa de formas alternativas de vida – bucólicas
ou auto-sustentáveis. Nesse exato momento,
essas perspectivas têm peso e influência naque-
les países onde a presença de antigas e fortes
culturas – cuja incidência na vida social, polí-
tica e econômica é grande – levam à perma-
nente busca de saídas diferentes daquelas esti-
muladas pela globalização e pela expansão do
capital. Por isso, ao mesmo tempo há esperan-
ça, às vezes com conteúdos místicos, e frustra-
ção. Esta última resultante das dificuldades na
formulação de sólidos projetos de desenvolvi-
mento.
HAITI
No Haiti encontramos uma situação onde as
frustrações parecem predominar. Como expli-
car a evolução do governo Jean-Bertrand
Aristide, destituído em fevereiro de 2004, re-
sultado de um movimento contra o absolutis-
mo dos Duvalier?
O atual primeiro ministro Gerard Latortue,
segundo intelectuais como Laënnec Hurbon,
parece tampouco ter um projeto definido para
o país, tanto no que tange à segurança, quanto à
implantação de políticas sociais e de desenvol-
vimento. Nesse caso, o perigo da situação afe-
tar as forças da ONU ali presentes, cuja Mis-
são para a Estabilização do Haiti (Minustah) está
sob o comando brasileiro, é evidente. Latortue
parece ter dúvidas sobre o papel da Missão, ao
queixar-se, em entrevista ao Le Monde, que “por
questões de segurança, em relação à vida de seus
homens, a Minustah recusa-se a levar avante
operações conjuntas com a polícia haitiana. Ela
se satisfaz com o enquadramento das operações
com os seus blindados”.
Essa questão não pode ser subestimada e
haveria indícios de que os esforços internacio-
nais não conseguem contribuir para a constru-
ção de políticas de longa duração. O governo
brasileiro parece ciente disso e os esforços, no
sentido de colaborar para um acordo político
no Haiti, estão no centro das ações diplomáti-
cas e pára-diplomáticas. Ao não desenvolver-
se uma sociedade civil e política com a solidez
mínima, que viabilize a construção do Estado,
as esperanças que poderiam surgir correm o
risco de serem frustradas.
URUGUAI
Em linha diferente estaria o caso do Uruguai.
Este país, próspero e equilibrado durante os
primeiros sessenta anos do século XX – graças
às suas exportações competitivas de carne e lã
– a partir da década de sessenta entrou em fase
de decadência. O crescimento da Frente Am-
pla, iniciado nos anos oitenta e que tem o seu
auge em 2005, com a eleição de Tabaré Vasquez,
pode trazer uma renovada esperança ao país,
que terá, no entanto, que lidar com alguns pro-
blemas. A base produtiva do Uruguai foi
destruída, mantendo-se relativamente compe-
titiva em alguns poucos produtos, sobretudo
agrícolas, lácteos e arroz. A modernização das
estruturas financeiras brasileira e argentina e
os novos avanços no ordenamento financeiro
internacional, provavelmente diminuirão a im-
portância do Uruguai como praça off shore. O
fortalecimento do Mercosul poderia trazer
novas oportunidades, mas as dificuldades do
bloco colocam em dúvida esse caminho. Certa
semelhança ideológica com os governos argen-
tino e brasileiro não assegura concordância na
substância das políticas, com mostram as posi-
ções diferentes no tocante à OMC e ao Con-
selho de Segurança da ONU. Desse modo, a
esperança renovada da população uruguaia, que
encerrou a secular alternância de blancos e
colorados, deve ser vista com cautela.
8
ARGENTINA
PÓS-MORATÓRIA
O
ENSA IO
ANA MARIA STUART*
governo argentino passou por uma grande pro-
vação e é necessário avaliar as posições presen-
tes no governo e na sociedade à luz do sucesso
do operativo de reestruturação de parte da dí-
vida. Os 76,15% de adesão ao programa legiti-
maram a estratégia do governo em busca de
uma saída honrosa para a moratória decretada
em fins de 2001.
Em primeiro lugar, chama a atenção a re-
percussão positiva na grande imprensa argen-
tina. Era razoável esperar reações muito críti-
cas ao governo por parte de setores que histo-
ricamente tem aderido aos preceitos estabele-
cidos pelo establishment financeiro internacio-
nal, mas há que reconhecer que o governo, e
em especial o ministro de Economia Lavagna,
conseguiu contornar todos os obstáculos e an-
gariar apoios internos e externos, como o do
próprio governo Bush que, em inusitada liga-
ção telefônica no último 29 de março, elogiou
o progresso da economia argentina prometen-
do trabalhar para aumentar os investimentos
no país.
A estratégia do governo Kirchner de res-
ponsabilizar os organismios internacionais
como partícipes da crise financeira argentina
está no centro da explicação desse sucesso.
Rodrigo de Rato, diretor gerente do FMI con-
firma: “Las autoridades argentinas han reconocido
que las políticas inconsistentes del pasado contribuyeron
al aumento de la deuda externa. Yo sugeriría también
que el sector financiero internacional analice el rol que
tuvo facilitando ese sobreendeudamiento, y colocando
una parte importante de esa deuda en manos de in-
versores minoristas relativamente poco sofisticados” 1
É imperativo usar diversas lentes para in-
terpretar a realidade argentina atual em toda sua
complexidade. Do ponto de vista da política, o
presidente Kirchner continua em alta e seu
governo está muito bem avaliado pela socieda-
de. No mês de março a confiança no governo
aumentou 17% em relação ao mês anterior.
Segundo Sergio Berensztein, da universidade
Di Tella e responsável por essa pesquisa, a ex-
plicação encontra-se na percepção positiva da
população sobre a capacidade do governo de
resolver seus problemas (75% dos entrevista-
dos pensa que o governo está resolvendo os
problemas do país e sabe como fazê-lo). 2
Do ponto de vista da economia, a vedeteé
o expressivo crescimento econômico. Duran-
te 2004 o PIB aumentou 9%, com base no au-
mento das exportações e do consumo interno.
