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REFLEXOES SOBRE AS CONCEPCOES DE PERSONA

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REFLEXÕES SOBRE AS CONCEPÇÕES DE
PERSONALIDADE E DE DIGNIDADE HUMANA:
As teses de Robert Spaemann e de Ronald Oworkin
Flávio Quinaud Pedron' 2
2.1. INTRODUÇÃO
Falar em personalidade, ou seja, naqueles atributos ou condições
que identificam uma pessoa - e por consequência, o que a separa do
mundo das coisas (bens, para usar a expressãojurídica) - não é de modo
algum uma seara pacífica e livre de mal-entendidos. Fato é que este
discurso está permeado por verdadeiros sincretismos metodol6gicos, para
usar a expressão de Virgílio Afonso da Silva (2005), o que faz com que
os diversos falantes (doutrinadores) assumam um conjunto de teorias
completamente contraditórias e inconciliáveis, sem, contudo, pontuar
aos seus interlocutores tais pontos de choques (talvez por descuido ou
por ignorância, talvez por perversidade ou intencionalidade).
A questão se complica ainda mais quando essesmesmos autores
buscam atrelar a concepção de personalidade que assumem a uma
determinada ideia de dignidade da pessoa humana.í Esses sustentarão
como a espinha dorsal do direito contemporâneo, sendo identificada,
em muitas situações, com a própria ideia de personalidade.
I Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto IV na Pontifícia Uni-
versidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Professor Adjunto no IBMEC.
Professor Adjunto na UNIFENAS (BH). Professor da Fundação Escola do Ministé-
rio Público de Minas Gerais. Membro da Associação Brasileira de Direito Processo
Constitucional (ABDPC) e do Instituto de HerrnenêuticaJurídica (IHJ). Advogado.
2 .. Isto se deve, principalmente, porque tais bases não partilham sequer da mesma
origem quanto à fundamentação; isto é, ora misturam uma teoria de matriz
liberal com outra de matriz comunitarista, ora uma teoria tributária do jusnatu-
ralismo com pensamentos de base realistas, por exemplo. Tudo isso transforma
o discurso jurídico em uma própria Babel contemporânea, dificultando - e por
vezes, até impedindo o desenvolvimento de uma teorização mais consistente.
33
Com o propósito de levantar algumas dessas leituras, o presente es-
tudo parte de uma reconstrução da ideia de personalidade presente nos
votos de um caso paradigmático levado ao conhecimento do Supremo
Tribunal Federal (STF), versando sobre a permissibílidade da interrupção
dagravidez quando detectada a anencefalia do nascituro? Neste julgado, fica
evidente que o entendimento do Tribunal sobre a personalidade, não
se dá de modo completo e nem vem acompanhado por uma teorização
suficiente. Ele selimita a sinalizar, em sede do julgamento liminar, uma
equiparação entre personalidade e dignidade humana, de um lado, e a
reconhecer o feto - mesmo anencéfalo - como uma pessoa (segundo
um dos ministros, mesmo que em estado latente). Conduto, após oito
9fWS da primeira decisão, o produto final das interpretações levadas
a cabo pelo Tribunal no momento de prolação de sua decisão final
acabou por partir de outras premissas, inclusive negando o resultado
da decisão liminar. Aqui, ao final, o STF considerou como inconstitu-
cional a interpretação que afirma que a interrupção da gravidez de feto
anencéfalo poderia ser tipificada como aborto; e dessa forma, garantiu
um direito subjetivo a gestante nessas condições de interromper a
gestação, sem carecer de autorização judicial para tanto.
Se partirmos da leitura realizada por Spaemann, que vem
mostrar que a personalidade é figura muito mais complexa, que se
materializa - a partir de bases hegelianas - fruto de um processo de
reconhecimento intersubjetivo entre a pessoa e a sua comunidade. Logo,
falar em personalidade, portanto, é um atributo capaz de mediar a
alteridade reciprocamente entre seres humanos.
Já Ronald Dworkin, talvez um dos mais importantes pensadores
do direito contemporâneo, a noção de dignidade humana merece ser
colocada a outra luz, como elemento intermediário de uma teoria jurídi-
co-moral preocupada com asbasesde uma sociedadedemocrática plura-
lista, mas sem cair em uma leitura axiológica perigosa, como a realizada
por diversosjuristas nacionais (SARLET, 2006; BARROSO, 2012).4
3 Em uma outra ocasião tivemos a oportunidade discutir com maior aprofun-
damento VOtopor voto, seja da medida liminar, seja do julgamento de mérito
da ADPF n. 54. Para tanto, remetemos a leitura de: QUINAUD PEDRON,
Flávio; PEREIRA, Juliana Diniz. °julgamento da ADPF n. 54 pelo STF:
un:a ~nálise herrnenêutica da compreensão do Tribunal acerca dos princípios
jurídicos. In. DINIZ, Fernanda Paula; FILIPPO, Filipe de. Temas de direito
público e privado. v. 2. Pará de Minas: Virtual Books, 2015.
, Ver: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana. In: BARRE-
TO, Vicente de Paulo. Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo
34
2.2. PONTO DE PARTIDA: O ENTENDIMENTO DO STF ACERCA
DA PERSONALIDADE HUMANA NO CURSO DO JULGAMENTO
DA MEDIDA lIMlNAR DA ADPF N. 54
A questão da personalidade e sua interconexão com a ideia de
dignidade humana ficaram muito evidenciadas no curso do Jul-
gamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n. 54 pelo Supremo Tribunal Federal.
Alguns fatos anteriores devem ser mais bem aclarados a fim
de que se possa enxergar o quadro completo dos fatos que compõe
o caso (BENTO, 2006). Gabriela Oliveira Cordeiro procurou a
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro para que fosse
proposto um pedido judicial de alvará, junto ao juízo criminal da
Comarca de Teresópolis/RJ, para que fosse autonzada a submeter-se
a um procedimento cirúrgico de interrupção de sua gravidez, j~
que fora detectado que em seu útero gestava um feto anencéfalo.'
Desse fato, fica claro que a mesma estava passando por complicações
não apenas de ordem psicológica, mas ainda poderia estar causando
riscos a sua saúde.
O magistrado de primeiro grau proferiu decisão, nos seguin-
tes termos: "indefiro o pedido por falta de amparo legal, eISque a
hipótese vertente não se encontra inserida no bojo do art. 128 d~
Código Penal. Julgo, pois, extinto o processo, nos termos ~a lei
processual". Em grau recursal, O Tribunal de jusnça do RIO de
/ Rio de Janeiro: Unisinos / Renovar, 2006; BARROSO, Luís Roberto. ~
dignidade da pessoa humana no d~r~ito, constitucional ~ontempora-
neo: a construção de um conceIto jUndICO a luz dajunsprudencIa mundial.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.
Segundo a Resolução n. 1.752/04 do Conselho Federalde Medici~a, o anencé!alo
não apresenta os "hemisférios cerebrais", de modo que esta sujeito apos o
parto a sofrer uma "parada cardiorrespiratória", lo,go nas pnmelr~s horas ~o
pós-parto. "A anencefalia é definida na LIteratura médica como a ma-formaç_ao
fetal congênita por defeito do fechamento ~otubo neural dura,nte a gestaçao,
de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o cortex, hav:ndo
apenas resíduo do tronco encefálico. (...) a anomalia Importa na me:lstencla
de todas as funções superiores do sistema nervoso central - responsavel pela
consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e ernonvi-
dade. Restam apenas algumas funções inferiores que. controlam pa,r~Ialmente
a respiração, as funções vasomotoras e a medula espmhal. Como e mtuItlv~,
a anencefalia é incompatível com a VIda extra-utenna, sendo fata,l em 100Va
dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na LIteratura científica ou na
experiência médica" (BARROSO, 2007, p. 3).
