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Apostila Filosofia Corporeidade.pdf

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Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO 
Filosofia 
Prof. Irenio Silveira Chaves 
 
 
CORPOREIDADE 
 
“O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a 
religião. O corpo é uma festa”, Eduardo Galeano. 
 
 
É muito comum a gente pensar que conhece bem 
nosso corpo, seus limites e sua capacidade. O fato é 
que, embora tenha uma relação de pertença com o 
corpo, nossa experiência corporal é marcada por uma 
complexidade de tal modo que a gente pode passar a 
vida inteira sem ter condições de conhecê-lo, sem 
saber como ele funciona, como ele se forma e como se 
transforma. 
Num primeiro momento, poderíamos afirmar que o 
sentido de corporeidade envolve todas as qualidades, 
condições e circunstâncias relativas ao corpo. Por 
corporeidade entendemos as relações do corpo com 
o mundo, com sua existência e com suas formas de 
expressão. Pensar no corpo e suas relações implica o 
sentido de presença no mundo, as relações do sujeito 
consigo mesmo e com outros corpos, bem como as 
interferências do ambiente e das coisas tal qual elas 
também estão dadas no mundo. 
O emprego do termo corporeidade é uma 
construção do pensamento contemporâneo, que 
abandona uma concepção dualista de corpo e mente 
como realidades distintas. Não se trata, porém, de uma 
ideia dissociada da história do desenvolvimento da 
compreensão acerca da relação corpo-mente que 
marcou todo o percurso do pensamento ocidental. 
Corporeidade, portanto, é um construto que se 
refere a uma relação em que o corpo é tratado como 
lugar de realização da existência. Segundo David Le 
Breton, em A Sociologia do Corpo (Petrópolis: Vozes, 
2007), “antes de qualquer coisa, a existência é 
corporal”. Isso tem a ver com a maneira como o sujeito 
se reconhece e como percebe sua condição de 
existência no mundo. Nossa existência, portanto, é 
regida por uma relação de corporeidade. 
Para usar uma conceituação mais acadêmica, 
Giovanina Gomes de Freitas, em O esquema corporal, 
a imagem corporal, a consciência corporal e a 
corporeidade (Ijuí: Unijuí, 1999), diz: “A corporeidade 
implica, portanto, a inserção de um corpo humano em 
um mundo significativo, a relação dialética do corpo 
consigo mesmo, com outros corpos expressivos e com 
os objetos do seu mundo (ou as “coisas” que se elevam 
no horizonte de sua percepção). [...] Mas [o corpo], 
como corporeidade, como corpo vivenciado, não é o 
início nem o fim: ele é sempre o meio, no qual e por 
meio do qual o processo da vida se perpetua”. 
A noção de corporeidade abarca pelo menos seis 
dimensões de nossa relação com o mundo. São elas: 
a) Fisiológica, que abrange as formas de 
funcionamento em uma estrutura física que se 
movimenta em um espaço. 
b) Psicológica, que abrange o campo da afetividade 
e da percepção. 
c) Cultural, que se expressa simbolicamente e está 
inserida dentro de uma realidade social e histórica. 
d) Moral, que trata das relações normativas e os 
valores que orientam a vida social. 
e) Estética, que se refere ao modo como o sujeito 
se mostra é visto, numa perspectiva do belo e de 
como se sente aceito e acolhido pelos outros. 
f) Espiritual, que aponta para abertura para o que 
está além das circunstâncias concretas e desperta a 
busca pelo sentido da vida, a criatividade, a 
superação e a esperança. 
O corpo não é só uma realidade biológica, mas é 
constituído de uma multiplicidade de fatores 
simbólicos que unem aspectos físicos, biológicos, 
culturais e subjetivos. A maneira como se trata a 
relação com o corpo tem a ver como a gente se vê e 
como a gente é visto pelo outro. Corpo e consciência 
se conjugam nas formas de expressão do sujeito. 
 
 Corpo 
Corporeidade 
 Consciência 
 
A noção de corporeidade, portanto, articula um 
duplo sentido: o de que o corpo consiste em uma 
estrutura física na qual se dá a experiência de vida e o 
de que o corpo está inserido num contexto em que se 
percebe e se é percebido, conhece e é conhecido. Isso 
quer dizer que existimos como corpo e existimos 
Fundamentos Filosóficos da Corporeidade / Irenio Chaves 
 
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como consciência de tal forma que uma coisa não 
anula a outra. 
As relações de corporeidade envolvem questões 
ligadas à autoimagem e à identidade, que que 
remetem não só à maneira como somos construídos 
diante do mundo, do outro e de nós mesmos, mas 
também à tensão constante que se dá entre uma 
tendência de generalização, massificação e 
uniformidade e o esforço de afirmação como indivíduo. 
Como diz, David Le Breton (na obra já citada): “Pela 
corporeidade, o homem faz do mundo a extensão de 
sua experiência; transforma em tramas familiares e 
coerentes, disponíveis à ação e permeáveis à 
compreensão. Emissor ou receptor, o corpo produz 
sentidos continuamente e assim insere o homem, de 
forma ativa, no interior de dado espaço social e 
cultural”. 
Maurice Merleau-Ponty (em Fenomenologia da 
Percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1999) afirmou 
que “o corpo é a nossa ancoragem no mundo”. 
Podemos entendê-lo como um locus no qual o sujeito 
manifesta a sua existência no mundo, carregado de 
uma pluralidade de significados, como presença 
sensível e visível. O corpo, portanto, está inserido num 
contexto de interações, de símbolos e de implicações 
históricas e culturais. 
Todo corpo é inerente a processos em que está em 
jogo a consciência que o sujeito tem de si e de sua 
relação de existência no mundo. Os processos que 
estão implicados são: 
a) Interação – que corresponde aos gestos, 
linguagens e símbolos que são constantemente 
interpretados e representados. 
a) Sexualidade – que corresponde as formas de 
expressão do desejo, de nossas escolhas de e de se 
mostrar para o outro. A sexualidade traz 
implicações no que diz respeito à relação de gênero 
e a direitos individuais e coletivos. 
b) Oportunidades – que se referem as formas como 
se dá a relação de poder e até as condições de 
aquisição de bens, formação e serviços. Inclui-se aí 
as discussões em torno da desigualdade social, do 
preconceito e da intolerância. 
c) Conflitos – que dizem respeito às ambiguidades e 
contradições inerentes à afirmação de identidade, à 
assimilação da cultura e à contracultura. 
d) Intencionalidades – que se referem ao fato de 
que nossas crenças, pensamentos e desejos são 
sempre em relação a alguma coisa. 
e) Temporalidade – que permite reconhecer o 
contexto e as circunstâncias temporais em que se 
dá ação, em meio às expectativas, às memórias e o 
sentido de finitude. 
A noção de corporeidade está vinculada à ideia de 
sujeito, ou seja, ela tem a ver com nossa condição de 
pessoas social e culturalmente construídas, uma vez 
que é com o corpo que nos envolvemos de inúmeras 
formas com o trabalho, com a arte, com a saúde, com 
o amor, com o sexo e com toda possibilidade de 
atividade física e social. É através das ações em que o 
corpo está implicado que interferimos na natureza e 
desenvolvemos atitudes significativas que 
proporcionam a descoberta de si e do outro. É, por 
assim dizer, a integração de corpo e consciência na 
unidade do sujeito. 
É preciso ir além de um olhar que se restringe a 
explicar apenas o corpo físico para compreendê-lo 
como produzido e atravessado pela e em meio à 
cultura. E isso é o que propõe a atual reflexão sobre 
corporeidade. 
A partir da noção de corporeidade é possível 
entender o corpo como dotado de uma singularidade 
que somente pode ser compreendida à luz da relação 
com outros corpos. Isso gera um novo modo de 
conhecer o corpo em que está em jogo a pluralidade de 
corpos e a pluralidade de relações que estão nele 
implicadas. Desse modo, a corporeidade permite 
conceber o corpo como lugar de existência, que se vela 
e se desvela, que se percebe e é percebido, que se 
reconhece como sujeito e ao mesmo tempocomo 
objeto do conhecimento. 
 