Quatro itens contribuíram com aproximada-
mente 60% dessa melhora: indústria, comér-
cio, construção e logística (transporte, arma-
zenagem e comunicações). Os setores vincu-
lados a serviços foram responsáveis por 47,4%
do crescimento total do PIB, enquanto que al-
gumas atividades primárias registraram retro-
cesso. Entre estas, a agricultura, a pecuária e a
caça (queda de 1%), a mineração (queda de
0,4%) e a pesca (queda de 19%). Outro dado
interessante do relatório do INDEC é a queda
de 5,5% do setor de intermediação financeira.
Os setores que apresentam tendência de maior
dinamismo para 2005 são a indústria química,
do papel, de alimentos e bebidas e a automotiva.
Enfim, a economia conseguiu recuperar o ter-
reno perdido desde o início da recessão em
1998. Mesmo quando os índices sociais estão
ainda muito deteriorados, com importantes
setores submergidos na pobreza e na indigên-
cia, os dados do crescimento da economia per-
mitem percepções otimistas.
Não obstante, há nuvens no horizonte pró-
ximo e elas carregam a pior das ameaças possí-
veis para o imaginário popular: inflação. Por-
que a memória desse fenômeno é muito ex-
tensa na Argentina e as terríveis conseqüências
da hiperinflação (governo Alfonsín) ainda re-
percutem no subconsciente popular, o presi-
dente Kirchner agiu rapidamente. Como in-
terpreta o cientista político Juan Manuel Abal
Medina: “frente a un fantasma inflacionario capaz
de malograr la recuperación económica, el gobierno
9
ANA MARIA STUART é membro titular do Gacint.
puede enfrentarse solo con los débiles instrumentos
estatales de política monetaria o “politizar” la
discusión, incitar la participación ciudadana, desde la
legitimidad del Presidente.” Essa é uma explicação
plausível para a ação aparentemente intempes-
tiva de Kirchner contra a Shell, acusando a
empresa de aumento desmedido do preço da
gasolina e chamando o povo a boicotar os pos-
tos. O objetivo foi deixar clara a condenação
do Presidente às empresas que aumentarem os
preços. É uma estratégia arriscada que o gover-
no Kirchner já usou em outros momentos e
que parece estar dando certo. Como 2005 é ano
eleitoral, a política deverá reger os movimen-
tos sobre a economia e a sociedade.
Os setores sociais organizados, em especial
o movimento sindical, estão manifestando suas
preocupações. Assim, o titular da CGT, Hugo
Moyano, enfrentou abertamente o ministro de
Economia Lavagna que havia criticado a cen-
tral sindical por reivindicar aumento do salá-
rio mínimo de 450 pesos para 630 pesos.
A Argentina já foi caracterizada como um
país onde sempre existiu uma intensa disputa
distributiva entre o mundo da produção e o
mundo do trabalho, em especial depois da ex-
periência do governo de Perón (1945-1955). A
tentativa de desmantelamento do Estado, gran-
de mediador dessa disputa, foi objetivo central
dos governos ditatoriais (1976-1983) e do go-
verno Menem (1989-1999). Depois da crise
final do governo De la Rua (dezembro de 2001)
houve um esforço importante do governo
Duhalde para restabelecer as relações do Esta-
do com a sociedade fortemente abaladas pela
queda completa de representatividade do go-
verno da Aliança União Cívica Radical (UCR)-
Frente País Solidário (FREPASO). Hoje, o go-
verno Kirchner enfrenta o desafio de continu-
ar na mediação de interesses, sem perder a pers-
pectiva de recuperar as perdas dos setores que
sofreram mais fortemente os impactos da crise
econômica.3
A palavra de ordem no governo argentino
é “conciliar interesses”. Vários representantes
de diferentes esferas governamentais fizeram
declarações sobre a necessidade de compatibi-
lizar as possibilidades reais do setor produtivo,
sem afetar o crescimento da economia. Logi-
camente, os representantes sindicais alegam
que a recuperação do poder aquisitivo dos sa-
lários vai garantir a continuidade do processo
de crescimento da economia, mas o ministro
Lavagna discorda e sustenta que os aumentos
de salários devem ficar atrelados a critérios de
produtividade, rejeitando a tese do aumento
geral. A projeção de uma inflação de dois dígi-
tos e a queda das taxas de desemprego aumen-
tam a tensão em torno do debate.
A sociedade argentina, submetida às con-
seqüências do agravamento da desigualdade
social (aumento da marginalidade e da crimi-
nalidade, principalmente) não apresenta mu-
danças significativas, apesar dos avanços polí-
ticos e econômicos. Um recente trabalho do
sociólogo Artemio López, demonstra que a
queda da pobreza não teve impacto no padrão
de distribuição da riqueza. Resumidamente, os
resultados da pesquisa apontam que a diferen-
ça entre a faixa dos 10% mais ricos e dos 10%
mais pobres aumentou em 35% desde a déca-
da de noventa, considerada a década mais re-
gressiva da história argentina até a explosão da
crise de 2001 e a desvalorização cambial poste-
rior. A conclusão é que as melhoras substan-
ciais nos indicadores macroeconômicos não se
refletem automaticamente nos indicadores só-
cio-econômicos, que são os que têm impacto
direto no cotidiano dos cidadãos.
