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Essência e aparência - a formação estética da cultura Ocidental Anotações para aula Prof. Dr. Claudio Schubert 1 - Introdução A busca do belo, do agradável, do lindo, do bonito é tão antiga quanto à existência da humanidade. Diferentes épocas têm seus modelos específicos de beleza. De acordo com esses valores, determinadas características físicas, de conhecimento ou espirituais foram maximizadas e conceituadas como o sendo o padrão de beleza daquele momento histórico. Sabe-se que na fase pré-histórica e antiga, a mulher considerada bela era aquela que tinha atributos físicos desenvolvidos para a procriação, principalmente. Isso pode ser percebido no período do Paleolítico Superior 1 em pinturas e esculturas de figuras femininas. A figura da Vênus de Willendorf, por exemplo, é retratada com “seios volumosos, ventre saltado e grandes nádegas”2, acentuando assim as características consideradas relevantes ou belas naquele período histórico 3 . O homem considerado belo era principalmente o mais forte, pois este tinha força física para defender e proteger a prole, independente se era educado, romântico ou companheiro. O mais astuto na arte da guerra, da caça e das estratégias de sobrevivência, o que muitas vezes significava a continuidade de vida do grupo inteiro, recebia o reconhecimento dos colegas e a admiração das mulheres. A compreensão racional do belo que está presente na construção da sensibilidade Ocidental nas mais diferentes fases de sua constituição foi desenvolvida pelos antigos gregos. Assim, voltemos às teorias que formam a base da sociedade Ocidental para perceber a visão de ser humano e conseqüentemente a compreensão do belo lá iniciada. 2 - Os pré-socráticos e a idéia do homem integral Uma das primeiras descobertas do ser humano na tentativa de buscar sua auto-compreensão racional foi a constatação de que ele tem consciência. Foram os pré-socráticos 4 que começaram a formular uma explicação racional para a existência do cosmos e do homem. No que se refere ao ser humano, perceberam que ele tem uma Psyché. Segundo Bauer 5 , essa Psyché pode ser compreendida como a alma, aquilo que dá vida, uma essência que é diferente do corpo e que não é dissolvida pela 1 A Pré-história constitui-se de um período extremamente longo, por isso foi dividida em três períodos: a) Paleolítico Inferior cerca de 500 mil anos a.C.; b) Paleolítico Superior em torno de 30 mil anos a.C.; c) Neolítico cerca de 10 mil anos a.C.. SANTOS, Maria das Graças Vieira Proença. História da arte. Ática, São Paulo: 2006, p.10. 2 Op. Cit. p.12 3 Nos períodos antigos até a Idade Média, a capacidade de procriação de uma mulher era extremamente valorizada. A alta taxa de mortalidade infantil aliada às constantes guerras ceifavam a vida de um considerável percentual da população. Diante disso, a constante procriação e a constituição de grandes famílias eram uma necessidade para a sobrevivência da tribo e perpetuação dos herdeiros do clã. 4 São chamados de pré-socráticos os filósofos que viveram em torno dos séculos séc. VII a V a.C., ou seja, antes de Sócrates (470-399 a.C.). 5 Bauer, Walter. Wörterbuch zum Neuen Testament. Walter de Gruyter, Berlin, 1971, p.1765. morte. Conforme Taylor 6 , a Psyché “é o mais essencial à vida do homem quando sua vida corpórea se considera secundária”: ou seja, é uma essência ou interioridade7, um princípio ordenador do existente. Assim, pode-se compreender que a Psyché é a causa da vida e por isso conceituada como imortal, pois essa é a essência que constitui a vida, sendo, por isso, considerada o princípio permanente. Além disso, os filósofos pré-socráticos constataram a existência de um princípio criador do qual tudo o que existe se origina: a Physis 8 . Interessa, nesse momento, a descoberta da existência da Psyché que o pensador pré-socrático faz. Foi Homero 9 , figura lendária que viveu em torno dos sécs. IX a VIII a.C., que poetizou a Ilíada e a Odisséia 10 . Essas narrativas exerceram