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A hermenêutica e o processo de construção do conhecimento Rosa Mendonça de Brito1 Edlauva Oliveira dos Santos2 Gisele de Brito Braga3 Jocicléia Souza Printes4 Regina Marieta Teixeira Chaves5 Washington Luiz Alves da Silva6 Resumo Do ponto de vista histórico, a hermenêutica (hermèneutik) perpassa o domínio da filosofia deste a antiguidade clássica, sendo Platão (427 a.c), um dos primeiros a utilizá-la. Como doutrina da arte da compreensão e da interpretação, a hermenêutica se desenvolveu por dois caminhos diversos, o teológico e o filosófico: a hermenêutica teológica como defesa da compreensão reformista da Bíblia e a filosófica como instrumento de redescoberta da literatura clássica procuram pôr a descoberto o sentido original dos textos. Na modernidade, a hermenêutica teve de desvencilhar-se de todos os enquadramentos dogmáticos e liberar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal de um organon histórico com vistas a alcançar a unidade da vida grega e cristã. A partir de Dilthey, com a ”liberação da interpretação do dogma”, as Escrituras Sagradas, na qualidade de obras escritas, passam a submeter-se a uma interpretação não somente gramatical, mas também histórica. O desaparecimento da diferença entre a interpretação de escritos sagrados e profanos faz desaparecer a dualidade hermenêutica, emergindo, a partir dai, uma nova hermenêutica como arte da interpretação correta de todas as fontes escritas. Com Schleiermacher, a compreensão passa a compor, juntamente com a interpretação, o centro da preocupação hermenêutica. Entendida como método de interpretação e compreensão passa, com Gadamer, a ser desenvolvida como filosofia, tendo na linguagem o seu fator de universalização e o princípio da conversação como fundamento do aprofundamento do fenômeno da compreensão, cabendo-lhe determinar o verdadeiro sentido das ciências do espírito e a verdadeira amplitude e significado da linguagem humana. Palavras-chave: Interpretação; Compreensão; Construção do Conhecimento. 1 Doutora em Filosofia. Professora da FACED/UFAM 2 Licenciada em História. Mestranda em Educação 3 Psicóloga. Mestranda em Educação 4 Licenciada em Pedagogia. Mestranda em Educação 5 Licenciada em Pedagogia e Filosofia. Mestranda em Educação 6 Licenciatura em Letras. Mestrando em Educação 2 Introdução A elaboração do presente estudo teve por objetivo a apreensão, compreensão e construção de conhecimentos sobre a história e a função da hermenêutica no desenvolvimento do conhecimento humano. Fundamenta-se, especialmente, em Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, de Hans-Georg Gadamer, e Introdução à Hermenêutica Filosófica, de Jean Grondin. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não era apenas um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito, estava ligado, em especial, ao fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu. Do ponto de vista histórico, a hermenêutica (hermèneutik) perpassa o domínio da filosofia deste a antiguidade clássica até os nossos dias. A palavra deriva do grego hermènêus, hermèneutik e hermènêia. Para Filón de Alexandria “hermènêia é logos expresso em palavras, manifestação do pensamento pela palavra” (Grondin, 1999, p.56). Está associada a Hermes, deus mediador, patrono da comunicação e do entendimento humano cuja função era tornar inteligível aos homens, a mensagem divina. A ele os gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita. Desde o surgimento da palavra no século XVII, entende-se por hermenêutica a ciência e, respectivamente, a arte da interpretação. Até o final do século passado, ela assumia normalmente a forma de uma doutrina que prometia apresentar as regras de uma interpretação competente. Sua intenção era de natureza predominantemente tecno/normativa e se “restringia à tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algumas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da interpretação de textos ou de sinais. Por isso, formou-se, desde a Renascença, uma hermenêutica teológica (sacra), uma hermenêutica filosófica (profana), como também uma hermenêutica jurídica. (Grondin,1999, p.9) Como arte de âmbito universal de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos textos, dos signos, da cultura e de outras formas de interação humana, a hermenêutica pode ser considerada como um ramo da filosofia que tem como principal finalidade a compreensão humana. Na perspectiva da hermenêutica filosófica - que tem sua origem em Heidegger e o seu desenvolvimento em Hans-Georg Gadamer, - a hermenêutica passa a ter uma tarefa crítica e não se restringe, como ocorria em outras épocas, a uma teoria ou metodologia de compreensão e interpretação da fala e do texto, cabendo-lhe determinar o verdadeiro sentido das ciências do espírito e a verdadeira amplitude e significado da linguagem humana. 