Buscar

A interdependência entre filosofia e ciência

Prévia do material em texto

Crítica 
Maio de 2003 Filosofia da ciência 
A interdependência entre filosofia e ciência 
 
Lawrence Sklar 
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus 
A física e a filosofia são duas formas profundamente interdependentes de procurar 
compreender o mundo e o nosso lugar como agentes de conhecimento do mundo. 
Tradicionalmente, a filosofia tentou descrever a natureza do mundo nos termos mais gerais. 
Renunciando à descrição e classificação minuciosas dos múltiplos fenómenos da natureza, 
deixando isso como tarefa para as ciências particulares, a filosofia preocupou-se com a 
natureza do ser nos níveis mais abstractos. Será que só existem particulares, ou teremos de 
postular que os universais, as propriedades, têm existência própria? Será que a substância do 
mundo se esgota no ser material, ou teremos de tolerar também um qualquer domínio de 
existência não-material para acomodar os fenómenos da mente? Estes são os tipos de 
perguntas que se espera que os filósofos respondam. 
 
A filosofia tomou também como seu o domínio do exame crítico das ciências específicas. 
Apesar de a ciência inferir o inobservado e a natureza do futuro a partir dos limitados dados 
disponibilizados pelas nossas observações até ao presente, a filosofia preocupa-se com a 
justificação do raciocínio indutivo que permite tal projecção do alegado conhecimento para lá 
do domínio do observado. A ciência colecciona os resultados das observações, resultados 
formulados nos termos derivados, em última análise, da linguagem da experiência quotidiana. 
Explica depois estes resultados por referência a um domínio de entidades teóricas 
inobservadas e suas propriedades. A filosofia, ao invés, questiona a legitimidade de tal 
extrapolação do domínio do observável para o do inobservável. Como poderemos justificar ou 
dar uma base racional a tais inferências? Mais profundamente ainda: como podem conceitos 
que propõem referir-se ao inobservável chegar mesmo a ter sentido para nós, dado o papel 
que a associação entre o conceito e a experiência alegadamente desempenha na 
fundamentação do significado? 
 
Filosofia em Directo 
A filosofia da ciência é muitas vezes caracterizada dizendo que reserva para si temas do 
domínio da metodologia. Ao passo que a acumulação efectiva de resultados da observação e a 
sua assimilação por parte de teorias explicativas gerais constituem as tarefas do cientista na 
sua disciplina particular, é ao filósofo da ciência que compete explorar os métodos que a 
ciência emprega para cumprir a sua tarefa. Como se formulam, testam, aceitam e rejeitam as 
teorias em ciência? Qual é o papel desempenhado pela confrontação com os dados? Que 
papel desempenham elementos como a simplicidade ontológica ou a elegância formal no 
processo contínuo de construção e selecção de teorias? Quais são os meios que o cientista usa 
para oferecer uma compreensão do mundo com base em observações e teorizações? Como 
formula o cientista as explicações? Quais são os recursos por detrás dos esquemas explicativos 
e de que modo a existência de uma explicação científica nos dá uma compreensão 
complementar da natureza do mundo? Mas, como vimos, a necessidade de teorias 
revolucionárias na física que lidem com os fenómenos da natureza aos mais altos níveis de 
generalidade e profundidade forçou os próprios cientistas a confrontarem-se com questões 
precisamente do tipo das que tradicionalmente têm estado reservadas aos filósofos. 
 