No plano institucional, o caso do bispo
Antonio Baseotto tornou-se um exemplo dos
avanços do governo Kirchner para democrati-
zar o Estado. O governo, por decreto presiden-
cial, retirou o cargo de “capelão” e o salário que
o bispo recebia do Estado depois das declara-
ções de Baseotto que condenaram duramente
as opiniões do ministro de Saúde, Ginés
González Garcia, sobre a necessidade de polí-
ticas para descriminalizar o aborto. Com apoio
da sociedade: em recente pesquisa da consul-
tora Equis, 83% da população de Buenos Aires
rejeitou as expressões do bispo e 62% manifes-
tou-se a favor da descriminalização do aborto.
A abertura da possibilidade de revisão do
tratado firmado com o Vaticano em 1957, que
criou o “vicariato castrense”, é um grande passo
na direção certa de reconhecer o caráter laico
do Estado. O problema de fundo é o artigo 21
da Constituição Nacional que obriga o Estado
a sustentar o culto católico, apostólico e roma-
no. A firmeza do governo em negociar um novo
status de relação com o Vaticano prenuncia no-
vos tempos.
NOTAS
1 La Nación, Buenos Aires, 3/4/2005.
2 El Cronista Comercial, Buenos Aires, 29/3/2005.
3 No período 2001-2003 os pobres passaram de 37% da popula-
ção para 51%. Em 2004 caiu para 44% mas ainda é muito alto se
comparado à média histórica.
10
TUDO COMO D’ANTES NO
QUARTEL D’ABRANTES
A
LUIZ OLAVO BAPTISTA*
conjuntura do comércio internacional não
apresentou mudanças significativas nos últimos
meses. Nem a decisão definitiva no caso dos
subsídios ao algodão dados pelos EUA, nem o
caso dos subsídios dados pela União Européia
ao açúcar – pendente de apreciação pelo Ór-
gão de Apelação da OMC – tiveram o condão
de mudar o panorama do comércio dessas
comodities, ou afetaram o quadro das negocia-
ções sobre a agricultura na Rodada Doha.
Não afetaram as negociações porque não
mudaram as regras que já existiam – apenas
deixaram mais clara a interpretação a dar às
mesmas. Não houve alteração no comércio, e
as mudanças que ocorrerem no futuro, ainda
não atingirão as metas que os agricultores aus-
tralianos, brasileiros, tailandeses e outros espe-
ram.
COMBUSTÍVEL ESCASSO
A UE poderá continuar com os subsídios de-
clarados e que foram admitidos na Rodada do
Uruguai, a não ser que a negociação em curso
os exclua. O subsídio ao algodão afetará mais
os produtores norte-americanos que o merca-
do. Um pequeno aumento nos preços mundi-
ais provocará uma corrida no plantio do algo-
dão – planta de ciclo curto – e o aumento de
produção resultante derrubará os preços.
A fibra compete num mercado de pouca
elasticidade com os sintéticos, a seda e outras,
o que não permite grandes expectativas paraos
agricultores. Haverá ganhos, mas serão limita-
dos. Os EUA podem aproveitar a decisão do
Órgão de Solução de Controvérsias da OMC
para diminuir seu déficit orçamentário, atribu-
indo a culpa pelo corte – com fundamento nos
fatos – à sua obrigação de cumprir um acordo
internacional.
As negociações prosseguem em banho-
maria, postas a “mijoter” na panela genebrina,
sem que se perceba uma redução no molho.
Falta ânimo e vontade, e estes só virão do com-
COMÉRCIO INTERNACIONAL
bustível interno dos Estados envolvidos, que é
escasso.
A previsão atual diz que a Rodada Doha será
das pequenas, como a Rodada Kennedy foi me-
nos impactante que as de Tókio e Uruguai. A
tendência seguirá um padrão que vem desde o
GATT, onde a cada Rodada importante suce-
dem-se uma ou mais Rodadas de menor ex-
pressão, em que poucas mudanças são intro-
duzidas. Isto não significará, no entanto, o fim
do livre comércio, nem o da OMC.
A Alca, para felicidade de muitos, perma-
nece na geladeira, e as negociações Mercosul/
UE, para infelicidade dos mesmos, seguem
como um jogo de futebol onde os craques na
finta são os europeus, e os marcadores que fi-
cam perdidos são os do Mercosul. A UE preci-
sa de tempo para, como a jibóia que comeu o
bezerro, digerir os novos membros da União,
e para chegar a uma constituição que oficialize
seu estatuto de confederação, ou, como acham
alguns, federação.
Esse panorama nos mostra que, apesar das
esperanças de multipolaridade – ao menos no
campo do comércio internacional – grandes
países como Índia, China, Brasil e Rússia, ain-
da não têm peso suficiente para contrabalançar
os da UE e os EUA. Estes são os pontos focais
e continuam grandes personagens como vi-
nham sendo até agora.
Sem sombra de dúvida, os três grandes
emergentes têm tido uma presença mais forte
e marcante. Mas é como a de jovens doutores
que ainda não chegaram ao nível de prestígio e
poder dos catedráticos.
O Brasil prossegue suas políticas tradicio-
nais com mudanças no pessoal envolvido. A
eleição do diretor geral da OMC será um teste
da eficácia da política latino- americana e ter-
ceiro-mundista do governo Lula. O apoio que
for dado ao seu candidato será correspondente
ao apoio que efetivamente tem e conquistou.
Por esta razão, foi uma jogada política ousada
11
LUIZ OLAVO BAPTISTA é responsável pela área temática
Comércio Internacional.
de jogador de pôquer que paga para ver.
Nas fichas colocadas em jogo estão postos
importantes como a vaga na CIJ – imprescin-
dível para quem quer estar no Conselho de
Segurança da ONU – e presidência do BID,
além de muitos outros na hierarquia dos orga-
nismos internacionais.
Aliás, se há uma falha de perspectiva nas
políticas que vêm sendo seguidas pelo Brasil
há decênios está o alheamento em relação à
presença brasileira nas Organizações Interna-
cionais. Sem dúvida, os brasileiros, que são fun-
cionários internacionais, contribuem para o
prestígio do país, como o exemplo de Rubens
Ricupero e de Sergio Viera Mello mostram.
