Buscar

Bate se uma mulher questões sobre a violência e o feminino

Prévia do material em texto

Bate-se uma mulher – questões sobre a violência e o feminino 
 
 
Maria Carolina Bellico Fonseca 
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG 
Atende em seu consultório crianças, adolescentes e adultos 
End.: Rua Santa Rita, 321 – sala 307 – Funcionários – Belo Horizonte – Cep.30140-110 – MG – 
Brasil 
 
Maria Isabel Sá 
Psicóloga. Psicanalista. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas 
Gerais – CPMG 
Atende em seu consultório adultos 
End.: Av. Francisco Sá 1213 – sala 701 – Gutierrez – Belo Horizonte – Cep.30430-040 – MG – 
Brasil 
 
Vanessa Campos Santoro 
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG 
Professora do Curso de Formação em Psicanálise do CPMG 
Atende em seu consultório crianças, adolescentes e adultos 
End.: Rua Antônio de Albuquerque 749 – sala 602 – Savassi - Belo Horizonte – Cep.30112-010 - 
MG - Brasil 
 
 
 
 
PALAVRAS-CHAVE 
Castração – Feminilidade – Gozo – Pulsão de morte – Masoquismo – Desamparo 
 
 
RESUMO 
Como a psicanálise pode contribuir com a questão a violência e o feminino – violência nas relações 
da mulher com o outro e consigo? Neste trabalho as autoras tentam responder a essa questão 
articulando conceitos tais como pulsão, masoquismo e gozo. Além disso, abordam a escuta 
psicanalítica como o real caminho para fazer falar o inconsciente. Escuta praticada seja nos 
consultórios, seja em instituições, uma vez que a linguagem é o que permeia as relações humanas e 
é a estrutura do insconsciente. 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
O que tem a contribuir a psicanálise para com o tema da violência, principalmente quando 
esta se encontra enraizada no solo da realidade brasileira? De que se trata quando se refere à 
realidade brasileira? Sem dúvida o tema se encontra articulado a aspectos sócio-histórico-políticos, 
mas interessa aqui a relação que se pode estabelecer entre estes e a teoria psicanalítica, para uma 
aproximação da violência em ato. Esta violência será abordada tomando como referência dois 
contextos distintos: a escuta realizada na Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher 
(DECCM) e a escuta de pacientes portadoras de câncer de mama, colhida em salas de espera de 
setores de oncologia de hospitais da rede pública e em consultórios particulares. Se o sujeito da 
psicanálise se constitui na ordenação sexual do corpo biológico, pela dimensão simbólica da 
 
cultura, como propõe Freud, não será sem efeitos a influência de uma realidade, brasileira ou não, 
que desconheça e queira desconhecer laços de filiação. A pulsão, sem o concurso do Simbólico, 
será sempre violenta, quer seja nas relações sociais, no convívio com o semelhante, quer seja no 
trato com o próprio corpo. 
 