grande influência na formação do espírito grego. Conforme Homero, o ser humano tem um princípio divino (alma, Psyché) que existe antes do corpo e não morre com o corpo, mas está destinado a reencarnar-se sucessivamente. Assim, em Homero começa a ser valorizada a Psyché como uma manifestação da essência ou interioridade, distinguindo-a das manifestações da sensibilidade, ou do corpo. Desse modo, encontramos em Homero a existência de “um outro” na pessoa, ou seja, uma Psyché. Diferente do corpo que se dissolve com a morte, a Psyché é compreendida como eterna e que excede a temporalidade. Arte na Grécia 3 - Platão: o belo são as atitudes Platão 11 desenvolve o conceito do Mundo das idéias e Mundo da sensibilidade, vendo essas duas formas de conhecimento como importantes. Para o filósofo, o Mundo das idéias é um conjunto de atividades racionais, é a lembrança, o raciocínio, são as idéias que têm autonomia independente do corpo e se caracterizam como sendo o oposto deste. A compreensão platônica serviu de base para a construção teórica e desenvolvimento de grande parte da racionalidade Ocidental. Esse é o dualismo platônico apresentado de forma bastante original, onde é explicada a constituição do ser humano. Para Platão, o homem é formado de uma essência, que ele chama de Mundo das idéias e, na outra dimensão, encontra-se o Mundo da sensibilidade, o corpo com suas características. Esses dois mundos têm influência recíproca, mas o que deve prevalecer são os argumentos do Mundo das idéias. É na idéia, na essência, na interioridade, na razão que se encontram as verdades consistentes, pois essa é a dimensão mais próxima ao perfeito, perene e eterno. O corpo, por sua vez, está envolto em sensibilidades e desejos perecíveis, portanto não confiáveis. Assim, a verdade segura encontra-se no Mundo das idéias, pois as verdades da sensibilidade facilmente levam a enganos. Desse modo, a 6 Taylor, William. Dicionário do Novo Testamento Grego, 7ªed., Rio de Janeiro, 1983, p.246. 7 Não existe um termo único para caracterizar o sentido de Psyché. Este pode ser compreendido como consciência, interioridade, alma, espírito, essência, razão, Logos, etc. Platão fala mais em Mundo das idéias, contrapondo este termo com o Mundo da sensibilidade. Esses termos têm distinção entre si, nesse momento, no entanto, serão utilizados naquelas características que apresentam identidade. 8 Physis é a origem da totalidade, do existente. “A Physis pertence a um princípio inteligente, que é reconhecido através de suas manifestações e ao qual se emprestam os mais variados nomes: Espírito, Pensamento, Inteligência, Logos [...] A Physis compreende a totalidade de tudo o que é”. Bornheim, G. Os filósofos Pré-socráticos. São Paulo, Cultrix, 1993, p.13. 9 Reale; Antiseri. História da filosofia: filosofia pagã antiga, vol. I. São Paulo, Paulus, 2003, p.7ss. 10 Ilíada trata da Guerra de Tróia e Odisséia narra a volta de Ulisses após a guerra. Essas epopéias tiveram uma função pedagógica importante na vida dos gregos, formando determinada concepção de vida e visão de mundo. 11 Platão (428 -347) viveu em Atenas e foi o discípulo mais destacado de Sócrates. No mito da Caverna ele ilustra a teoria do conhecimento que distingue o Mundo das idéias e Mundo da sensibilidade. autonomia do homem pode ser construída pelo desenvolvimento de sua racionalidade, ou seja, do Mundo das idéias, isto é, pela sua capacidade racional. O Mundo da sensibilidade é o lugar onde se abrigam as verdades aparentes, os equívocos e os vícios. Esses dois mundos têm influência recíproca 12, mas o que deve prevalecer são os argumentos do Mundo das idéias. Assim, conforme Platão o belo se encontra no Mundo das idéias, ou seja, está nas atitudes da pessoa, no seu caráter, nos seus comportamentos, nas suas virtudes. Para ele, as características físicas são secundárias. 