Os eventuais fracassos são poucos em rela-
ção ao sucesso. Mas, além desses cargos tão
importantes, a presença nos escalões inferiores
das Organizações Internacionais tem um efei-
to positivo na formação de pessoas que pode-
rão, mais tarde, atuar em vários setores das re-
lações internacionais, ou marcar a presença da
cultura e do modo brasileiro de ver e de pensar
o mundo. Todos os protagonistas de relevo no
campo internacional, como a UE, os EUA, o
Canadá, a Austrália, a Índia e outros, têm fo-
mentado e apoiado à presença de seus cidadãos
nos quadros desses organismos.
O papel das ONGs, no campo do comér-
cio internacional e das negociações a ele liga-
das, continua relevante, tanto quanto o das em-
presas transnacionais. Hoje podemos dizer que
há um desenho matricial das relações interna-
cionais em que as atuações dos Estados se cru-
zam, juntam-se ou chocam-se com a desses
personagens. Mais ainda, esse relacionamento
projeta-se do plano internacional para o interi-
or dos Estados.
INTERESSES INDIVIDUAIS
No âmbito do Mercosul continuamos com o
exercício de ficção de que todos queremos as
mesmas coisas. Na realidade, continua-se com
a organização, mas o relevo e o apoio dado à
mesma varia entre os quatro parceiros. Na aca-
demia continua o debate sobre a validade, ex-
tensão e a aplicabilidade das regras mercosuli-
nas; entre os operadores do comércio, conti-
nua-se a exportar e importar usando suas van-
tagens, mas com os percalços criados pela crise
e pelo unilateralismo das atitudes do governo
argentino. Da mesma maneira como informou
aos velhinhos aposentados da Itália e de outros
países, que seus investimentos nos títulos ar-
gentinos valiam a quarta parte do dinheiro apli-
cado, Nestor Kirchner informa a Lula sobre
restrições que aplica a produtos brasileiros. Esse
comportamento vem acumulando um capital
de má vontade quanto ao Mercosul e suscitan-
do uma hostilidade contra a Argentina que se
imaginava ter sido enterrada.
Do outro lado, o novo governo do Uru-
guai vem mantendo a política externa de Battle,
Até quando
 os bancos
centrais dos
países asiáticos
 e os investidores
dessa região e
do Oriente Médio
continuarão
sustentando
o crescente déficit
dos EUA.
a qual ignora o Brasil e os in-
teresses deste país que é o seu
maior parceiro comercial.
Agora aparecem problemas
no Paraguai, decorrentes do
maior rigor da aduana de Foz
do Iguaçu.
Enfim, não há consenso e
harmonia, mas, isto sim, a bus-
ca do interesse de cada qual.
No âmbito financeiro, o
real é apreciado pela entrada de
moedas fortes carreadas pelo
aumento das exportações e pe-
los investimentos atraídos pe-
los juros altos. A queda do va-
lor relativo do dólar dos EUA
continua constante ainda que
mais lenta, e a indagação que
mais se ouve é: até quando os
bancos centrais dos países asiá-
ticos e os investidores dessa região e do Orien-
te Médio continuarão sustentando o crescente
déficit dos Estados Unidos.
Sem dúvida o maior risco, no futuro, será
o da corrida desses aplicadores, vendendo os
dólares para recorrerem a outras moedas, e
como conseqüência assistiríamos a uma crise
maior que a de 1929. Até mesmo a possibilida-
de de medidas de austeridade pelo FED assus-
tam os comerciantes internacionais, temerosos
com a perda do poder de compra do maior
mercado do planeta.
A guerra civil que parece cada dia mais pro-
vável no Iraque – se é que já não está em curso
– é outra ameaça para a estabilidade do balanço
norte-americano, pois os gastos, já muito ele-
vados, tenderiam a aumentar.
Talvez alguns aspectos estejam mais claros
ou mais definidos no panorama internacional,
mas o quadro geral não muda. É por isto que
se pode dizer que tudo continua como d’antes
no quartel d’Abrantes.
12
UMA NOVA GEOMETRIA
DE INTERESSES NA OMC
O
ENSA IO
ano de 2005 se destacará no calendário diplo-
mático como um dos mais importantes da his-
tória da ação brasileira na OMC. Em primeiro
lugar, chama atenção o papel do país na lide-
rança do G-20, o grupo de países em desenvol-
vimento que busca avanços concretos na redu-
ção dos subsídios agrícolas praticados princi-
palmente pelos países desenvolvidos. Conside-
rado a principal e a mais bem-sucedida cons-
trução da política comercial do governo Lula, o
G-20 está ajudando a tecer novas formas de con-
senso, envolvendo uma nova geometria de de-
cisões tomadas simultaneamente por países de-
senvolvidos e em desenvolvimento, ao contrá-
rio do que ocorria no Quad, abreviação que sim-
bolizava as decisões do quadrilátero das gran-
des potências (EUA, União Européia, Canadá
e Japão) no antigo GATT. Na atual Rodada de
Doha, o que se espera é que essa nova geome-
tria produza medidas que, de fato, contribuam
para um maior desenvolvimento das nações.
O G-20, coalizão formada às vésperas da 5ª
Reunião Ministerialda OMC, em Cancún, em
2003, tem a obrigação de buscar o cumprimen-
to integral do Mandato de Doha, ou seja, a me-
lhora substancial do acesso aos mercados, a eli-
minação dos subsídios à exportação e medidas
equivalentes, e a redução significativa dos sub-
sídios domésticos distorcivos. Este é um ano
chave para o sucesso da Rodada de Doha, pois
serão definidas as “modalidades de negociação”,
isto é, os critérios que nortearão as principais
decisões sobre cortes de subsídios, advaloriza-
ção de tarifas, fórmulas para redução tarifária e
outros temas. Até julho, esperam-se avanços
nessa direção para assegurar o sucesso da 6ª Reu-
nião Ministerial da OMC, em Hong-Kong, em
meados de dezembro, ocasião em que será pos-
sível reavaliar o prazo de conclusão da Rodada.