 
MULHERES QUE USAM VÉUS NEGROS 
 
Maria chorava um rio de lágrimas, que escorriam sobre as manchas escuras deixadas pelo 
punho do companheiro no rosto desfeito. Com o nariz escorrendo, pergunta entre soluços: “Deus é 
pai de todos os homens, não é? Mas as mulheres ficam de fora? Ficam? Você me explica, porque eu 
não entendo isso!” 
Assim se expressa uma das muitas mulheres atendidas pelo Setor de Psicologia da 
Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher, quando ali se realizou um estágio voluntário, 
entre outros que aconteciam simultaneamente, em 1998, em convênio com instituição universitária. 
Neste lugar de encontro do discurso do saber jurídico com o discurso do saber universitário, a 
escuta psicanalítica fez-se terceiro: abertura para o discurso do inconsciente. 
A DECCM oferece o amparo da lei às mulheres que são submetidas à violência física e/ ou 
moral, que ali podem recorrer aos seus direitos legais e formalizar queixa contra o agressor. 
Autorizam assim a engrenagem da lei a se movimentar a seu favor, recuperando-lhes a dignidade 
despedaçada. Todavia, com alguma freqüência, a ordem jurídica não lhes confere a esperada lucidez 
e elas surpreendem aos que se dispõem a ajudá-las. Mesmo orientadas quanto aos seus direitos, 
encaminhadas a trabalhos que lhes garantam a sobrevivência, acolhidas em lares de proteção, 
muitas repetem as situações que as colocaram frente à violência, outras nem mesmo consideram as 
alternativas que lhes foram oferecidas, insistindo em dar mostras do seu sofrimento. Nesses casos, 
onde não se sabe o que fazer, há o procedimento costumeiro: encaminha-se a usuária dessa 
delegacia ao Setor de Psicologia. Foi neste território não colonizado pelo saber jurídico e 
humanitário que se pretendeu sustentar a ética psicanalítica - uma clínica que se caracteriza como 
psicanálise em extensão, uma instituição pública -, abordando a temática do feminino, o que tornou 
necessário um aprofundamento na leitura da teoria freudiana sobre a feminilidade. 
Em 1923 e 1925, Freud reafirma alguns dos seus conceitos precedentes e introduz também 
certas modificações na teoria da sexualidade, tendo como referência a experiência clínica. De forma 
breve, pode-se dizer que define a função do complexo de castração na dissolução do Édipo, 
referindo-se ao conceito de falo como operador da organização genital infantil. Demonstra que a 
castração é vivida pelo menino como angústia inconsciente diante de uma ameaça de perda, na 
menina é vivida como inveja e hostilidade em face de uma perda consumada, o que não deixa de ter 
efeitos na sexualidade masculina e feminina. O que se encontra no texto freudiano é a descrição de 
como se tecem os véus que recobrem o real do sexo feminino. Faz-se a representação simbólica 
inconsciente da falta de um objeto imaginário, ausência do falo que supostamente responde pela 
completude da satisfação. A castração permite que se reconheça a diferença entre os sexos e se 
instaure a ordem sexual. Sobre o primeiro véu, faz-se a tessitura do segundo: o deslizamento para 
objetos substitutos que remetem ao falo onipotente - mas que a ele não se igualam - possibilidades 
de responder à falta estrutural no registro Simbólico. É ainda Freud quem afirma: “Em tudo isso, os 
órgãos genitais femininos jamais parecem ser descobertos” (Freud: 1923, 144). Sob o tecido da 
linguagem, o real do sexo feminino permanece desconhecido. 
Em 1931 e 1933, Freud retoma a questão da feminilidade, agora tida como enigma. 
Acrescenta à teoria da sexualidade feminina três possibilidades para a feminilidade, que se 
apresentam no percurso do tornar-se mulher. 
A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da 
menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição 
sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de 
masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal (Freud: 1933, 155). 
 
