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ESTIMULANDO O DESENVOLVER DA CORPOREIDADE

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ESTIMULANDO O DESENVOLVER DA CORPOREIDADE
    O vivenciar do mundo pelo corpo é um processo natural que, apesar de seguir padrões mais ou menos comuns a todos os seres humanos, pode ter grandes diferenças em termos de qualidade e intensidade, dependendo do tipo de atividades adotadas.
    A corporeidade do bebê também depende muito do padrão de atividades que seus pais estimulem ou permitam. O bebê que permanece no berço deitado o dia inteiro ou vive preso em cercados tem possibilidades mais limitadas de desenvolvimento do que o bebê adequadamente estimulado. É importante ter-se em mente, também, que o aspecto corporal contribui em muito para a estruturação da inteligência como um todo, inclusive quanto aos processos verbais.
    O estímulo do desenvolvimento da corporeidade do bebê é realizado com algumas técnicas simples, desde que envolvam tanto o aspecto sensorial quanto o motor.
    A interação do bebê com os pais, através de brincadeiras, afagos, carícias, massagens, cócegas, risos, é o primeiro passo neste sentido.
    Acostumar a criança a passear no colo (apesar do trabalho que isto possa representar) é fundamental para o desenvolvimento do processo corporal. Não só passear no colo, mas passear em diversas posições, principalmente com as costas voltadas para quem a carregue, de modo que possa ver as coisas ao redor. Bebês a partir de um mês de idade podem usufruir de técnicas como a de "voar", que consiste em apoiar o tronco da criança com uma mão e as pernas com a outra, levando a criança a explorar os detalhes da casa, frontalmente e com as mãos livres. Durante a exploração, a criança é elevada e abaixada várias vezes, devagar, estabelecendo noções de tridimensionalidade.
    Um lençol também pode ser de grande ajuda no desenvolvimento dos aspectos motores. Dobrado em uma faixa e colocado sob o tronco do bebê de três ou quatro meses que esteja no chão "de quatro", ou seja, apoiado nas mãos e nos joelhos, pode fornecer a sustentação necessária para que a criança tente seus primeiros deslocamentos engatinhando. Se este mesmo lençol dobrado em uma faixa for colocado envolvendo o tórax, logo abaixo das axilas e seguro nas extremidades perto das costas da criança, serve como sustentação para que o bebê de três ou quatro meses troque seus primeiros passos andando.
    A piscina também é uma grande ferramenta no desenvolvimento da corporeidade. Por mudar completamente o referencial de espaço contribui como estímulo para as áreas cerebrais responsáveis pela coordenação motora e o equilíbrio. Além disso, propicia sensações cutâneas diferentes, incentiva novas formas de motricidade e é uma diversão de primeira linha, promovendo interação de muito prazer com os pais.
O experimentar
    Uma das mais eficientes formas de exercício mental e de aprendizado é a experimentação. Muitos pais, por não perceberem a importância das tentativas frustradas, frequentemente interrompem determinadas atividades da criança. Por estarem com pressa, não terem paciência para esperar ou, muitas vezes, por acharem que a criança não é capaz de completar o que estão fazendo, finalizam a tarefa. Uma criança de dois anos tenta colocar sozinho o seu calçado. Para fazer este pequeno gesto, muita coisa está em jogo. Inicialmente, existe a intenção: a colocação do calçado pode estar associada ao desejo de sair de casa para acompanhar os pais. Para a existência deste tipo de associação, é necessária a utilização dos recursos da memória, uma vez que, noutras vezes, o fato se repetiu em determinada seqüência. A própria colocação do calçado evoca a existência de um ritual definido, quando a criança localiza e busca o sapato guardado, se senta no chão e tenta introduzi-lo no pé. Temos, então, a coordenação motora reproduzindo movimentos cuidadosamente analisados quando da colocação do calçado anteriormente. A criança de dois anos não conseguirá colocar os sapatos. Os pais podem ter duas condutas: ou inibem a ação, vestindo a criança, sem lhe permitir a participação; ou podem estimular a criança na iniciativa. Se os pais resistirem à tentação, poderão observar que a atividade espontânea está estimulando o desenvolvimento e a independência da criança e que, a cada dia, mais progressos serão realizados no sentido de atingir a meta de vestir a roupa. Para alguém que só enxergue o trivial, o objetivo de vestir a peça do vestuário pode ser o principal em jogo. Para quem percebe tudo o que está envolvido, o objetivo é o desenvolvimento neuropsicomotor e não a colocação da roupa. Portanto, resista à tentação de tudo fazer. Se a criança quiser, deixe experimentar, mesmo que você tenha a certeza de que não irá conseguir. Você se surpreenderá com a velocidade do aprendizado e, quando menos esperar, ela estará atingindo objetivos aparentemente impossíveis para a idade.
 
1º BIMESTRE
CORPOREIDADE
O conceito de corporeidade
      Corporeidade é a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo.
    O corpo é movido por intenções provenientes da mente. As intenções manifestam-se através do corpo, que interage com o mundo, que dá uma resposta para o corpo, que informa a mente através de seus órgãos sensoriais, que, analisando as respostas obtidas do ambiente, muda ou reafirma suas intenções, utilizando o corpo para novas manifestações.
    A esta capacidade de o indivíduo sentir e utilizar o corpo como ferramenta de manifestação e interação com o mundo chamamos de corporeidade.
    A corporeidade do indivíduo evolui com a idade. É lógico que a corporeidade do recém-nascido é totalmente diferente daquela da criança de dez anos, do adulto ou do velho de oitenta anos; a do homem é diferente da mulher; como a do indivíduo doente o é da que possui quando sadio.
    Durante a evolução da criança, a qualidade da corporeidade é um dos principais determinantes da estruturação neuropsicomotora. Por outro lado, a estruturação corporal na mente da criança é fundamental para o desenvolvimento do próprio corpo como organismo físico. Crianças privadas de adequado relacionamento corporal com o mundo tendem a ter desenvolvimento físico atrasado em relação às demais (o que chamamos em clínica de nanismo psico-afetivo).
    A qualidade da corporeidade depende, como em todas as funções neurológicas, da qualidade e desenvolvimento das relações neuroniais estabelecidas entre as áreas sensoriais e motoras do cérebro. Estas relações, a maioria estabelecida durante a primeira infância, desenvolvem-se através do treinamento corporal. Para ilustrar a que ponto o ser humano pode desenvolver a corporeidade, basta observar um grande dançarino de balé, um ginasta olímpico ou um campeão de judô. Nem é preciso dizer que, quanto mais cedo na vida do indivíduo as atividades forem treinadas, melhor será a performance. Mais adiante, demonstrarei algumas técnicas simples para o desenvolvimento dos diversos aspectos da corporeidade, em cada período da primeira infância.