35
Janeiro reviu a decisão e autorizou o aborto. Na forma do HC n"
32.159-RJ, interposto em favor do nascituro, a questão chegou à
5' Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que se manifestou
pela antijuridicidade da interrupção da gravidez+
A discussão levada ao STF, então, por meio da ADPF n. 54,
situa-se em saber sobre a legalidade (agoracomo constitucionalidade)
da interrupção da gravidez (aborto) para os casos nos quais for de-
tectada pelos médicos a mâ formação cerebral do feto (anencefalia).
O Código Penal, em seu art. 128,trata de situaçõesexcepcionais
nas quais o ordenamento jurídico brasileiro autoriza a realização
do procedimento abortivo, sem que com isso, implique sanções de
ordem ,renal. Estas são apenas duas: quando da gravidez resultar
perigo à vida da gestante ou quando a gravidez resultar de estupro.
Por isso mesmo, a situação ventilada pelo STF, não se encontra
amoldada nas permissibilidades da lei penal brasileira,"
Para o, então, advogado Luiz Roberto Barroso, em suapetição
de ingresso, era o caso de se fazer uma interpretação conforme a
Constituição dos dispositivos penais e assim autorizar também a
interrupção da gravidez.
Basicamente, os argumentos apresentados pelos ministros do
Tribunal para chegarem a uma decisão se polarizam em dois gran-
des grupos. O primeiro lado afirma uma identidade - e quase uma
sacralidade - do direito a vida do nascituro, com aProteção jurídica
dada à personalidade. É o que se vê logo nos primeiros momentos
do julgamento, quando o Min. Eros Grau já declara que o feto é
uma pessoa e afirma o seu direito ao nascimento.
Nesse mesmo grupo, mas com uma posição diferenciada, o
entendimento do Min. Cezar Peluso vem afirmar que a vida do
feto anencéfalo é tão incerta quanto a dos demais seres (humanos).
O problema sub judice fica, na verdade, em ~eadmitir que pessoas
tenham a possibilidade de escolher quem VIvee/ou quem morre.
Aqui, deixa claro que entende que o s~frimento ma:ern~ por se ver
obrigada a aguardar o término do penodo de gestaçao nao pode ser
colocado acima da existência (vida?) do feto."
O voto do Min. Carlos Ayres de Britto já lança novo questio-
namento: será que a personalidade do feto anencéfalo constitui fato
não evidente? Por issomesmo irá afirmar a latência dessa vida,? que
preponderará sobre qualquer outro interesse que possa ter a gestante.
No lado argumentativamente oposto, destaca-seo voto do Min.
SepúlvedaPertence, favoravelmentea gestante.tO A lógicaaqui exposta
está em afirmar a existência de uma colisão de interesses - a vida do
8 Neste argumento acaba por transparecer uma visão judaico-cristã que afirma
o poder pedagógico ou terapêutico do sofnmento da gestante, se~, contudo,
avaliar os danos psicológicos ou mesmo físicos que a mesma estara se subme-
tendo (FRANCO, 2005).
9 "( ... ) implica reconhecer que a lei penal proíbe a intenci_?nal contramarcha nos
processos intra-uterinos que fazem do fruto da concepçao um ser em paul.anno
avanço para um momento de vida já ocorren_re do lado de fora do feminino
ventre. Concepçãoque é a pedra de toque da questao, sob ofundamento ,de hospedar-se
nela opr6prio iniciode toda vida humana, emboraem estado latente. Latência, enfim,
que, numa ponderação de valores, passa a preponderar sobre qualquer outro
interesse ou bem jurídico por acaso alegado pela gestante (sempre ressalvadas as
duas hipóteses de exclusão de punibilidade); que nem por se encont~~r em estado
de gravidez se torna proprietária do ser que lhe aruma o venere (~RAS[L.
Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54/DF. ReI. Min. Marco Aurelio).
10 "( .•• ) o desfazirnenro da gravidez anencéfala só é a~orto em linguagem simples-
mente coloquial, assim usada como representaçao mental de um. fat,o .Sltuado
no mundo do ser. Não é aborto, em linguagem depuradamente Jundlca,. p~r
não corresponder a um fato alojado no mundo do dever-ser em que o DIreI-
to consiste. °que faz ofiel da balança em que se pesam,co~trap~stos valores
pender para o lado da gestante, na acepção de que ela Ja nao esta obngada a
levar adiante uma gravidez tão somente comprometida com o pIOr dos malo-
gros, quando do culminante instante do parto" (~RAS[L. Supremo Tnbunal
Federal. ADPF n. 54/DF. ReI. Min. Marco Aurélio).
6 Segundo o STJ, caberia apenas aos defensores da tese dajuridicidade do aborto
no ca: o de anencefalia lamentar a omissão do Legislador e nada mais, não
podendo ser esperado do Judiciário qualquer outra póstuma mais ativista. °
posicionamento do ,STJ, então, não escapa a crítica feita pelo voto do Min.
Joaquim Barbosa: "E importante salientar, porém, que em nenhum momento
se cogitou de eventuais direitos da gestante, isto é, da paciente. Toda a discus-
são levada a efeito no âmbito do Superior Tribunal de Justiça diz respeito aos
direitos do nascituro sem qualquer alusão a eventuais direitos da gestante, como
se esses direitos, constitucionalmente protegidos, não estivessem intimamente
entrelaçados, ou seja, como se a proteção ao nascituro tivesse o condão de
excluir completamente a proteção aos direitos da gestante. (...) a própria vida
da paciente encontra-se em risco, na medida em que, diante de uma gravidez
potencialmente problemática como a sua, caso surja a necessidade de uma in-
tervenção cirúrgica de emergência, pousará sobre a paciente e sobre o médico
que vier a assisti-Ia a ameaça da persecução criminal decorrente da vedação
consubstanciada na decisão do Superior Tribunal de Justiça" (BRASIL. Su-
premo Tribunal Federal. ADPF n. 54/DF. ReI. Min. Marco Aurélio).
7 Há quem entenda, contudo, inclusive apoiando-se em estudos médicos, que há
sim um risco para a vida da gestante nos casos de gravidez de feto anencéfalo,
o que a permitiria o aborto na forma legal (FRANCO, 2005).
36 37
feto em oposição ao direito de interrupção da gestação pela gestante. Mas
tal afirmativa, ainda parece indicar que o feto anencéfalo está sendo
tomado como um sujeito de direito - ainda que potencialmente.