4 - Aristóteles: a virtude é bela Aristóteles 13 discípulo de Platão, freqüenta a Academia do Mestre, mas desenvolve pensamento autônomo e diferente em muitos aspectos. Aristóteles enfatiza seu interesse pelas ciências naturais e empíricas, ao contrário de Platão onde a ênfase eram as ciências matemáticas 14 . Isso quer dizer que desaparece no filósofo a idéia dualista platônica que divide o mundo entre idéias – o perfeito – e sensibilidade – a cópia imperfeita. Para Aristóteles, "as idéias não são, portanto, a única realidade; o mundo sensível é igualmente real e o indivíduo é a primeira e a mais alta realidade ou substância" 15 . Assim, a matéria é possibilidade, tem potencialidade para que determinada essência se concretize, se realize. O conhecimento parte da experiência sensível e imediata, das coisas concretas com suas características. Assim, a matéria torna-se necessária para a existência e concretização das coisas, mesmo que ela somente realize sua potencialidade devido à ação da essência. Isso quer dizer que a construção do conhecimento se torna possível pela inter-relação entre essência e matéria. Pode-se dizer que para Aristóteles, "todo ser é constituído de matéria e forma, princípios indissociáveis. Enquanto que a forma é o princípio inteligível, a essência é comum aos indivíduos da mesma espécie, pela qual todos são o que são, a matéria é pura passividade, contendo a forma em potência" 16 . Assim, o filósofo valoriza as idéias como não poderia deixar de ser, mas o mundo sensível é igualmente importante na reflexão. O indivíduo é a primeira e mais alta realidade. Isso quer dizer que Aristóteles busca a verdade, o belo e o justo a partir da realidade sensível, por meio da qual o homem pode ter acesso a elas 17 . Para Platão o belo encontra-se no mundo das idéias, pois a realidade é somente uma cópia do ideal de beleza. Aristóteles trabalha com o conceito de mímesis que não é simplesmente uma imitação ou uma cópia de certo objeto, mas é uma recriação. Na mímesis a essência está nos objetos da natureza e o artista recria as Formas universais e perfeitas. "Imitar, copiar, representar não constituem degradações de um mundo ideal" 18 até porque para Aristóteles o mundo ideal não existe. Assim, o 12 É o que hoje se constata nas chamadas doenças psicossomática, ou seja, a inter-relação e influência recíproca entre o Mundo das idéias - a Psyché e na outra dimensão encontra-se o Mundo da sensibilidade, ou seja, o Soma. Isso quer dizer, da Psyché (Mundo das idéias) e do Soma (Mundo da sensibilidade) resulta o termo Psyché + Soma = psicossomático. 13 Aristóteles viveu entre os anos de 384 a 322 a.C.. Nasceu na cidade de Estagira e foi discípulo de Platão, desenvolvendo um pensamento distinto do Mestre em diversos aspectos. 14 Reale e Antiseri, 2004. 15 Jimenez, 1999, p.215. 16 Aranha, 1993, p. 97 17 Jimenez, 1999. 18 Jimenez, 1999, p.216 filósofo compreende a tragédia como mímesis, onde determinada situação é recriada, reproduzindo piedade e terror. Surge, desse modo, o termo Kátharsis (catarse) que desempenha uma função social purificadora médica e moral, onde a sensibilidade é valorizada. Para Aristóteles 19 , os homens possuem necessidades passionais, violentas e coléricas e como a ordem social não permite a realização de tais necessidades elas são satisfeitas na arte. A arte desempenha, desse modo, uma função social salutar, pois purifica as paixões e o homem se estabiliza espiritual e socialmente. Assim a arte possibilita o deleite estético e intelectivo. É por isso que o filósofo entende que a tragédia produz o prazer. Desperta piedade e medo, operando a purgação de tais emoções. Assim, a tragédia, pelas diferentes reações que produz no expectador, leva à purgação, catarse e purificação. A felicidade encontra-se na vida virtuosa que é construída numa conduta equilibrada entre as paixões, emoções, temperança, prudência. O sujeito que tiver uma conduta moderada, equilibrada e prudente será um sujeito virtuoso, conseqüentemente feliz. Este atingiu o mais alto grau de uma vida virtuosa. Para Aristóteles "o homem feliz vive bem e age bem; pois definimos praticamente felicidade como uma espécie de