* Leia o texto: “O seu corpo – essa casa onde você não 
mora” (Anexo I). 
Desenvolvimento da noção de corporeidade / Irenio Chaves 
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Anexo I 
O seu corpo – essa casa onde você não mora. 
 
Por Thérèse Bertherat (do livro O corpo tem suas razões, de Thérèse Bertherat e Carol Bernstein. 
São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 11-15). 
 
Neste instante, esteja você onde estiver, há uma casa com o seu nome. Você é o único 
proprietário, mas faz tempo que perdeu as chaves. Por isso fica de fora, só vendo a fechada. Não 
chega a morar nela. Essa casa, teto que abriga suas mais recônditas e reprimidas lembranças, é 
o seu corpo. 
“Se as paredes ouvissem…” Na casa que é o seu corpo, elas ouvem. As paredes que tudo 
ouviram e nada esqueceram são músculos. Na rigidez, crispação, fraqueza e dores dos músculos 
das costas, pescoço, diafragma, coração e também do rosto e do sexo, está escrita toda a sua 
história, do nascimento até hoje. 
Sem perceber, desde os primeiros meses de vida, você reagiu a pressões familiares, sociais, 
morais. “Ande assim. Não se mexa. Tire a mão daí. Fique quieto. Faça alguma coisa. Vá depressa. 
Aonde vai você com tanta pressa…?” Atrapalhando, você dobrou-se como pôde. Para 
conformar-se, você se deformou. Seu corpo de verdade – harmonioso, dinâmico e feliz por 
natureza – foi sendo substituído por um corpo estranho que você aceita com dificuldade, que 
no fundo você rejeita. 
É a vida, diz você; não há outra saída. Respondo-lhe que você pode fazer algo para mudar e 
que só você pode fazer isso. Não é tarde demais para liberar-se da programação de seu passado, 
para assumir o próprio corpo, para descobrir possibilidades até então inéditas. 
Ser é nascer continuamente. Mas quantos se deixam morrer pouco a pouco, enquanto vão 
se integrando perfeitamente às estruturas da vida contemporânea, até perderem a vida pois 
que se perdem de vista? 
Saúde, bem-estar, segurança, prazeres, deixamos tudo a cargo dos médicos, psiquiatras, 
arquitetos, políticos, patrões, maridos, mulheres, amantes, filhos. Confiamos a responsabilidade 
de nossa vida, de nosso corpo, aos outros, por vezes àqueles que não desejam essa 
responsabilidade e que se sentem esmagados por ela; quase sempre aqueles que pertencem a 
Instituições cuja primeira finalidade é a de nos tranquilizar e, portanto, de nos reprimir. (E 
quantos há, independentemente de idade, cujo corpo ainda pertence aos pais? Crianças 
submissas, esperando em vão, durante toda a vida, licença para vivê-la. Menores de idade 
psicologicamente, não ousam nem olhar a vida dos outros, o que não os impede, porém, de 
tornarem-se impiedosos censores.) 
Quando renunciamos à autonomia, abdicamos de nossa soberania individual. Passamos a 
pertencer aos poderes, aos seres que nos recuperaram. Se reivindicamos tanto a liberdade é 
porque nos sentimos escravos; e os mais lúcidos reconhecem ser escravos-cúmplices. Mas como 
poderia ser de outro jeito, se não chegamos a ser donos nem de nossa primeira casa, da casa 
que é nosso corpo? 
Você pode, no entanto, reencontrar as chaves do seu corpo, tomar posse dele, habitá-lo, 
enfim nele encontrar a vitalidade, saúde e autonomia que lhe são próprias. 
Como? Não, certamente, se você considerar o corpo como uma máquina fatalmente 
defeituosa e que o atravanca; como uma máquina composta de peças soltas (cabeça, costas, 
pés, nervos…) que devem ser confiadas cada uma a um especialista, cuja autoridade e veredicto 
são aceitos de olhos fechados. Não, certamente, se você aceitar como definitivas as etiquetas 
de “nervoso”, “insone”, “com mau funcionamento do intestino”, “fraco”, etc. E não, certamente, 
se você procurar fortalecer-se pela ginástica que se contenta com o adestramento forçado do 
corpo-carne, do corpo considerado sem inteligência, como um animal a domar. 
Nosso corpo somos nós. Somos o que parecemos ser. Nosso modo de parecer é nosso modo 
de ser. Mas não queremos admiti-lo. Não temos coragem de nos olhar. Aliás, não sabemos como 
fazer. Confundimos o visível com o superficial. Só nos interessamos pelo que não podemos ver. 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
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Chegamos a desprezar o corpo e aqueles que se interessam por seus corpos. Sem nos 
determos sobre nossa forma – nosso corpo – apressamo-nos a interpretar nosso conteúdo, 
estruturas psicológicas, históricas. Passamos a vida fazendo malabarismos com palavras, para 
que elas no revelem as razões de nosso comportamento. E que tal se, através de nossas 
sensações, procurássemos as razões do próprio corpo? 
Você poderá deixar cair máscaras, disfarces, poses, o “faz-de-conta”, e passar a ser, a ter 
coragem de ser autêntico. 
Você pode livrar-se de uma infinidade de males – insônia, prisão de ventre, distúrbios 
digestivos – fazendo com que trabalhem para você, e não contra você, músculos que até agora 
você nem sabe onde ficam. 
Você pode despertar seus cinco sentidos, aguçar suas percepções, ter e saber projetar uma 
imagem de si mesmo que o satisfaça a que lhe mereça respeito. 
Você pode afirmar sua individualidade, reencontrar sua capacidade de iniciativa, a confiança 
em si mesmo. 
Você pode aumentar sua capacidade intelectual melhorando antes de tudo os impulsos 
nervosos entre cérebro e músculos. 
Você pode desaprender os maus hábitos que o levam a favorecer e, por conseguinte, a hiper-
desenvolver e deformar certos músculos; romper os automatismos do seu corpo e descobrir-lhe 
a eficácia e espontaneidade. 
Você pode tornar-se um poliatleta que, a qualquer momento e em qualquer movimento que 
faça, conta com o equilíbrio, com a força, com a graça do próprio corpo. 
Você pode libertar-se dos problemas de frigidez ou de impotência e, depois de liberto das 
proibições que emanavam de seu corpo, conhecer a rara satisfação que consiste em nele habitar 
realmente. 
Em qualquer idade, você pode livrar-se das pressões que cercam sua vida interior e seu 
comportamento corporal, conseguindo perceber o ser belo, bem feito, autêntico, que você deve 
ser. 
Se lhe falo com tanta convicção e entusiasmo, é porque vejo isso acontecer diariamente. 
 
