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Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO Filosofia Prof. Irenio Silveira Chaves INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO “É propriamente ter os olhos fechados, sem jamais tentar abri-los, viver sem filosofar; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa visão descobre não é comparável à satisfação proporcionada pelo conhecimento daquelas que encontramos por meio da filosofia.” René Descartes. O que é Filosofia? Está aí algo difícil de se responder ou explicar. Esta pergunta jamais foi respondida adequadamente em toda a história do pensamento humano. A primeira tentativa foi dada pelos chamados pitagóricos, o grupo de pensadores gregos ligados ao matemático Pitágoras (no séc. VI a.C.). Eles se reuniam para degustar vinhos e praticar música, além de tratar de temas ligados à observação dos fenômenos naturais através dos números. Pitágoras foi o primeiro a usar a palavra “filósofo” para designar o que ele seus amigos faziam. Eles não foram os primeiros filósofos, pois a Filosofia já existia há algum tempo. A definição que formularam serviu para descrever o que se fazia por esses vários grupos que se formaram na Grécia antiga e que acabou se espalhando pelo Ocidente de um modo geral. A palavra vem da junção dos termos gregos filo (que quer dizer “amante” ou “amigo”) com sofos ou sofia (que significa sabedoria). Eles se diziam “amantes da sabedoria”. filo + sofos = filósofo => amante da sabedoria Posteriormente, Platão, que era do século V a.C. – um dos principais filósofos de todos os tempos –, afirmou: “A Filosofia é a alma pensando em si mesma”. Ele tinha a ideia de que havia duas instâncias que envolvem a natureza: uma, da ordem física, material; outra da ordem das ideias, acessada pelo pensamento. A palavra grega que usou para descrever aquilo que chamamos de alma é pisque, que deveria ser melhor traduzida como “mente”. Quando suas obras foram traduzidas para o latim, a palavra usada para “alma” foi ratio, que quer dizer “razão” ou “pensamento”. Psique em grego = alma ou mente Ratio em latim = razão ou pensamento Immanuel Kant, filósofo alemão do século XVIII, disse que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para conhecer e agir com o fim de se alcançar a felicidade. Posteriormente, já no século XX (século passado, portanto), o filósofo alemão Martin Heidegger afirmou que a “Filosofia é o pensamento que se pensa”. Ou seja, a Filosofia põe o pensamento em questão, interessa a ela as possibilidades do pensamento e os caminhos que ele precisa percorrer para construir um raciocínio ou uma ideia. Outro filósofo importante pensador, o filósofo francês Gilles Deleuze firmou, em seu livro O que é Filosofia?: “filosofia é pensamento”. Isso nos remete àquilo que Antonio Gramsci, filósofo italiano que foi preso durante o fascismo da Segunda Guerra Mundial, afirmou: “todos os homens são filósofos” na medida em que, de algum modo, todas as pessoas, sem distinção, lidam e convivem com a Filosofia e a utilizam no seu cotidiano, mesmo que não deem conta disso. Se todas as pessoas pensam e a filosofia é pensamento, logo todas são filósofos. Não dá para saber com exatidão o que a Filosofia é, mas dá para se saber o que ela não é. A Filosofia não é: - Não é uma ciência. Ela não tem um objeto único de conhecimento. Sua preocupação é sempre com a totalidade. - Não é uma doutrina. Ela não se resume a uma definição ou a uma fórmula. Sua forma de construção é através do diálogo e do discurso. - Não é uma crença. Ela não é um conjunto de afirmações para se acreditar, como formulações de verdade. Suas considerações nascem da dúvida e abrem espaço para novas possibilidades do pensamento. - Não é uma explicação sobre a vida. Ela não é um recurso de autoajuda, embora suas reflexões se voltem para as experiências do cotidiano. - A Filosofia não é um conteúdo ou um saber a ser transmitido, mas uma relação com o pensamento. Filosofia é, de fato, uma atitude que corresponde à reflexão crítica da realidade. Ela envolve uma reflexão, que diz respeito ao modo como o pensamento se constrói através de idas e vindas. Tal como uma FILOSOFIA / Irenio Chaves 2 imagem refletida no espelho, uma ideia formulada é lançada ao outro que a remete de volta modificada, elabora, transformada. Ela envolve também uma crítica, que é a capacidade de pensar por si mesmo. É um engano pensar que criticar tem a ver com falar mal ou apontar defeitos das coisas. Na verdade, criticar tem a ver com a formulação de um juízo próprio sobre as coisas. E ela envolve também a realidade, que é a interpretação que fazemos do real. A realidade não corresponde ao real, visto que este está ali dado. A realidade é o modo como percebemos o real, de forma sempre atravessada pelos saberes, pelas influências e pelas imposições de nossas relações. Essas relações são sempre histórica, social e culturalmente construídas. Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, entendia que por traz de uma realidade há sempre uma outra realidade que deve ser buscada, perseguida, compreendida e pensada. E é dessa “outra realidade” que a Filosofia está à procura. O esforço para a explicação da realidade pela Filosofia se baseia na capacidade intelectual do homem com base na razão. A reflexão filosófica, portanto, depende da capacidade de indagar, de questionar e de problematizar. Ela se dá a partir de algumas questões orientadoras: - O quê? Procura entender a natureza e a essência das coisas. - Como? Procura entender o modo como as coisas se originaram. - Para quê? Procura entender a finalidade e o propósito das coisas. Agora, chegou a hora de se perguntar: para que serve isso? Para que serve a Filosofia? Desde a sua origem, a Filosofia se apresenta com algumas características que a diferencia de outras formas de conhecimento, como a ciência e a religião. E isso se dá pelo fato de que, na abordagem filosófica, o problema é examinado em sua complexidade total. Na ciência, há uma tendência cada vez mais para a especialização e, na religião, a solução de um problema visa à experiência com o sagrado. A Filosofia quer superar a fragmentação do real enquanto que a ciência precisa reduzir seu objeto de estudo à menor unidade possível observável e a religião precisa vincular o saber a um conteúdo revelado. A Filosofia aborda a questão relativa à totalidade do objeto como reflexão crítica a respeitos dos fundamentos do seu conhecimento. Immanuel Kant considerava que “não se estuda filosofia. Filosofa-se”. A Filosofia não possui um conteúdo que lhe é próprio e, nessa medida, acaba se envolvendo com todos os conteúdos das demais formas de conhecimento. Dito de outro modo: filosofar é dar sentido à experiência. A atitude filosófica é sempre questionadora, problematizadora e investigativa. Isso quer dizer que ela não aceita qualquer afirmação como verdade sem antes investigar. Para Platão, essa atitude nasce da admiração ou do espanto, representado pela palavra pathos em grego. Entretanto, não estamos falando de uma atitude de surpresa ou de admiração diante daquilo que é fantástico, misterioso ou inexplicável. Segundo Aristóteles, filósofo grego do século IV a.C., “os homens começam e começaram sempre a filosofar movidos pelo espanto [...] Aquele que se coloca uma dificuldade e se espanta reconhece a sua própria ignorância [...] De sorte que, se filosofaram, foi para fugir da ignorância”. Esse espanto corresponde a perceber uma nova realidade dentro daquela já conhecida, muito mais ampla, complexa e profunda. A filósofa brasileira Marilena Chauí escreveu que essa atitude de admiração ou espanto é, na verdade, “tomarmos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento,olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes [...]”. Nesse sentido, a Filosofia não tem um sentido de utilidade, se julgarmos apenas pelos resultados ligados a uma mentalidade consumidora, em busca de realização pessoal ou de explicações provisórias para a vida. Mas, quando se leva em consideração o fato de que desejamos superar a ingenuidade e as ideias dominantes para se buscar um sentido de liberdade e de felicidade que seja válido para todos, “então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes”, conforme afirmou Marilena Chauí. Qual a origem da Filosofia? A Filosofia tem uma data de nascimento, um local de nascimento, um primeiro autor e um primeiro método. - Data de nascimento: Século VII a.C. - Local de nascimento: cidade de Mileto, na região Jônica da Grécia. - Primeiro autor: Tales. - O primeiro método filosófico: a cosmologia. Os primeiros filósofos se caracterizaram por uma abordagem sobre os fenômenos da natureza. Eles desenvolveram um método de investigação racional, que conhecemos como cosmologia, com o qual procuravam compreender a constituição do Universo. A palavra grega cosmos se refere ao modo como as coisas estão organizadas na Natureza. Eles queriam FILOSOFIA / Irenio Chaves 3 saber como seria possível o Universo