Mas, afinal, o que é corporeidade, este conceito que tem um significado tal que precisa ser discutido para que se entendam necessidades fundamentais da criança (e do adulto também)?
Corpo todos nós sabemos o que é, nossa estrutura que tem músculos, ossos, cartilagens, veias, artérias, que guarda os diversos órgãos, e muito mais. A fisiologia do movimento, a anatomia e a biologia são algumas das áreas que se dedicam ao estudo do corpo. Quem não se lembra das aulas de Ciências e Biologia que nos obrigavam a decorar muitos nomes que nos deixavam enlouquecidos nas vésperas das provas?
Corporeidade é um conceito relativamente novo que foi trazido pelo filósofo francês Merleau-Ponty, no século passado. Este conceito começa a ganhar maior amplitude em outras áreas com os estudos que outros autores passam a desenvolver e difundir.  Somente no final do século XX e início do atual, ele chega às universidades brasileiras e aos cursos de Pedagogia e Educação Física com maior abrangência. E ele engloba não só o corpo
e o movimento, ou seja, a motricidade, mas também a afetividade (que não tem necessariamente relação com afeto ou carinho, pois envolve a grande variedade de emoções, sentimentos e paixões que nos afetam). Envolve ainda a racionalidade e as relações estabelecidas pelo ser com seu meio sociocultural . Além das dimensões motora, afetiva, intelectual e social, a corporeidade inclui ainda a dimensão espiritual do ser humano.
É importante que abramos parêntesis aqui: é preciso entender que espiritualidade não tem nenhuma relação com religiões, embora, possamos dizer que, de modo geral, as religiões objetivam desenvolver o lado espiritual do ser. Quando se fala da dimensão espiritual da corporeidade, fala-se daquilo que vai além de necessidades materiais ou físicas, de necessidades mais profundas do ser humano que o ajudam a tornar-se uma pessoa melhor, como o cuidado com o outro, com seu meio e consigo mesmo, a solidariedade, o respeito, o compromisso e a amorosidade. Voltaremos a essa questão daqui a um tempo, uma vez que é a falta desses atributos um grande gerador do preconceito, do vandalismo, da violência, entre outros danos que as sociedades têm vivenciado.
A criança, que é nosso foco aqui (mas, também, pessoas de qualquer idade), para seu desenvolvimento equilibrado, precisa ser vista como alguém que pensa, sente, se movimenta e está vinculada a seu meio sociocultural. Infelizmente e com muita frequência, a educação cerceia o movimento e a expressão, como se estes atrapalhassem o desenvolvimento da criança.  No entanto, o movimento é condição fundamental para a construção do seu conhecimento, para o processo de conhecimento de si mesma e de diferenciação do outro, enfim, de sua constituição como sujeito. Claro que não é admissível ou desejável que a criança não tenha limites. Não se pode deixar que ela suba na mesa, se pendure nas cortinas ou no ventilador (se a sala os tiver). Limites são necessários e as regras ou os famosos combinados são importantíssimos. Entretanto, mobilidade e inteligência são inseparáveis, pois é através do movimento que o pensamento se estrutura e que as emoções se organizam. Se observarmos uma criança que começa a descobrir o mundo por volta dos nove meses, podemos comprovar a importância de experimentar suas possibilidades, segurar tudo, experimentar formas diferentes de usar os objetos, de explorar tudo que é novo. Mais adiante, ela vai experimentar suas possibilidades de movimento, de ocupar espaços, de subir, de descer, enfim, ela vai, através da exploração pelo movimento, conhecer o seu entorno e seu próprio corpo. Observe, também, como a criança fala com o corpo inteiro quando expressa suas emoções, quando conta o que viu que a encantou, ou narra uma história que ouviu. Os gestos e os movimentos são complementos essenciais. “É muito grande” sempre vem acompanhado de mãos e braços que se abrem, o não quero, por braços que se cruzam na frente do corpo ou por um dar as costas, e, com certeza, você que lê o texto já se lembrou de muitos outros exemplos. E os gestos vão expressar também o que é culturalmente vivenciado por essa criança. E aqui já vale uma observação: se quando os responsáveis pela criança baterem nela quando sua atitude os desagradar, é claro que ela vai fazer isso com o coleguinha ou até com o professor que o deixar aborrecido. Maus hábitos são aprendidos, mas os bons também!!! O importante, especialmente para professores, é lembrar que nosso corpo expressa o que vivemos, e que não devemos julgar a criança como má por isso. Neste caso, castigos e “isolamento” não resolvem! Um bom papo, a atenção e carinho podem ajudar muito mais.
Muitos são os estudos sobre corporeidade e ludicidade, assim como se ampliou a inserção destas temáticas nos cursos de formação de professores, entretanto, ainda há uma distância entre a teoria e a prática. Por quê? Como mostram pesquisas como as de Gomes (2007) e Pereira (2005), o desejo de oferecer uma prática educativa lúdica é inquestionável, mas não há apenas dificuldades com cobranças institucionais, tempo insuficiente, problemas de disciplina, mas também aquelas relacionadas ao próprio profissional – insegurança, inconsistência teórica, dificuldade de contato com sua própria ludicidade. Que razões geram dificuldades para vivenciar o lúdico? Que dificuldades estão relacionadas ao trabalho com a corporeidade? É o que busco analisar a partir dos estudos teóricos e de campo. Considerar a corporeidade e a ludicidade no espaço educacional significa dar uma nova conformação ao processo ensino-aprendizagem, rompendo com o esquema, que ainda se apresenta com frequência, em que há ênfase na transmissão de conteúdos, em que a dimensão cognitiva é privilegiada (PEREIRA, 2011). Entretanto, como enfatiza Bomfim, “o conhecimento do mundo não se faz somente pela via cognitiva, mas também pelas sensações, sentimentos, cinestesia e vivência” (2000, p. 72), tornando relevantes as reflexões trazidas. Ludicidade e corporeidade: configurando conceitos Falar de corporeidade e ludicidade e de suas relações traz a necessidade de situar o leitor quanto aos conceitos utilizados, pois não há consenso quanto a sua definição. Corporeidade vai além da visão de corpo como um conjunto de ossos, músculos e órgãos, traz uma visão da totalidade do ser humano e de suas relações com o mundo: A compreensão do termo corporeidade vem unir o que a ciência durante séculos dicotomizou (corpo e mente). [...] é buscar entendê-lo [o ser humano] dentro da complexa teia de relações, que nos constitui e marca nossa existência no mundo; é valorizar igualmente todas as dimensões presentes na nossa história; é com elas encontrar-se, percebendo suas interações e relações na construção dos indivíduos e, principalmente, compreender que nossa existência se dá a partir de nossa corporeidade. (SOUSA, 2001, p. 195). Trabalhar a corporeidade significa trabalhar as várias dimensões do ser: corporal, afetiva, cognitiva e social. Significa tratar o ser como alguém que pensa, sente, age, que se relaciona com o outro e com seu ambiente. 