Também utilizando da ponderação de interesses, mas conduzindo
seu pensamento em sentido contrário, o Min. Joaquim Barbosa
afirmará que a escolha não poderá ser como queria o Min. Carlos
Ayresde Britto, mas sim, dever-se-á voltar para proteção da escolha
(autonomia da gestante)," ainda mais, porque não há que sefalar em di-
reito a vida, já que estasemostra mínima em suaspossibilidades,quase
inexistente. Nesse caso, argumenta que vilipendiaria a dignidade da
pessoahumana impor sofrimento desnecessárioà gestante, subtrain-
do-Ihe qualquer escolha. Ora, mesmo que aqui não caiba espaço
par! uma maior discussão - e mesmo para críticas'? - à utilização
daponderação de interesses e do instrumental da proporcionalidade
(balanceamento) entre princípios, deve-se pontuar que o método
alemão de solução de colisões entre direitos fundamentais somente
faz sentido se reconhecer que em cada lado tem-se um sujeito de
direito, dotado de direitos e obrigações. O próprio Min. Joaquim
Barbosa ao afirmar que o feto anencéfalo não titulariza a condição
de sujeito de direito, acaba sendo descabido afirmar que o mesmo
titulariza interesse à proteção de sua própria vida, estando por so-
lucionada um conflito que é na verdade apenas aparente.
11 "Em se, tra_tan~o de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se
coloca e: nao ha possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora
do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer
momento em que se Interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o
mesmo: a morte do feto ou bebê. A antecipação desse evento morte em nome
da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade
humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada?
Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia
~er considerada crime? Entendo que não Sr. presidente. Isso porque, ao proceder
a ponderação de valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina
inviável e a liberdade e autonomia da mulher, entendo que, no caso em tela,
deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade
destade escolher aquilo que melhor representa os seus interesses pessoais, suas
conVIcções morais e religiosas, seu sentimento pessoal" (BRASIL. Supremo
Tnbunal Federal. ADPF n. 54/DF. ReI. Min. Marco Aurélio).
12 Para mais detalhes, reporta-se ao artigo QVINAVD PEDRON, Flávio. A
solução do ~onfiito entre princípiospelajurisprudênciado Supremo Tribunal
Federal: a tecruca da proporclOnahdade. Revista dos Tribunais. a. 97. v.
875. set./2008.
38
Nestes votos, o que transparece é que o STF ainda não des~n-
volveu uma concepção clara do momento em que podemos consi-
derar como o início da vida humana - e conseqüentemente de sua
proteção jurídica.
Diferentemente de outros ordenamentos jurídicos comparados
- como, por exemplo, o Norte-Americano, que irá afirmar (por
meio de decisões da Suprema Corte)':' que a vida humana surge
quando o feto passaa ter capacidadede existir sem amãe (entre a 24'
e a 26' semanas da gestação)" -, o julgado do STF não deixa claro
qual a perspectiva teórica abraçada pelos julgadores," para afirmar
porque o conflito jurídico deveria ser resolvido favoravelmente ao
nascituro anencéfalo.
A influência de valores religiosos (judaico-cristãos) parece ser
o principal fundamento para afirmar que o anencéfalo é um ser
vivo, e mais, é uma pessoa - um sujeito de direitos - capaz de exi-
gir o respeito à sua vida (isto é, ver garantida a sua possibilidade de
nascimento, mesmo que a fatalidade de suamorte - como esperado
pela literatura médica - venha na seqüência).
13 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973), e Planned Parenthoodoi Southwestern Pennsyl-
vania v. Casey, 505 V.S. 833 (1992). Aqui, reconhece-se à mulher um direito
constitucional amplo para realizar aborto no primeiro trimestre de gravidez.
Após tal período, as restrições instituídas por leis estaduais podem ser pro-
gressivamente mais severas.
14 "Em 1975, foi editada lei francesa permitindo o aborto, a pedido da mulher,
até a 10' semana de gestação, quando a gestante afirmasse que a gravidez lhe
causa angústia grave, ou a qualquer momento, por motivos rerapêuticos. A
norma foi submetida ao controle de constitucionalidade (antes de editada) e
ao controle de convencionalidade (após sua edição), tendo sido considerada
compatível tanto com a Constituição francesa quanto com a C;0nvenção Eu-
ropéia dos Direitos Humanos. Hoje, outra norma CUidada matena, mantendo
a possibilidade relativamente ampla de aborto na França. (...) Na Alemanha,
após uma posição inicial restritiva, materializada na decisão conhecida como
"Aborto I" (1975), a Corte Constitucional, em decisão referida como "Abor-
to Il" (1993), entendeu que uma lei que proibisse em regra o aborto, sem
criminalizar a conduta da gestante, seria válida, desde que adotasse outras
medidas para proteção do feto. Registrou, contudo, que o direito do feto à
vida embora tenha valor elevado, não se estende a ponto de eliminar todos os
direitos fundamentais da gestante, havendo casos em que deve ser permitida
a realização do aborto" (BARROSO, 2007, p. 11).
I; Como Lembra Barroso (2007), outras teses esposadas seria que a vida tem
inicio: com a fecundação; com a nidação (fixação do embrião no útero mater-
no); e quando da formação do sistema nervoso central (SNC), o que permite
ao embrião sentir dor ou prazer.
39
Por fim, há aqueles que invocaram a dignidade humana como
justificativa da tutela em favor da gestante. Aqui, entretanto, a dig-
nidade humana foi tomada mais como uma vedação ao sofrimento
a que seria submetida injustificadamente a gestante - inclusive as-
similando isso a uma modalidade de tortura psicológica _,16 o que
autorizaria a interrupção da gestação, do que como uma exteriori-
zação da proteção à autonomia da gestante - única pessoa que, na
I realidade, deveria decidir pela continuidade ou não da sua condição.
2.3. A TEORIA TRADICIONAL SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA NA DOUTRINA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
Falar em dignidade da pessoa humana não é uma novidade na
História d<'thumanidade. Estudos indicam quejá na China Imperial,
séculQ)V a.c., confucionistasafirmavam que cadaser humano nasce
com uma dignidade que lhe é própria, sendo-lhe atribuída por ato da
divindade (SARLET, 2006). Aqui, bem como nas diversastradições
que se seguiram, inclusive cristãs, o homem é tomado como um ser
especial, dotado de uma natureza ímpar perante todos os demais
seres, razão pela qual não pode ser instrumentalizado, tratado como
objeto, nem mesmo por outros seres humanos.
Na Antiguidade, todavia, encontraremos culturas que afir-
maram que a dignidade (do latim, dignitasl7) é expressão da posição
social ocupada pelo indivíduo e pelo grau de reconhecimento que
os demais componentes daquela comunidade atribuíam a um sujeito.
Sob este prisma, existiriam, então, pessoas mais ou menos dignas
socialmente (SARLET, 2006).
No período da Escolástica, Santo Tomás de Aquino irá conju-
gar dignidade com o fato de que o ser humano foi criado à seme-
lhança de Deus, razão pela qual reside sua especialidade e, como
16 "A potencial ameaça à integridade fisica e os danos à integridade moral e
psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste
realidade e a lembrança ininrerrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca
poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A
Constituição Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5°, lII)
e a legislação infraconstitucional define a tortura como situação de intenso
sofrimento fisico ou mental" (BARROSO, 2007, p. 16).
17 Uma análise etimológica pode, inclusive, nos remeter a ideia que a palavra
tem relação com ignis, que do latim quer dizerfogo, brilho.
40
consequência, sua capacidade de autonomia, autodeterminação,
dando-lhe vontade própria, e assim, liberdade por natureza.