Confrontada à castração, a menina pode tornar-se mulher desinteressada do prazer sexual, 
impotente diante da vida, indiferente e desvalida, ali onde o recalcamento caiu sobre a inveja do 
pênis, como muitas que se apresentaram na DECCM. 
Maria Eugênia admira o marido e considera-se “um zero à esquerda”. Sua casa está 
desabando e o marido, pedreiro, não quer arrumar. Quando ela insiste, ele se irrita e molha o lado 
dela na cama, obrigando-a a dormir na poltrona da sala. Os filhos riem e dizem: “A mãe dorme até 
em cima de porco-espinho”. Obscurecida pelos atributos fálicos que supõe no marido, Maria 
Eugênia desconhece a falta que a constitui e não pode deslizar na busca de objetos substitutos. Sem 
aspirações ou projetos pessoais, faz-se objeto de gozo desse homem e, assim, vai vivendo seu 
cotidiano. 
Quanto à segunda saída, Freud aponta que a vida da mulher será vivida na fantasia de ser 
um homem, ou na rivalidade com os homens. 
O marido de Linda vai à DECCM queixar-se da mulher que o espanca. Indagada sobre o 
motivo que a conduz à violência, ela diz: “Eu trabalho, pagoas contas e ele não faz nada, só bebe. 
Quem sabe apanhando de vez em quando, aprende comigo o que é ser macho?” 
Na terceira saída, a inveja do pênis cede lugar ao desejo de um objeto que o substitua. A 
feminilidade, onde se faz a representação da falta, inclui a busca de um equivalente do falo na 
cadeia simbólica, cumprindo à mulher encontrar o seu melhor substituto ali onde é remetida ao 
outro sexo. 
Bella apanhava toda as sextas-feiras quando o marido retornava bêbado da happy-hour: “ 
Eu gero uma briga todas as sextas-feiras porque, quando ele chega, digo-lhe que ele é um 
imprestável, um fraco e, aí, ele me bate”. 
 Implicada no seu discurso, relata que não pode ter filhos em decorrência de um aborto 
realizado na adolescência, quando o médico lhe disse que o seu castigo seria jamais vir a ser mãe. 
De posse desse significante da falta, volta ao ginecologista para ouvir o que já sabia: a ameaça de 
ser castigada não tem fundamento somático. Desobrigada de fazer surgir a vida no embate com um 
homem que considera impotente, pode ter a esperança de vê-la surgir num contexto mais ameno. 
Quando interpelados, os parceiros das usuárias da DECCM, quase todos reincidentes no 
ato de violência, atribuíam seu gesto a uma provocação feminina. Foi assim com João que dizia: 
“Ela não me dá paz. Vive me acusando e nem sei de quê. Dou tudo que ela precisa, não lhe falta 
nada. Então ela quer apanhar! O que mais quer esta mulher?” 
Será mais uma vez na teoria freudiana que vai se sustentar a escuta do mal-estar 
evidenciado nesse homem que, considerando sua fala, por não saber mais o que dar à sua 
insatisfeita mulher, cobre-a de pancadas. Ele desempenha a cena de ter disponível aquilo que dá 
satisfação à sua parceira, aspirando ao reconhecimento, à admiração que dê alívio ao narcisismo 
ferido pela rejeição do seu primeiro amor. Mas a mulher do desejo insatisfeito convoca-o ao mais-
gozar, remete-o ao gozo do Outro, interdito do inconsciente, ao que só pode responder com o fora-
da-lei da pulsão destrutiva. 
Antônio passava suas noites fugindo de casa, até que descobriu haver uma DECCM e foi 
ali buscar quem pudesse pôr fim à sua vigília noturna. Esse homem atormentado diz: “Somos muito 
ligados, minha mulher e eu, nem tanto por sexo, mas por amizade. Temos um pequeno comércio e 
lutamos juntos por uma vida financeira melhor. Mas quando chegamos em casa ela me provoca e eu 
acabo batendo nela, e, depois, morro de culpa”. 
Em 1930, no texto “O Mal-Estar na Cultura”, Freud usou uma expressão para designar a 
coesão dos membros do grupo obtida através do remetimento da agressividade aos intrusos, aos 
estrangeiros: narcisismo das pequenas diferenças. “É sempre possível unir um considerável número 
de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua 
agressividade” (Freud:1930, 136). 
No momento em que Antônio e sua mulher se unem na sua lida diária, estão identificados, 
se reconhecem como iguais no espelho do ideal capitalista e podem voltar seu ódio contra os 
estranhos ao seu vínculo dual. Na intimidade, as pequenas diferenças na gestão do desejo anunciam 
o insuportável da castração. A destrutividade que ali se oculta, deslocando-se para os outros, os de 
 