O Brasil, a Índia e a China, principalmente,
têm tido uma participação ativa em todas as eta-
pas da negociação sob o chapéu do G-20. Mas
os três grandes do mundo em desenvolvimento,
MARCOS JANK*
por sua atuação na Rodada de Doha em outras
áreas que não a agrícola, também põem em evi-
dência um traço que podemos chamar de “uma
nova geometria de interesses”. Essa nova geo-
metria está longe de se assemelhar à “aproxima-
ção Sul-Sul”, ventilada pela política externa do
governo Lula, mas, sim, a uma nova conforma-
ção que tem a ver, essencialmente, com interes-
ses nem sempre convergentes desses três atores.
Vejamos: o Brasil, por sua imbatível competiti-
vidade agrícola, resultante de vários fatores, co-
loca-se na linha de frente do comércio agrícola
mundial, com interesses claramente ofensivos no
tema. O país, porém, reage defensivamente a
uma abertura mais ampla de suas tarifas indus-
triais de seu setor de serviços. A China, com sua
agressividade em exportações de produtos indus-
triais de baixo custo, graças a um modelo que
combina baixos salários, pesados investimentos
em tecnologia, taxa de câmbio artificialmente
desvalorizada e forte presença estatal na econo-
mia, mostra-se reticente em abrir a sua agricul-
tura e o seu mercado de serviços, mas será cada
vez mais favorável à ampla liberalização dos bens
manufaturados. A Índia deve tornar-se mais exi-
gente em favor da abertura em serviços, mas tem
posições moderadas quanto à redução de tarifas
para bens agrícolas e industriais e totalmente de-
fensivas em acesso ao seu mercado agrícola.
Quando se trata de defender um maior discipli-
namento dos subsídios agrícolas, Brasil, Índia e
China falam a mesma linguagem. Contudo,
quando o assunto é a ampliação do grau de aces-
so aos mercados agrícolas, industriais e de servi-
ços, eles divergem entre si.
Uma outra característica da Rodada de
Doha, que a difere da Rodada Uruguai, é uma
profunda (e cada vez maior) divisão do chama-
do mundo em desenvolvimento no tema aces-
so a mercados. Os países de menor desenvolvi-
mento relativo (PMDRs), presentes principal-
mente na África, temem a erosão das preferên-
cias históricas que recebem da Europa, EUA e
13
de outros países desenvolvidos, caso, por exem-
plo dos chamados países ACP (África, Caribe e
Pacífico), ligados à UE pelas convenções de
Lomé e Cotonou. Eis mais uma razão que co-
loca em relevo a importância da Rodada de
Doha e os desafios para a diplomacia brasileira,
pois a recente vitória do Brasil em primeira ins-
tância, no caso do painel do açúcar, na OMC,
contrapõe os interesses de livre comércio do
Brasil aos interesses por comércio preferencial
dos exportadores ACP, que gozam de tratamen-
to preferencial para vender açúcar ao mercado
europeu. Tais países desfrutam dos elevados
preços domésticos praticados dentro da UE.
A vitória do Brasil no painel da OMC e no
Órgão de Apelação, no caso do algodão, deverá
trazer desdobramentos importantes para a Ro-
dada de Doha, em 2005, pois colocará enorme
pressão externa sobre o coração da política de
subsídios dos EUA. Os EUA precisam cortar
gastos, pois o déficit anual no orçamento ame-
ricano já atingiu mais de US$ 500 bilhões. Por
isso, a nova Lei Agrícola, que deve ser aprovada
até 2008, deve contemplar menos subsídios. O
governo Bush anunciou que deseja introduzir
cortes da ordem de 5% nos subsídios america-
nos a partir de 2006. Esse anúncio, em realida-
de, é a primeira etapa de um longo processo de
discussão que durará entre dois e três anos.
De fato, neste ano começam as audiências
públicas no Comitê de Agricultura do Congres-
so americano para discutir a próxima Farm Bill,
pautadas pela proposta geral da administração re-
publicana de enxugamento orçamentário e, em
conseqüência, de redução de recursos para sub-
sidiar os programas agrícolas. Em 2000, quando
se iniciou a discussão da Lei Agrícola de 2002, o
clima era de escalada nos gastos, com os agricul-
tores se apropriando de uma crescente fatia do
superávit anual de US$ 200 bilhões da econo-
mia americana. Espera-se, neste e nos próximos
anos, um forte movimento dos lobbies america-
nos contra quaisquer cortes nos subsídios agrí-
colas, embora as pressões externas, da mídia in-
ternacional e das organizações não-governamen-
tais (ONGs), deverão funcionar como um vetor
para forçar os EUA não só a reduzirem os seus
subsídios ao algodão, como também para reali-
zarem reformas mais amplas em outros segmen-
tos da sua agricultura. Essas seriam contribui-
ções para o bom desenvolvimento da Rodada de
Doha porque, neste ano, espera-se maior esfor-
ço dos EUA, uma vez que a UE já fez parte de
sua lição de casa em 2003, quando introduziu
algumas reformas liberalizantes na Política Agrí-
cola Comum (PAC). Os EUA têm, agora, uma
ótima oportunidade para realizar cortes em seus
subsídios agrícolas, reduzindo o seu déficit pú-
blico e mostrando ao mundo que estão, de fato,
comprometidos com um resultado que mante-
nha a ambição do Mandato de Doha.