boa vida e boa ação" 20 , como um conjunto de atividades que levam à excelência. Assim, felicidade é estar bem em todas as dimensões que formam o ser humano, sem a distinção muitas vezes feita na contemporaneidade de compreender a felicidade como uma sensação da alma somente, ou estar localizada nos prazeres do corpo. Para Aristóteles, a virtude que leva à felicidade precisa englobar a interioridade e exterioridade, pois as duas dimensões estão inter- relacionadas. Arte cristã primitiva e medieval 5 - O belo pelo enfoque religioso A teoria platônica foi reinterpretada nos primeiros séculos do cristianismo e recebeu a denominação de Neoplatonismo. Esse dualismo platônico utilizado pelos Padres da Igreja, entre eles Santo Agostinho (354-430), serviu para construir bases doutrinárias importantes do cristianismo. Algumas destas interpretações fizeram uma distinção extremada no que se refere à compreensão do conceito essência e aparência, ou seja, alma e corpo. Em alguns momentos históricos os conceitos de corpo e alma foram colocados em pólos distintos e até opostos. Esse dualismo teve como desdobramentos interpretações doutrinárias que acentuaram o caráter de submissão do corpo à alma, isto é, da exterioridade à interioridade. Desse modo, estas leituras compreenderam o corpo como oposto ou até prejudicial à alma. Assim sendo, para buscar a aproximação com o Sagrado o corpo precisaria submeter-se aos rigores que a fé estabelecia, para tal era fundamental interpretar e praticar as determinações que o dogma religioso exigia. Essa leitura desdobrou-se na prática, em muitos momentos, da negação da afetividade, da sexualidade e da sensualidade. Temos aí uma compreensão do belo que vê o corpo, com seus desejos, sensibilidades e formas como um perigo para a pureza da fé e que deve constantemente ser vigiado para não levar a alma ao pecado. Sabe-se que no período medieval o belo estava relacionado com a devoção a Deus, ou seja, idêntico ao pensamento platônico, belas eram as atitudes, neste caso a devoção e a prática das normas consideradas corretas segundo o princípio religioso. Nesse aspecto, uma leitura estética interessante pode ser feita do papel reservado ao gênero feminino. A mulher bela era principalmente aquela que demonstrava potencialidade de ser uma boa mãe e educar os filhos nos princípios cristãos. O conceito 19 Jimenez, 1999, p.216 20 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1991, p.17 de belo do cristianismo primitivo recebe uma influência forte, como não poderia deixar de ser, do judaísmo do Antigo Testamento. Um valor muito presente na maioria dos povos antigos e também do judaísmo veterotestamentário circunscreve de modo claro as funções reservadas às mulheres. Nisso pode-se perceber com nitidez, mesmo que implicitamente naquele momento, as características e os valores que conceituam o belo feminino. O Antigo Testamento faz inúmeras referências relacionadas à maternidade e, por desdobramento, à mulher sem condições de procriação. Assim, as mulheres estéreis constituíam-se muitas vezes em um problemapara a tribo, considerando o fato de não poderem gerar descendentes e precisarem estar, necessariamente, aos cuidados de um homem. A história de Sara e Abraão no Antigo Testamento, no livro de Gênesis, ilustra bem esse fato. Abraão recebe a promessa de Deus de tornar-se o pai de uma grande nação, mas sua mulher Sara é estéril e não pode lhe dar descendentes. O diálogo entre Deus e Abraão revela o desespero deste último quando diz “Senhor Deus que me haverás de dar, se continuo sem filhos, e o herdeiro da minha casa é o damasceno Eliezer? 