Desenvolvimento da noção de corporeidade / Irenio Chaves 
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DESENVOLVIMENTO DA NOÇÃO DE CORPOREIDADE NO PENSAMENTO OCIDENTAL 
 
“A alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivente”, Aristóteles. 
 
 
1. Na Filosofia Antiga. 
 
Período Pré-Socrático 
 
Aristóteles reconheceu que foi a partir de Tales de 
Mileto que teve início uma forma de pensar que 
questionava o tipo de saber próprio do pensamento 
mítico, a partir de uma insatisfação com a explicação 
que este tipo de saber apresentava sobre os 
fenômenos naturais. Esta atitude caracterizou o que 
podemos chamar de período pré-socrático, que é 
aquele que foi marcado pelo rompimento com o apelo 
ao sobrenatural e ao mistério para dar lugar a uma 
abordagem filosófico-científica sobre o mundo 
natural, o mundo da physis (natureza, em grego). 
A principal característica desse modo de pensar 
consistia na explicação causal, em que cada fenômeno 
era considerado como um efeito de uma causa natural 
que lhe era anterior. Esse princípio de causalidade 
tinha um caráter regressivo e visava alcançar o que 
esses primeiros filósofos consideravam como princípio 
causador de tudo ou a causa primeira de todas as 
coisas, a arché em grego. Para eles, a natureza como 
um todo é dotada de uma certa ordem, que implicava 
em uma harmonia e uma beleza próprias, que poderia 
ser compreendida racionalmente e explicada 
discursivamente. Eles usavam o conceito de cosmos 
(kosmos, ou harmonia em grego) para se referir à essa 
ordem, que se opõe ao caos (kaos, ou desordem em 
grego). Para explicar essa ordem, faziam uso do logos, 
que é o discurso racional, fundado em uma 
argumentação, que se referia à essência das coisas 
mesmas.Essa argumentação, no entanto, não era feita 
de forma dogmática e retórica, como era a explicação 
mítica. Ela se baseava numa reflexão crítica, cuja 
exigência seria a necessidade de justificativas e 
fundamentações que pudessem ser submetidas à 
análise, e até contestação, de outro pensador. 
Os filósofos pré-socráticos se notabilizaram por 
essa capacidade de investigação dos fenômenos 
naturais a partir dos próprios fenômenos através de 
uma atitude crítica. Além de Tales, destacaram-se 
ainda Pitágoras, Zenão, Demócrito, Empédocles e 
diversos outros que, sem a ajuda de recursos 
tecnológicos avançados e contando apenas com a 
racionalidade, desenvolveram princípios que são 
levados em consideração até hoje e que influenciaram 
na formação de uma nova mentalidade. 
A atuação dos filósofos pré-socráticos, no entanto, 
foi profundamente contestada pelos mestres do saber 
mítico da época, que na Grécia eram chamados de 
sofistas. Eles faziam uso de recursos como a retórica e 
a oratória para ensinar os mitos tradicionais aos jovens 
para formá-los para a vida pública. Geralmente, os 
sofistas eram também políticos, magistrados e nobres 
que tinham a função de transmitir o saber considerado 
válido para a formação da sociedade grega. O ponto 
principal do questionamento dos sofistas aos primeiros 
filósofos dizia respeito ao tema da verdade. Para os 
sofistas, a verdade não era um direito dado aos 
homens, pois correspondia a um saber restrito às 
divindades. Entretanto, os filósofos afirmavam que 
estavam em busca dela a qualquer preço. 
A afirmação de um sofista fez com que a 
investigação filosófica ganhasse um novo sentido, uma 
nova preocupação. Foi Protágoras, sofista do século V 
a.C., quem afirmou: “O homem é a medida de todas as 
coisas”. Isso lembra um princípio humanista de que a 
nossa capacidade de conhecer as coisas é limitada e 
pode variar de acordo com as circunstâncias em que o 
conhecimento se dá. Essa nova preocupação da 
filosofia, portanto, está relacionada sobre a maneira 
como conhecemos e sobre o que conhecemos. 
Dois filósofos pré-socráticos são importantes para 
apontar caminhos para essa nova abordagem. Embora 
suas ideias pareçam opostas entre si e tenham sido 
objeto de uma controvérsia, na verdade elas se 
constituem princípios orientadores que apontaram o 
modo como a filosofia iria tratar do conhecimento. São 
eles Heráclito e Parmênides. 
Heráclito (544-484 a.C.) – Viveu em Éfeso, cidade da 
atual Turquia. Para ele, a nossa experiência de 
conhecimento se dá a partir do movimento e da 
multiplicidade das coisas, uma vez que tudo está em 
movimento, tudo muda. Afirmou que “ninguém se 
banha na água de um mesmo rio duas vezes”, visto que 
não só a água do rio flui como também nossa 
experiência não é mais a mesma. Comparou o 
conhecimento à chama de uma vela, a uma criança que 
brinca e a um rio que flui. Empregou dois termos com 
os quais a filosofia lida até hoje: o primeiro é devir, que 
em grego quer dizer “fluir”; e o segundo é logos, que 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
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pode ser traduzido por “discurso” como também por 
“ideia”. 
Parmênides (540-470 a.C.) – Viveu em Eleia, cidade 
da atual Itália. Para ele, o conhecimento depende da 
aparência, uma vez que a realidade é única, imutável e 
marcada por uma certa continuidade, visto que aquilo 
que aparece permanece. A palavra grega para 
“aparência” é phainomenon. Baseou seu pensamento 
na expressão: “o ser é, o não ser não é”, o que permite 
compreender um princípio de identidade que relaciona 
o ser ao pensar. É por causa dessa relação entre ser e 
pensar que o homem pode conhecer a verdade das 
coisas. 
 