Embora muitas vezes desconsiderado, o corpo é um aspecto essencial da condição humana como ressaltam Benetti et al (2002), pois “corpos humanos são impregnados de impressões e sensações que fazem da nossa cognição uma subjetividade, baseada na afetividade, na socialização e na interpretação de situações concretas de vida” (p. 126). Não é apenas a mente que aprende como mostram os estudos de Damásio (1996), que comprovam que o ser humano se constitui numa totalidade indivisível. Segundo o neurocientista, o corpo permite não apenas a manutenção da vida, mas também o funcionamento da mente normal. Maturana (1998), também, defende esta totalidade, afirmando que “vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional” (p. 15). A teoria de Wallon nos dá condições de ver de forma mais ampla as necessidades das crianças, e o quanto o ambiente escolar tem desfavorecido seu desenvolvimento integral, causando limitações ao processo educativo. Wallon (2008) enfatiza a relação indissociável entre o desenvolvimento psíquico e biológico do indivíduo, e a importância de a escola considerar a integralidade do ser. As pesquisas que venho desenvolvendo apontaram que as atividades lúdicas permitem que trabalhemos a corporeidade. Mas o que é ludicidade? Há diferentes definições de ludicidade, portanto, diferentes maneiras de compreendê-la. Alguns a veem restrita a jogos e brincadeiras; outros a consideram de forma mais ampla, visão aqui eleita. Olivier (2003) apresenta algumas características que podem nos ajudar a compreender melhor a ludicidade em seus aspectos fundamentais da maneira aqui apresentada. A ludicidade é um fim em si mesma, não é um meio para alcançarmos outro objetivo: “seu objetivo maior é a vivência prazerosa de sua atividade [...] O lúdico não tem motivos, ele é” (p. 21). Como segundo
ponto, destaca-se que a atividade lúdica é espontânea, portanto, não pode ser imposta ou obrigatória. A autora destaca mais um aspecto significativo: o lúdico ocupa-se do aqui e do agora, ou seja, o que vale é a vivência do momento presente. Considerando estas três primeiras características lúdicas, compreendemos melhor a proposta trazida por Pereira (2011) de que as atividades lúdicas não se restringem ao jogo e à brincadeira, mas incluem atividades que possibilitam momentos de alegria, entrega e integração dos envolvidos, que são aquelas, como observa Luckesi (2002), que propiciam uma experiência de plenitude, em que nos envolvemos por inteiro. Outros aspectos da ludicidade considerados fundamentais por Olivier (2003) são o seu pertencimento à dimensão da magia, do sonho e da sensibilidade, o que significa que os princípios da racionalidade não são os mais enfatizados. Aponta, também, que a criatividade, a inventividade e a imaginação são privilegiadas no lúdico pela sua ligação com o prazer. 
Diante dessas definições, podemos compreender que ludicidade abrange atividades diversas, incluindo jogos e brincadeiras, que permitem que os envolvidos se entreguem ao momento vivido, o que propicia que cognição, afetividade e motricidade se integrem, que se estabeleçam relações, enfim, que a corporeidade seja trabalhada. Os estudos de Vygotsky e Wallon apontam que brincar é fundamental ao processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança. Vygotsky (1989) afirma que brincar é uma atividade humana criadora, em que imaginação, fantasia e realidade interagem para que a criança formule novas possibilidades de interpretar seu entorno, se expressar, agir e interagir. Wallon (1975) aponta que, quando a criança se movimenta, explorando seu corpo, suas possibilidades de ação, também explora sua atividade psíquica, pois não somos formados por partes dissociadas, somos uma totalidade em movimento. A ludicidade traz para a criança, assim como para o adolescente, possibilidades de lidar com a segurança e o incerto, o medo e a coragem, a perda e o ganho, o prazer e o desprazer, o sério e o cômodo, a objetividade e a subjetividade, enfim, uma oportunidade de ensinar e aprender sobre a vida, entendida como um grande jogo em que, como em todos os demais, estão presentes objetivos, regras e papéis. (EMERIQUE, 2004, p. 4). Assim, se possibilita à criança interagir melhor com suas emoções, com seu próprio corpo, com situações inesperadas, com o novo, enfim, com sua realidade, a buscar formas de se adaptar a novas situações e a tomar iniciativas, o que favorece sua autonomia. O universo lúdico é dotado de flexibilidade, de plasticidade, se molda às necessidades dos seres brincantes, pode ser explorado e utilizado de múltiplas formas. É fácil a quem se entrega às atividades adequá-las a sua realidade e necessidades que, na experiência lúdica, se encontram mais vivas pelo fato desta experiência proporcionar ao ser maior contato consigo mesmo. Mas, para que as propostas sejam feitas pelo educador, este precisa também ser dotado de flexibilidade para aproveitar a riqueza desse universo. Gomes (2007) acredita que “o contato de professores com uma formação lúdica, pautada numa educação do sensível, pode se constituir no desvelar de caminhos que tragam à sua atuação profissional uma qualidade mais próxima à organicidade da vida” (p. 120). Por educação do sensível a autora compreende não apenas o exercício da sensibilidade, mas a abrangência dos saberes do cotidiano, dos saberes científicos e das dimensões múltiplas da vida, o que inclui não só a razão, mas a emoção e o corpo. Isso nos ajuda a refletir sobre as dificuldades de muitos professores de vivenciarem a ludicidade. Muito mais que teorias, técnicas de ensino, metodologias ou uma parafernália lúdica (jogos, brinquedos, objetos,...), a presença da ludicidade exige envolvimento afetivo do profissional, sua crença nas possibilidades da sua ação para que não se prenda a uma visão utilitária das atividades lúdicas. A vivência destas atividades precisa se dar de forma prazerosa, precisam ser propostas de modo que as crianças se envolvam ao realizá-las, e que não sejam somente um recurso didático para a aprendizagem de um conteúdo específico, o que pode se tornar um exercício cansativo, sem sentido para a criança. Mesmo uma aula expositiva pode se tornar lúdica se educador e educandos se encontrarem entregues e envolvidos com o momento, se estiverem prazerosamente integrados. Como enfatiza Freire (2002), a seriedade docente, o rigor e a alegria podem caminhar juntos, mais que isto, a atividade docente precisa ser uma atividade alegre. A ludicidade, que se relaciona ao prazer e ao não imposto, especialmente com a influência da visão capitalista de produtividade, se coloca em oposição a trabalho, sendo considerada, então, como tempo perdido, passatempo, como não séria. Isto justifica muito da dificuldade de ser incorporada aos processos de formação humana e de construção do conhecimento. Para validá-la, os professores se sentem obrigados a lhe atribuir um caráter utilitário, a usá-las como meios para alcançar objetivos determinados.