3 De canon de interpretação à hermenêutica filosófica A hermenêutica como doutrina da arte da compreensão e da interpretação tem seu desenvolvimento em dois caminhos diversos: o teológico e o filológico. Em ambos os terrenos a hermenêutica procurava pôr a descoberto o sentido original dos textos. Como doutrina da arte de interpretação a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo, será substituída na modernidade pelo modelo das ciências da natureza que tem no método indutivo a base de toda ciência experimental. Ao afirmar que a hermenêutica só chega à sua verdadeira essência na posição de um organon histórico, Dilthey a coloca, juntamente com outros pensadores, como fundamento da concepção histórica do mundo, o que leva ao entendimento de uma hermenêutica universal cuja tarefa é superar a estranheza ligada à individualidade do tu, em busca do “diálogo significativo”, onde compreensão é, de princípio entendimento. A partir da modernidade, a hermenêutica teve de desvencilhar-se dos enquadramentos dogmáticos e libertar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal de um organon histórico. Com essa “liberação da interpretação do dogma”, a reunião das Escrituras Sagradas assume o papel de fonte histórica que, na qualidade de obras escritas, têm de se submeter a uma interpretação não somente gramatical, mas também histórica. Neste momento, o velho princípio interpretativo de compreender o individual a partir do todo já não podia reportar-se nem limitar-se à unanimidade dogmática do cânon, mas dirigia-se à abrangência conjuntural da realidade histórica a que pertencia cada documento. Desse momento em diante, já não existe nenhuma diferença entre a interpretação de escritos sagrados e profanos e, portanto, apenas uma hermenêutica que tem não apenas uma função propedêutica de toda a historiografia, mas ainda toda a atividade da historiografia, fazendo nascer aí, a concepção de uma hermenêutica universal. Será Platão (427 a.c) o primeiro a utilizá-la. Filón e Clemente de Alexandria vão entendê- la como a manifestação do pensamento pela linguagem. Agostinho (354-430), que desenvolveu na sua “Doctrina christiana” a teoria hermenêutica reconhecidamente mais eficaz do “mundo antigo”, irá utilizá- la como doutrina da interpretação, em especial, das passagens obscuras da Sagrada Escritura, em busca da “verdade viva” porque, segunda afirma, a busca do seu entendimento “não é nenhum processo indiferente, meramente epistêmico, que se passa entre um sujeito e um objeto, ele atesta a inquietação e maneira de ser de um ente que aspira por sentido” (Grondin, 1999, p. 72). Na Antigüidade e na Idade Média (Patrística) houve apenasregras hermenêuticas esparsas. Com Lutero, que entende a hermenêutica como arte da interpretação, ela será revitalizada como exegese das Escrituras, sendo com Mathias Flacius (1520-1575), através da sua “Clavis scripture sacre” de 1567, cujo peso da interpretação recai sobre os conhecimentos gramaticais e lingüísticos, 4 que é possível falar, pela primeira vez, de uma teoria hermenêutica, ou hermenêutica sistemática no protestantismo. Como afirma Grondin, a universalidade da hermenêutica até então existente estava limitada ao domínio do discurso religioso, o que para a Idade Média não apresentava qualquer limitação porque o entendimento vigente era de que as Escrituras detinham todos os conhecimentos que o homem deveria possuir. Na modernidade, todavia, o círculo do que tinha valor de leitura, de interpretação, amplia- se pela valorização do estudo dos clássicos gregos e latinos e pela necessidade de interpretação dos juristas e dos médicos. Em decorrência disso, a partir do século XVII, surge a necessidade de um novo Órganon do saber, ou seja, de uma nova doutrina metodológica para as ciências. É nessa época, precisamente em 1620, que Francis Bacon nos lega o “Novum Organum” e, Descartes, o Discours de la Méthode, em 1637, ambos recomendados como novas propedêuticas das ciências e da filosofia. Entendendo a hermenêutica como a arte de compreender, interpretar e traduzir de maneira clara os signos inicialmente obscuros, Spinosa irá utilizá-la