fora, retorna tão logo a presença da sexualidade os obrigue à repetição dos amores edipianos, 
anseios de felicidade aos quais um dia foi preciso renunciar. No narcisismo das pequenas 
diferenças, nas brigas por qualquer motivo, na palavra ofensiva, ainda se faz presente o princípio do 
prazer. Mas quando a pulsão de morte é a única resposta, a angústia da castração, o ato de violência, 
cresce silenciosa, em desespero de palavras por dizer. 
Nas três saídas para a feminilidade indicadas por Freud, em cada uma, a seu modo, 
tomando-se por perdido o que nunca foi possuído, recobre-se a ausência, fazem-se bordas ao real do 
sexo feminino, procura-se dizer o indizível. Se nas duas primeiras o desconhecimento da castração 
só permite ao desejo uma existência clandestina, na terceira, o sujeito do inconsciente pode vir à luz 
nas palavras e fazer-se reconhecer em ato. Quando a ordem das palavras falha, para além da 
castração só resta o inominável da violência. Na onipotência narcísica do gesto violento se avizinha 
a pulsão silenciosa. Conduzindo ao desinvestimento final dos objetos, visando ao escoamento 
completo da pressão da vida, recobre a castração com o último e negro véu da morte. A morte é 
companheira íntima de algumas usuárias da DECCM, numa trágica saída para a feminilidade. Este 
lugar de sofrimento, as mulheres com freqüência o ocupam no contexto da cultura: loucas, bruxas, 
estranhas, inferiores, irracionais, imorais, marginais de uma sociedade regida pelo princípio 
masculino. É daí que apontam na direção da castração, da insuficiência do simbólico para recobrir o 
real, de onde a desrazão se faz ouvir. Maria, a das lágrimas, diz isso não entender: qual o lugar das 
mulheres, já que estão fora do rebanho dos homens? Por trazerem no corpo as insígnias da 
castração, que as diferencia, é preciso lembrá-las sempre ao masculino, para que lhes responda com 
violência? “O que mais quer esta mulher?”, a que mais-gozar impossível faz apelo? – pergunta o 
masculino desavisado diante da violência da pulsão. 
Na escuta realizada na DECCM, ficou-se do lado das palavras, em oposição ao mortífero 
da violência. Longe da universalidade do discurso jurídico e do discurso universitário, o trabalho foi 
feito sem a finalidade de conduzir a mulher a um saber que lhe dirigisse a vida. Construiu-se, 
quando possível, um saberzinho sobre a verdade do desejo, que lhes permitisse um certo amar, 
trabalhar, viver. 
 
 
BATE-SE UMA MULHER 
 
Mas seriam as mulheres condenadas a viver sempre amores atormentados? Nelson 
Rodrigues, ótimo cronista carioca que retrata duramente as relações humanas, diz: “Mulher gosta de 
apanhar. Mas não todas, só as normais”. Digamos que o escritor tem razão, em parte. Reescrevendo 
a frase e para tal justificando-a com o auxílio da psicanálise, ficaria assim: O feminino precisa de 
apanhar. 
É Freud quem nos fala de misteriosa tendência masoquista na vida pulsional, que desafia o 
princípio de prazer, governante da vida mental. Em “O Problema Econômico do Masoquismo” 
(1924), trata da pulsão de morte parcialmente mesclada e ligada às pulsões sexuais. Nesse artigo, 
Freud modifica sua concepção anterior sobre o masoquismo, que seria derivado, a princípio, de um 
sadismo primário. Desde “Além do Princípio do Prazer” (1920) ele já dizia que, por causa da pulsão 
de morte, pode haver um masoquismo primário. 
Não dispomos de qualquer compreensão fisiológica das maneiras e dos meios pelos 
quais esse amansamento [Bändigung] da pulsão de morte pela libido pode ser 
efetuado (...) só podemos presumir que se realiza uma fusão e amalgamação muito 
ampla, em proporções variáveis (...) Não podemos presentemente imaginar a 
extensão das partes da pulsão de morte que se recusam a serem amansadas assim, 
por estarem vinculadas a misturas de libido. (Freud: 1924, 205). 
Analisando a relação masoquismo-sadismo, Freud nos fala que a libido tem a missão de 
tornar inócuo o instinto destruidor e a realiza, desviando essa pulsão em grande parte para fora, com 
auxílio do aparelho muscular. É a pulsão de domínio. Uma parte da pulsão é colocada a serviço da 
função sexual na qual desempenha papel importante: é o sadismo propriamente dito. Outra porção 
 