Período Clássico 
 
Essa preocupação com o conhecimento despertou 
o interesse de Sócrates (469-399 a.C.) em investigar o 
que as pessoas de seu tempo tinham certeza a respeito 
do que afirmavam. Ele foi aluno da escola de 
Parmênides, viveu em Atenas e desenvolveu uma 
reflexão filosófica baseada em diálogos com as pessoas 
de seu tempo a respeito de assuntos relativos à 
diversas áreas, especialmente sobre ética e política. 
Para tanto, desenvolveu um método baseado num jogo 
de perguntas que denominou de maiêutica, termo que 
corresponde ao trabalho de parto em grego. Este 
método começava com uma ironia e resultava no 
reconhecimento de que o conhecimento carecia de 
maiores investigações. Por essa razão, ele desenvolveu 
a ideia de que “só sei que nada sei” para se referir à 
necessidade de se buscar a sabedoria. 
O pensamento socrático tratou do conhecimento a 
partir de dois conceitos: (1) o do conhecimento de si 
como princípio de todo saber e (2) o do cuidado de si 
como finalidade do saber. O conhecimento verdadeiro 
é aquele que vem de dentro e que para isso é preciso 
usar a razão. Para conhecer a si mesmo, é preciso 
ocupar-se menos com as coisas e voltar-se para o 
cuidado de si. É preciso conhecer a si para saber como 
construir relações consigo, com o outro e com o 
mundo. 
Esse modo de pensar e seus diálogos o levaram a 
um confronto com algumas autoridades da época que 
o acusaram de desrespeitar as tradições religiosas da 
cidade e de corromper a juventude. A assembleia de 
Atenas o condenou à morte. Quando estava preso, 
seus amigos ainda tentaram convencer a escapar 
daquela condenação, mas ele preferiu agir conforme a 
sua consciência e aceitar a aplicação daquela sentença. 
Antes de sua morte, por ingestão de uma taça de 
veneno, Sócrates proferiu um belíssimo discurso 
conhecido como “A imortalidade da alma” na presença 
de seus discípulos. 
Sócrates não deixou textos escritos. Tudo o que 
sabemos dele estão em relatos de Xenofontes e 
diálogos registrados por Platão, seu mais brilhante 
aluno. Nesses diálogos, Sócrates aparece como um 
personagem através do qual Platão vai construindo 
conceitos que estão ligados às temáticas do 
conhecimento verdadeiro, da moral e da política. 
Platão (428-347 a.C.) também viveu em Atenas e 
fundou sua escola filosófica à qual chamou de 
Academia. 
O pensamento platônico trata o conhecimento a 
partir da concepção da realidade como dominada por 
duas esferas contrárias: o mundo sensível, dos 
fenômenos da physis (natureza, em grego), e o mundo 
das ideias, inteligível e acessado pela psyche (alma, em 
grego). O mundo sensível é percebido pelos sentidos e 
por essa razão comporta a ilusão e o engano, podendo 
levar ao erro, uma vez que as coisas se mostram de 
formas múltiplas e mutáveis. O conhecimento 
resultante dos sentidos é marcado pela opinião e pela 
crença. Acima desse mundo ilusório está o mundo das 
ideias, onde estão as essências imutáveis, ao qual 
atingimos pela contemplação da alma, superando o 
engano dos sentidos. Há, portanto, uma dialética 
fundada em ideias contrárias que exige que a alma se 
liberte das coisas aparentes e se eleve até as ideias 
verdadeiras. 
Sendo assim, o corpo é uma prisão da alma e, por 
isso, deve ser disciplinado para que a alma alcance as 
ideias verdadeiras. O sentido de alma aqui tem a ver 
com a mente e o pensamento. Todo problema humano 
para Platão consiste num dilema em que está em jogo 
uma alma suprema e racional e um corpo irracional que 
é sede de corrupção, apetites e paixões. A alma 
superior precisa exercer controle sobre o corpo para 
que esse alcance uma condição moral adequada. 
Encontramos nessa maneira de pensar a primeira 
concepção de corporeidade do pensamento ocidental, 
que vamos chamar de dualismo psicofísico, pois 
corresponde à relação alma-corpo ou mente-corpo 
como realidades contrárias. É a dupla realidade da 
mente separada do corpo. Esse conceito está ligado à 
máxima grega “mente sã em corpo são” e estará 
presente na maior parte do tempo e ainda interferirá 
nas formas de pensamento na contemporaneidade. 
 
* Leia o texto: “O Anel de Giges” (Anexo II). 
 
Aristóteles(384-322 a.C.), que foi aluno de Platão, 
criticou o seu mestre com relação ao conceito de 
mente-corpo como esferas contrárias. Ao retomar a 
reflexão sobre o conhecimento, ele afirmou que a 
ciência é a forma de conhecimento verdadeiro, que se 
dá através das causas, e que é suficiente para superar 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
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o engano bem como de compreender a dinâmica do 
devir. Reafirmou o dualismo psicofísico, mas rejeitou a 
concepção de realidades contrárias entre o mundo 
inteligível e o mundo sensível. Para ele, a alma tem a 
forma do corpo, que faz com que este interaja com o 
mundo através dos sentidos, da intuição e da 
consciência. No seu texto Sobre a alma, ele afirmou 
categoricamente que a alma é a forma e a perfeição de 
um corpo. A alma unifica o corpo. O corpo realiza ao 
mesmo tempo a função de sujeito e matéria enquanto 
que a alma é necessariamente uma forma específica de 
um corpo natural que tem vida em potência. 
Na base do pensamento aristotélico, tudo tende a 
uma mudança, a um devir constante. Sua concepção 
está firmada na ideia de que tudo o que existe possui 
uma substância individual, que por sua vez 
corresponde a uma essência, que são características ou 
atributos principais que fazem com que as coisas sejam 
o que são. A substância é aquilo que uma coisa é em si 
mesma e a essência tem a ver com aquilo que faz com 
que uma coisa seja o que é. As características 
essenciais do ser são necessárias, que são aquelas que 
não pode deixar de possuir, caso contrário deixa de ser 
o que é. Porém, esse mesmo ser possui características 
que são contingentes, visto que são varáveis e 
mutáveis. 
Para compreender essa relação, Aristóteles 
desenvolveu a noção de matéria e forma. A matéria é 
aquilo de que as coisas, no mundo físico, são formadas 
ou aquilo de que algo é feito. É pura passividade e 
contém a forma em potência. A forma, por sua vez, é 
aquilo que faz com que as coisas se tornem o que elas 
são. É o princípio inteligível, a essência de uma coisa. 
Todo ser é constituído de matéria e forma de maneira 
indissociável, de tal modo que tudo que existe tem em 
si a possibilidade de mudar. 
Aristóteles desenvolveu também a noção de ato e 
potência. O ato é aquilo que é e potência é o que pode 
vir a ser. Todas as coisas existem primeiramente em 
ato e trazem em si a potência de vir a ser outra coisa. 
Uma coisa pode ser una e múltipla, visto que para que 
possa transformar-se em algo é preciso que sofra a 
ação de outro ser que já existe em ato. Ele usou o 
exemplo da semente do carvalho que possui em si a 
potência de vir a ser uma árvore. Porém, essa potência 
foi gerada por uma árvore de carvalho em ato. 
Dentro de sua concepção, o homem é sobretudo 
um ser pensante que deve dirigir suas ações pela razão, 
mas também o concebe como um ser político que deve 
guiar-se a partir das relações com o outro dentro dos 
limites da vida em comum. A ação humana deve 
orientar-se pela aquisição de virtudes, que consiste 
num meio termo em direção ao bem. 
Aristóteles produziu uma vasta obra filosófica. 
Dentre as principais, encontram-se tratados relativos à 
metafísica, à ética, à obra de arte, à lógica e à política. 
Trata-se de um pensador que inspirou a Filosofia 
apontando-lhe caminhos que são levados em 
consideração até hoje. 
 