como forma correta e objetiva de interpretação da Bíblia. Com Dannhauer, Meyer e Chladenius, segundo Grondin, a hermenêutica adquire estatus como teoria geral da interpretação, rompe o quadro das hermenêuticas especiais (teológica, jurídica, etc.) para delinear a universalidade do processo hermenêutico de compreensão e interpretação. A hermenêutica de Dannhauer nasceu da busca por uma metodologia das ciências desvinculadas da escolástica. Será ele o primeiro a utilizar, em 1654, a palavra hermenêutica no título de um livro: “Hermenêutica sacra sive methodus exponendarum sacrum litterarum”. Na sua afirmação de que “no vestíbulo de todas as ciências, na propedêutica, portanto, deveria existir uma ciência universal do interpretar”, é possível vislumbrar o germe de uma hermenêutica universal. A “Introdução para a correta interpretação de discursos e escritos racionais” (1742), de Johan Martin Chladenius (1710-1759), abre novos horizontes para a hermenêutica ao desvinculá-la da lógica e colocá-la como um outro grande ramo do saber humano. Com ele, a hermenêutica é dividida em: Geral - que se aplica à interpretação de qualquer obra escrita; Específica - que se aplica à leis, as histórias, as profecias, as poesias, etc. A hermenêutica como arte universal da interpretação, em Méier (1718-1777), toma um novo impulso no sentido de que o âmbito de aplicação da arte universal da interpretação seja estendido para além do horizonte do escriturístico a fim de incluir o todo global dos sinais. Na elaboração de sua hermenêutica semiótica afirma: A arte da interpretação, em sua compreensão mais ampla, é a ciência das regras, através de cuja observância os significados podem ser reconhecidos por seus sinais; a arte da interpretação, 5 em sua compreensão mais restrita, é a ciência das regras que se deve observar, quando se quer conhecer o sentido a partir do discurso e expô-lo aos outros (Méier apud Grondin, 1999, p.108). Diante disso, é possível dizer que interpretar para Méier é reconhecer o sentido pelo sinal, mais exatamente, poder ordená-lo segundo a característica universal de todas as coisas. Para desenvolver esta perspectiva de uma hermenêutica universal, trazemos ao texto, seguindo a Gadamer, as idéias de Schleiermacher, Dilthey e Heidegger. A hermenêutica como arte da compreensão, de Schleiermacher, tem em Ast e Schlegel o seu ponto de partida. Em sua obra intitulada “Linhas básicas da Gramática, Hermenêutica e Crítica, publicada em 1808, Ast parte da concepção da necessidade da reconquista da unidade do espírito que se expressou na Antiguidade e no transcurso de toda a História. Sua hermenêutica pressupõe a compreensão da Antiguidade como tal, em todos os seus elementos externos e internos. Segundo entende, “a lei básica de toda a compreensão e conhecimento é a de encontrar, no particular, o espírito do todo e entender o particular através do todo”. Nesta mesma perspectiva, Schlegel irá defender uma função universal da teoria hermenêutica como nova teoria metodológica da filologia a ser desenvolvida tendo por base o clássico modelo comprovado da Antigüidade. Mas será com Schleiermacher que a hermenêutica, como doutrina da arte do entendimento irá desenvolver-se plenamente. Friedrich Schleiermacher (1768-1834), teólogo, protestante, estudioso da Bíblia e de clássicos, realiza uma virada na história da hermenêutica ao firmar que “compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros” e que a compreensão é, de princípio, entendimento. A sua preocupação não recai sobre a situação pedagógica da interpretação que procura ajudar a compreensão do outro (Spinoza e Chladenius). Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão” (Schleiermacher apud Gadamer, 1997, p. 288). A hermenêutica da “compreensão”, ou seja, a hermenêutica como “arte de evitar o mal- entendido”, de Schleiermacher, se eleva à autonomia de um método, de um cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação que se afastam de qualquer liame dogmático de conteúdo. O seu diferencial está, justamente, em ter introduzido a função psicológica no processo de interpretação, onde o que é visado não é apenas a linguagem a partir da totalidade de seu uso, mas e fundamentalmente, a compreensão de um espírito. O que deve ser compreendido não é apenas a literalidade das palavras e seu sentido objetivo, mas também a individualidade de quem fala e, conseqüentemente, a do autor. Ler um texto é dialogar com o autor, esforçando-se para apreender a sua real intenção e compreender