Quando lidamos com as questões mais fundamentais a respeito do espaço e do tempo e ao 
seu lugar na natureza, vêm a lume questões sobre o tipo de ser que pode existir e que pode 
ser invocado nas nossas explicações. Isto já era óbvio no século xvii quando, como vimos, 
pensadores do calibre de Newton e Leibniz lutaram com as questões metafísicas que pareciam 
inseparáveis das suas perspectivas sobre a natureza do espaço e do tempo. Agora que as 
revoluções nas nossas perspectivas do espaço e do tempo nos são impostas pelas teorias da 
relatividade restrita e geral, reaparecem estes velhos temas sobre o carácter substancial do 
espaço e do tempo. Mais profundamente ainda, como vimos, pensadores como Bohr, 
debatendo-se com os estranhos fenómenos a que a mecânica quântica tem de fazer justiça, 
perceberam ser necessário lidar com questões relativas à própria objectividade do mundo 
enquanto entidade alegadamente independente das acções empreendidas por quem procura 
conhecer a sua natureza. Os velhos temas filosóficos da autonomia do mundo relativamente à 
apreensão sensível e intelectual que dele temos — questões sobre as quais Kant, por exemplo, 
meditou profundamente — tornam-se parte de uma tentativa para compreender o formalismo 
da teoria concebida para dar conta dos estranhos factos relativos à interacção entre matéria e 
radiação com os quais a mecânica quântica tem de lidar. 
 
Vimos também que a abordagem crítica e epistemológica da filosofia teve um papel a 
desempenhar nos fundamentos de algumas destas teorias da física contemporânea. Apesar de 
o espaço-tempo revolucionário das teorias da relatividade restrita e geral ter nascido em parte 
da necessidade de novas perspectivas do espaço e do tempo que fizessem justiça aos factos 
experimentais recentemente descobertos sobre o comportamento da luz, o movimento das 
partículas e os resultados de medições relacionadas com réguas e relógios, o exame crítico de 
conceitos do ponto de vista epistémico desempenhou igualmente um papel importante na 
formulação destas teorias. Este programa crítico é sobretudo evidente no trabalho de Einstein, 
que repetidamente faz avançar a discussão teórica pedindo-nos para reflectir sobre o 
significado dos nossos termos básicos relacionados com o espaço e o tempo. Einstein convida-
nos a considerar o modo como estes termos funcionam nas nossas teorias, sublinhando 
sobretudo a medida em que as teorias por nós postuladas se fundamentam em factos do 
mundo que nos sejam genuinamente acessíveis do ponto de vista epistémico. Usando um 
exame crítico de termos e hipóteses que depende de uma exploração dos limites da nossa 
consciência epistémica do mundo, Einstein dá nova energia às teorias da física disponíveis para 
lidar com a estrutura espacial e temporal do mundo. Numa tentativa para resolver as 
características aparentemente paradoxais do mundo que a mecânica quântica nos descreve, 
encontramos uma vez mais pensadores como Bohr e Heisenberg tentando convencer-nos de 
que uma compreensão correcta da teoria, assim como do mundo que ela descreve, exige que 
recuemos e reflictamos sobre a nossa capacidade de conhecer o mundo. Esta é uma reflexão 
do ponto de vista crítico-epistemológico. 
 
Podemos considerar a forma como a mecânica estatística indica a existência de modos de 
explicar os fenómenos que parecem exigir modelos de explicação estatística de uma 
originalidade surpreendente como um exemplo de como os resultados da física exigem que 
repensemos questões metodológicas. O papel desempenhado pelas probabilidades na 
mecânica estatística; o fundamento para as atribuir a microestados de tipos particulares de 
sistemas; o papel por elas desempenhado para dar conta dos fenómenos macroscópicos com 
que a termodinâmica lida; e a relação entre estas probabilidades e as consequências de tipo 
estatístico derivadas das leis da dinâmica subjacentes — tudo isto indica que um repensar 
destas matérias está na ordem do dia. Temos de pensar profundamente na relação entre as 
condições iniciais e as leis, assim como no papel desempenhado por ambas na explicação da 
razão pela qual acontece o que acontece no mundo. Vimos também como as consequências da 
mecânica quântica — como as demonstrações de impossibilidade da existênciade variáveis 
ocultas locais — sugerem que a ciência nos obrigou a adoptar uma nova atitude em relação ao 
que constitui uma explicação completa das correlações descobertas entre fenómenos quando 
estes não estão em interacção causal no momento em que ocorrem. Efectivamente, a própria 
natureza da causalidade e de como a devemos procurar e invocar na ciência surgem de 
maneira diferente no contexto quântico. 
 