Xerox para apostila do 2º CN 2018 
Definidas corporeidade e ludicidade, passemos à pesquisa de campo e ao que pôde ser e observado e constatado. Um pouco do visto e do ouvido na escola A pesquisa de campo se realizou durante o segundo semestre letivo de 2011, em duas turmas do terceiro e quarto anos do Ensino Fundamental, séries onde dificuldades de manter um trabalho corporal e lúdico se tornam mais frequentes. Contou com quatro professoras de diferentes escolas da rede pública de uma cidade mineira. Foram escolhidas escolas que não primam pela rigidez, uma vez que sabemos, especialmente através de nossos estagiários e mestrandos, que isso dificulta o trabalho com a ludicidade e a corporeidade em sala de aula. As professoras que se dispuseram a participar da pesquisa tinham idade entre 25 e 32 anos, e eram graduadas em Pedagogia. Todas elas afirmaram ser professoras por opção, e desejar continuar a lecionar. Os dados colhidos através das observações e entrevistas semiestruturadas foram organizados em duas categorias que me ajudaram a ter uma visão mais clara de algumas dificuldades quanto ao trabalho com a corporeidade e a ludicidade vividas pelas professoras participantes desta pesquisa (que receberam nomes fictícios) e daquilo que podemos chamar de seu potencial lúdico. 
Crenças sobre o corpo na prática pedagógica As questões apresentadas na entrevista procuravam saber como as professoras viam o corpo de seus alunos e o movimento na sala de aula, e como sentiam o seu próprio corpo. O corpo dos alunos é percebido como responsabilidade da Educação Física ou como “algo” que tem espaço no recreio, e deve manter limites na aula. 
Paula: Não tenho espaço nem tempo pra essa coisa de corpo. Na Educação Física, trabalham o corpo. Com movimento não há concentração. Helena: Sei que é importante, que o corpo precisa se expressar, mas não sei como trabalhar isso. Joana considerava, prioritariamente, o aspecto disciplinar: Eu não tenho essa consciência de corpo, tenho de comportamento, das regras. O aluno pode se expressar, mas tem que respeitar limites. Carla: Eles precisam extravasar suas energias no recreio e na Educação Física para estarem menos agitados na sala. Não tenho como me preocupar com isso. Imagina se soltarem, vira bagunça, confusão. Perco o controle. A visão dicotômica corpo e mente ainda é bastante evidente na escola como nos mostram as falas e minhas observações. Os corpos eram reprimidos, e deles se pedia controle e quietude por tempo demais para crianças de oito a dez anos. A fala de Paula aponta para a crença bastante difundida de que o movimento impede a atenção, o que os estudos de Wallon desmentem. A Educação Física e o recreio são vistos como o momento em que o movimento pode acontecer como expressam claramente as respostas de Carla e de Paula.
Esta corta qualquer possibilidade de pensar sobre o assunto, enquanto aquela faz um comentário bastante repetido pelas professoras que tenho pesquisado: o movimento serve pra descarregar a energia. Freire (1989) observa que corpo e mente são uma totalidade e ambos atuam para a emancipação. E complementa: “Por causa dessa concepção de que a escola só deve mobilizar a mente, o corpo fica reduzido a um estorvo que, quanto mais quieto estiver, menos atrapalhará” (p. 13-14). É o corpo que nos sustenta na vida, que nos possibilita a inserção no mundo, mas se presta pouca atenção a ele. Outras falas deixaram claro que o corpo deve ser considerado, que ele se expressa, mas que é necessário que se tenha uma aprendizagem ainda não obtida para entendê-lo. Penso ser natural que surjam dificuldades em considerar o corpo, pois a escola tem contido sua expressividade. Pereira (2005) analisa o quanto nossos corpos são refreados no seu processo de escolarização. E, ao assumirmos uma sala de aula, procuramos a segurança no que nos ficou como modelo, como o conhecido: corpos quietos, calados, submissos. Carla aponta sua preocupação de que o movimento possa gerar “bagunça, confusão” e a perda do controle. O corpo aprisionado atrás de carteiras enfileiradas, domado, contido, assegura, pelo menos como se acredita, a “autoridade” do professor (PEREIRA, 2011). As respostas mostram, ainda, que a contenção corporal está presente também nos cursos de formação de professores, uma vez que nenhuma de nossas entrevistadas foi preparada para lidar com os corpos de seus estudantes, sequer para percepção de seu próprio corpo. Helena e Carla, as mais jovens, afirmam que tiveram uma disciplina na faculdade em que isto era discutido e teorizado. Helena observa que isto lhe havia despertado o interesse e a atenção, mas não sabia bem o que fazer. Carla disse que achou interessantes as aulas da graduação, mas diz:
As aulas foram interessantes, falava de teorias, mas a prática é diferente. Como fazer alguma coisa em uma sala deste tamanho? Não dá! Fica claro pelo exemplo e pelas conversas informais que falar em movimento e espontaneidade traz ideia de balbúrdia e desordem. A imagem que têm é correria, confusão e, especialmente, perda de controle. Há dois aspectos importantes a pontuar: primeiro que movimento não implica necessariamente um grande espaço ou movimentação excessiva. Atividades diversas, como as artísticas (recorte e colagem, pintura, jogos cantados, dramatizações, entre outras), atividades lúdicas por excelência, trabalham o movimento e a corporeidade (PEREIRA, 2011). Em segundo lugar, o movimento e a espontaneidade da criança fazem com que a escola as perceba como transgressoras de uma ordem preestabelecida, que é tida como disciplina. Um corpo em movimento se torna sinônimo de desobediência, de perda da autoridade do professor, que, neste caso, nada mais é que repressão. Permitir que os alunos se expressem não significa deixar de colocar limites, que são necessários à aprendizagem. Há ainda um aspecto que merece ser salientado, que diz respeito ao próprio corpo do professor, do qual, pela fala de Paula, se espera também controle e “postura”. Emoções devem ficar de fora, a racionalidade deve imperar: Tenho que manter uma postura adequada para sala de aula, né? Não posso ficar rindo. Como vão me respeitar e me obedecer? Como Freire (2002), Moraes (1986) contesta um verdadeiro mito criado na escola de que seriedade e alegria se opõem: “para deixar nascer a disciplina não é nem nunca foi necessário sufocar o lúdico ou a alegria. A vida não é isto ou aquilo, mas é na verdade isto e aquilo” (p. 28, grifos no original). Três professoras falaram de suas ansiedades e dificuldades vividas corporalmente no cotidiano da sala de aula, e da vontade de mudar ou da necessidade de aprender mais sobre o próprio corpo: Carla: Quantas vezes percebo, quando saio da sala de aula, que estou tensa, sentindo dores que antes de entrar não sentia... Joana: Fico com os ombros duros, sei que é tensão, mas não sei o que fazer... Helena: No início foi mais difícil. [...] Hoje trabalho mais dinâmicas, fico menos cansada e eles também. A aula rende mais, acho que aprendem mais também. Lembro-me das aulas da faculdade, da necessidade de trabalhar a corporeidade. Aí vou tentando improvisar... A fala de Helena deixa claro o que pude observar: sua expressão corporal tem maior espontaneidade, faz melhor uso de sua corporeidade – as emoções mais bem conduzidas, os movimentos mais fluidos, as relações afetivas mais fáceis, maior agilidade mental. Tudo isso se traduz nas palavras “vou tentando improvisar”. 