ter surgido do caos ou, em outras palavras, como o mundo ordenado teve seu princípio. A pergunta pela causa primeira de todas as coisas, que em grego é arché, era o cerne da investigação da Filosofia. A cosmologia, portanto, é um método filosófico e científico que procurava investigar os fenômenos naturais a partir da observação dos próprios fenômenos para compreender a sua causalidade (lei de causa e efeito), a fim de encontrar a causa primeira de todas as coisas, que os gregos chamavam de arché ou princípio. Tales, através da cosmologia, defendeu a ideia de que tudo o que há na natureza depende da água. Sua teoria foi muito criticada à época, mas o fato é que ainda hoje a pesquisa sobre se há vida em outros planetas gira em torno da descoberta da água. A Filosofia surgiu primeiramente entre os gregos. Porém, é um pouco arriscado afirmar que a filosofia surgiu exclusivamente entre os gregos. Outras civilizações também formularam formas de pensar significativas, como os chineses, os babilônicos e também a tradição hebraica-judaica. Só que essas formas estavam vinculadas a um saber religioso. Os gregos, no entanto, reuniram num determinado momento uma série de fatores que contribuíram para a formação do que chamamos de atitude filosófica. Segundo Hegel, em sua Introdução à História da Filosofia, entende que os gregos desenvolveram uma forma de pensar aberta para o universal e a universalidade. Diz ele: “Chega a época para um povo, em que o espírito quer apreender o universal, e se empenha em pôr os objetos da natureza sob as determinações gerais do intelecto: de conhecer, por exemplo, as causas das coisas.” A civilização grega se constituiu através da migração de povos que se instalaram na península macedônica, desde antes do século XII a.C., a maioria vindos das regiões mais ao norte, implantando núcleos urbanos que promoveram a ocupação do território e a defesa contra invasores. Eles chamavam o conjunto de suas cidades de Hélade ou de helênicos. Num primeiro momento, a ocupação se deu na região que ficou conhecida como Ática (a atual península macedônica) e se baseou principalmente na habilidade da guerra, na atividade econômica da agricultura e no desenvolvimento da navegação. Posteriormente, principalmente após o século XI a.C., os gregos expandiram-se para as ilhas do Mar Egeu e para a Ásia Menor, que compreende a atual Turquia. Essa região é que ficou conhecida como Jônica, por ter sido ocupada anteriormente pelos Jonos. Nessa fase, desenvolveram a diplomacia e a habilidade do comércio entre os povos. * Veja o Anexo I. Podemos considerar alguns elementos históricos que contribuíram para que a civilização grega desenvolvesse a atitude filosófica: a) Sua organização política através da polis – as cidades-estados gregas – que possuíam organização própria e formas autônomas de segurança e subsistência. b) Sua organização econômico-financeira, com base na moeda e o comércio com outras nações. c) O intercâmbio cultural com outros povos, não só por meio da expansão territorial como também através das rotas comerciais. d) O desenvolvimento da arte e da literatura. A civilização grega experimentou uma expansão maior por volta do século IV a.C., com o império de Alexandre, o Grande, abrangendo desde a península itálica até a região persa (que hoje corresponde ao Irã) e o norte da África. Após a morte de Alexandre, porém, o império foi divido em quatro partes e caminhou para o seu declínio. Com o fortalecimento do poder de Roma, o império romano se apropriou do território grego e de sua cultura, por volta do século II a.C., adotando também a Filosofia. Isso fez com que a Filosofia se tornasse o modo de pensar característico do Ocidente. Desse modo, quando se fala de pensamento ocidental ou de cultura ocidental, se faz referência à Filosofia como sua base e fundamento. A Filosofia que se estuda no ambiente acadêmico, portanto, é grega e ocidental. Grega por ter se originado na Grécia e ocidental por ter se tornado o modo de pensar característico do Ocidente. A Filosofia está associada também à vida urbana, às relações políticas e às questões que emergem do diálogo entre aqueles que não se contentam com as explicações dadas pela tradição. FILOSOFIA / Irenio Chaves 4 A atitude filosófica: A atitude filosófica procura se posicionar frente àquilo que tem se apresentado como verdades de nossa vida cotidiana. Por essa razão, a Filosofia não aceita as ideias como verdadeiras sem antes pensá-las e questioná-las. Ela sempre indaga