Apenas com Kant (1980), no Iluminismo alemão, veremos a
dessacralização da ideia de dignidade humana. A partir da defesa
da autonomia moral do indivíduo, o filósofo alemão afirmará que
o homem deve ser levado a sério, sendo sempre o fim maior das
relações humanas e nunca um mero meio. Influenciados por Kant,
então, a grande maioria dos teóricos do direito constitucional irão
identificar a noção de que a dignidade representa o reconhecimento
da singularidade e da individualidade de uma determinada pessoa;
razão pela qual ela semostra insubstituível e igualmente importante
para a ordem jurídica.
Hegel,18por sua vez, irá sofisticar ainda mais a noção de dig-
nidade humana quando concebe que esta é fruto de um complexo
processo de reconhecimento. A ideia de reconhecimento surge no
discurso filosófico a partir do pensamento de Hegel, ao trabalhar
a dialética do senhor e do escravo, na Fenomenologia do Espírito. Aqui, o
reconhecimento surge como uma luta. Assim, a mente, que existe
como consciência individual. Cada consciência é incapaz de reco-
nhecer autonomia em outra consciência;mais que isso,ela rouba essa
autonomia, escravizando-a - impondo sobre ela suavisão de mundo
e seus projetos para garantir o reconhecimento. Desse modo, em
um primeiro momento, o escravo é obrigado pela força, a reconhe-
cer no senhor o autor das ideias que guiam suas próprias ações; ao
passo que o senhor não reconhece o escravo - senão como objeto,
meio para atingir suas ideias e projetos. Mas esse reconhecimento
conquistado pela força acaba por perder seu efeito: "ele só é reco-
nhecimento efetivo quando aquele que reconhece o valor do outro
também tem seu próprio valor honrado por ele" (ASSY;FERES
JÚNIOR, 2006, p. 706). Issonos revelaque a reciprocidadeé condição
essencial dessa dinâmica.
18 O termo tem sua origem no alemão, Anerkennung, derivado do verbo anetkennen,
criado no século XVI a partir do latim, agnoscere.Aqui, o significado é o de
identificar uma pessoa ou uma coisa, ou característica, por meio de um saber
prévio, seja este produto ou não de uma experiência direta. Mas o conceito
filosófico do termo apresenta uma modificação, uma vez que se ultrapassa
aqui a ideia de uma "identificação cognitiva de uma pessoa", mas deve ser
entendido como "atribuição de um valor positivo a essa pessoa, algo próximo
do que entendemos por respeito" (ASSY; FERES JÚNIOR, 2006, p. 705).
41
Destacamos, portanto, uma diferençafundamental com o pensa-
mento de Kant. Na Fundamentação da Metafisica dos Costumes, Kant irá
despir o sujeito de todos os seus predicados contingentes, reduzindo
o homem ao ser racional, que toma decisões morais autônomas, le-
vando em conta apenas o fato dele partilhar um mundo com outros
indivíduos igualmente racionais e potencialmente autônomos. Com
isso atinge o imperativo categórico. Hegel, por outro lado, por partir
da contingência do particular afirma que reconhecer o outro como
racional - e com isso, autônomo - transforma o ponto de partida
de Kant num problema crucial. E este problema somente pode ser
solucionado através de percurso de desenvolvimento que culminará
nas instituições complexas do Mercado e do Estado.
Para ç Direito, a redescoberta da ideia de dignidade humana
vem acompanhada de diversos documentos internacionais, na qual
é citada ~ Estatuto (ou Carta) da Organização das Nações Unidas
(1945),Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), Cons-
tituição italiana (1948) e da Lei Fundamental da República Federal
Alemã (1949). Representa, de certo modo, uma contraposição aos
horrores vividos durante o período das Guerras Mundiais.
Na tradição do direito alemão, isso significou, principalmente,
afirmar que todos têm direito a ser tratado como pessoas, sendo
respeitados de modo igual os seus direitos fundamentais (direitos
humanos) independentemente de sexo, raça, língua, religião ou opi-
niões políticas, condições de nascimento, econômicas e sociais. Isso,
é claro, vem no sentido de combater a noção nazista de Untermensch
(subumano), que afirmava uma desigualdade eugênica em prejuízo
dos arianos (ALEXY, 1997).
Para os italianos, a dignidade não é tão intangível e sua adjeti-
vação não se faz com referência ao "humano", mas sim, fala-se em
uma "dignidade social" e está ligada ao desenvolvimento "segundo
as próprias possibilidades e a própria escolha, uma atividade ou uma
função que concorra ao progresso material e espiritual da socieda-
de" (art. 4°, § 2° da Constituição Italiana de 1948). Isso significa
atar a ideia de dignidade a um conceito "econômico-social" e, por
isso mesmo, associá-Ia ao "trabalho" como forma de dignificação
do homem. A preocupação aqui não é com a pessoa em si (a partir
de bases jusnaturalistas), como acontece na doutrina alemã, mas no
processo de inserção dessa pessoa no tecido social; isto é, a pessoa
assume não apenas um direito, mas também um dever de contribuir
para o progresso da sociedade com seu trabalho. Mas esta vertente da
ideia de dignidade parece ter ficado olvidada pelos junstas brasileiros
que importaram a matriz alemã. . .
Fato é que muitos autores registram uma dificuldade em con-
ceber um conceito pacífico do que seja a dignidade humana, com~
reconhece Sarlet (2006). Isto se deve, principalmente, porque tais
autores não conseguem - ou talvez não queiram - lançar mão de
uma leitura, primeiro, dessacralizada do direito moderno - raz~o pela
qual assumem concepções jusnaturalistas e valores ético-religiosos
no intuito de substancializar seu argumento, procurando uma for-
ma de perenidade na fluidez da modernidade; e segundo, rigorosa
paradigmaticamente - desta forma, falta-Ihes uma teona do direito.
Partindo das noções afirmadas pela teoria constitucional ma-
joritária - ainda que pese as críticas feitas, bem COAmoas incoerências
internas a esta teoria -, com fortes heranças germamcas e bases axio-
lógicas, a dignidade dapessoa humana (art. 1°, III da CR/88) .é erigida
a condição de meta-princípio (sic).Por isso mesmo esta irradia valores
e vetores de interpretação para todos os demais direitos fundamen-
tais, exigindo que a figura humana receba sempre um tratamento
moral condizente e igualitário, sempre tratando cada pessoa como
fim em si mesma, nunca como meio (coisas)para satisfação de outros
. d . 19interesses ou de interesses e terceiros.
Sendo assim, para os teóricos do constitucionalismo contem-
porâneo, direitos - como vida, propriedade, liberdade, igualdade,
dentre outros -, apenas encontram uma justificativa plausível se
lidos e compatibilizados com o postulado da dignidade hun:ana.
Afirmam, portanto, que a dignidade seria um super-pnncIplO,
como uma norma dotada de maior importância e hierarquia que as
demais (SIQUEIRA]r., 2008), que funcionaria como elemento de
comunhão entre o direito e a moral, na qual o primeiro se funda-
menta na segunda, encontrando sua base de justificação racional.ê?
~
i
I
42
19 "O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignida~e da
pessoa humana apresenta-se em uma dupla conce~ção. Primeiramente, pre~e um
direito individual protetivo, seja em relação ao propno Estado, seJaem relaçao aos
demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamen:al de
tratamento igualitário entre semelhantes. Esse dever configura-se pela _eXlgencla
do indivíduo respeitar a dignidadede seu semelhante tal qual a Consrituição Federal
exige que lhe respeitem a própria" (MORAES, 2007, p. 46).