Entretanto, os primeiros sinais vindos de Wa-
shington são preocupantes e devem colocar o
Brasil em estado de alerta, a julgar pelas declara-
ções de autoridades americanas logo após a deci-
são do Órgão de Apelação sobre o contencioso
do algodão, em 3 de março. “As reformas pen-
dentes podem ser feitas somente por meio de
negociações multilaterais destinadas a corrigir as
distorções no mercado global relacionadas a aces-
so a mercado, competição das exportações e apoio
doméstico”, disse J. B. Penn, subsecretário de
Agricultura dos EUA. Logo em seguida, em 4 de
março, Peter Allgeier, representante interino de
Comércio (USTR), afirmou que “os EUA que-
rem cumprir com as determinações do Órgão
de Apelação da OMC por meio de negociações
na Rodada de Doha e não no âmbito de entendi-
mentos bilaterais com o Brasil”. Portanto, o go-
verno brasileiro e o setor privado precisam redo-
brar a atenção para o risco de os EUA “vende-
rem” o todo ou parte da implementação das me-
didas recomendadas pela OMC para o algodão
no contexto da Rodada de Doha. Isso seria ina-
ceitável para o Brasil, pois o que nos interessa é a
mudança global das regras do jogo das políticas
agrícolas protecionistas, contra as quais o G-20
está lutando em Genebra.
O fator de estímulo para que os resultados
do contencioso favoráveis ao Brasil não corram
o risco de se transformar, simplesmente, no jar-
gão “ganhou, mas não levou”, é a pressão da opi-
nião pública mundial, que, espera-se, levantar-
se-á na defesa dos interesses dos países em de-
senvolvimento produtores de algodão. Organi-
zações não-governamentais que defendem um
comércio justo como a OXFAM são aliados im-
portantes nesta causa e uma voz de peso contra
eventuais manobras americanas para descumprir
a sentença da OMC. Certamente, se os EUA
levarem para as mesas de negociação, em Ge-
nebra, o que deveriam resolver em Washington,
isto é, se o governo Bush não mostrar resulta-
dos concretos em direção a reformas liberali-
zantes imediatas em seus programas agrícolas, é
possível prever uma explosão de novos casos na
OMC, como os relacionadosa subsídios ame-
ricanos distorcivos ao milho, soja, trigo e arroz.
MARCOS JANK é membro titular do Gacint.
14
CORÉIA DO NORTE
E IRÃ SOB A ÓTICA DA
NÃO PROLIFERAÇÃO
ÁSIA
ai-se tornando claro que ao indicar, ou – na
verdade – indiciar o Iraque, o Irã e a Coréia
do Norte como integrantes de um assim dito
“Eixo do Mal”, George W. Bush tinha a re-
côndita aspiração de ver substituídos os regi-
mes daqueles países. Ele próprio repete, ago-
ra, que o caos no Iraque importa menos do
que a deposição de Saddam Hussein. Isso tor-
na compreensível, por sua vez, que os regi-
mes de Teerã e Pionguiangue achem válidos
todos os recursos para garantir a própria so-
brevivência. Na abertura do segundo gover-
no Bush, o cabo-de-guerra entre essas duas
capitais e Washington veio a concentrar-se na
questão da natureza e tamanho dos progra-
mas nucleares de Irã e Coréia do Norte. E as
evidências são de que os EUA não aceitam
negociar meio-termos. Querem o abandono
puro e simples de tais programas.
QUADRO GEOPOLÍTICO
Não disponho, evidentemente, de elementos
de análise para opinar sobre os programas nu-
cleares de Irã e Coréia do Norte. Posso ape-
nas dizer que esses programas e os regimes
por trás deles sobreviverão, ou não, conforme
evolua o quadro geopolítico que os encerra.
Como não há evidência de que os EUA dis-
ponham de estratégia para enfrentar qualquer
das duas situações, afora a ameaça de sanções
ou coisa mais forte, tem-se que a evolução
geopolítica vai depender da ação de outros
países. No caso da Coréia do Norte, caberá à
diplomacia chinesa estabilizar o Nordeste Asi-
ático e convencer Kim Jong-il a enquadrar-se
na nova realidade. No caso do Irã, União Eu-
ropéia e Rússia terão de ajudar os aiatolás a
compreender que o mundo mudou.
E como mudou o mundo? No presente
comentário procurarei pôr em realce altera-
ções substanciais na ordem mundial pós-
Guerra Fria, as quais estão tornando recomen-
dável que países com programas nucleares, o
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA*
V Brasil inclusive, revejam suas idéias a respei-to. Antes, porém, de tratar dessas alterações,será conveniente uma rápida atualização dosembates diplomáticos em torno dos progra-mas da Coréia do Norte e do Irã. 
No Nordeste Asiático, os quatro anos do
primeiro governo Bush não fizeram avançar
o conflito central, que foi um dos eventos
No caso da
Coréia do Norte,
caberá
à diplomacia
chinesa estabilizar
o Nordeste
Asiático
e convencer
Kim Jong-il
a enquadrar-se na
nova realidade.
definidores da Guerra Fria e se
expressa na inexistência de um
acordo para pôr fim jurídico à
Guerra da Coréia. O armistício
de 1953, assinado entre os EUA
e a Coréia do Norte, mantém
os dois países tecnicamente em
guerra, sem que o regime de
Pionguiangue consiga trazer os
americanos de volta à mesa das
negociações, apesar de todo o
malabarismo diplomático, às
vezes de puro blefe, com o qual
Kim Jong-il vai eternizando
seu falido regime.