Quando investimos na visão de totalidade do ser, ou seja, na corporeidade, estamos investindo em um processo mais rico de ensino e aprendizagem. Como afirmam Pereira e Bonfim (2006), buscar nos estudos da corporeidade a ressignificação das ações corpóreas no espaço escolar significa reconstruir conceitos e vivências do corpo, ampliando as possibilidades de professores e alunos no diálogo com o mundo, permitindo várias descobertas a partir de sua própria experimentação. (p. 46). Joana denota preocupação com o aspecto formativo dos seus educandos, o que me pareceu, nas observações, ser percebido pelos alunos, que estabeleciam uma relação mais próxima com ela: Os alunos hoje têm uma postura muito diferente do que foi a minha educação, e compreender isso é importante. Saber lidar com eles. O que passa na cabeça deles, o porquê de determinadas atitudes... há valores que precisam ser cuidados, pois são alicerces. Os corpos parecem mais agitados... é difícil!!! E isso, nem sempre, é considerado, especialmente à medida que a idade dos alunos aumenta, até pelo acúmulo de cobranças e de dificuldades como maior número de alunos em sala e volume de conteúdos. Acredito que esta carência, que se agrava com uma preocupação quase compulsiva com conteúdos, é um dado que não podemos desconsiderar, uma vez que inviabiliza uma educação voltada para a vida e uma relação mais sensível com os educandos. Domingo (2003) expressa com muita sensibilidade a percepção dessa “falta” que se manifesta no cotidiano da sala de aula: “Há algo na intensidade do viver que é necessário para educar, mas que deve ser captado, entendido e assimilado vitalmente”, algo que se aprende com a experiência, com a vivência. “O melhor, só podemos aprendê-lo ao nos sentirmos atingidos por algo que nos chega vivo e se mantém vivo em nós, afetando a forma como queremos encarar o viver” (p. 20, tradução pessoal). E essa apreensão não é alcançada apenas racionalmente, é uma apreensão de “corpo inteiro”. Embora, inicialmente, tenham afirmado que mantinham uma boa relação com seus corpos e o de seus alunos, ausência de dificuldades se “traduzia” como possibilidade de manter a disciplina, de “impor respeito”. Mas expressaram que ainda enfrentavam dificuldades e que gostariam de superá-las ou minimizá-las, embora não soubessem como fazê-lo. O entendimento de ludicidade e sua vivência As perguntas giraram em torno do que entendiam por ludicidade, se atividades lúdicas eram significativas na sala de aula e se eram utilizadas em sua prática. Todas tinham a compreensão do lúdico relacionado aos jogos e brincadeiras e, consequentemente, a prazer e alegria. Interessante atentar para a relação imediata criada entre ludicidade e aprendizagem. Helena: O lúdico é importante, aprendem sem perceber, se relacionam com os outros, comigo também. Ficam mais receptivos, mais integrados.
Corporeidade e ludicidade nas séries iniciais do ensino fundamental: crenças, dúvidas e possibilidades
educação | Santa Maria | v. 40 | n. 3 | p. 697-710 | set./dez. 2015 
Joana: Faço jogos, eles acham que estão brincando. Eles pedem: “vamos brincar?” Pra eles é uma brincadeira, pra mim não, eles estão aprendendo. Paula: Ludicidade é brincar. O papel do professor é fazer o jogo se transformar num jogo educativo, que não seja só pelo prazer. A visão de ludicidade ainda está restrita, sempre associada ao trabalho com os conteúdos, mesmo que
a maneira de considerá-la apresente algumas diferenciações. Apresenta-se, basicamente, como meio para atingir objetivos determinados e parece ser aceita somente se for para facilitar a aprendizagem. Como enfatiza Olivier (2003), “a dificuldade que muitas vezes encontramos em levar o lúdico para a sala de aula decorre do fato de que seu exílio foi longo. Desde o início foi repelido, em benefício de tarefas mais racionais, que tivessem maior utilidade social” (p. 22). Mas como Wallon (2007) aponta, a brincadeira deve ter finalidade em si mesma, não significando um meio para atingir um fim, pois pode deixar de ser significativa. Paula tem preocupação em apontar que a atividade desenvolvida “não seja só pelo prazer”, o que nos permite refletir sobre o peso que a produtividade, o “trabalho sério” tem para as professoras, o que percebo muito claramente, também, no acompanhamento dos estágios e dissertações. Como ressalta Bustamante, ainda existe a concepção de que O tempo deve ser integralmente útil e, para isso, deve ser ocupado com tarefas sérias e pré-determinadas. A seriedade, neste caso, diz respeito a tudo que difere da diversão, da brincadeira, dos jogos, pois estas vivências são compreendidas como tempo não sério, improdutivo, de desordem e indisciplina. (2004, p. 61). É importante salientar que podemos usar a ludicidade para facilitar a aprendizagem, que isto traz benefícios para educadores e educandos, mas não podemos permitir que suas características principais se percam ou o caráter lúdico também se perderá. As atividades lúdicas possibilitam o desenvolvimento de múltiplas capacidades que, por si sós, já se tornam significativas como a autoestima, a interação, a criatividade, a atenção e a expressividade. Pude observar que, mesmo preocupadas em justificar a presença da ludicidade, três das professoras conseguiam despertar o interesse das crianças nas atividades e, consequentemente, o seu envolvimento. O que se evidenciava era a entrega da professora ao seu fazer e na relação com as crianças, o que chamo de potencial lúdico. Apenas Paula, extremamente rígida com o controle do tempo e do conteúdo, não conseguia se envolver, causando a dispersão das crianças e o consequente desinteresse. Para melhor explicar esta questão, trago um dos fatos ocorridos. Paula junto com a turma, depois de cantar um trecho do Hino Nacional, fez um texto coletivo a partir de um fato histórico e pediu fizessem uma ilustração. Imediatamente, as crianças, envolvidas na produção, tomaram seus lápis de cor e começaram a atividade, demonstrando criatividade e autonomia. “Não foi assim que aconteceu!!!” – falou Paula irritada. “Onde está a espada? E o riacho? Vocês não prestam mesmo atenção!” A atividade que a professora pretendia que fosse lúdica acabou se tornando uma atividade imposta, nada criativa, que não acolheu a imaginação e a fantasia das crianças, e que acabou por tirar-lhes o estímulo inicial. Se não ocorre o