Não podemos pois ter a esperança de fazer filosofia independentemente dos resultados da 
física. Que isto é verdade no caso da metafísica — a investigação da natureza do mundo ao 
nível da maior generalidade — parece óbvio. É evidente que a nossa compreensão dos tipos 
fundamentais de coisas e propriedades que temos de postular para percebermos a natureza 
do mundo tem de ter em linha de conta aquilo que a ciência nos diz sobre o mundo. Vezes e 
vezes sem conta a filosofia que procura raciocinar a priori, sem confiar nos dados da 
observação e da experiência, e chegar a conclusões sobre como o mundo tem de ser se viu em 
situações embaraçosas provocadas pelas revelações da ciência. Isto mostrou-nos que os 
filósofos aprioristas tiveram uma imaginação muito limitada quando tentaram delimitar o 
domínio de possibilidades no que respeita à natureza do mundo. Sem os resultados da física, 
que filósofo teria considerado as inúmeras possibilidades no que respeita à natureza do espaço 
e do tempo, da causalidade e dos tipos de objectividade e da sua ausência que as novas teorias 
radicais da física postularam como possibilidades a ter em consideração? 
 
Mas não é só a metafísica que tem de prestar atenção aos resultados da ciência. Muitos 
filósofos da teoria do conhecimento têm vindo a defender ultimamente que a esperança de 
alcançar uma teoria racionalmente justificada e formulada em termos apriorísticos sobre a 
inferência que conduz à verdade é também uma proposta duvidosa. Ao decidir que regras é 
razoável usar para procurar a verdade, defenderam esses filósofos, temos de nos apoiar nas 
nossas melhores e mais perspicazes ideias sobre a natureza do mundo, cujas verdades 
estamos a tentar descobrir por meio da investigação persistente. Mas, sendo assim, temos 
certamente de ter em consideração aquelas teorias das ciências — quer se trate da física 
fundamental ou da neuropsicologia e das ciências cognitivas da percepção e do pensamento — 
que nos dizem o que sabemos acerca da natureza do mundo que estamos a tentar descobrir e 
acerca da relação que temos com o mundo como agentes de percepção e criadores de teorias. 
Como vimos, é precisamente a ideia que temos do que é compreender esse mundo, 
compreender o seu funcionamento e fornecer explicações do que nele acontece, que 
dependerá, em si mesma, da própria natureza desse mundo. Logo, tanto nas suas tarefas 
epistemológicas como nas metodológicas a filosofia terá de recorrer continuamente ao que as 
ciências avançadas, incluindo a física fundamental, nos dizem acerca do mundo. 
 
É importante notar que a filosofia não se limita a depender das ciências unicamente como 
fontes de dados brutos. Sem dúvida que os resultados da observação que empurram a física 
para a invenção das teorias novas e radicais que temos estado a avaliar têm um impacto 
crucial sobre a filosofia. Mas o que fornece à filosofia um espectro ainda mais rico de novas 
formas conceptuais de lidar com o mundo é também a capacidade, por parte dos que fazem 
aquelas ciências, para imaginar novos esquemas conceptuais que dão conta dos novos dados. 
É a imaginação de cientistas como Boltzmann, Einstein e Bohr que é a fonte de formas 
completamente novas de pensar acerca da natureza da realidade, do conhecimento que temos 
dela e da nossa capacidade para dar uma explicação dela. É essa imaginação que fornece uma 
fonte sempre fértil de enriquecimento para o filósofo que procura novas maneiras de lidar 
com problemas, tanto novos como velhos, apresentados pelo mundo da experiência. 
 