20 Todavia, um alerta: proceder assim é ignorar os riscos ~e retr:_ocedera tradição
jusnaturalista, ou pior, apagar os traços de autonomia sisterrnca que separa
43
Por exemplo, a vedação geral a penas de morte, já que suprimindo a
vida, suprime-se também qualquer côndição de existência, inclusive
moral do sujeito (VIEIRA, 2006, p. 68-69).
Por isso mesmo, afirmam alguns autores que questões limites
como eutanásiae aborto fazemremissãoa uma discussãoda dignidade
humana, uma vez que sãomuitas vezes lidas na forma de uma colisão
ent!e direitos à liberdade e à vida biológica (VIEIRA, 2006, p. 69).
Verdade é que ajurisprudência do STF não desenvolveu ainda
um entendimento do que sejaa dignidade de maneira sistematizada.
Apesar disso, alguns autores fazem esforçoshercúleos no sentido de
dotar tais decisões de uma lógica e coerência, extraindo dasmesmas
uma doutrina sobre a dignidade da pessoa humana.",..
2.4. A TESE DE SPAEMANN SOBRE A PERSONALIDADE...•.
Robert Spaemann é um dos grandes nomes da filosofia e da
teologia cristã da atualidade. Elogiado pela ala conservadorada Igreja,
inclusivepelo PapaBento XVI. Ele escreve, geralmente, sobre temas
como bioética, direitos humanos e meio ambiente.
O presente paper toma como principal referência a teoria da
personalidade que Spaemann irá apresentar em sua obra Personen:
Versuche uber den Unterschied zwischen 'etwas' aunda 'jemand',22 recons-
truindo seus principais argumentos.
Segundo, Spaemann, Boécio foi um dos primeiros pensadores a
se debruçar sobre a questão da personalidade, cunhando uma célebre
o direito e a moral. Ver: HABERMAS, ]ürgen. A inclusão do outro: estudos
de teoriapolltica. Tradução: George Speiber e Paulo Astor Soethe. São Paulo:
Loyola, 2002.
21 No julgamento do HC 71.373-4 RS, o STF entendeu por solucionar um
suposto conflito e~tre dignidade humana e direito à intimidade, no que diz
respeito a possibilidade (ou não) de condução coercitiva do suposto pai em
sede de processo de investigação de paternidade. Ainda que pese críticas à
fundamentação adotada, o Tribunal compreendeu, com exatidão, que os ins-
t~umentos mfraconstitucionais, principalmente aqueles de ordem processual,
Ja estabeleciam um sistema de onus probandi, de modo que a recusa em proce-
der ao exame, não representava o descumprimento de um dever processual
de prova; muito antes, estabelecia uma presunção em sentido contrário do
argumentado pelo investigado, presumindo a paternidade.
22 Será feita uso da tradução para o inglês: SPAEMANN, Robert. Persons: the
differencebetween 'someone' and 'something'. Trad. Oliver O'Donovan. Oxford:
Oxford University Press, 2006.
44
definição de que se trata de uma "substância individual de natureza
racional" (SPAEMANN, 2006, p. 9). Desde então, a filosofia tem
procurado identificar os atributos que permitam agrupar determi-
nados seres em um mesmo conjunto sob estetítulo. Isto quer dizer
que falar em pessoas deveria ser algo mais que falar em "substâncias
mentais" (cogito), como queria Descartes. Outros autores irão afir-
mar que pessoas seriam formadas por uma autoconsciência ou por
indivíduos capazes de interações comunicativas. Outros serão mais
explícitos e dirão que todos os seres humanos são pessoas, mas será
isso mesmo uma verdade filosófica ou apenas um axioma repetido
por anos sem a devida reflexão?
Falar em "pessoas", a princípio, parece algo distinto de se falar
em "sereshumanos". O segundo conceito designa mais uma relação
entre espécies animais, ao passo, que o primeiro assume um ponto
de vista interno, isto é, aborda uma relação interna entre essesseres
humanos; isso significa afirmar uma relação de reconhecimento
ou de pertencimento, que deve ser mais bem detalhada a frente
(SPAEMANN, 2006, p. 25).
A ideia do cogito cartesiano sinaliza para um dado importante:
falar em personalidade é necessariamente falar de manifestação de
subjetividade,mas com capacidadede transcendência (SPAEMANN,
2006, p. 57).Nessa perspectiva, a personalidade se forma e semani-
festa a partir de uma projeção criada pela inter-relação corpo/mente.
.Uma pessoa não é apenas um indivíduo dotado de um corpo físico
com característicasfisiológicassimilaresaosdemais - dois braços, dois
d duzi ,_ 'b23pulmões, etc. - nem se po e re UZlT a um orgao, como o cere ro.
Antes de tudo, uma pessoa representa a afirmação de uma
consciência, dotada de particularidades e, porque não dizer, indivi-
dualidade. Esta consciência manifesta-se a partir de uma noção de
tempo e de espaço, além disso, ela faz uso de um médium linguístico
para se inserir em uma determinada comunidade e assim, forjar para
si a ideia de um "horizonce"."
23 Por isso mesmo, para o autor as pessoas são mais que cérebros em um recipiente
(corpo). O que se têm é uma interação dinâmica que conforma e permite a
transcendência lingüística da experiência humana.
24 Este horizonte é ao mesmo tempo fator limitador e condição de possibilidade
de toda a interação comunicativa dessa consciência que chamamos pessoa.
Ver: SPAEMANN, 2006, p. 175. "Horizonte é o âmbito de visão que abar-
ca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. [...) A
45
Para Spaemann, seria esta consciência que conferiria a uma
pessoa sua dignidade (SPAEMANN, 2006). A consciência permi-
tiria a realização de escolhas intencionais e o próprio aprendizado
moral. Assim, como lecionara Kant, constitui mandamento moral
tratar todas as pessoas como sujeitos detentores dessa consciência
moral e de individualidade. Assim, a pessoa é posta em um pa-
tamar privilegiado com relação a tudo mais existente - animais,
plantãs, objetos, etc. Ela é o fim de todas as coisas, mas dizer isso é
um pouco vago e o próprio autor reconhece que o uso da ideia de
dignidade de modo irrefletido, como vem acontecendo, pode aca-
bar contribuindo para um esvaziamento do seu sentido. Para tanto,
apela para Agostinho, que religará a ideia de dignidade à ideia de
Deus. Nesse-prisma, a dignidade não é do homem como um dado
fornecido .por sua conformação genética, mas antes porque ele é o _
único ser capaz de relativizar a si, e, com isso,assumir uma distância
de sua própria subjetividade, contextualizar seuspróprios interesses
em conjunto a outros interesses (humanos e não-humanos). Mas
sua própria capacidade de relativizar-se revela um paradoxo, pois é
ela que o faz absoluto. Por isso, cita o Bispo de Hipona: "amor Dei
usque ad contemptum sui". Assumindo a dignidade como um conceito
metafisico-religioso, Spaemann apelapara fundamentar a dignidade
em algo que é superior ao próprio homem.
Mas ainda assim, fica uma questão pendente: como se daria esta
c,onexãode consciênciascapazesde permitir a transcendência da per-
sonalidade e o compartilhamento dessasubjetividade com os demais?