com o objetivo de encontrar o verdadeiro problema e investiga de forma racional sobre os assuntos de nosso cotidiano. O papel fundamental da Filosofia é problematizar, investigar de forma crítica o saber instituído. A atitude filosófica põe o pensamento em questão. Para isso, torna-se radical no sentido de busca os conceitos fundamentais usados em todos os campos do pensar e agir. Em sua atividade investigativa, o filósofo dispõe de um método claramente explicitado, sempre visando o todo, a totalidade. Essa maneira de investigar que é própria da Filosofia se opõe ao que podemos chamar de atitude mítica. Na Antiguidade, antes do estabelecimento da Filosofia enquanto saber racional, os mitos eram a principal forma de compreensão da realidade, da origem do universo e do funcionamento da natureza. O significado de mito vem do grego mythos, que quer dizer narrativa. Não se trata de uma mera mentira, ficção ou fantasia, principalmente se levarmos em consideração o fato de que as civilizações antigas não detinham as informações que possuímos nem os recursos de que dispomos hoje para conhecer. O mito, portanto, pode ser definido como um conjunto de narrativas ou de histórias contadas com o fim de servir de explicação para os fenômenos e até de alento para as pessoas. O que hoje conhecemos como mitologia grega diz respeito ao conjunto de narrativas que procurava dar um sentido aos fenômenos naturais e uma explicação para as características da condição humana. Isso incluía as cosmogonias, que eram as narrativas ligadas à origem dos fenômenos naturais. E incluía também as teogonias, que eram as narrativas ligadas à origem dos deuses. Essas narrativas foram registradas de forma poética de autores clássicos, como Homero (que escreveu as obras Ilíada e Odisseia) Hesíodo (autor de Teogonias), por voltado século IX a.C. A atitude mítica depende de três fatores: a) autoridade de quem fala; b) passividade; e a c) crença. O saber que se baseava no mito era transmitido pelos sofistas, que eram considerados os mestres na cultura grega. Os sofistas geralmente eram anciãos, governantes, senadores, magistrados ou sacerdotes que detinham para si o domínio sobre o saber tradicional. Os primeiros filósofos enfrentaram uma forte controvérsia com os sofistas em relação à busca da verdade. Enquanto os sofistas ensinavam que a verdade não é um direito dados aos homens, os filósofos afirmam que iriam persegui-la a qualquer custo. A atitude filosófica, embora não rejeite o mito, põe tais narrativas em questão e, a partir delas, desenvolve sua reflexão crítica. A Filosofia, desde seu começo, se ocupa mais do logos, que em grego corresponde a um discurso ou um modo de se referir a uma ideia sobre as coisas. A interrogação dos primeiros filósofos gregos acerca do princípio ou princípios da totalidade do real representa uma dupla característica da atitude filosófica, que são a radicalidade e a universalidade. Formas de conhecimento: A Filosofia iniciou-se com a preocupação com a origem ou a causa dos fenômenos naturais, mas pouco a pouco foi deslocando o centro de seu interesse para a indagação sobre o que conhecemos das coisas. De um modo geral, a preocupação com o conhecimento diz respeito ao modo como reproduzimos em nosso pensamento a realidade. Conhecer alguma coisa nada mais é que representar o que está no exterior do nosso pensamento, é estabelecer uma relação entre a pessoa que conhece e o objeto que passa a ser conhecido. Aristóteles classificou o conhecimento em diferentes tipos: - Theoria – o conhecimento teórico, que consiste basicamente na Filosofia. - Práxis – o saber sobre as relações sociais e econômicas que organizam a dinâmica da vida social, que envolve a política - Poiesis – o saber capaz de transformar as coisas, de dar um novo sentido para a realidade, que diz respeito à ciência. O conhecimento é, portanto, um processo que envolve uma relação entre aquele que conhece e o que é conhecido. No processo de conhecimento, quem conhece acaba por, de certo modo, apropriar-se do objeto do conhecimento transformando aquilo que conhece em um conceito, que é o que permite reconstituir o objeto na mente. O conceito, no entanto, não é o objeto real, mas apenas uma forma de conhecer (ou de apreender, ou de conceber, ou de conceituar) a realidade. O objeto real continua existindo como tal, independentemente do fato de o conhecermos ou não. Para que haja conhecimento é necessário que se estabeleça uma relação entre sujeito e objeto. A FILOSOFIA / Irenio