21”. A decisão que Sara comunica a Abraão revela seu grau de desespero diante da esterilidade quando ela diz “Eis que o Senhor me tem impedido de dar à luz filhos; toma, pois a minha serva, e assim me edificarei com filhos por meio dela 22”. Outro relato idêntico, mas que agrega ao papel maternal esperado da mulher sua dependência do homem encontra-se no livro de Rute, também no Antigo Testamento. Este relato mostra a dificuldade que esta civilização tinha de conceber a vida de uma mulher sem um protetor homem. A história termina com o final feliz quando Rute e Boaz contraem casamento 23 . A história não pára aí, pois ainda falta um acontecimento importante para completar o conceito do belo. O ideal do belo se concretiza quando nasce o pequeno Obede, filho de Rute e Boaz 24 . A partir destes relatos e da história antiga, o homem belo era aquele que tinha potencial de zelar pela família na prescrição da doutrina cristã. “Um bom filho será um bom pai”, diz o ditado. Nesse pensamento está implícito o que significa o conceito “bom”, isto é, orientar a vida na doutrina religiosa. Assim, no pensamento religioso o bom e o belo estavam identificados com a ação que o sujeito pratica. Não muito diferente do conceito do antigo judaísmo do qual encontramos relatos estéticos interessantes nas entrelinhas do texto sagrado do Antigo Testamento, a valorização do que era considerado belo, na maioria das vezes, tendeu aos valores que davam garantia à sobrevivência da tribo. Em última análise, o conceito que via como bela a devoção ao Criador era uma busca pela sobrevivência deste povo. 6 - O paralelismo de Espinoza Sobre a idéia de complementaridade e não oposição entre essência e aparência Espinoza 25 tem uma contribuição importante pode nos auxiliar na compreensão de uma ação comunicativa integral. Para ele, o mental e o físico não estão em contradição. Também não existe a superioridade da alma sobre o 21 Livro de Gênesis capítulo 15 versículo 2, ver texto anterior e posterior 22 Livro de Gênesis capítulo 16 versículo2, ver texto anterior e posterior 23 Veja o livro de Rute capítulo 4 versículo 10 24 Esta narrativa pode ser lida no Antigo Testamento no livro de Rute. Existem, teológica, ou antropologicamente falando, outras muitas interpretações possíveis desta história. O enfoque priorizado no presente texto é a leitura estética, ou seja, a compreensão do belo. 25 Baruch Espinoza (1632 – 1677) nasceu em Amsterdam e pode ser compreendido como precursor do Iluminismo francês diante do seu empenho em valorizar o ser humano de modo integral. Além disso, também contribuiu para as idéias que mais tarde formaram o existencialismo. Procurou compreender uma maneira de viver que seria capaz de dar sentido e alegria à existência humana (Reale; Antiseri. História da filosofia: De Spinoza a Kant, vol. 4, São Paulo, Paulus, 2005). corpo, mas estas estão numa relação de paralelismo. O filósofo entende que essência e aparência são atributos de uma mesma substância, que é Deus, e por isso existem em perfeita interação. O principio da vida, das atividades espirituais e da sensibilidade constitui uma entidade em si, uma substância em si. A existência da Psyché se evidencia nas manifestações psíquicas ou espirituais que se revelam de modo autônomo, desdobrando-se em manifestações da sensibilidade e influenciado elas, e sendo por elas influenciado. Nesse aspecto, a natureza da Psyché é menos importante, ou seja, sua materialidade ou imaterialidade. Espinoza se utiliza do conceito de monismo 26 , e não dualismo, para explicar sua compreensão de ser humano e do existente. Isso quer dizer que, sendo Deus a substância única e geradora de tudo que existe, é dele que se originam todos os atributos, especificamente os do pensamento e do corpo. É por isso que corpo e mente estão numa relação de igualdade em termos de relevância. Assim, não existe a idéia de oposição entre essência e aparência, mas de complementaridade, no sentido de que estes são a mesma substância, mas com atributos diferentes. Nesse aspecto, a ação da essência afeta a aparência e a sensibilidade reflete-se na mente. Espinoza diz que “nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra coisa” (Prop. II, Ética III, p.177. Ele fala que “a alma e o corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão” (Escólio, Prep.II, Ética III, p.177). Aqui é importante sublinhar um dado em Espinoza. Para ele a