mergulho naquilo que está sendo feito, o fazer se torna mecânico, um fazer por fazer. Como considera Olivier (2003), a imaginação e a sensibilidade são aspectos fundamentais da ludicidade. Isso implica uma leitura menos linear da realidade, que cada um possa ter a sua forma de se expressar criativamente. O estímulo ao desenvolvimento dos alunos se dá, especialmente, quando ocorre a interação das crianças entre si, com o que ocorre na sala de aula e com a professora, que deixa de ser apenas um agente de informação e passa a ser uma mediadora das atividades. Quando esta interação acontece, a corporeidade está sendo trabalhada, assim como a ludicidade. As entrevistadas afirmaram, quando perguntei sobre isto, utilizar pouco as atividades lúdicas em aula, e a finalidade que foi apresentada era a mesma: uma forma mais agradável de trabalhar conteúdos. Entretanto, as três professoras, embora não o percebessem, muitas vezes, desenvolviam aulas lúdicas sim, como enfatizei acima, pois o envolvimento geral era visível. Entre as interferências para o desenvolvimento das atividades lúdicas, também se mostraram as cobranças de ordem e produtividade das escolas. As falas de Paula e Joana deixam claro, ainda, uma situação que se mostra em pesquisas que venho realizando e nos depoimentos de meus alunos já professores: as cobranças dos pais. Paula: Os pais não mandam seus filhos à escola pra brincar!! A coordenação cobra resultados! Joana: A escola cobra, não se pode perder muito tempo com brincadeiras. Os pais querem trabalhinhos nos portfólios. Helena: Uso atividades lúdicas para que sintam prazer e aprendam, trabalhem a autonomia, a autoestima e se interessem bastante pelo que fazem. Apenas Helena vislumbrou possibilidades que vão além da visão conteudista, privilegiando as relações da sala de aula e o desenvolvimento de capacidades. Pensar a atividade lúdica como atividade improdutiva e não séria é um equívoco, uma vez que, como destaca Negrine (2000), durante a brincadeira há a apreensão de habilidades já adquiridas assim como a aquisição de novas. Também, ocorre um processo de simbolização, ou seja, a criança representa e incorpora este ou aquele papel, ressignificando suas próprias concepções sobre o mundo e estabelece relações com o outro e com seu entorno. Entretanto, para contemplar esta dimensão proporcionada pela atividade lúdica, é necessário que o educador exerça seu papel de mediador. Freire (2005) nos lembra que o educador precisa dialogar, interagir com o educando, intermediar os saberes e, assim, ensinar aprendendo. Fala-nos da importância de o educador ser sensível, amoroso, tanto em relação ao cotidiano do educando quanto às atividades desenvolvidas por ele. O conceito de educador amoroso envolve comprometimento e responsabilidade com o aprendizado dos alunos, o que também significa que o educador os respeita e imprime maior leveza às aulas.
Corporeidade e ludicidade nas séries iniciais do ensino fundamental: crenças, dúvidas e possibilidades
Para finalizar... O educador é o mediador do processo de aprendizagem, o que implica grande responsabilidade. Se desconhecer o sentido da corporeidade, ou seja, se desconsiderar uma educação integradora das dimensões do ser humano, não investirá nesta direção. Os estudos apontam que a corporeidade e a ludicidade são aspectos importantes na realidade do educador das séries iniciais do ensino fundamental e que proporcionar a esses profissionais uma nova compreensão de educação em seu processo de formação inicial ou continuada, pode contribuir para uma prática mais rica, pois, sem conhecimentos adequados, o educador não terá segurança para modificá-la. Nosso envolvimento no processo formativo da criança é fundamental. Observa Keleman que “formar-se, crescer, requer compromisso emocional. Requer uma expressividade em contínua maturação, um estilo de vida que insista na agradabilidade do viver em vez do poder” (1996, p. 87). Este estar vivo no seu fazer é, a meu ver, uma das características fundamentais do educador. Muitas vezes, as professoras não percebiam a ludicidade que perpassava suas aulas e o seu envolvimento corporal com seus alunos, assim como o deles. Isso me leva a concluir que o conceito que se tem de ludicidade e de corporeidade ainda se encontra limitado e que, no ideário das professoras, se referem somente a brincadeiras, jogos e movimento intenso, o que inclui algazarra, desordem, tumulto. Parece-me, também, que acreditam que implementar aulas lúdicas pode significar ir contra o sistema, e isso, segundo temem, poderá resultar em problemas para o professor tanto com colegas de trabalho quanto com superiores e pais de alunos. São crenças arraigadas que precisam ser revistas. A criança se expressa constantemente, seja através de gestos, de atitudes ou de palavras, e isso faz parte de seu desenvolvimento e crescimento pessoal, pois é a partir daí que ela pode se relacionar com seu entorno e compreendê-lo. Conhecendo sua realidade e aprendendo a lidar com ela, poderá adquirir condições de transformá-la. Segundo Bustamante (2004), a escola deveria lidar
com o aluno como ser em processo de construção de si, que deve viver e desfrutar do presente vivido. A autora enfatiza a importância de se trabalhar com a criança como criança, não a considerando como um adulto precoce, o que a privaria da possibilidade de vivências corporais significativas que trabalhariam sua expressão, suas vontades, seus desejos, seus medos e suas alegrias. Reconhecendo a dificuldade de um ideal lúdico em todos os setores da escola, propõe que a vivência comece nas relações que se estabelecem entre educador e educandos. Cabe ao professor dar o primeiro passo e investir em relações mais lúdicas através de práticas mais criativas, afetuosas e sensíveis. As atividades lúdicas são uma possibilidade valiosa de trabalhar a corporeidade, o movimento, a criatividade, a flexibilidade e a expressividade tanto do educando quanto do educador. Os laços afetivos e a confiança se fortalecem, interferindo positivamente no processo de aprendizagem e no desenvolvimento da criança. Possibilitará ao educador conhecer melhor seu aluno e estar preparado para lidar com ele de forma mais aberta e compreensiva. Contribuirá, também, para uma prática pedagógica mais prazerosa para ambos, que abra caminhos para o desenvolvimento integral de seus alunos.