o seu espírito por intermédio da decifração de suas obras com vista à compreensão, conceito básico e principal finalidade de toda questão hermenêutica. A interpretação 6 psicológica de Schleiermacher torna-se-á determinante para a formação das teorias do século XIX, especialmente para Dilthey. Partindo do fenômeno da compreensão, onde “compreender é compreender uma expressão”, Wilhelm Dilthey (1833-1911) procura diferenciar as relações do mundo espiritual das relações causais no nexo da natureza. A âncora utilizada para fundamentar filosoficamente as ciências do espírito será a experiência interior, ou “fatos da consciência”. Segundo entende, é natural encontrar na experiência interior as condições objetivas de validade das ciências do espírito. Nas suas investigações metodológicas, apoiando-se em Husserl, parte do universal “princípio da fenomenalidade”, segundo o qual toda realidade se encontra sob os condicionamentos da consciência. Colocando o mundo histórico como um texto que deve ser decifrado, Dilthey acredita ter justificado epistemologicamente as ciências do espírito. Enquanto Dilthey irá ampliá-la na direção de uma Metodologia universal das ciências do espírito, Heidegger a direcionará para o terreno da faticidade humana e Gadamer a configurará, a partir da consciência da descrição fenomenológica e da abrangência do horizonte histórico, como linguagem capaz de articular o sentido e a compreensão da verdade na perspectiva de uma hermenêutica filosófica que ultrapasse o campo do controle da metodologia científica.Segundo Gadamer (1997), na fundamentação das ciências do espírito, a hermenêutica representava para Dilthey mais do que um instrumento, ela é o médium universal da consciência histórica, para a qual não existe nenhum outro conhecimento da verdade do que compreender a expressão e, na expressão, a vida onde cada expressão ou enunciado brota de um aconselhar-se a si mesmo que procura reviver a compreensão que consiste nas ciências do espírito, num retorno do manifestado para o interior, ou seja, para a auto-reflexão que se dá a conhecer na expressão. Segundo Grondin, A investigação do processo da palavra interior, que se encontra por detrás da expressão torna-se, agora, tarefa central de todas as ciências do espírito que pretendem compreender [...] Da hermenêutica espera Dilthey, agora, a solução da pergunta pelo ‘conhecimento científico’ do individual, portanto regras universalmente válidas, para defender a segurança da compreensão em face ao ceticismo histórico e da arbitrariedade subjetiva, mantendo assim, uma compreensão clássica e normativa da hermenêutica. (1999, p.152/154) No século XIX, apesar das intuições básicas amplamente estabelecidas, os clássicos da hermenêutica não chegaram a desenvolver uma concepção unitária ou sistemática da mesma. No século XX, a filosofia hermenêutica estimulada por Dilthey vai reconhecer como tarefa sua realizar uma despedida da metodologia direcionada e caminhar em busca de uma metodologia com respaldo de 7 validade universal. Sinalizando nessa direção, atuou primeiramente a ontologia da vida real de Heidegger, que transformou a hermenêutica na base universal da filosofia. Martin Heidegger (1889-1976), na busca de superação das aporias do historicismo e de uma renovação geral da questão do espírito, possibilitou o avanço da hermenêutica para o centro da reflexão filosófica. Com ele, a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação. Pré-estrutura, em sua “hermenêutica existencial da faticidade”, significa que o “Dasein”, o ser-aí humano, se caracteriza por uma interpretação que lhe é peculiar e que se encontra antes de qualquer locução ou enunciado. Em seu conceito de compreensão sustentado na fórmula “entender-se sobre algo”, Heidegger afirma que entender teoricamente de um contexto, fato ou coisa, significa estar em condições de enfrentá-los, levá-los a cabo, poder começar algo com eles. Essa compreensão é designada de compreensão “existencial”, ou seja, como modo de ser por força do qual nós conseguimos e procuramos situar-nos neste mundo. Na hermenêutica tradicional, a interpretação funcionava como meio para a compreensão, ou seja, em primeiro lugar estava a interpretação, depois e a partir dela, a compreensão. Na sua hermenêutica existencial, Heidegger inverterá essa relação teleológica. O primário será dado à compreensão, e a interpretação irá consistir exclusivamente na configuração ou elaboração da compreensão. No desenvolvimento de suas idéias sobre a interpretação compreensiva, Heidegger dirá que: Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de ‘felizes idéias’ e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua vista ‘às coisas elas mesmas’ [...] Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias que lhe ocorrem. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e não perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente tem ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. Deixar-se determinar pela própria coisa é a tarefa primeira, constante e última do interprete. (Heidegger apud Gadamer, 1997, p.402) Percorrendo de forma sintética a histórico da hermenêutica, chegamos a Hans-Georg Gadamer (1900). Na construção de sua hermenêutica filosófica, em Verdade e Método (1960), tendo como paradigma “a conscienciosidade da descrição fenomenológica que Husserl nos tornou um dever, a abrangência do horizonte histórico, onde Dilthey situou todo o filosofar, e a compenetração de ambos 8 os impulsos, cuja iniciativa recebemos de Heidegger” (1999, p.32), Gadamer questiona e analisa a metodologia das ciências do espírito a partir da idéia de que o fenômeno da compreensão e da correta interpretação, muito além de restringir-se ao âmbito das ciências, pertence já à experiência do homem no mundo. A análise dessa experiência é desenvolvida por ele, em três momentos: a experiência da arte, a compreensão dentro das ciências históricas do espírito e o desenvolvimento do fenômeno da linguagem como a experiência humana no mundo. O propósito de Gadamer é “procurar por toda parte a experiência da verdade, que ultrapassa o campo de controle da metodologia científica, e indagar de sua própria legitimação, onde quer que a encontre”. A sua hermenêutica não é uma doutrina de métodos das ciências do espírito, mas a tentativa de um acordo sobre o que são na verdade as ciências do espírito, para além de sua autoconsciência metódica, e o que as vincula ao conjunto da nossa experiência do mundo. No seu entendimento, se tomarmos a compreensão como objeto de nossa reflexão, ultrapassaremos, com certeza, a doutrina artificial da compreensão da hermenêutica tradicional da filologia e da teologia. A busca pelo estabelecimento dos traços fundamentais de uma teoria hermenêutica, Gadamer inicia pela estrutura ontológica (universal) do circulo hermenêutico porque, segundo afirma, aquele que quer compreender não pode se entregar à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar a opinião do texto, ao contrário, deve estar disposto a deixar que o texto diga alguma coisa por si mesmo. Por isso, uma consciência formada hermenêuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto a fim de “diferenciar os verdadeiros preconceitos, sob os quais nós compreendemos, dos falsos, sob os quais nós nos equivocamos”. (1997, p.42). Do mesmo modo, no âmbito da compreensão histórica, não é a partir de padrões e preconceitos contemporâneos que iremos compreendê-la, mas a partir do horizonte do qual fala a tradição, sob pena de estarmos sujeitos a mal-entendidos com respeito ao significado de seus conteúdos. Um texto só se torna falante, graças às perguntas que nós hoje lhe dirigimos. Não existe nenhuma interpretação, nenhuma compreensão, que não responda a determinadas interrogações que anseiam por orientação. Assim, a compreensão é sempre a continuação de uma conversação já iniciada antes de nós e que nós assumimos e modificamos, através de novos achados de sentido, as perspectivas de significado que nos foram transmitidas. Aqui, neste momento, acontece a compreensão como concretização histórico-efetual (estudo das interpretações produzidas por uma época) da dialética entre pergunta e resposta, ou seja, a compreensão como conversação. Neste sentido, parece ser uma exigência hermenêutica o fato de termos de nos colocar no lugar do outro, ou seja, nos deslocarmos à sua situação para, tomando consciência de sua alteridade, poder entendê-lo. No desenvolvimento de suas idéias, Gadamer irá incorporar o problema da aplicação que, segundo entende, está contido em todacompreensão, como questão fundamental da hermenêutica. 