substância que pensa (mente) e a substância extensão (corpo) são uma mesma substância, mas com atributos diferentes. Assim, o que acontece em um acontecerá também no outro, pois a mente e o corpo são manifestações, ou atributos paralelos da mesma substância. Nesse aspecto reside a relevância do argumento de Espinoza em termos da nossa reflexão de comunicabilidade. Se observarmos manifestações como timidez, vergonha, felicidade, coragem, desafio, receio, etc. constatamos que estas são situações que afetam a mente e o corpo, pois as reações não ficam localizadas num universo somente. Alguma situação que é provocada num universo, que Espinoza chama de atributo, é extensivo também a outro. A tese de Espinoza contradiz os pensamentos correntes na sua época que compreendiam que era a alma que determinava as ações do corpo, como o dualismo neoplatônico e cartesiano 27 . Espinoza, com a tese do paralelismo, questiona aquelas pessoas que não valorizam a corporeidade humana, mas colocavam essa como sendo inferior à mente, ou essência. Ele entende que “aquele que imagina que aquilo que ama é destruído ficará triste; se, ao contrário, imagina que aquilo que ama é conservado, alegrar-se-á” (Prop.XIX, Ética III, p.187). Essa tristeza ou alegria, que tem sua fonte no pensamento, afetará igualmente o corpo, pois a tristeza é percebida pelas expressões corporais assim como a alegria também. Do mesmo modo, algo que afeta o corpo provocando situações de dor ou prazer afetará também a mente. Arte renascentista e moderna 26 Monismo é uma teoria filosófica que defende a unidade da realidade, ou seja, o que existe vem de uma mesma substância. Há também identidade entre mente e corpo, ou essência e aparência. O conceito monismo é o contrário do que se compreende pelo dualismo (Abbagnano, N. Dicionário de filosofia. 2. Ed., Mestre Jou, São Paulo, 1982, p. 652). 27 Termo cartesiano refere a René Descartes (159 –1650) considerado o fundador da filosofia moderna. Na sua compreensão de ser humano, ele se utiliza do pensamento dualista, separando corpo e mente, onde a essência tem maior relevância que a aparência. 7 - Renascimento e Modernidade No Renascimento, com a Revolução Industrial desenvolve-se a técnica industrial e o ser humano se liberta da autoridade religiosa, deixando fluir seu gosto estético. Essa transformação pode ser percebida especialmente na vestimenta, numa comparação entre o período medieval e as transformações que ocorreram a partir do Renascimento. Essamudança na vestimenta acontece motivada por duas causas: a) a libertação do homem do dogma religioso e a busca por sua autonomia estética; b) o avanço técnico que fabrica produtos mais adaptáveis às formas do corpo. No período Moderno, com o desenvolvimento das modernas tecnologias de comunicação, especialmente da televisão, a compreensão do que é belo relaciona-se cada vez mais com seu potencial mercadológico. Assim, a mídia comercializa conceitos no universo da moda, das atitudes humanas, dos gostos, do cinema, da arte e da compreensão estética humana. Isso possibilitou a fragmentação do ser humano, perdendo a unidade que o caracteriza como formado de uma essência e aparência indissociáveis. Na atualidade constata-se que no conteúdo veiculado pelos modernos Meios de Comunicação perdeu-se, em muito, a relação entre mente e corpo, ou essência e aparência. O considerado belo nem sempre é bom, ou ético e o que é bom, ou ético nem sempre é avaliado como sendo belo. O desafio consiste em buscar o equilíbrio entre a ética e a estética. Especialmente nos interessa no presente momento a constatação feita pelos pré-socráticos da existência de uma Psyché(essência) junto com o Soma (corpo). É importante sublinhar que essa base teórica que resulta no dualismo platônico de Mundo das idéias e Mundo da sensibilidade, auxiliou a formar a racionalidade Ocidental, compreensão e visão de mundo. Poderíamos dizer que a partir da noção de Psyché ou Mundo das idéias é possível estabelecer a relação de comunicabilidade do