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LINGUAGEM CORPORAL, ESTADOS EMOCIONAIS E EDUCAÇÃO FÍSICA
O objetivo do presente trabalho é suscitar a reflexão acerca das contribuições que a prática de atividades físicas orientadas podem proporcionar, no que tange aos aspectos emocionais e psicológicos.
O problema está centrado na valorização exacerbada dos benefícios biológicos e funcionais que a atividade física proporciona, em detrimento dos benefícios no âmbito emocional.
Através da linguagem corporal pode-se perceber significados, valores, sentimentos e emoções, por vezes relacionados a necessidades, carências ou dificuldades pessoais. A utilização do movimento humano como instrumento de diagnóstico para detectar essas dificuldades é de fundamental importância para uma interferência profissional no meio educativo.
Os benefícios e valores adquiridos na esfera emocional auxiliam o indivíduo no desenvolvimento de sua personalidade, identidade e cidadania, contribuindo para uma formação pautada em preceitos éticos, morais e estéticos.
Numa visão sistêmica de homem, a ciência deve procurar compreendê-lo de forma integral, valorizando os aspectos biopsicossociais e suas inter-relações com o meio ambiente. A intencionalidade do movimento está fundamentada nas carências e necessidades do indivíduo, sejam de natureza física, psicológica, moral, afetiva e sócio-histórica.
Corporeidade e motricidade
O corpo é o princípio e a condição estruturante da existência humana e o veículo do ser no mundo. Dessa forma ele não pode ser encarado somente sob o ponto de vista físico ou "coisificado", mas dentro de uma perspectiva mais ampla já que não estamos no mundo diante do nosso corpo; estamos no nosso corpo, ou melhor, nós somos o nosso corpo. (MERLEAU-PONTY, 1994)
A idéia de corporeidade está associada ao corpo humano e ao comportamento motor ou ato motor, enquanto a idéia de motricidade está ligada ao movimento do corpo e sua conduta motora (movimento intencional, com sentido, significado, temporalidade e espacialidade).
Segundo Feijó (1998) o corpo é a expressão da unicidade da pessoa, o limite físico da personalidade, o território da liberdade subjetiva, a estruturação da autenticidade e da criatividade, bem como, a manifestação da presença e da influência da pessoa.
Através de suas manifestações corporais o ser humano se comunica e se expressa, deixando transparecer suas carências, privações, necessidades, dificuldades existenciais e emocionais. Em cada palavra da linguagem corporal, cresce o diálogo entre os homens e o corpo proporciona diversas e sucessivas leituras. (CUNHA, 1994)
A motricidade emerge da corporeidade e a conduta motora pode ser considerada como o comportamento motor enquanto portador de significação, de intencionalidade, de consciência clara, de vivência e "com-vivência", numa dialética entre o intrapessoal e o interpessoal. (ibid)
Fonseca (1996, p.9) ressalta que "o essencial é a intencionalidade, a significação e a expressão do movimento, e desta forma o movimento põe em jogo toda a personalidade do indivíduo". A motricidade é a projeção de um mundo (o próprio homem) em outro mundo (envolvimento), sendo, portanto inconcebível perceber o homem sem movimento e envolvimento.
Semiótica e linguagem corporal
Segundo Santaella (1983) é a Semiótica que estuda toda e qualquer linguagem, tendo como objetivo analisar como se estrutura a linguagem de todo e qualquer fenômeno de produção, significação e sentido, visando descrever e destacar nesses fenômenos a sua constituição como linguagem.
As linguagens e os códigos são dinâmicos e situados no espaço e no tempo, com implicações de caráter histórico, sociológico e antropológico. O convívio social requer o domínio das linguagens como instrumento de comunicação e negociação de sentidos. (LADEIRA E DARIDO, 2003)
A linguagem corporal é uma forma de se comunicar que varia entre contextos e culturas, sofrendo interferências do meio onde o indivíduo está inserido. A linguagem como forma de participação e interação social propicia ao indivíduo o reconhecimento do outro e de si mesmo, aproximando-se cada vez mais do entendimento mútuo.
Feijó (op.cit., p. 28) considera que a Educação Física pode contribuir na aventura de descoberta da própria personalidade, que para existir precisa do social, pois [...] "no contato com as diferenças dos outros, fica mais fácil acompanhar e descobrir aqueles traços e modos que constituem o conjunto típico da própria personalidade".
A comunicação não-verbal assume relevância nos processos de comunicação humana, influenciando nas relações interpessoais e os profissionais que se utilizam desta forma de comunicação no exercício de suas funções são de extrema importância, pois podem colaborar para uma melhor percepção e avaliação de outras pessoas e para uma contribuição mais geral na formação do indivíduo. (MESQUITA, 1997)
O profissional de Educação Física deve estar atento às diversas formas de manifestações dos alunos, utilizando o movimento humano como instrumento de diagnóstico para detectar suas possíveis dificuldades, necessidades ou carências, visando a superação das mesmas.
Estados emocionais e educação física
Segundo Miranda (1998, p.64) "a atividade física e o esporte são importantes não somente como instrumento para os benefícios corporais, mas também como elemento de suporte de moldura emocional significativa e funcional."
Um dos fatores explicitados nas atividades físicas é o efeito emocional sobre o comportamento da pessoa diante de uma tarefa qualquer. Dependendo da influência do estado emocional o comportamento pode ser beneficiado ou prejudicado, facilitado ou dificultado e, por vezes, impedido.
A prática de atividades físicas regulares pode proporcionar ao indivíduo contribuições positivas nos seguintes aspectos: humor, autoconfiança, auto-expressão, disciplina, auto-estima, concentração, superação de conflitos / frustrações, afetivo-sociais, autocontrole, funcionamento intelectual, autoconceito, ansiedade, reação ao estresse, agressividade, autodeterminação, auto-realização, formação da personalidade e, de forma geral, na estabilidade emocional.