Período greco-romano 
 
Na verdade, o pensamento de Platão e de 
Aristóteles se constitui em duas diretrizes que vão 
marcar o período clássico da Filosofia e irão orientar 
toda a produção filosófica desde então. O platonismo 
e o aristotelismo serão tratados como dois eixos 
principais que vão inspirar o pensamento nos períodos 
seguintes e ainda servirão de base para as reflexões 
filosóficas até os dias atuais. 
Dentre os acontecimentos após o período clássico, 
ocorreu o que chamamos de período helênico ou 
greco-romano, marcado pelos movimentos filosóficos 
decorrentes da abordagem platônica e aristotélica, 
como o estoicismo, o hedonismo e o ceticismo. Esses 
movimentos inauguram uma nova perspectiva 
filosófica, voltada para a moral que não está 
diretamente relacionada ao conhecimento de si, à 
relação com o outro ou à vida na sociedade (na polis), 
mas em relação ao universo. O problema moral está 
ligado à necessidade natural do mundo. A maneira de 
se encontrar felicidade não está mais na realização da 
ação concreta na direção do outro. Num tempo em que 
a sociedade greco-riomana experimentava a 
decadência política e a crise social, a felicidade só 
poderia ser encontrada retirando-se da vida social, 
encontrando em si mesmo a tranquilidade da alma e a 
autossuficiência. 
Epicuro (341-271 a.C.), um dos pensadores do 
hedonismo, desenvolveu uma filosofia cujo objetivo 
era o de se atingir a felicidade, estado caracterizado 
pela aponia, a ausência de dor física, e a ataraxia ou 
tranquilidade da alma. Seu pensamento é considerado 
como naturalista, uma vez que o homem, a exemplo 
dos animais, busca afastar-se da dor e aproximar-se do 
prazer. Com isso, seria possível identificar o que é bom 
ou ruim. O pensamento de Epicuro serviu de base para 
o movimento hedonista. A busca pela felicidade é 
marcada pela existência de dores e prazeres. Quanto 
às dores físicas, nem sempre seria possível evitá-las, 
embora não sejam duradouras e possam ser 
suportadas com as lembranças de bons momentos que 
o indivíduo tenha vivido. Piores e mais difíceis de lidar 
são as dores que perturbam a alma. Essas podem 
continuar a doer mesmo muito tempo depois de terem 
sido despertadas pela primeira vez. Para essas, Epicuro 
recomenda a reflexão. As dores da alma estão 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
8 
frequentemente associadas às frustrações e, em geral, 
oriundas de um desejo não satisfeito. Para Epicuro, “o 
essencial para a nossa felicidade é nossa condição 
íntima e dela somos senhores”. Daí a expressão muito 
comum entre os hedonistas: “carpe diem”, que quer 
dizer aproveite bem o dia. 
Contrária a essa visão hedonista, encontra-se o 
movimento conhecido como estoicismo. Fundado por 
Zenão de Cítio (334-261 a.C.) e que teve entre seus 
principais pensadores Marco Aurélio, Sêneca e 
Epicteto. O princípio do pensamento estóico é a 
apatheia, uma atitude de aceitação de tudo o que 
acontece como parte de um plano superior orientado 
por uma razão universal. A alma está identificada com 
o princípio divino – o logos – que governa o universo, 
do qual pertence. É esse logos que dá origem e ordem 
a tudo e promove a harmonia – kosmos. Tudo o que 
resta ao homem é aceitar o seu destino e agir 
consciente dele. Surgem duas consequências éticas: 
primeiramente, deve-se viver conforme a natureza, o 
que significa dizer que deve-se viver de acordo com a 
razão em segundo plano. É por meio da razão que o 
homem se torna livre e feliz. A matéria-prima da arte 
de bem viver é a própria vida. O estoicismo defendia 
uma renúncia aos prazeres através da superação e do 
controle sobre o corpo e a mente, o que proporcionaria 
o alcance da vida virtuosa. 
Embora esses movimentos se opusessem, eles 
apontam para nós a ambiguidade de nossa condição 
humana, como se a necessidade de prazer e de 
discplina servissem como pêndulos que orientam 
nossas escolhas. Uma das conntribuições desses 
movimentos é a ideia que se desenvolveu a respeito da 
necessidade da prática de exercícios voltados para o 
cuidado de si. Trata-se de exercícios espirituais que, 
desde Platão, são dedicados ao conhecimento de si e 
que são identificados como ascese, que vem da palavra 
grega askesis, que quer didizer exercícios. 
Durante o período greco-romano, esses exercícios 
ou ascese correspondiam a uma livre escolha por parte 
do sujeito no sentido de se constituir enquanto arte de 
viver. Nesse caso, obedece a uma forma que se deve 
conferir à própria vida, um estilo de vida quenão 
obedece necessariamente a uma regularidade, a uma 
trama que se perpetua ao longo da vida. Essa ascese se 
dá em duas dimensões: uma de meditação, como 
meletân, e outra como uma prática, uma ginástica de 
preparação, como gymnázein. Abrange tanto um 
trabalho do pensamento sobre ele mesmo que visa 
preparar o indivíduo para os exercícios quanto uma 
prática organizada em que se põe à prova as próprias 
ações em situações com as quais se depara na própria 
vida. 
O ceticismo é outro movimento filosófico 
decorrente do pensamento clássico e que também 
caracterizou o período greco-romano. Ele teve início 
com Pirro de Elis (360-275 a.C.), que debateu com os 
estoicos a respeito do conhecimento. Para ele, nada 
pode ser afirmado pois todo saber comporta a 
impossibilidade de se ter certeza. O termo cético vem 
do grego skeptikos, que quer dizer “observar”, “ver” ou 
até mesmo “refletir”. Este era o nome dado aos 
seguidores das ideias de Pirro. Os filósofos céticos 
duvidavam de tudo, até mesmo da percepção de seus 
próprios sentidos. O ceticismo, então, se dedicava a 
examinar criticamente todo conhecimento a partir de 
uma atitude de suspenção do juízo, chamada em grego 
de époche, diante da possibilidade dele ser verdadeiro 
ou falso. O objetivo dessa atitude era atingir a ataraxia, 
ou a condição de não se deixar perturbar por coisa 
alguma, até alcançar a eudaimonia, que é o estado 
pleno de felicidade.
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
9 
Anexo II 
O anel de Giges 
 
Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal 
em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e 
experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil 
entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as 
convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. E esta a origem e a essência 
da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — 
sofrê-la quando se é incapaz de vingança. Entre estes dois extremos, a justiça é apreciada não 
como um bem em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça lhe dá valor. 
Com efeito, aquele que pode praticar esta última jamais se entenderá com ninguém para se 
abster de cometê-la ou sofrê-la, porque seria louco. E esta, Sócrates, a natureza da justiça e a 
sua origem, segundo a opinião comum. 
Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça 
é o que compreenderemos bem se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao 
injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamo-los e observemos até onde o desejo leva 
a um e a outro. Apanharemos o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o 
injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é isso que a natureza toda 
procura como um bem, mas que, por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A 
permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve 
outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio. Este homem era pastor a serviço do 
rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade 
acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde 
o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras 
maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; 
debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que 
tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com 
esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os 
meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio 
dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou 
invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou 
novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível. Tendo-se apercebido disso, 
repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo 
prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve 
a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, 
seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se 
existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que 
nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se 
apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, 
introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros 
e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada 
o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citar-se-ia isso como uma grande 
prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um 
bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, 
todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto 
com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de 
que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o mais 
infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns 
dos outros, elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se 
tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto. 
PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2004. Livro II, p. 43-44.
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
10 
“O homem é como Deus, mas não de modo absoluto, porque é homem. É, portanto, um Deus 
humano”. Nicolau de Cusa 
 