não compartilha dessa transposição para fora. Permanece dentro do organismo e, com auxílio da 
excitação sexual acompanhante, lá fica libidinalmente presa. Aí identificamos o masoquismo 
original, erógeno, que será descarregado não mais pelo princípio de prazer, mas pela dor. Ou seja, a 
pulsão entranhada no masoquismo busca descarga repetidamente, através do sofrimento e da 
punição. Isto ocorre em homens e mulheres,pois somos todos seres pulsionais e, portanto, de 
linguagem. Daí a retificação da frase do escritor: O feminino do vivente precisa de apanhar, em vez 
de mulher gosta de apanhar. A necessidade de punição e sofrimento das mãos de um poder paterno 
equivale ao desejo de ter uma relação sexual passiva com o pai, no modelo de ser batido por ele. 
Freud, em “Uma Criança é Espancada”, interroga-se por que caminhos pode a dor converter-se num 
dos fins da pulsão. O título já nos fala de um fantasma (fantasia), presente preferencialmente em 
homens, que resume e reúne as raízes edípicas do masoquismo, o erotismo e a culpabilidade, 
apontando para a articulação ainda ausente da pulsão ao fantasma. De fato, as fantasias masoquistas 
fazem a equivalência imaginária entre o se fazer bater e a posição feminina na relação sexual. 
Apontam para a vida infantil - o masoquista quer ser tratado como uma criança travessa. Jaz a 
vinculação com a masturbação, com a culpa correspondente, o que faz uma transição ao 
masoquismo moral. Assim, nesta forma de masoquismo há um desejo sexual manifesto ligado ao 
fantasma no complexo de Édipo. O fantasma serve pois de castigo aos desejos incestuosos e ao 
mesmo tempo é uma situação da relação proibida. Assim, se a dor pode se converter num fim da 
pulsão é porque no inconsciente “ser maltratado” equivale a “ser amado”. Ao ligar o masoquismo à 
pulsão, por um lado, e por outro à instância paterna, Freud se refere a elementos integrantes de toda 
neurose. Com este “problema econômico do masoquismo”, ele não aclara a questão da 
feminilidade, mas a dos fantasmas masculinos. 
Em 1932, no texto “A Feminilidade”, Freud se interroga sobre a comparação feminino-
passivo e conclui ser ela errônea. Mas diz que o masoquismo é feminino pela imposição de regras 
sociais e pela constituição da mulher que a levam a recalcar impulsos agressivos. Não afirma ser a 
mulher masoquista, há homens masoquistas. Assim, a mulher e a posição feminina ficam como 
impasses em sua teoria. E o masoquismo amoroso precisa ser melhor estudado, pois ele é a melhor 
expressão da dificuldade do sujeito face à ausência da relação sexual. 
 
 
“MATANDO NO PEITO” 
 
Então, até que ponto pode chegar uma pulsão que não é simbolizada? Essa também pode 
ser a experiência da castração feita no corpo de mulher através de doenças que trazem a mutilação – 
sintomas, drogas e até mesmo a morte – como única possibilidade de cura e de vida. Mas toda 
pulsão é de morte, é do registro do Real, do nada, do indizível que, quando não dito, pode ser 
violento e até matar. Violento é o encontro com esse Real que toma por inteiro, invade, e penetra. 
Sem a intermediação do Simbólico, esse encontro é desestruturante; é choque que pode deixar 
seqüelas, marcas profundas que ferem a carne, que marcam o eu como lembrança – lembrança de 
sofrimento, de horror, de dor. Lembranças de um tempo de tortura e silêncio onde tudo que se tem é 
um corpo para amortecer o impacto. Corpo que testemunha e diz desse encontro fatal. 
Muito se tem pensado e falado sobre a vivência de separação, dificuldade de elaboração de 
luto, reedição de perdas com suas conseqüências devastadoras para o eu e, às vezes, para o corpo. 
Pode-se dizer que tais vivências são traumáticas e, como tal, têm o efeito de uma pedra lançada nas 
águas tranqüilas de um lago que, quando cai, forma círculos concêntricos que se espalham para as 
bordas, a não ser que encontre um obstáculo que barre, que corte essa repetição em si e de si. 
Freud, em “Inibição, Sintoma e Angústia” (1926), vai nos dizer que a força patogênica do 
trauma se deve ao fato de a vivência produzir quantidades de excitação grandes demais para serem 
processadas pelo aparelho psíquico, irrompendo violentamente sua barreira de proteção, levando o 
indivíduo “a um estado de impotência e desamparo”. Entretanto, sabemos que uma situação só é 
traumática a posteriori, ou seja, em sua reedição. Para ser traumática ela tem que ter tido um 
registro anterior, talvez ligado a esses desejos insatisfeitos – uma vivência forte, impossível de ser 
 