Chaves 5 consciência humana nunca atua passivamente em todo o processo de conhecimento. Por isso podemos afirmar que a consciência se faz presente no conhecimento como reflexão. Existem diferentes formas de se conhecer. Costumamos classificá-las como: - Senso comum, também chamado de conhecimento vulgar: é o entendimento adquirido de forma espontânea que formam os valores, a moral e os costumes. - Conhecimento religioso: um modo de interpretação da realidade em que ocorre o apelo ao sagrado na medida em que fornece segurança e conforto ao homem. É o saber revelado a partir da experiência com o sagrado. - Conhecimento científico: é o conhecimento resultante da investigação objetiva de um fenômeno através de um método que envolve a formulação de hipóteses, a observação, a experimentação e uma proposta teórica. - Conhecimento filosófico: é o saber racional, que visa abarcar a totalidade das coisas. É o saber que pode ser indagado, duvidado e investigado. A maior parte do que conhecemos faz parte do senso comum, que é o modo de se conhecer em que não há o costume de verificar e checar as informações recebidas. Nesses saberes estão incluídos as crenças, os valores e os comportamentos que são repetidos pela maioria. O senso comum é um tipo de saber que exprime sentimentos e opiniões individuais de um determinado grupo, variando de indivíduo para indivíduo, conforme as condições em que se vive. É também o conhecimento que não percebe os fatos relacionados entre si, embora diferentes na aparência. Assim, as ideias desenvolvem-se independentemente umas das outras, opiniões contrárias são submetidas ao mesmo tempo; algo dito agora pode ser negado por outra coisa dita logo depois. É ainda o conhecimento que surge como se não obedecesse a nenhuma determinação da razão, que se faz por imitação e da associação por analogias. O conhecimento científico, por sua vez, procura ir além da simples investigação, razão pela qual se mostra bastante cuidadoso em relação aos critérios de verdade. A preocupação com os critérios de verdade se justifica porque a ciência se interessa, antes de tudo, em provar ou examinar a verdade dos fatos. A ciência não espera respostas definitivas, explicações absolutas. Ao contrário, constrói respostas para os fenômenos observados, mas respostas aproximadas, as quais podem ser corrigidas, modificadas ou substituídas. Filosofia e verdade: Quando tratamos da questão do conhecimento, deparamo-nos com a definição sobre o que é verdade. Nesse aspecto, é preciso salientar que o conceito de verdade sofreu modificações ao longo da história. Karl Jasper, filósofo alemão do começo do século XX, afirmou que a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse. Para ele: “fazer Filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se em uma nova pergunta”. O que é a verdade? Veja alguns conceitos de verdade com a qual a Filosofia já lidou: - A verdade lógica é entendida como a coerência formal do pensamento consigo mesmo, segundo o princípio de não-contradição. - A verdade metafísica é entendida como adequação do pensar (o do dizer o que se exprime) ao ser (adequação do entendimento à realidade). - A verdade como certeza considera toda a ideia que se revele ao pensamento como claro e distinto. - A verdade como objetividade consiste na concordância do pensar com os objetos, os quais devem ser dados na experiência. - A verdade como correspondência afirma que o que é verdadeiro só pode ser através do acordo entre o pensamento e a realidade. - A verdade como totalidade, ou seja, um processo pelo qual o sujeito, mediante a reflexão sobre o objeto, se desenvolve, apropriando-se dele e fazendo dele o seu o seu próprio objeto. - A verdade como relatividade afirma que o sentido verdadeiro é subjetivo. Kant já dizia que “a verdade é um dever para com quem tem direito a ela”. Ele estava preocupado se a verdade pode ser compreendia como coerência ou como correspondência com o real. Na sua crítica à razão pura, vai compreender que “a verdade do objeto é sempre apreendida e substanciada através da verdade do juízo”, ou seja: a verdade é subjetiva. Nietzsche afirmou que “a verdade não significa necessariamente o contrário de um erro, mas somente, e em todos os casos mais decisivos, a posição ocupada por diferentes erros uns em relação aos outros”. Não passa de uma vontade de verdade. Por meio da linguagem, somos capazes de criar um mundo de ficções e de interpretações que são úteis para a afirmação de nossas relações, de nossa