 
2. Na Filosofia Medieval 
 
Período Neoplatônico 
 
De um modo geral, o pensamento ocidental sempre 
tendeu a explicar o ser humano a partir de uma 
concepção que procura compreender o homem como 
composto de duas partes distintas, uma realidade 
material e uma realidade espiritual e consciente à qual 
chamamos de dualismo psicofísico. No pensamento 
greco-romano, essa relação consistia na compreensão 
da alma como tendo acesso às ideias verdadeiras e, 
para tanto, deveria ser liberta para que as alcançasse. 
O corpo era tratado como uma prisão da alma, que 
precisa ser disciplinado em suas paixões e desejos a fim 
de que a alma estivesse livre para acessar as ideias 
perfeitas. 
Nos séculos I e II da era cristã principalmente, essa 
ideia foi desenvolvida por pensadores como Sêneca (4 
a.C.-65 d.C.), Epicteto (55-135 d.C) e Marco Aurélio 
(121-180). Como pensadores do estoicismo, eles 
desenvolveram uma preocupação centrada no 
homem, sobre sua formação e suas competências, 
tendo em vista obter o máximo do conhecimento de si 
e da compreensão acerca da complexidade da natureza 
humana. Esse modo de pensar desencadeou o 
movimento do neoplatonismo, baseado no resgate 
das ideias de Platão a respeito da alma humana. Os 
neoplatônicos acreditavam na perfeição humana e que 
tanto a perfeição quanto a felicidade seriam possíveis 
neste mundo, que poderiam ser alcançadas mediante 
a contemplação e a filosofia. 
Um dos principais pensadores neoplatônicos foi 
Plotino (204-270). Para ele, tudo no mundo se refere 
ao Uno, uma espécie de expressão divina como um ser 
supremo, fonte de onde emana toda a felicidade. O 
homem só tem acesso a essa felicidade de forma 
parcial, pois jamais é capaz de conhecer o Uno em sua 
totalidade. Para chegar ao Uno, ele precisade auxílio 
do conhecimento, que pode ser por meio da percepção 
sensível, da racionalidade e do conhecimento de si. O 
corpo e o mundo material seriam como 
representações, tidas com as mais belas imagens do 
mundo invisível e inteligível. 
A Idade Média tem sido tratada como uma fase da 
histórica marcada por uma baixa produção filosófica e 
científica. Alguns até se referem a ela como “a idade 
das trevas”. Entretanto, isso não corresponde à 
realidade. O período medieval propiciou um grande 
avanço nos estudos platônicos e na abordagem sobre 
a lógica e a retórica. O traço predominante será a 
aproximação entre a filosofia e a teologia cristã, que 
influenciou de forma decisiva o pensamento ocidental. 
 
Período Patrístico 
 
Essa época também foi marcada pelo movimento 
dos primeiros cristãos que, anunciando uma 
mensagem baseada no pensamento judaico-cristão, 
procuraram aproximar-se do pensamento greco-
romano. Podemos chamar esse período de Patrístico, 
que começa ainda o século I da era cristã e se 
desenvolve até o século VI. Tem esse nome como uma 
referência aos primeiros padres da igreja cristã. Entre 
eles, podemos citar: Clemente de Roma, Orígenes, 
Inácio e Tertuliano. 
A aproximação entre o cristianismo e o pensamento 
greco-romano foi um fator decisivo para o 
desenvolvimento da cultura ocidental de tal modo que, 
a partir desse fato, nem a Filosofia nem o cristianismo 
serão mais os mesmos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os primeiros pensadores do Período Patrístico se 
apropriaram tanto da lógica aristotélica quanto das 
práticas do cuidado de si do platonismo, ajustando o 
discurso cristão a essa maneira de compreender a 
realidade. O resultado é uma nova maneira de tratar a 
relação corpo e mente, em que o corpo não será mais 
visto como prisão da alma, mas como uma morada 
para Deus. As práticas do cuidado de si visam 
transformar o corpo em uma habitação digna. 
 
* Leia o texto: “A dignidade régia do homem” (Anexo 
III). 
 
Com o cristianismo, a filosofia medieval foi 
dominada por uma compreensão de que o corpo é 
lugar sagrado, mas sujeito à degradação por causa dos 
desejos e paixões, assolado o tempo todo pelas 
Pensamento 
Medieval Pensamento 
Greco-Romano 
Pensamento 
Judaico-Cristão 
Período Patrístico 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
11 
tentações carnais, sobretudo relativas à sexualidade. 
Por meio do controle dos desejos e pela renúncia dos 
prazeres físicos, procurava-se a sacralização do corpo 
com práticas como jejuns, abstinências e 
autoflagelação. Desenvolve-se, então, o que podemos 
chamar de ascetismo: um conjunto de exercícios 
espirituais e práticas de abstinência e autoflagelação 
que se destinava a exercer controle sobre os desejos e 
paixões do corpo a fim de transformá-lo em um lugar 
sagrado. 
O primeiro pensador desse período que irá 
influenciar de forma decisiva a Filosofia Medieval é 
Agostinho (354-430). Ele era natural do norte da África 
e iniciou seus estudos filosóficos com base no 
pensamento dualista. Já na fase adulta, converteu-se 
ao cristianismo e se tornou um dos principais doutores 
da igreja, exercendo o papel de bispo na cidade de 
Hipona, na Argélia. Ele defendeu a superioridade da 
alma humana sobre o corpo, a superioridade da esfera 
espiritual sobre a material. Ele entendia que a alma foi 
criada por Deus para reinar sobre o corpo e conduzi-lo 
para a prática do bem. Entretanto, o homem, usando 
de sua liberdade de escolha (ou de seu livre-arbítrio) 
deu lugar ao pecado, provocando a submissão da alma 
ao corpo, o que equivale a uma subordinação do 
espírito à matéria, do eterno ao transitório, da essência 
à aparência. A maneira de superar esse desequilíbrio 
seria submeter as escolhas livres do homem à vontade 
divina. A verdadeira expressão do livre-arbítrio é fazer 
a vontade de Deus. Portanto, ao examinar a relação 
corpo-alma, Agostinho afirma que eles constituem 
uma unidade e que somente alcança essa condição 
quando voltada para Deus. 
Para Agostinho, o corpo não é mau por natureza, 
mas a união do corpo com a alma é resultado de uma 
criação divina. A alma nasce com o indivíduo e se 
destina a reger o corpo. O homem é tratado como uma 
alma racional que se serve de um corpo, a alma tem 
uma substância distinta do corpo e é o que o “anima”. 
Nesse sentido, a alma sente, pensa, recorda, entende, 
julga e conhece por meio do pensamento, e se 
reconhece como pertencente a um corpo com quem 
tem uma união consubstancial. Ela é mediadora entre 
o corpo e a vontade divina, a quem Deus ilumina com 
sabedoria e orientações para a busca da perfeição. 
Agostinho desenvolveu dois conceitos importantes 
para o pensamento ocidental. O primeiro é o de 
interioridade como uma forma de pensar a 
subjetividade. Para chegar às ideias verdadeiras, a alma 
precisa dar um mergulho interior e, no mais íntimo de 
si, encontrará Deus que se identifica com a razão 
humana. Ele dizia que Deus é mais íntimo a nós do que 
nós mesmos. Uma obra que descreve bem essa 
compreensão é Confissões. O segundo tem a ver com a 
compreensão histórica como uma linearidade, ou seja, 
vivemos uma realidade no mundo que se confronta 
com a idealização do mundo debaixo da graça divina. 
Ele chama essa primeira vivência como cidade dos 
homens ou terrena, dominada pelo amor a si mesmo e 
o desprezo de Deus, onde acontecem todas as formas 
de maldade, exploração, opressão e injustiça. E ele 
chama esse mundo idealizado de cidade de Deus, onde 
estão as ideias perfeitas de liberdade, de igualdade e 
de justiça, marcado pelo amor a Deus e o desprezo de 
si. A grande experiência humana é aproximar as ações 
na cidade terrena das aspirações que só podem ser 
encontradas na cidade divina. Essa ideia está registrada 
na obra Cidade de Deus. 
 