simbolizada, que surpreende e que, por não ter palavras, não é dita. E é a violência desse encontro 
com o indizível que é registrada como uma impressão ou um traço no psiquismo, para irromper 
depois num segundo acontecimento, que sempre virá pela força da repetição. E aí sim, aquilo que 
não pode ser elaborado, reaparece e clama por significação, por simbolização, com toda a violência 
da pulsão, que irrompe como lavas de um vulcão adormecido, trazendo novamente o desamparo. Se 
não for canalizada pela via da linguagem, ela pode se tornar violenta e destrutiva pela via do 
sintoma, ou de doenças tais como o câncer, fazendo furo no Real do corpo. 
Pensamos que algo semelhante ocorre com pacientes que se tornam portadoras de câncer 
de mama. A literatura especializada está repleta de casos de mulheres que passaram por perdas 
afetivas que culminam com o aparecimento da doença – morte ou separação de entes queridos, 
perdas de bens materiais, casamento de filhos, etc. Trata-se de vivências dolorosas que, de alguma 
forma, têm seu impacto amortecido e, aparentemente, são “absorvidas” sem danos, deixando porém 
marcas profundas no aparelho psíquico. Num segundo momento, diante da segunda perda, a 
primeira é re-atualizada, havendo assim a irrupção do afeto (Affekt), que, num acúmulo de energia, 
pega o eu despreparado e sem defesas. E para onde vai esse afeto (Affekt)? 
Sabemos com Freud que a pulsão não pára, ela é uma Konstant kraft que, uma vez tendo 
surgido, busca de forma imperativa a satisfação. Ela vai se concentrar no objeto “do qual se sente 
falta ou que está perdido” – reativação da perda de objeto primordial –, havendo conseqüentemente 
um “esvaziamento ou empobrecimento do eu”. 
O desamparo associado à desesperança pode provocar o enfraquecimento das defesas 
imunológicas da mulher, e associado a outros fatores tais como a predisposição genética, 
alimentação inadequada, cigarro, poluição, stress, etc. pode levar ao surgimento do câncer. Aquilo 
que não é dito é amortecido no corpo e, no caso do câncer de mama, podemos dizer que a mulher 
acaba matando-o no peito, como uma bola de futebol amortecida antes do chute, instalando-se a 
doença-gol. 
Em alguns casos, o câncer passa a ser, de certa forma, o substituto do objeto perdido, 
chegando às vezes a ganhar o estatuto de sujeito. Filho da pulsão destrutiva, ele é um sujeito 
caprichoso, violento, sádico, que subjuga a paciente e às vezes a arrasta à morte. 
Frente à doença, instala-se a angústia, o caos, que, na falta de um novo sentido para a vida, 
pode envolver de tal forma o sujeito que, tomado pela força da pulsão de morte, pode se deixar 
levar pela atração do estado de não tensão e encontrar a morte real. 
Entendemos que tal angústia pode se manifestar de diversas maneiras, desde o alheamento 
e abandono à doença, do qual dificilmente se sai vencedor, até uma postura mais agressiva tanto 
consigo quanto com o outro. Destacamos dois casos desse tipo de manifestação da angústia: no 
primeiro, trata-se daquela paciente que se deixa levar pelos médicos e familiares, sem se 
comprometer realmente com seu processo de cura. Ela, muitas vezes, tem uma postura negativista e 
até agressiva consigo mesma, chegando a dar a impressão de estar “torcendo contra” o tratamento. 
E às vezes está mesmo. No segundo, a agressividade é mais voltada para fora e a paciente passa a 
atormentar a todos, familiares, equipe médica e até as outras pacientes. São elas que fazem das salas 
de espera das quimioterapias e radioterapias verdadeiras “salas de tortura”, com seus comentários 
maldosos e proféticos sobre efeitos colaterais devastadores dos tratamentos, numa postura de quem 
diz: “Já que fui agredida, eu também agrido e talvez me alivie um pouco com seu sofrimento”. 
Torna-se necessário então fazer falaresse câncer, paralelamente ao tratamento 
medicamentoso, necessário mas, em si, traumático. Falar da dor, do medo, da perda e até do próprio 
desejo de não ser desse sujeito. Fazer um corte no gozo da doença e com a doença (ganho 
secundário), num trabalho de elaboração dessa castração no Real do corpo. As mulheres que assim 
são marcadas, mas que passaram por esse trabalho de elaboração, apesar da grande ferida narcísica, 
podem levantar a cabeça e seguir adiante, fortalecidas por esse encontro com a morte, do qual 
saíram vencedoras. Solidárias, podem estabelecer uma nova maneira de relacionar consigo e com o 
mundo e auxiliar aquelas que, diferentemente delas, ainda não puderam fazer a travessia da doença 
e dar um novo sentido a suas vidas. 
 