Ora, para tanto, Spaemann (2006) tem que assumir a ideia he-
geliana de reconhecimento como ponto essencial de sua teoria da
personalidade.Éjustamente a capacidade,que exclusivamenteosseres
linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e
Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade
finita e para caracterizar, com isso, a lei do pregresso de ampliação do âmbito
visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê sufi-
CIentemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais
próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que
há de mais próximo, mas poder ver além disso. Aquele que tem horizontes
sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro
deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A
elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte
de quesrionarnento correto para as questões que se colocam frente à tradição"
(GADAMER, 2001. p. 452).
46
humanos têm, de realizar um processo de reconhecimento (àsvezes
uma verdadeira luta por reconhecimento,já que não está livre de poten-
ciais conflituosidades)que faz com que "alguém" possa se distinguir
de "algo". O processode reconhecimento não pode ser tomado como
um raciocínio analógico (SPAEMANN, 2006). Nessa dinâmica, o
reconhecimento não apresenta passospara ser seguido. Antes, requer
um compartilhamento do horizonte com as outras pessoas.Dentro
desseuniverso comum, o reconhecimento emerge espontaneamente.
E é por causa do reconhecimento do outro como uma pes-
soa igual a si, que se desenvolve o aprendizado das normas morais
(SPAEMANN, 2006). Ao reconhecer alguém, atribuí-se a esta
pessoa os mesmos conjuntos de direitos e de deveres. Aqui se as-
senta a noção de dignidade humana, cujo termo deve substituir a
ideia de um valor humano, para se afirmar como um dever, dado a
relatividade da ideia de valores. Isso pode ser bem explicitado no
pensamento kantiano, através do imperativo categórico. Assim, a
noção de reconhecimento se assenta, ainda, na atribuição de igual
respeito a todos os seres humanos (SPAEMANN, 2006).
Aliada a ideia de reconhecimento e de respeito igual, está a
figura da liberdade. Ao reconhecer alguém a condição de pessoa,
reconhecemos a esta um espaço de manifestação de sua individua-
lidade, espaço este, inclusive protegido pelo próprio Estado através
das normas jurídicas.
Agora, já de posse dessareflexão, cabe indagar: quando começa
a personalidade de um ser humano?
Aqui, uma reflexão preliminar: o que Spaemann busca, na
verdade, é situar a linha de raciocínio para fora da tradição do
utilitarismo,25segundoa qual dor e prazer podem resumir todo um
25 "De modo geral, o termo 'utilitarisrno' designa a doutrina segundo a qual o
valor supremo é a utilidade, isto é, a doutrina segunda a qual a proposição 'x
é valioso' é considerada como sinônima da proposição 'x é útil'. O utilita-
rismo pode ser uma tendência prática ou uma elaboração teórica, ou ambas
as coisas a um só tempo. Como tendência prática pode ser o resultado do
instinto (em particular do instinto da espécie), ou conseqüência de um certo
sistema de crenças orientadas para as convivências de uma comunidade dada
ou manifestação de uma reflexão intelectual. Como elaboração teórica pode
ser o resultado da justificação intelectual de uma prévia atitude utilitária, ou a
conseqüência de uma pura teorização sobre os conceitos fundamentais éticos
e axiológicos, ou as duas coisas ao mesmo tempo" (FERRATER MORA,
2001, p. 2959-2960).
47
conjunto de complexidades de referenciais para a ação e entendimen-
to humano. Esses conceitos apontariam a direção da ação humana
correta, isto é, aquela que busca escapar da dor e alcançar sempre o
máximo de prazer possível (princípio da utilidade, segundo Benthan).
Segundo o utilitarismo de autores como Peter Singer, não é possível
reconhecer personalidade a um feto, mas apenas identificá-Io como
algo dentrodo ventre materno e, portanto, de proteção jurídica - o
que irtclui à vida. A personalidade, então, adviria com o nascimento
com vida (SPAEMANN, 1997).
Mas para Spaemann, a personalidade é um atributo que en-
cerra propriedades compartilhadas por todos os seres humanos.
Mas isso não significa que são as propriedades que fazem com
que se identffique a personalidade. Antes disso, pessoa é o ser
humano que a possui (SPAEMANN, 2006). Na verdade, essas
propriedadés atuam como condições de possibilidade do processo
de reconhecimento. Ao afirmar isso, o autor nega a tese de que a
personalidade seja um fato natural ou mesmo biológico; antes disso,
ela representa uma construção social, um modo de viver - ou de
existir (SPAEMANN, 2006).
O primeiro nível desse reconhecimento, então, tem início
com a relação mãe/filho. Aqui filho e mãe se constituem como
organismos diversos e autônomos. É através da interação entre
ambos que a mãe reconhecerá personalidade ao filho, conferindo-
-lhe condições para seu desenvolvimento. Ele receberá um nome,
que o individuará, terá suas próprias coisas - roupas, brinquedos,
etc. Aprenderá a se comunicar utilizando a mesma linguagem de
seus pais e assim se inserirá em uma comunidade, dividindo com
esta um horizonte compartilhado de sentidos. E mais importante,
sendo reconhecido por esta comunidade como alguém detentor
dos atributos da personalidade.
A tese do nascituro como sendo uma pessoa latente - como
quer parte do STF e os filósofos utilitaristas, como Peter Singer,
por exemplo - é, então rejeitada por Spaemann (2006). Não são
pessoas em potencial- ou se é uma pessoa, ou não se é. Caso con-
trário ter-se-ia O absurdo de afirmar que uma pessoa se origina de
algo! Ora, uma pessoa não é um produto de modificações; ela é
uma "substância", no dizer de Aristóteles, sendo algo que já se está
lá. Por isso mesmo, não se pode identificar o início da existência
de uma pessoa dissociada no início da existência do ser humano
48
que ali está. A personalidade não é o resultado de um processo de
desenvolvimento, mas sim uma "moldura" (SPAEMANN, 2006).
Mas aqui, Spaemann tem outro desafio à frente: superar a
tese do especismo; isto é a afirmação de que a personalidade decor-
re, então, do simples fato daquele ser pertencer à espécie humana
(BECCHI, 2008). A solução encontrada está na reinserção da
ideia de dignidade humana, fundamentando-a como conceito
metafísico-religioso.
2.5. A TESE DE DWORKIN ACERCA DA CONCEPÇÃO
ADEQUADA DE DIGNIDADE HUMANA
Divergindo também da linha de raciocínio tradicional, a leitura
de Dworkin (2006) sobre a dignidade humana, na realidade, busca
conciliar os princípios da igualdade e da liberdade, afirmando duas
dimensões da dignidade: ia) através do reconhecimento da impor-
tância de cada projeto de vida individual; e 2') através da proteção
da autonomia individual na persecução desse projeto de vida. Para
tanto, falar em dignidade da pessoa humana somente faz sentido
se entendido como vista pelo prisma da garantia de iguais liberdades
subjetivas para ação.
Partindo dessaperspectiva podemos tentar recolocar a dignidade
da pessoa humana como condição de legitimação não apenas dos
direitos fundamentais, mas de todo o ordenamento jurídico, sem
correr os riscos de esbarrar com questões de fundamentação moral
ou assumir uma via de volta ao jusnaturalismo. Mais que afirmar
que o ser humano deve ser tratado como um ser único, individual,
como faz boa parte dos juristas nacionais, a leitura de Dworkin
busca justificar-se na própria auto fundação do direito moderno
(QUINAUD PEDRON, 2012).