9 Segundo afirma, a aplicação é um momento do processo hermenêutico tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação. Segundo diz, o trabalho do intérprete não é simplesmente reproduzir o que diz o interlocutor que ele interpreta, mas tem de fazer valer a opinião daquele assim como lhe parece necessário, levando em conta como é, autenticamente, a situação dialogal na qual ele se encontra como conhecedor das duas línguas que estão em intercâmbio. Isto significa que se quisermos compreender adequadamente o texto, seja ele qual for, teremos de compreendê-lo em cada instante, em cada situação concreta, de uma maneira nova e distinta, superando, assim, a alienação de sentido que o texto experimentou. Neste caso, afirma: compreender é sempre também aplicar. Relacionado com isso, está também o fato de que a linguagem e a conceptualidade da interpretação foram reconhecidas como um momento estrutural interno da compreensão. Com isso, o problema da linguagem passa de uma posição ocasional e marginal, para o centro da filosofia. Tal entendimento, no entanto, só nos é proporcionado por uma mensagem que desperta o escutar, e essa mensagem só se torna possível através da linguagem, instrumento fundamental da relação hermenêutica. A universalidade do processo hermenêutico em Gadamer está vinculado à dependência que a compreensão tem da conversação. Segundo ele, o fato de uma conversação estar sempre presente em toda parte onde algo chega à fala, seja sobre quê e com quem for, quer se trate de outra pessoa ou de alguma coisa, de uma palavra, ou de um sinal de fogo – é isso que perfaz a universalidade da experiência hermenêutica. Somente na conversação, no encontro com pessoas que pensam diferentemente, podendo habitar em nós mesmos, podemos esperar chegar além da limitação de nossos eventuais horizontes. (1997, p. 207). Sinaliza, também, para uma ultrapassagem da hermenêutica tradicional, a científico- espiritual, em direção a uma hermenêutica filosófica que libere o fenômeno hermenêutico em toda a sua amplitude. Nessa perspectiva, a hermenêutica passa a ser um aspecto universal da filosofia e não apenas a base metodológica das ciências do espírito. A busca por compreensão não é apenas um problema metodológico, porém uma característica básica da faticidade humana. Hermeneuticamente significativa na linguagem, diz Gadamer, é a dimensão da conversação interior, a circunstância de que nosso dizer significa sempre mais do que ele realmente expressa. Um pensar, um visar, vai sempre além daquilo que, concebido em linguagem, em palavras, realmente alcança o outro. Na palavra interior, na aspiração por compreensão e linguagem, que a constitui e que perfaz a finitude de nosso ser, enraíza-se a universalidade do filosofar hermenêutico. 10 Finalizando a nossa abordagem sobre a hermenêutica, trazemos ao texto as idéias de Karl-Otto Apel, através de sua obra Transformação da Filosofia (1973). Nela o autor reavalia os projetos de Heidegger e de Gadamer e, a partir delas e das idéias de Wittgenstein, propõe uma nova instância para a questão hermenêutica. Segundo diz, a pergunta sobre a possibilidade da compreensão -- que se fazem tanto Heidegger como Gadamer -- não pode deixar de lado a pergunta sobre sua validade. Diante disso, afirma Apel, a hermenêutica tem de ser normativa, tem de ser metodológica, não sendo possível chegar ao extremo de reduzir a verdade à vontade daquele que quer compreender, isto é, de considerar viáveis quaisquer interpretações. De Lutero a Dilthey a compreensão foi colocada cada vez mais radicalmente em questão, enquanto o sentido do texto e sua pretensão à verdade (Wahrheitsanspruch) nunca foram questionados em profundidade. Isso teria mudado radicalmente com Wittgenstein, que, já no Tractatus Logico- Philosophicus, distinguia entre sentido e verdade. "Compreender uma frase", diz Wittgenstein no Tractatus, "é saber qual é o caso quando ela é verdade". Isto é: ela pode ter sentido, mas não ser verdadeira. Para ter sentido, é preciso que seja formada por elementos que se compreendam. Para ser verdadeira, deve ser possível a) transformá-la em frases elementares e b) comparar as frases elementares com os fatos. (cf. Apel, 1973, p.339-41). O projeto de Apel é procurar nos jogos de linguagem e nas formas de vida o fundamento da hermenêutica. O seu mérito está em resgatar a dimensão metodológica da hermenêutica, ou seja, em estabelecer uma reflexão sistemática sobre o processo de compreensão e validade da interpretação. O método hermenêutico e sua relação com outros métodos A hermenêutica, seja como método de compreensão e interpretação, seja como filosofia que visa a compreensão da experiência humana no mundo, mantém estreita relação com outros métodos, já que envolve a compreensão, a interpretação e o entendimento da linguagem. Como interpretar um texto significa entregar-se a um colóquio com ele, dirigir-lhe