Mas se a filosofia tem de prestar muita atenção aos resultados da física fundamental, é claro 
que esta última também depende da filosofia. À medida que explorámos as raízes das teorias 
fundamentais que constituem o núcleo da física moderna observámos, vezes e vezes sem 
conta, que a formulação destas teorias não é uma extrapolação trivial por meio de raciocínios 
óbvios a partir dos dados da observação. Ao invés, a formulação de uma teoria apropriada e a 
justificação racional fornecida para essa escolha, quando se adopta e defende uma 
determinada postura teórica contra as suas críticas, dependem dos tipos de raciocínio que os 
filósofos exploraram e em que meditaram profundamente. Isto pode ver-se claramente, por 
exemplo, nas justificações racionais por detrás das teorias da relatividade restrita e geral 
oferecidas por Einstein e nas tentativas levadas a cabo por Bohr para fornecer uma 
compreensão coerente do formalismo da mecânica quântica. Nestes casos, questões 
filosóficas como a distinção entre as consequências de uma teoria susceptíveis de serem 
testadas por meio da observação e as que são imunes a tal confrontação; o papel do exame 
crítico dos significados dos conceitos não observacionais das teorias; a justificação dos 
princípios que presidem à escolha de teorias, como o da simplicidade ontológica; a questão de 
saber se as generalizações são adequadas para fornecer explicações genuínas dos fenómenos; 
e a questão de saber quando podemos considerar que estamos perante uma explicação última 
— todas estas questões desempenham um papel crucial no interior da dialéctica científica que 
conduz à formulação e aceitação de teorias. É como se as questões tradicionalmente 
encaradas como filosóficas tivessem de se tornar parte do próprio pensamento científico 
quando as teorias científicas em questão tiverem uma generalidade e um carácter 
fundamental tão acentuados quanto as que discutimos nos capítulos anteriores. 
 
Já houve uma altura em que os físicos teóricos recebiam habitualmente alguma formação em 
filosofia e na sua história. Nessa altura podíamos encontrar, nas obras de alguns dos maiores 
cientistas, referências explícitas ao tipo de raciocínio filosófico em que se apoia o raciocínio 
científico. Einstein e Bohr constituem dois exemplos dignos de nota. Apesar de a 
especialização da formação académica nas últimas décadas ter tornado tal familiaridade com a 
filosofia tradicional menos comum entre os cientistas — mesmo entre os mais teóricos —, 
tornou-se agora claro que é necessário o tipo de pensamento filosófico, enquanto parte do 
pensamento científico, que discutimos. Isto é verdade quer o cientista queira enfrentar este 
facto quer não. Pode ver-se uma prova a favor disto no tipo de pensamento parafilosófico que 
se tornou parte da especulação e teorização cosmológicas sobre o Big Bang na cosmologia 
científica. 
 
O facto de as próprias teorias científicas se basearem num pensamento de tipo filosófico — 
quer isto seja explícito na história da ciência quer seja apenas implícito e esteja à espera que o 
historiador e o filósofo o tragam à luz — significa também que temos de ter cuidado com 
tentativas demasiado ingénuas para resolver questões filosóficas tradicionais por meio dos 
resultados da ciência. Os argumentos que visam estabelecer que um dado resultado da ciência 
resolve conclusivamente uma questão filosófica tradicional numa ou noutra direcção perdem 
de vista muito frequentemente o modo como os pressupostos filosóficos implícitos foram 
integrados na teoria que está a ser usada para resolver o debate. Caso se tivessem feito outras 
escolhas filosóficas na própria ciência, as implicações que a ciência teria na filosofia poderiam 
parecer muitíssimo diferentes. 
 
Em qualquercaso, é muito claro que, ao nível da sua maior generalidade e das suas tentativas 
para lidar com a natureza ao nível mais fundamental, a ciência não é uma disciplina cuja 
natureza se possa distinguir radicalmente da filosofia. E a melhor maneira de fazer filosofia é 
usar um método cuja teorização, como na ciência, se confronte sempre com a natureza das 
coisas tal como esta nos é revelada por essa experiência subtil a que chamamos “observação e 
experimentação científicas”. 
 
Lawrence Sklar 
 
Retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992).

Continue navegando