A partir disso, e levando em conta uma importante reflexão
sobre a natureza interpretativa dos conceitos morais e jurídicos,
Dworkin (2011)promoverá uma teoria da justiça que traduza as duas
dimensões da dignidade em: (1) um principio do auto respeito - que
levanta exigências de que cada um de nós leve à serio sua própria
vida, tomando como importante a sua busca por sucesso; e (2) um
princípio da autenticidade - para o qual todos nós temos uma responsa-
bilidade pessoal em identificar o que para nós pode ser denominado
de uma vida de sucesso.
49
Todavia, sob um ponto de vista de uma teoria complementar en-
tre ética e moral, alguém que vive bem compreende e busca uma vida
boa para si mesmo, mas não se olvida de levar em conta a dignidade e
suas dimensões; com isso, irá respeitar também a importância da vida
das outras pessoas e da responsabilidade ética pelas suas escolhas que
elas também possuem (DWORKIN, 2011). Logo, a concepção de
dignidade levada a cabo por Dworkin, em seu último livro, afirma a
existência de uma responsabilidade individual (quer ética, quer moral,
quer jurídica, quer política) com a vida das demais pessoas presentes
na sociedade. Esse vínculo normativo constituirá o mecanismo de
solidariedade social, capaz de unir cada membro da sociedade ao
compromisso de compor uma comunidade de princípios.
Haberrnas (1998) identificará tal proposição com o código da
modernidade (liberdade e igualdade) e buscará explicar que como se
dá tal procdso de produção de normas jurídicas legítimas, no qual
cada sujeito é ao mesmo tempo autor e destinatário das normas.
Isso é fundamental, e por isso parece ser uma leitura mais
adequada, já que não busca assentar a noção de dignidade humana
sob um conjunto de valores que reflete apenas uma visão particu-
lar de mundo - mais exatamente a tradição judaico-cristã." Ao
se abrir a porta para uma fundamentação normativa própria do
direito, participantes de outras concepções podem tomar assento
nessa prática comunicativa, sentindo-se igualmente coautores das
normas a que se submetem.
Isso tem dois objetivos principais: impedir que uma decisão iiisti-' .
tucional (jurisdicional ou legislativa) seja tomada a partir do ponto
de visto de uma cultura particular; e que decisões possam se apoiam
em preconceitos culturais, consequentemente.
2.6. VOLTANDO AO PONTO DE PARTIDA: ANENCEFALlA
E PERSONALIDADE NO ENTENDIMENTO DO STF
As reflexões de Spaemann e de Dworkin são, então, importantes
para que se possa compreender o problema na sua melhor luz.
26 Basta ver a afirmação de Luís Roberto Barroso: "O princípio da dignidade
da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado
a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto com a
liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsis-
tência". (BARROSO, 2007, p. 15)
50
Sendo assim, se uma pessoa é uma construção social, um indi-
víduo dotado de atributos que encerram sua personalidade - dentre
eles a capacidade de reconhecimento, de comunhão de iguais direitos
e de liberdade de configuração do seu projeto de vid~ -, o que se
pode dizer do nascituro que apresenta anencefalia? E visível que
este não poderá reconhecer pessoas, ou mesmo exercitar os direitos
de que é titular ou sua liberdade de escolha. Neste caso, poderá ele,
mesmo assim, ser considerado uma pessoa?
No raciocínio de Spaemann (2006), a resposta é afirmativa.
Utilizando de uma metáfora o autor alemão diz: não é porque uma
cadeira está quebrada - e por isso, que não sirva para o que ela se
destina - que ela deixará se ser uma cadeira. Ela permanece uma
cadeira, mas agora adjetivada por "quebrada". O mesmo raciocínio
se aplicaria, então, as situações de anencefalia ou mesmo de um pa-
ciente em estado vegetativo com morte cerebral; nesse caso, estamos
diante de uma pessoa doente, mas antes de tudo, de uma pessoa.
Para o pensador alemão, portanto, neurologistas são incapazes
de justificar uma eventual integração dos órgãos sem o encéfalo, o
que os leva a adotar uma visão que associa o cérebro à_mente - ou
mesmo à personalidade - para poder embasar a definição d~ mort~
encefálica como a morte do indivíduo. Mas se a personalidade e
algo distinto da vida ou da existência do ser, ela é autônoma e in-
deper;dente (SPAEMANN,1997). , . , .
E interessante que mesmo como defensor da etica católica,
Spaemann se vê forçado a desconectar personalidade e corpo, a fim
de não cair em uma cilada, defender o cérebro como órgão funda-
mental da vida e matriz da própria personalidade - argumento esse
, que a própria doutrina católica acaba endossando. Se for buscado
em Aristóteles, encontrar-se-à um ponto de divergência, pois para
o sábio de Estagira, a unidade orgânica do ser humano demanda
uma união da ação cognitiva, sensitiva e vegetativa. E para tanto,
caberia ao cérebro a função de órgão de mediação dessas funções.
Como centro do sistema nervoso, é fato que não poderia existir
sozinho, independente das demais partes do organismo, mas estas
também perdem sua condição de manutenção sem ele (relação todo/
parte). Tomás de Aquino, por outro lado, faz uma ligação dinâmica
entre alma (cérebro) e corpo. Deixando o primeiro de funcionar
corretamente - ou nunca vindo a funcionar, como no caso da
anencefalia - o corpo perde a potencialidade de desenvolvimento
51
e morre. O argumento aqui é mais sofisticado que parece. Não se
está afirmando uma equiparação cérebro e personalidade, mas sim,
a impossibilidade biológica de manutenção das demais funções do
corpo caso ele seja "removido". Já Santo Agostinho, irá sim fazer
uma equiparação entre cérebro e alma, inclusive afirmando no seu
Comentário Literal ao Gênesis (Pandectas21) que removendo o primeiro
do corpo, ter-se-ia a automática perda do segundo.
Todavia, algumas colocações merecem ser feitas:
Primeiramente, Spaemann avançamuito com relação ao debate
travado no Supremo Tribunal Federal brasileiro quando reconhece a
personalidade como algo distinto da humanidade. A personalidade,
ainda que coincidente cronologicamente com a existência biológica,
não se confunde com esta; além disso, enxerga-a como uma cons-
trução social, vencendo as teses naturalistas esposadaspelo STF e
dotando de mais jusfundamentalidade o argumento em defesa da
preservação da gestação.
Contudo, a solução para o problema do especismó acaba se
transformando em outro problema. Ao fundamentar a dignidade
em bases teológicas, Spaemann retrocede em seu raciocínio e acaba
por assumir claramente posiçõesjusnaturalistas, em nada diferentes
do raciocínio já levado a cabo pelos juristas brasileiros ou pelos
ministros do STF. Ora, apelar para soluções como a que ele lança
mão, acaba por enfraquecer o argumento. Não se pode esquecer
nunca que a sociedade contemporânea é secularizada, de modo
que tais argumentos com dificuldades "sobreviveriam" após serem
submetidos a uma esferapública plural."