Na segunda metade dos
anos 1990 chegou-se muito
perto de um ajuste com a apa-
ratosa visita de Madeleine
Albright à Coréia do Norte e a
expectativa de uma ida também
do presidente Bill Clinton. A eleição de
George W. Bush pôs fim a esse esforço de con-
ciliação, fundamentado na “Política do Brilho
do Sol”, do então presidente da CdS, Kim
Dae-jung. Ao recebê-lo em Washington, em
março de 2001, Bush lhe comunicou sem ro-
deios que não ia dar continuidade aos
contactos com Pionguiangue. Restabeleceu-
se o impasse.
Em outubro de 2002, Washington aumen-
tou a pressão sobre Pionguiangue, suspenden-
do incentivos que vinham sendo dados des-
de 1994, nos termos de um acordo negociado
pelo ex-Presidente J. Carter para manter os
15
norte-coreanos longe da proliferação nuclear.
O cancelamento unilateral do acordo de 1994
baseou-se na acusação de que a Coréia do
Norte o estava burlando, através de um pro-
grama clandestino de enriquecimento de urâ-
nio em grau bélico. As circunstâncias dessa
acusação e a extensão do que estão realmente
fazendo os norte-coreanos seguem muito con-
fusas, e ao leitor interessado sugiro rever o n.
l7 do PANORAMA (mai/jun 2003); a análise
dutor de petróleo, com amplas reservas de hi-
drocarbonetos, lança alguma dúvida sobre a
explicação iraniana, mas a Rússia a referenda.
Os russos ajudaram a levantar a central nu-
clear de Bushehr e vão suprir o urânio
baixamente enriquecido para o funcionamento
da mesma, com a garantia do retorno à Rússia
do combustível irradiado. Já os europeus (Grã-
Bretanha, França e Alemanha, mais precisa-
mente), esforçam-se por fazer o Irã desistir
da pretensão de enriquecer urânio e produzir
plutônio. Em outras palavras, russos e euro-
peus procuram cindir o domínio do ciclo do
combustível nuclear de outras atividades mais
tipicamente civis na geração nuclear da eletri-
cidade, deixando somente estas últimas aos ira-
nianos.
Despontam, aí, aquelas alterações na or-
dem mundial a que me referi de início. Sob a
Guerra Fria, o horror de um cataclisma nu-
clear foi sendo afastado pelo “equilíbrio do ter-
ror”. O número de países com armamento
nuclear era mantido pequeno
pelas injunções do Tratado de
Não Proliferação Nuclear
(TNP), de l968, e esses países
tolhiam-se de atacar uns aos
outros pela certeza de que
também seriam devastados.
Israel, Índia e Paquistão logra-
ram contornar o TNP, e se Irã
e Coréia do Norte puderem
fazer o mesmo, tornar-se-á di-
fícil conter a proliferação. A
ampliação do número de paí-
ses nuclearizados e a maior
probabilidade do acesso de
grupos terroristas a material
nuclear pode levar a hecatom-
bes atômicas. Na perspectiva
da paz mundial, tornou-se im-
perativo reavaliar toda a pro-
blemática dos programas na-
cionais voltados para o domí-
nio do ciclo do combustível nuclear. Europeus
e russos parecem estar dando um passo no
bom sentido quando procuram afastar os ira-
nianos de atividades como o enriquecimento
ou o processamento, independentemente de
quais sejam as verdadeiras intenções do regi-
me de Teerã.
Esse assunto é de importância magna e co-
meçará a ser discutido agora em maio, em
Nova York, numa reunião de revisão do TNT.
Não se trata de impedir que países realmente
Na perspectiva
da paz mundial,
tornou-se
imperativo
reavaliar toda
a problemática
dos programas
nacionais voltados
para o domínio
do ciclo do
combustível
nuclear.
Tem cabido
à China manter
aberto no Nordeste
Asiático
o caminho
do entendimento
diplomático, graças
à sua atuação
como principal
promotor e sede
de negociações
hexagonais: EUA,
China, Japão,
Rússia e as duas
Coréias.
ali apresentada foi agora con-
firmada e aprofundada por
Selig S. Harrison (Foreign
Affairs, Jan/Feb 2005).
Conforme já observei,
tem cabido à China manter
aberto no Nordeste Asiático
o caminho do entendimento
diplomático, graças à sua atu-
ação como principal promo-
tor e sede de negociações he-
xagonais (EUA, China, Japão,
Rússia e as duas Coréias). Co-
meçam, aliás, a surgir propos-
tas para a transformação des-
se foro multilateral, após a
eventual superação do con-
tencioso com a Coréia do
Norte, numa instituição per-
manente de cinco membros
(sem a Coréia do Norte), en-
carregada da segurança do
Nordeste Asiático, em termos
não militares.