Sendo assim, possíveis dificuldades ou distúrbios psicológicos podem ser evitados ou minimizados, com uma prática de atividades físicas orientadas e centradas em valores que possam estabelecer o equilíbrio emocional. Como exemplo podemos citar casos de depressão, disfemia, timidez, insegurança, medo, questões sociais e de conduta, dispersão, distúrbios psicossomáticos, hiperatividade / hipocinesia, anorexia / bulimia, dentre outros.
Para Deutsch (2003) a contribuição da Educação Física no processo de autoconhecimento dos alunos pode colaborar para uma melhor qualidade de vida dos mesmos. E os benefícios não ficam somente na área fisiológica,
mas pelas oportunidades que as atividades físicas oferecem de um maior contato, com o próprio corpo e dos outros, com os próprios limites e dos outros, podem colaborar para um melhor trânsito entre emoções e sentimentos e, provavelmente, uma maior compreensão do comportamento.
Utilizando a atividade física como um meio para a formação integral do aluno, podemos propiciar aos nossos alunos, através de diferentes vivências, o contato com diferentes emoções, sentimentos e estados emocionais, ligados a um estado corporal que se manifesta verbal ou não verbalmente. A movimentação corporal através da prática de atividade física colabora para a "movimentação das emoções", e sendo assim, podemos afirmar que a movimentação corporal interfere na emoção e esta pode interferir na qualidade do movimento.(ibid)
Porto e Gaio (2002, p.146) consideram que as possibilidades de movimentos em que estejam presentes o pensamento, o sentimento, a ação e a criatividade propiciam [...] "subsídios ao indivíduo para que ele venha a conquistar autonomia, auto-estima e autocrítica, atendendo assim, algumas das necessidades humanas referentes à qualidade de vida."
Considerações finais
Considerando o indivíduo um ser biopsicossocial e indissociável, cuja personalidade, corpo e mundo devem conviver em harmonia e integração, o profissional de Educação Física não pode desprezar as possibilidades de contribuir efetivamente para o desenvolvimento pleno do ser humano.
O professor deve, portanto, utilizar o movimento humano e a expressão corporal como meio de diagnóstico para detectar possíveis dificuldades e necessidades dos alunos, no sentido de auxiliá-los na superação das mesmas.
Uma metodologia voltada para a formação de valores, construção das noções de cidadania e relacionamentos interpessoais pode oferecer aos alunos possibilidades de enfrentar melhor os desafios na realização de atividades físicas e no decorrer de suas vidas.
O clima motivacional nas aulas é de fundamental importância na transmissão de valores que vão sendo introjetados pelos alunos e contribuem para o desenvolvimento de suas personalidades. A formação de uma atmosfera psicológica positiva e de um ambiente de segurança, de aceitação e respeito às diferenças individuais, de cooperação, solidariedade e justiça, são importantes para uma convivência prazerosa e de aceitação mútua entre os integrantes do grupo.
Os alunos possuem seus ambientes psicológicos próprios e estão sempre processando informações, valores e conhecimentos vindos do ambiente de classe. As diversas ações pedagógicas (pistas, orientações, gestos e verbalizações) formam um currículo oculto que é transmitido para os alunos e que deve estar carregado de valores positivos para as suas formações.
As atividades de aula devem ser diversificadas e com diferentes níveis de dificuldades para que os alunos possam vivenciar e experimentar suas competências e reais possibilidades, enfrentando sucessos, fracassos e desenvolvendo sua autocrítica. As atividades devem propiciar momentos de espontaneidade, criatividade, autenticidade, auto-expressão, autonomia e autodeterminação, visando o desenvolvimento da identidade dos alunos e sua formação mais ampla.
É de fundamental importância o trabalho integrado entre a Educação Física e a Orientação Pedagógica e Educacional, pois através da leitura da linguagem corporal de nossos alunos, podemos dar significativas contribuições para um investimento qualitativo na educação dos mesmos. Faz-se necessário, também, ressaltar que a Educação Física por si só não irá solucionar determinadas dificuldades dos alunos, mas poderá colaborar na detecção dessas e no encaminhamento para profissionais de outras áreas.
Dentro de uma proposta educativa, a construção de consciências críticas deve ser um objetivo constante e a escola não deve se eximir desse papel, sinalizando a inversão de valores que coloca o homem cada vez mais para o "ter" em detrimento do seu "ser".
Na construção de seu conhecimento, o aluno deve saber respeitar os seus limites e capacidades, valorizar a sua experiência corporal, participar ativamente da aprendizagem do uso de seu corpo, buscar fontes de pesquisa diversificadas para compará-las e criar mecanismos para interagir com o meio, usufruindo os benefícios da prática de atividades físicas para uma vida saudável e de qualidade em todos os sentidos.
Finalizando, a preocupação com os estados emocionais dos alunos nas aulas, segundo Deustsch (op.cit., p.28), [...] "nos dá a verdadeira dimensão do "fazer" atividade física e a responsabilidade do profissional-orientador da atividade, que não propõe um "exercício" para um "corpo", mas uma atividade-processo para um ser uno".
O autor: prof. Walmer Monteiro Chaves, mestre em Ciência da Motricidade Humana (UCB); professor das redes municipais de Itaboraí e São Gonçalo e particular de Niterói
Referências bibliográficas
 Cunha, M.S.V. Para uma epistemologia da motricidade humana. 2 ed. Lisboa: Compendium, 1994.
Deutsch, S. Estados Emocionais e Movimento. Motriz. Rio Claro, v.9, n.1, supl., p. S25-S28, jan./abr. 2003.
Feijó, O. G. Corpo e movimento: uma psicologia para o esporte. 2.ed. Rio de Janeiro: Shape, 1998.
Fonseca, V. Psicomotricidade. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Ladeira, F. T. e DARIDO, S. C. Educação Física e Linguagem: algumas considerações iniciais. Motriz. Rio Claro, v. 9, n. l, p. 25-32, jan./abr. 2003.
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Mesquita, R.M. Comunicação não verbal: relevância na atuação profissional. Revista Paulista de Educação Física. São Paulo, v. 11, n. 2, p. 155-163, jul. / dez. 1997.
Miranda, R. Atividade física e emoção. In: Miranda, R. (org). III Simpósio Mineiro de Psicologia do Esporte. Juiz de Fora: EDUFJF, 1998.
Porto, E. e GAIO, R. Qualidade de vida e pessoas deficientes: possibilidades de uma vida digna e satisfatória. In: Moreira, W. W e Simões, R (org.). Esporte como fator de qualidade de vida. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002.
Santaella, L. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983T

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