perguntas e deixar-se questionar por ele, qualquer que seja o ponto de partida da compreensão, ele deverá repousar sobre um solo dialógico assim como sobre uma apreensão fenomenológica prévia, sem os quais não é possível saltar para o círculo hermenêutico – área de ação partilhada por quem fala e por quem ouve - indispensável a todo ato de compreensão. Segundo Minayo (2004), o método hermenêutico se relaciona com o fenomenológico e o dialético, trazendo para o primeiro plano a compreensão do tratamento dos dados e das condições 11 cotidianas da vida, possibilitando o esclarecimento sobre as estruturas mais profundas desse mundo cotidiano. Segundo afirma, a compreensão do sentido se orienta por um possível consenso entre o sujeito agente e aquele que busca compreender; assim, a compreensão só se dará pelo estranhamento, pois, só o fracasso na tentativa de entender o que é dito, dentro de um sistema de intersubjetividade, pode levar alguém a penetrar na opinião do outro, na busca da sua racionalidade e verdade. Assim, a hermenêutica se introduz no tempo presente, na cultura de um determinado grupo para buscar o sentido que vem do passado ou mesmo do presente, de uma visão de mundo própria, envolvendo num só movimento o ser que compreende e aquilo que é compreendido. Ainda segundo Minayo, a hermenêutica interage com o método fenomenológico porque, sem uma apreensão dos fatos, dos fenômenos tais quais eles acontecem, afastada dos pré-conceitos, dos pré-juízos, não há como interpretá-los, não há como compreendê-los verdadeiramente, como elaborar idéias, como construir conhecimentos. Interage com o método dialético porque enquanto a hermenêutica busca a compreensão, destaca a mediação, o acordo e a unidade de sentido, a dialética enfatiza a diferença, o contraste, o dissenso e a ruptura de sentido. A sua interação com o dialógico realiza-se porque a interpretação envolve troca de impressões, de compartilhamento de idéias ou significados que vão surgindo à medida que o diálogo flui e as posições diferentes devem ser aceitas como instrumentos de interpretação e compreensão das diferenças e da diversidade de visões de mundo. Interage, ainda, com o método experimental (científico) porque no processo de conhecimento, inclusive no experimental, não é possível a aproximação da verdade sem a interpretação dos dados experimentados, das idéias que compõem o corpo de uma teoria. Considerações finais Do estudo nos foi possível verificar que a hermenêutica como arte de interpretação tem sua origem na antiguidade clássica estando presente na Idade Média, fundamentalmente como exegese das Sagradas Escrituras. Com a Modernidade ela passa a ser compreendida como métodoque, através da interpretação nos leva à compreensão. Que este entendimento perpassa toda a Modernidade destacadamente com Schleiermacher, Dilthey , Heidegger e, posteriormente, Apel. Em Gadamer, a hermenêutica assume uma tarefa crítica e não se restringe, como ocorria em outras épocas, a uma teoria ou metodologia de compreensão e interpretação da fala e do texto. Cabe-lhe determinar o verdadeiro sentido das ciências do espírito e a verdadeira amplitude e significado da linguagem humana. Verificar, também, que o fenômeno da compreensão perpassa não somente tudo que diz respeito ao mundo do ser humano, mas também o terreno da ciência, da filosofia, 12 da arte, da história, seja como exegese, seja como método de interpretação e compreensão, seja como um aspecto universal da filosofia. Referências APEL, Karl-Otto. 1973. Transformation der Philosophie. Bd.I: "Sprachanalytik, Semiotik, Hermeneutik". Frankfurt a.M., Suhrkamp. CORETH, E. Questões Fundamentais de Hermenêutica. Ed. Da USP, 1999. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. GRONDIN, J. Introdução à Hermenêutica Filosófica; tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999. HERMAN, N. Hermenêutica e Educação – Rio de Janeiro: DP&A, 2002. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia Científica. São Paulo: Atlas, 2004. MALTEZ, José Adelino. Página profissional de José Adelino Maltez, disponível em: http://maltez.info. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde - 8 ed. - São Paulo: Hucitec, 2004. PALMER, Richard E. 1969. Hermeneutics. Interpretation theory in Schleiermacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer. 7th printing, Northwestern University Press, Evanston, 1985. (disponível em português: Lisboa, Edições 70, 1986.)
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