Ponto de semelhança en-
tre os desdobramentos inter-
nacionais em torno da Coréia
do Norte e Irã é a parca cre-
dibilidade das informações oriundas dos ser-
viços especiais dos EUA, conforme ficou so-
bejamente evidenciado pela desmoralização
das acusações montadas contra o terceiro in-
tegrante do “Eixo do Mal”, o Iraque. No caso
da Coréia do Norte, a desinformação do lado
americano combina-se com a quase-chanta-
gem praticada por Kim Jong-il, tornando di-
fícil saber o que de fato se passa no terreno da
energia nuclear. Já no Irã, tem-se um regime
sério, que confirma estar trabalhando nesse
terreno.A controvérsia se instala quando os EUA
alegam estarem os iranianos buscando a bom-
ba atômica, e Teerã insiste em que se interessa
apenas pela produção de energia nuclear para
fins civis. O fato de o Irã ser importante pro-
16
PANORAMA DA CONJUNTURA INTERNACIONAL
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL
Coordenador Geral: GILBERTO DUPAS
Membros do Conselho Acadêmico
BÓRIS FAUSTO (Presidente), CELSO LAFER, GUILHERME L. S. DIAS,
LENINA POMERANZ, LUIZ OLAVO BAPTISTA, MARCOS JANK
MARIA HERMÍNIA T. DE ALMEIDA
MEMBROS RESPONSÁVEIS POR ÁREAS TEMÁTICAS
Ásia: AMAURY PORTO DE OLIVEIRA
América Latina: TULLO VIGEVANI
EUA: GERALDO FORBES
Europa: GILBERTO DUPAS
Ex-Países Socialistas: LENINA POMERANZ
Comércio Internacional: LUIZ OLAVO BAPTISTA
Segurança Internacional: MARIO CESAR FLORES
Oriente Médio: PETER DEMANT
MEMBROS
Rua do Anfiteatro, 181 - Favo 5 - Cidade Universitária
05508-900 - São Paulo - Brasil - Tels: (011)3091-3528/3091-3531
Fax: 3814-7342 - email: ccint@edu.usp.br - website: www.usp.br/ccint/gacint
PR
O
JE
TO
 G
RÁ
FI
CO
: S
IL
VI
A M
AS
SA
RO
Reitor da USP: ADOLPHO JOSÉ MELFI
Comissão de Cooperação Internacional (CCInt)
MAGDA M. S. CARNEIRO SAMPAIO
Os textos aqui reproduzidos são de responsabilidade de seus autores
 e não representam a opinião oficial do Gacint
AMAURY PORTO DE OLIVEIRA é responsável pela área
temática Ásia.
J
ALBERTO PFEIFER
ALEXANDRE RATSUO UEHARA
ANA MARIA STUART
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
CELSO NUNES AMORIM
CHRISTIAN LOHBAUER
CLODOALDO BUENO
EDUARDO BITTAR
EDUARDO KUGELMAS
ELIANA CARDOSO
FLORÊNCIA FERRER
GELSON FONSECA JR.
GILMAR MASIEIRO
GUILHERME LUSTOSA DA CUNHA
HELGA HOFFMANN
HÉLIO NOGUEIRA DA CRUZ
HENRY PHILIPPE REICHSTUL
JACQUES MARCOVITCH
JOÃO SAYAD
JORGE WILLHEIM
LUIZ AFONSO SIMOENS DA SILVA
MARCO AURÉLIO GARCIA
MARIA HELENA TACHINARDI
MARY JANE JUNQUEIRA
MIRIAM DOLHNIKOFF
NINA RANIERI
OLIVEIROS FERREIRA
OTAVIANO CANUTO
PAULO EDGAR ALMEIDA RESENDE
PAULO SOTERO
PEDRO DALLARI
RAFAEL VILLA
RICARDO SENNES
ROBERTO TEIXEIRA DA COSTA
ROLF KUNTZ
RUBENS BARBOSA
SAMUEL FELDBERG
SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ
SÉRGIO AMARAL
SÉRGIO FAUSTO
VERA THORSTENSEN
interessados na nucleoeletricidade e, fator de-
cisivo, habilitados técnica e administrativa-
mente a lidar com os processos extremamen-
te complexos a serem enfrentados possam re-
correr a esse vetor energético.
Também não se trata de deixar ao talante
das grandes potências a definição política de
quem vai fazer o quê: deixar Israel interferir
interessadamente na difusão internacional da
nucleoeletricidade; ou o Paquistão seguir im-
pávido, após reconhecer seu papel na origem
de programas hoje sob contestação. Trata-se,
sim, de avançar para um regime internacio-
nal, possivelmente sob a supervisão da AIEA,
com vistas a regularizar a utilização e circula-
ção dos materiais e tecnologias
ligados ao ciclo do combustí-
vel nuclear, restringindo a mo-
vimentação dos mesmos e
aperfeiçoando os padrões e cri-
térios a tudo correspondentes.
É de prever muita resistência
à instituição de um tal regime,
que afetará o exercício da so-
berania nacional consoante de-
finido pelo Sistema de West-
phalia. Mas a verdade é que a
globalização já relativizou bas-
tante a aplicabilidade desse sis-
tema. E há outras considera-
ções, de ordem prática.
O mundo parece na imi-
nência de ter de recorrer a uma
Segunda Idade Nuclear: um
novo surto do uso industrial
da energia nuclear, apoiado em
reatores e tecnologias imanen-
temente seguros. As pesquisas
a respeito estão adiantadas e a
nucleoeletricidade segue sendo o único vetor
energético já industrialmente rodado, com ca-
pacidade para livrar os países da dependência
dos hidrocarbonetos. Não porque estejam es-
tes chegando ao fim, mas para impedir que
acabem com o meio-ambiente do planeta.
Deixar a governos nacionais, nem sempre ha-
bilitados, a responsabilidade exclusiva pelo re-
curso a etapas do ciclo do combustível nucle-
ar, em particular a espinhosa e caríssima dis-
posição dos dejetos radioativos, é por demais
perigoso. A opinião pública mundial dificil-
mente tolerará a Segunda Idade Nuclear se
ocorrerem acidentes do tipo de Chernobil.
 De todo modo, é previsível que o assun-
to seja absorvido em prazo médio pelo que
JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA
Gilberto Dupas, em livro recentíssimo, iden-
tificou como o surgimento no cenário global
de uma esfera de soberania, perfeitamente si-
métrica à soberania estatal, mas oriunda da
combinação da globalização econômica com
o controle da ciência e da tecnologia por gran-
des empresas transnacionais. Os materiais e
tecnologias inovadores em que se esteará a 
Segunda Idade Nuclear estão sendo desenvol-
vidos e testados nos laboratórios de grandes
empresas, mesmo quando sob forte financia-
mento governamental.
O mundo parece
inclinado a ter que
recorrer a uma
Segunda Idade
Nuclear: um novo
surto do uso
industrial da
energia nuclear,
apoiado
em reatores
e tecnologias
imanentemente
seguros.

Continue navegando