existência e até para o nosso fortalecimento. Dizer que a verdade não existe seria um exagero. Não só ela existe como também as pessoas estão à procura dela. Os gregos usavam a palavra aletheia para FILOSOFIA / Irenio Chaves 6 se referir a ela. Significa “não encoberta”, ou seja, ela se desvela, precisa estar desnuda. Mas isso não acontece de forma natural, exige uma transformaçãodo sujeito. Como afirmou René Descartes, “para pesquisar a verdade, é preciso duvidar, quanto seja possível, de todas as coisas, uma vez na vida”. A verdade se encontra num campo indeterminado entre o sujeito e o objeto; não pertence ao sujeito nem ao objeto, mas a uma instância mediadora que põe o sujeito e o objeto em relação. O discurso verdadeiro é aquele que traz à luz aquilo que está encoberto pelas imposições do saber, naquelas situações de confronto em que somos interpelados. A verdade não é algo em relação a alguma coisa, mas ao que se é diante de si mesmo. Campos de estudo da Filosofia: - A Metafísica – Disciplina filosófica que trata da causa primeira a partir de investigações que estão para além das explicações dadas pela ciência. Ela se interessa pela questão a respeito da essência do ser e das condições de existência no mundo. Desde a filosofia clássica, a metafísica se ocupou com os problemas centrais da Filosofia, como a as categorias ontológicas, o problema dos universais, a relação entre o necessário e o contingente. A partir de Kant, a metafísica passou a ser uma investigação a respeito das formas de se representar o mundo. - A Epistemologia – Estudo sobra as condições em que se dá o conhecimento científico, envolvendo os modos como ele se processa e a consistências de suas formulações teóricas. A reflexão filosófica se dá em torno das possibilidades de formulações hipotéticas, na definição de postulados, no emprego do método e na teoria presente nos diferentes saberes científicos. É, por assim dizer, uma teoria da ciência. - A Teoria do Conhecimento – Estudo acerca da natureza, dos processos e dos limites do conhecimento humano. Ocupa-se com as relações que se estabelecem entre sujeito e objeto. Parte do pressuposto de que o conhecimento é uma atividade do sujeito, que apreende o objeto como representação. - A Filosofia Analítica – Sua investigação se concentra na análise do significado dos enunciados, valorizando a clareza da argumentação e a lógica, envolvendo aspectos específicos acerca do mundo, da linguagem e da mente humana. Seu interesse está voltado para a análise de conceitos como uma forma de elucidar os conflitos de interpretação. - A Lógica – Disciplina filosófica que trata das formas do pensar, tendo em vista as operações que visam verificar o que é verdadeiro ou não. Examina o modo com que o raciocínio se dá, tendo em vista a relação entre as proposições, o equilíbrio na argumentação e a sua validade. - A Ética – Disciplina filosófica que estuda questões relativas à moral. É uma reflexão sobre o que orienta o comportamento humano, tendo em vista o conjunto de normas, valores e princípios que norteiam as relações com o outro. - A Estética – Disciplina filosófica que estuda a natureza do que é belo e que orienta a concepção do que é arte. De um modo geral, se discute aspectos ligados à percepção da beleza, as diferentes expressões artísticas, as formas de criação da obra de arte e a questão sobre matéria e forma no campo da arte. - A Filosofia Política – Campo de investigação filosófica sobre a arte de viver em sociedade. Deriva do termo grego politeia, que correspondia às atitudes relativas à vida na polis (cidade-estado). Trata, portanto, das relações entre o sujeito e a sociedade organizada (o Estado), os modos como as questões morais são tratadas pelo Estado, a natureza e as formas do exercício do poder, questões relativas à justiça, à liberdade e às relações econômicas nas esferas pública e privada. História e desenvolvimento da Filosofia: A Filosofia tem uma história, mas também está presente na história. Isso quer dizer que, nesses vinte e oito séculos de história, muita coisa aconteceu. Falar sobre a história e o desenvolvimento histórico da Filosofia implica conhecer a história do Ocidente Os historiadores têm dividido a história da Filosofia em quatro grandes períodos, que correspondem às idades da história em geral, que são: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Sendo assim, temos os quatro períodos da Filosofia com suas principais características: - Filosofia Antiga – do século VII