, E por fim, o processo de reconhecimento da personalidade em
Spaemann merecia ainda maiores detalhamentos, pois se mostra
como a sua grande contribuição para um debate público racional e
27 "linguagem religiosa não é mais simplesmente consolatória, não se refere
apenas à esfera privada dos indivíduos, nem mesmo cumpre uma função
tão-somente no interior da Lebenswelt ('mundo vita!'), mas exprime razões,
ocupa um espaço na 'esfera pública polifônica'. Confinar Deus exclusivamente
no âmbito privado da própria consciência significa esterilizar a contribuição
que a religião pode oferecer ao desenvolvimento da sociedade civil. O pro-
cesso de secularização deveria, então, cumprir-se não de forma destrutiva,
mas na forma de tradução: 'Traduzir a ideia de um homem criado à imagem
e semelhança de Deus, na ideia de uma igual dignidade de todos os homens,
de respeitar-se incondicionalmente, constitui um exemplo de tal tradução
preservadora'" (BECCHI, 2008).
52
maiores críticas a seu funcionamento acabam por fugir e ultrapassar
28o escopo do presente texto.
-e- Sinteticamente, o reconhecimento é posto por Spaemann a par-
ti de uma interação pacífica, espontânea, na qual um sujeito aceita
aI~ersonalidade e a alteridade do outro. Todavia, desde Hegel- na
sua dialética do senhor e do escravo - a questão do recon;eclI~ento
não escapade uma luta - àsvezes até mesmo em seu senti o propno,
. I' . 29ou seja, com VIOenCIa. . _ ,
Assim, cabe questionar: em que condições tal ser - o anencefalo
- poderia reivindicar publicamente reco~hecimento e.dIreIt~s,caso
isso lhe fosse negado no âmbito da SOCIedade?E mais, ser~ que o
STF aoproduzir sua decisão liminar, baseou-se no reco,nheClmento
de personalidade ao nascituro ou apenas ~a s~bse.rv~e~cIaa uma
doutrina eclesiástica- subordmando o direito a religião-
Como anteriormente relatado, somente após 8 anos, o STF
voltou-se para o julgamento de mérito da AD~F_n. 54. O Tnbunal
sofreuuma alteraçãosubstancialem sua composiçao: dos onz~mInIS-
tros que decidiram amedida liminar, apenasquatro semantiveram,
sendo substituído por outros julgadores. Assim, OItovotos formam
favoráveisa procedência da ADPF n. 54. . .
Em diversos votos a favor da interrupção da gravidez a teona
de Dworkin foi utilizada, seja para justificar a laicidade do Estado
(comofeito peloMin. Marco Aurélio), sejapara afir:na~a necessidade
do Tribunal desenvolver uma interpretação dos pnncIpIOsv~ltada a
garantia da efetividade dos direitos fundamentais (como feito pela
Min. Cármen Lúcia). , .
Contudo, a questão não ficou suficiente clara para o cenar:o
jurídico brasileiro, que ainda se mostra inseguro acerca da correç_ao
da decisão prolatada pelo STF. Assistimos a movimentos de reaçao,
principalmente, por concepções equivocadament: tomadas pelo
conteúdo ético-religioso, principalmente no Legislativonacional q~e
buscam superar o estabelecido pela decisão por meio da elaboraçao
28 B se as obras.l) HONNETH Axel. Luta por reconhecimento:A gramá-asta recorrer-. , , . h .
. I d ·Il"t . '. ou 2) TAYLOR Charles. A politica do recon eamento.tlca mora os conJd os SOCIaIS, ,
29 Nesse sentido, não há como discordar de Habermas (2002) quando afirma
. I idade do movimento feminista por direitos e na forma como estea smgu an A • d .. da e da
conseguiu traduzir muito bem a interdependência a autonomia pnva
autonomia pública.
53
de legislações inversas (como é o caso do malfadado "Estatuto do
N . "30) R -ascituro . eaçoes como estas servem para demonstrar com
clareza que a questão é mais complexa que parece e não pode ser
assumida publIcamente - sob pena de perda de racionalidade dis-
cursiva - de modo maniqueísta.
O presente texto não tem o escopo de produzir uma reflexão
exaus.tiva, muito pelo contrário, o que se procurou aqui foi levantar
questIOnam,entos e iluminar as aporias existentes no discurso jurídico
e na sistematica de decisão jurisdicional.
.Fato é que as posições comumente assumidas pelos juristas
brasileiros deixam de lado a importância de se proceder a uma com-
~reensão adequad~ do papel do direito moderno, sendo atraídos pelo
canto das sereias", mas sem os cuidados e a sagacidade de Ulisses.
REFER~NCIAS
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CONTEUDO-55216>. Acesso em 31 de janeiro de 2008.30 A proposta original, de autoria dos deputados federais Luiz Carlos Bassuma
e Miguel Martini, defendia a alteração do Código Penal brasileiro para
con.slderaro aborto como cnrne hediondo, proibir em todos os casos, além de
~rOJblro congelamento, descarte e comércio de embriões humanos, com a
uruca finalidade de serem suas células transplantadas em adultos doentes.
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A DESCONSIDERAÇÃO pA PERSONALIDADE
JURIDICA NO NOVO CPC:
Aspectos procedimentais e o devido processo constitucional
Helena Guimarães Barrete' 3
3~.NOÇaESINTRODUTORIAS
o NOVO CPC (Lei n. 13.105/15) inovou em nosso orde-
namento jurídico" ao fazer a previsão acerca do procedimento de
desconsideração da personalidade jurídica. Até a edição do Novo
Código de Processo Civil havia previsão apenas do direito material
aplicável,' não existindo normas de direito processual que regula-
mentassem a aplicação do instituto em um processo judicial.
I Mestre em Direito Processualpela Pontificia Universidade Católica de Minas
Gerais - PUC Minas. Professora dos Cursos de Pós-Graduação em Direito
Processual Civil do Centro de Atualização em Direito (CAD/FUMEC); da
Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC) e do Instituto Elpídio Do-
nizetti (IED). Professora dos Cursos de Pós-Graduação do IDDE - Instituto
para o Desenvolvimento Democrático/Universidade de Coimbra - Portugal.
Professora de Processo Civil da Fundação da Escola Superior do Ministério
Público de Minas Gerais (FESMPMG). Advogada.
2 Apesar do NOVO CPC ser o primeiro instrumento jurídico a processualizar
o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. o Projeto de Lei n.
2.426/2003. que tramitou mais de 10 (dez)anos no Congresso Nacional e foi
arquivado. tendo em vista a incorporação de vários dos seus dispositivos pelo
NOVO CPC, tentou regulamentar a aplicação do instituto. Em síntese, o
referidoProjeto apresentou asseguintes diferençasem relaçãoaoNOVO CPC:
(1)Previsão expressada aplicação da desconsideração para ajustiça comum e
para ajustiça do trabalho; (2)Possibilidadedo juiz aplicara desconsideraçãode
oficio; (3)O requerimento de postulação da desconsideração deveria indicar
necessariamente os atos praticados e as pessoas dela beneficiadas. (4)A ins-
tauração do incidente seria feita em autos apartados; (5) "Amera inexistência
ou insuficiência de patrimônio" não autorizaria a desconsideração.
3 Na legislaçãobrasileira, há a previsão em quatro dispositivos legais acerca da
desconsideração da personalidade jurídica, variando os requisitos para sua
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