 
 
CONCLUSÃO 
 
O despertar da pulsão traz sempre o Real traumático, que é então velado na fantasia, que é 
um dispositivo de amarrar o Real do gozo e a triangulação edípica na constituição subjetiva. 
Em relação à questão feminina, se Freud deduz a castração da causa fálica e elege o pai 
edipiano como origem da castração, Lacan vai deduzi-la como perda de gozo. Gozo que se dá pela 
impossibilidade de significar o falo definido como significante, o qual se coloca como falta na vida 
do sujeito. A ordem fálica é dominante e igual para ambos os sexos, pois não há quem escape à 
castração, com exceção do psicótico. A anatomia não é o destino. Só há o falo como significante 
que responde pela sexuação. 
Assim, a questão feminina fica deslocada para o campo do gozo. Há um gozo além do 
masculino, além do gozo fálico, fora da linguagem, lugar do inominável. Se do gozo fálico sabemos 
qualquer coisa pela via do fantasma, ele entretanto deixa em seu encalço um saber que resta. Um 
saber que escapa à ordem fálica, mas que jamais pode ser pensado fora dela - é o gozo do Outro. 
A posição feminina fica estabelecida a partir de uma divisão no plano do gozo: de um lado 
o gozo fálico, que na medida mesmo que se coloca, evoca um campo Outro que a linguagem não 
recobre e que só pode acenar aprisionado ao gozo fálico: no ato mesmo de dizer, ele já se perdeu. 
Aí fica o feminino, nessa articulação impossível. Ele resta como causa, e, enquanto causa, cria a 
busca e a inquietude; impossível vinculá-lo à passividade. Nada mais ativo que a posição feminina. 
Restam desses trabalhos desenvolvidos nessas instituições, várias questões que instigam a 
psicanálise a continuar construindo a clínica dentro de sua ética, fora dos seus domínios habituais, 
abrindo ao sujeito possibilidades de rever suas posições. Talvez possa ser esse um outro lugar do 
feminino na cultura: contraponto do saber fálico, masculino, universal. Um trabalho miúdo de 
bordejar o inominável. Tecer com palavras um leve véu que aponte e oculte a falta - estrutural no 
humano – de um saber que possa responder pela satisfação. Fazer a vida, em oposição à morte. 
 
 
Bibliografia 
 
APARÍCIO, Sol. A propósito do masoquismo amoroso – (março de 1994) – Intervenção Feita nas 
Jornadas da E.C.F. da Bélgica sobre o tema Clínica diferencial do Masoquismo. 
APARÍCIO, Sol. Être obligé de souffrir – actes de l’École de la Cause Freudienne, v.XVII, Paris: 
Navarin/Seuil - out./1989. 
BAHIA, M.A. Masoquismo feminino e culpa in culpa – aspectos psicanalíticos, culturais 
religiosos. (Org.) Antonio Franco Ribeiro da Silva, São Paulo: Iluminuras, 1998. 
COIMBRA, Maria Lúcia S. O que há de novo na clínica? – considerações além do princípio do 
prazer – texto apresentado na XIX Jornada do CPMG “Psicanálise e Violência” – set./2000. 
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia (1926), ESB, v. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
FREUD, S. ovas conferências introdutórias sobre psicanálise – Conferência XXXIII – Feminilidade 
(1933), ESB, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930), ESB, v. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924), ESB, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 
1969. 
FREUD, S. A organização genital infantil: uma interpolação n a teoria da sexualidade (1923), 
ESB, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
FREUD, S. Sexualidade feminina (1931), ESB, v.XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
FREUD, S. Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões 
sexuais (1919), ESB, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 
RODRIGUES, Nelson. in CASTRO, Ruy, O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues, p. 
241, São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 457 p.; e no Pasquim, n. 561, 28/3 a 3/4/1980 – 
Entrevista c/ Elsie Colassanti. 
 
SCHÜTZENBERGER, Anne A. Querer sarar - o caminho da cura. Petrópolis: Vozes, 1995. 
SOLLER, Colette. Posição masoquista, posição feminina in A psicanálise na civilização, Rio de 
Janeiro: Contra-capa Livraria, 1998.

Continue navegando