homem consigo mesmo, pela qual ele pode conhecer sua interioridade e desenvolver sua consciência como ser humano. Esta é uma noção que o ser humano tem da sua existência, um voltar-se para dentro de si, um auto-conhecimento. A idéia de interioridade revela a compreensão privilegiada da existência de uma natureza superior, demonstrando o auto-conhecimento de sua situação humana, como indivíduo, como sujeito. Via de regra, a Psyché está vinculada às atividades espirituais sem as quais seria impossível o homem se conhecer. Assim, diferentemente do corpo, esta se desenvolve e se aperfeiçoa constantemente. Esta possibilidade de conhecer-se a si mesmo acontece por um processo comunicativo que revela o senso de humanidade. O conhecer-se a si mesmo dá-se por meio da linguagem que evidencia o desenvolvimento da racionalidade humana. O equilíbrio entre essência e aparência é central para estabelecermos uma ação comunicativa qualificada e eficiente. É extremamente importante percebermos a relação de reciprocidade, influência mútua, de paralelismo como Espinoza compreende, existente entre corpo e mente. Pode-se compreender que cada membro do corpo tem sua função, mas estes não estão numa relação de contradição ou conflito, onde um deve dominar e determinar o outro, como se compreendia em alguns momentos que o Mundo das idéias deveria dominar o Mundo da sensibilidade, ou seja, a alma seria mais importante que a sensibilidade do corpo. É fator decisivo para o processo comunicativo a existência e a compreensão desta auto- comunicação. Falando em termos de comunicabilidade, a existência de uma realidade interior somente é possível naquelas reflexões que tem como seu tema conceitos como interioridade e exterioridade. Isso quer dizer que perceber a relevância desta auto-comunicação é pré-requisito para buscar o auto- conhecimento. A constatação dos filósofos pré-socráticos e de Platão sobre a existência de uma interioridade e exterioridade não quer, no momento contemporâneo, isolar o homem do contexto social. Não quer também acentuar o já equivocado conceito que compreende o ser humano dividido em corpo e alma. No processo comunicativo busca-se compreender o homem na sua totalidade, onde aparência e essência estão inter-relacionados, não podendo ser vistos em oposição, mas em complementaridade 28 . 8 - Concluindo A existência da anorexia e bulimia questiona o conceito de belo da cultura brasileira e Ocidental. Matéria do jornal O Globo de 15/11/2006 diz “Em setembro de 2005, modelos excessivamente magras foram proibidas de participar num desfile de alta-costura em Madri, na Espanha, abrindo uma polêmica sobre as imagens esqueléticas das meninas nas passarelas da moda. A decisão de rejeitar modelos abaixo do peso foi tomada por conta da busca de meninas e mulheres jovens de tentar copiar a aparência das modelos e desenvolver transtornos alimentares, como a anorexia. Representantes de agências de modelos, como a Elite de Nova York, protestaram e disseram que a indústria da moda estava sendo usada como bode expiatório de doenças como a anorexia e a bulimia. ‘Como fica a questão da discriminação contra a modelo e a da liberdade do estilista?’, disse a diretora da Elite América do Norte”. No portal Terra, moda.terra de setembro de 2006 diz “a übermodel brasileira Gisele Bündchen seria vetada nos desfiles da Espanha. De acordo com o site oficial da modelo, Gisele tem 1,79m de altura e pesa 54 quilos. Já a ex-miss Paraná, Grazielli Massafera poderia desfilar tranqüilamente em Madri com seus 58 quilos distribuídos em 1,73m de altura”. 28 Essa influência recíproca pode ser constatada hoje nas chamadas doenças psicossomática, ou seja, a inter-relação e influência recíproca entre o Mundo das idéias - a Psyché e na outra dimensão encontra-se o Mundo da sensibilidade, ou seja, o Soma. Isso quer dizer, da Psyché (Mundo das idéias) e do Soma (Mundo da sensibilidade) resulta o termo psicossomático, ou seja, de Psyché + Soma.
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