a.C. ao século V d.C.: A separação entre o pensamento racional e a mitologia, o estudo da natureza, da política, da ética e do ser humano. - Filosofia Medieval – do século V ao século XVI: A possibilidade ou não de conciliar a filosofia com a fé, tentativas de encontrar provas da existência de Deus e da imortalidade da alma, relações entre alma e corpo, verdade da razão e verdades da fé (dogmas). - Filosofia Moderna – do século XVII à primeira metade do século XIX: O ser humano como centro do entendimento, afirmação da razão suficiente e da capacidade de o homem construir seu próprio futuro. FILOSOFIA / Irenio Chaves 7 - Filosofia Contemporânea – da segunda metade do século XIX até hoje: Negação de um sentido à vida humana, crítica à sociedade capitalista, à vaidade de achar que tudo pode ser controlado pela nossa consciência e à moralidade hipócrita. A busca por uma solução de conciliação entre a liberdade individual e a vida em sociedade. Estes períodos, no entanto, também podem ser subdivididos em outros, que correspondem às principais tendências do pensamento e da reflexão filosófica. Períodos da história da Filosofia: I – Filosofia Antiga: - Período Pré-Socrático (Séc. VII a.C.-Séc. V a.C.) – Surgimento dos primeiros filósofos influenciados pela cosmologia. Principais pensadores: PARMÊNIDES e HERÁCLITO. - Período Clássico (Séc. V a.C.-Séc. IV a.C.) – a filosofia se volta para a preocupação com o conhecimento. Principais pensadores: SÓCRATES, PLATÃO e ARISTÓTELES. - Período greco-romano (Séc. IV a.C.-Séc. V d.C.)-– influenciado pelas ideias dos pensadores clássicos e marcado por correntes filosóficas como o estoicismo e o hedonismo. Principais pensadores: SÊNECA, EPICTETO, MARCO AURÉLIO e PLOTINO. - Período Patrístico (Séc. I d.C-Séc. V) – Aproximação entre o pensamento greco-romano e o pensamento judaico-cristão, através dos primeiros padres da igreja. Principais pensadores: CLEMENTE DE ROMA, IRINEU, ORÍGENES e AGOSTINHO. II – Filosofia Medieval: - Período Escolástico (Séc. V d.C.-Séc. XIV) – Dominado pelo pensamento cristão. Principais pensadores: AGOSTINHO e TOMÁS DE AQUINO. - Período Renascentista (Séc. XV-Séc. XVI) – Marcado pelo surgimento do Humanismo. Principais pensadores: THOMAS MORE, ERASMO e MAQUIAVEL. III – Filosofia Moderna: - Período Racionalista (Séc. XVII) – Mudança de paradigma da Modernidade: a ideia da razão suficiente. Principal pensador: RENÉ DESCARTES. - Período Iluminista (Séc. XVIII) – Pensamento crítico. Principal pensador: IMMANUEL KANT. - Período Idealista (início do Séc. XIX) – auge da Modernidade. Principal pensador: G. HEGEL. IV – Filosofia Contemporânea: - Período de Crítica à Racionalidade (segunda metade do Séc. XIX) – Críticas ao paradigma da Modernidade. Principais pensadores: MARX, FREUD e NIETZSCHE. - Período Fenomenológico-existencial (início do Séc. XX) – Surgimento do método da Fenomenologia e da corrente filosófica existencialista. Principais pensadores: EDMUND HUSSERL, MARTIN HEIDEGGER e MAURICE MERLEAU-PONTY. - Período Pós-Moderno (Após 1960) – Crítica ao projeto da Modernidade. Principal pensador: MICHEL FOUCAULT. * Veja o Anexo II. FILOSOFIA / Irenio Chaves 8 Anexo I: Origem do pensamento ocidental Século XII a.C. Século IX a.C. Polis – cidades-estados A Filosofia surgiu na cidade de Mileto, Grécia, no século VII a.C. Região Ática Região Jônica FILOSOFIA / Irenio Chaves 9 Anexo II: Desenvolvimento histórico da Filosofia: FILOSOFIA ANTIGA FILOSOFIA MEDIEVALFILOSOFIA MODERNA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA Séc. VII a.C. Séc. V d.C. Séc. XVII Séc. XXI Séc. XIX Ano 0 Período Patrístico (Séc. I d.C-Séc. V) – Aproximação entre o pensamento greco-romano e o pensamento judaico-cristão, através dos primeiros padres da igreja. Principais pensadores: CLEMENTE DE ROMA, IRINEU, ORÍGENES, AGOSTINHO P e rí o d o P ré -S o cr át ic o ( Sé c. V II a. C .- Sé c. V a .C .) – S u rg im en to d o s p ri m ei ro s fi ló so fo s in fl u en ci ad o s p el a co sm o lo gi a. P ri n ci p ai s p en sa d o re s: P A R M ÊN ID ES e H ER Á C LI TO P e rí o d o C lá ss ic o ( Sé c. V a .C .- Sé c. IV a .C .) – a f ilo so fi a se v o lt a p ar a a p re o cu p aç ão c o m o c o n h ec im en to . P ri n ci p ai s p en sa d o re s: S Ó C R A TE S, P LA TÃ O e A R IS TÓ TE LE S. P e rí o d o g re co -r o m an o ( Sé c. IV a .C .