Período Escolástico 
 
O pensamento agostiniano predominou na Europa 
por quase toda a Idade Média. Muitas de suas ideias, 
principalmente relacionadas à subjetividade e à 
temporalidade, irão influenciar o pensamento 
ocidental até os dias atuais. Sobretudo pelo fato de que 
o Ocidente experimentará uma fase de declínio 
político, no século VI, com a queda do império romano 
e o consequente avanço do império otomano sobre a 
Europa. O que restou do império romano se 
estabeleceu na cidade de Bizâncio (daí o chamado 
império bizantino) e Roma passou a sofrer influência 
do poder da igreja. Ao mesmo tempo, a presença dos 
árabes na península ibérica contribuiu para que novos 
estudos sobre a influência do aristotelismo fossem 
levados a efeito. 
Por volta do século VIII, com a ascensão de Carlos 
Magno e o estabelecimento do Sacro Império Romano-
Germânico, também conhecido como domínio 
carolíngio, a Europa passou por uma tentativa de 
unificação, com o despertar do apreço pela educação e 
pelas artes. A igreja centralizada em Roma era 
entendida como a guardiã dos valores morais e do 
conhecimento que caracterizavam a cultura ocidental, 
que se tornou predominantemente cristã. Como tal, 
ela desenvolveu, a partir do século IX, um programa 
educacional voltado para os filhos dos grandes 
proprietários de terra para disseminar os saberes 
construídos pelo Ocidente (como a gramática, a 
matemática, a geometria, a astronomia, a música, a 
retórica, a lógica e a filosofia). Esse programa se 
baseava no estabelecimento de escolas que deram 
origem posteriormente às grandes universidades 
europeias, como Sorbonne, Oxford, Salamanca, 
Cambridge e muitas outras. 
Esse modelo ficou conhecido como escolasticismo 
e enfatizava a relação entre fé e razão. Anselmo de 
Cantuária (1033-1109), considerado como o “pai da 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
12 
escolástica”, notabilizou-se pela sua preocupação com 
a definição da fé como vinculada à racionalidade. 
Também ficou conhecido pelo seu argumento 
ontológico sobre aexistência de Deus. Durante o 
escolasticismo, o dualismo psicofísico é preservado, na 
medida em que o corpo é compreendido como uma 
habitação que deve ser apreciado numa perspectiva 
mais estética. Trata-se da sacralização do corpo. Outro 
pensador desse período, Bernardo de Claraval (1090-
1153), declamou: “Tu, alma, vives em uma casa 
sublime, fabricada pessoalmente pelo próprio Deus. 
Refiro-me a teu corpo, tão bem idealizado, disposto e 
ordenado, que te serve como uma morada gloriosa e 
deleitável, e que para teu corpo construiu outro 
excelso, amplíssimo e encantador palácio, que é esse 
mundo sensível e habitável”. 
O principal pensador do Período Escolástico é 
Tomás de Aquino (1225-1274), que escreveu uma 
vasta obra intitulada Summa Theologica. Seu 
pensamento tenta resgatar as ideias aristotélicas ao 
afirmar o princípio racional da ética. Na sua definição 
de corporeidade, a alma é a forma substancial do 
corpo. Ele diz: 
“Ora, na constituição do homem, o corpo se 
comporta como matéria e a alma, como forma. A 
virtude implica uma perfeição da potência. Há dois 
tipos de potência: potência para existir e potência para 
agir. A potência para existir fundamenta-se na matéria, 
que é ente em potência, ao passo que a potência para 
agir fundamenta-se na forma, que é princípio de ação, 
porque cada uma age na medida em que está em ato. 
[...] Por isso é que a virtude humana de que estamos 
tratando não pode pertencer ao corpo, mas só ao que 
é próprio da alma. Assim, a virtude humana não implica 
uma ordenação para existir, mas antes para a ação”. 
É no corpo que a alma realiza o sentido e o desafio 
mais profundo de sua natureza, experimentando a 
relação que envolve o vir-a-ser e o mundo ao redor. 
Para Tomás de Aquino, a paixões são a conjugação das 
disposições e tendências inatas para com as 
circunstâncias e suas contingências. O pathos 
corresponde à maneira como recepcionamos nossa 
relação com o mundo, como um sentir e um 
compreender, que são, de certo, modo, uma forma de 
padecer. A razão é que modera nossas ações a partir 
de uma reflexão intelectual. 
O período escolástico começa a enfrentar uma crise 
quando o modelo de abordagem sobre razão associado 
a uma perspectiva sobre a fé enfrenta críticas. Isso se 
dá no início do século XIV, com o avanço dos estudos 
aristotélicos que superam a influência do pensamento 
agostiniano e platônico, dando lugar a novas 
possibilidades para a ciência. Guilherme de Ockham 
(1285-1347) foi quem propôs a separação do ensino de 
filosofia e de teologia, uma vez que a filosofia não é 
suficiente para esclarecer os elementos ligados à fé e a 
teologia se destina a discutir os temas que apontam 
para a salvação da alma. 
 