- Sé c. V d .C .) -– in fl u en ci ad o p el as id ei as d o s p en sa d o re s cl ás si co s e m ar ca d o p o r co rr en te s fi lo só fi ca s co m o o e st o ic is m o e o h ed o n is m o . P ri n ci p ai s p en sa d o re s: S ÊN EC A , E P IC TE TO , M A R C O A U R ÉL IO . P e rí o d o E sc o lá st ic o ( Sé c. V d .C .- Sé c. X IV ) – D o m in ad o p el o p en sa m en to c ri st ão . P ri n ci p ai s p en sa d o re s: A G O ST IN H O e T O M Á S D E A Q U IN O P e rí o d o R e n as ce n ti st a (S éc . X V -S éc . X V I) – M ar ca d o p el o su rg im en to d o H u m an is m o . P ri n ci p ai s p en sa d o re s: T H O M A S M O R E, E R A SM O e M A Q U IA V EL P e rí o d o R ac io n al is ta ( Sé c. X V II ) – M u d an ça d e p ar ad ig m a d a M o d er n id ad e: a id ei a d a ra zã o s u fi ci en te . P ri n ci p al p en sa d o r: R EN É D ES C A R TE S P e rí o d o Il u m in is ta ( Sé c. X V III ) – P en sa m en to c rí ti co . P ri n ci p al p en sa d o r: IM M A N U EL K A N T P e rí o d o Id ea lis ta ( in íc io d o S éc . X IX ) – au ge d a M o d er n id ad e. P ri n ci p al p en sa d o r: G . H EG EL P e rí o d o d e C rí ti ca à R ac io n al id ad e ( se gu n d a m et ad e d o S éc . X IX ) – C rí ti ca s ao p ar ad ig m a d a M o d er n id ad e. P ri n ci p ai s p en sa d o re s: M A R X , F R EU D e N IE TZ SC H E P e rí o d o F en o m e n o ló gi co -e xi st e n ci al ( in íc io d o S éc . X X ) – Su rg im en to d o m ét o d o d a Fe n o m en o lo gi a e d a co rr en te fi lo só fi ca e xi st e n ci al is ta . P ri n ci p ai s p en sa d o re s: E D M U N D H U SS ER L, M A R TI N H EI D EG G ER e M A U R IC E M ER LE A U -P O N TY . P e rí o d o P ó s- M o d er n o ( A p ó s 1 9 6 0 ) – C rí ti ca a o p ro je to d a M o d er n id ad e. P ri n ci p al p en sa d o r: M IC H EL F O U C A U LT Nascimento de Cristo FILOSOFIA / Irenio Chaves 10 Mito da Caverna SÓCRATES — Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construída um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. Glauco — Estou vendo. Sócrates — Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. Glauco — Um quadro estranho e estranhas prisioneiros. Sócrates — Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais da que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte? Glauco — Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida? Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? Glauco — Sem dúvida. Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com as outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? Glauco — É bem possível. Sócrates — E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? Glauco — Sim, por Zeus! Sócrates — Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados. Glauco — Assim terá de ser. Sócrates — Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curadas da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentas sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os abjetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? Glauco — Muito mais verdadeiras. Sócrates — E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Nãodesviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram? Glauco — Com toda a certeza. Sócrates — E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhas ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? Glauco — Não o conseguirá, pelo menos de início. Sócrates — Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu da que, durante o dia, o Sol e a sua luz. Glauco — Sem dúvida. Sócrates — Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é. Glauco — Necessariamente. FILOSOFIA / Irenio Chaves 11 Sócrates — Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna. Glauco — É evidente que chegará a essa conclusão. Sócrates — Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? Glauco — Sim, com certeza, Sócrates. Sócrates — E se então distribuíssem honras e louvares, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia? Glauco — Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira. Sócrates — Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol? Glauco — Por certo que sim. Sócrates— E se tiver de entrar de nova em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo? Glauco — Sem nenhuma dúvida. Sócrates — Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a ideia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberana da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública. Glauco — Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la. PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural. 2004. Livro VII, p. 225-228.
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