Período Renascentista 
 
Com a abertura para novas abordagens sobre a 
razão humana, independentemente da fé, o 
pensamento e a cultura ocidental experimentaram 
uma fase de transformações em todas as áreas das 
atividades humanas, influenciados pela leitura de 
outros textos dos períodos clássico e greco-romano e a 
retomada dos padrões artísticos que caracterizaram a 
antiguidade clássica. Por essa razão, considerava-se 
que havia um renascimento cultural, assim definido 
por ser uma época de descobrimento do mundo e do 
ser humano, com ênfase no naturalismo e na dignidade 
humana. 
É desse período o surgimento da imprensa, a 
descoberta do continente americano e a formação dos 
estados nacionais na Europa. Além disso, houve 
avanços nas ciências, na literatura, na arquitetura e nas 
artes em geral. Veja alguns acontecimentos do período 
renascentista: 
a) Na política, com o surgimento dos estados 
nacionais, formados a partir do fortalecimento da 
nobreza, constituída pelos grandes proprietários de 
terra, e pelo estabelecimento da monarquia. 
b) Na vida urbana, com o crescimento dos burgos e 
o surgimento dos grandes centros urbanos, marcado 
pela arquitetura que resgata o classicismo romano. 
c) Na economia, com a substituição do regime 
feudal pelo mercantilismo. 
d) Na ciência, com as novas teorias astronômicas de 
Galileu e Copérnico. Galileu comprovou que a Terra é 
redonda e gira em torno de seu próprio eixo. Copérnico 
afirmou que a Terra não é o centro do Universo, mas o 
Sol, ao comprovar que é a Terra que gira em torno do 
Sol, e não o contrário. 
e) Na arte, com a busca das formas humanas 
perfeitas na escultura e na pintura, sobretudo com os 
estudos de Leonardo da Vinci e as obras de 
Michelangelo. 
f) Na literatura, com o surgimento das obras de 
grandes autores que ressaltavam a personalidade 
individual, como: Miguel de Cervantes com Dom 
Quixote, Dante Alighieri com Divina Comédia e William 
Shakespeare com diversos textos teatrais. 
g) Na religião, com a Reforma Protestante e a 
formulação de uma teologia reformada baseada na 
afirmação da capacidade humana de compreender a 
revelação divina por si mesmo por meio da graça. 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
13 
Essas transformações apontavam uma tendência de 
valorização do humano, inclusive com a exaltação da 
beleza corporal. No âmbito da filosofia, essa tendência 
corresponde ao surgimento do humanismo, que irá 
influenciar todo o pensamento desde então. O 
humanismo corresponde a um descentramento, que 
consistem em retirar Deus do centro do conhecimento 
para colocar nele o homem. Um dos primeiros 
pensadores do humanismo renascentista foi Nicolau 
de Cusa (1401-1464). 
Entre os pensadores desse período, podemos 
mencionar: Thomas Moore (1478-1535), que escreveu 
A Utopia; Erasmo de Roterdã (1466-1536), que 
escreveu Elogio da Loucura; Maquiavel (1469-1527), 
que é conhecido pela obra O Príncipe; e Thomas 
Hobbes (1588-1679), que escreveu Leviatã. O 
humanismo constitui-se como um movimento que 
orientou a produção intelectual, compreendendo o 
homem como uma totalidade constituída de corpo e 
alma, destinado a dominar a natureza e a viver no 
mundo de forma autônoma. Na Filosofia, vai se 
verificar um crescente desprezo à metafísica e um 
interesse pelas leis que regem a natureza, que será a 
base da ciência moderna. É também desse período o 
surgimento do contratualismo, que se baseia na ideia 
de que a vida social emerge a partir de acordos 
firmados entre os indivíduos. 
O encerramento do período renascentista – e 
consequentemente da Filosofia Medieval – será 
dominado por uma pergunta comum, que estava 
implícita na busca de novos saberes: “como erramos 
tanto?” Essa pergunta dá lugar a outra, que visa 
encontrar uma resposta sobre o que é conhecimento: 
“como se erra?” 
 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
14 
Anexo III 
A dignidade régia do homem 
 
Da mesma maneira como, nas coisas humanas, os artífices dão aos instrumentos que 
fabricam aquela forma que parece ser a mais idônea ao uso a que se destinam, assim o Sumo 
Artífice fabricou nossa natureza como uma espécie de instrumento, apto para o exercício da 
realeza; e para que o homem fosse completamente idôneo para isso, dotou-lhe não só de 
excelências enquanto a alma, senão, na mesma figura do corpo. E é assim que a alma põe de 
manifesto sua excelsa dignidade régia, muito estranha a baixeza privada, pelo fato de não 
reconhecer a ninguém por senhor e fazer tudo por seu próprio arbítrio. Ela, por seu próprio 
querer, como dona de si, se governa a si mesma. E, de quem mais, que não seja um rei, é próprio 
semelhante atributo? 
Segundo o costume humano, os que fazem as imagens dos imperadores, tratam 
primeiramente de reproduzir sua figura e, revestindo-a de púrpura, expressam justamente a 
dignidade imperial. É já uso e costume que a estátua do imperador se lhe chame imperador; 
assim, a natureza humana, criada para ser senhora de todas as outras criaturas, pela semelhança 
que em si leva do Rei do universo, foi elevada como uma estátua vivente e participa da dignidadee do nome do original primeiro. Não se veste de púrpura, nem ostenta sua dignidade pelo cetro 
e o diadema pois, tão pouco, o original ostenta estes sinais. Em vez de púrpura, reveste-se de 
virtude, que é a mais régia das vestes; em lugar de cetro se apoia e se radica na bem-aventurança 
da imortalidade; e, no lugar do diadema, cinge-se com a coroa da justiça; de sorte que, 
reproduzindo pontualmente a beleza do original, a alma ostenta em tudo a dignidade régia. 
 
GREGÓRIO DE NISSA, A criação do homem. Capítulo 4. Fonte: GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos 
Santos Padres. São Paulo: Paulinas, 1985. Coleção Patrologia. 
Gregório de Nissa (330-395) foi um dos pensadores cristãos do Período Patrístico que se baseou 
na filosofia platônica. 
 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
15 
“Mente e corpo são um só.” Espinosa 
 
 
3. Na Filosofia Moderna 
 
Teoria do Conhecimento 
 
A Modernidade é um período do pensamento 
ocidental que tem início no século XVII e foi marcado 
por uma forte ênfase na razão suficiente, na afirmação 
da autonomia do sujeito e na compreensão mecânica 
das relações entre sujeito e objeto. O início da 
Modernidade se deu a partir de uma preocupação com 
o conhecimento, principalmente com o modo como o 
erro acontece. 
Na tentativa de explicar como o erro acontece, 
Francis Bacon (1561-1626) formulou a teoria dos 
ídolos, que se referia às noções falsas, preconceitos e 
maus hábitos que interferem em conhecimento e que 
nos impedem de se chegar à verdade. Os ídolos são: da 
caverna, que corresponde aos nossos sentidos; da 
tribo, que correspondem às crenças e valores de nossa 
cultura; do teatro, que correspondem as 
representações do real; e do fórum, que corresponde 
aos juízos estabelecidos. A única maneira de extirpar 
esses ídolos da mente é conhecer a si mesmo e 
desenvolver um método para se chegar ao 
conhecimento verdadeiro. 
Outro pensador que tentou explicar a origem do 
erro foi René Descartes (1596-1650), que procurou 
demonstrar que o erro nasce tanto pela precipitação 
quanto pela prevenção em se aceitar qualquer 
afirmação como verdade sem antes investigar. Para 
ele, a experiência adquirida pelos sentidos é 
enganadora, sendo assim fonte de erros. Por isso ele 
afirmava que não se deve confiar inteiramente naquilo 
que já foi fonte de engano. 
Nessa tentativa de se buscar uma forma de 
conhecimento que evitasse o erro, surge uma nova 
mentalidade científica, cujas características principais 
envolve a necessidade de formulação de um método 
para conhecer. O campo de investigação que procura 
estabelecer os princípios da atitude científica é 
chamado de Teoria do Conhecimento. Trata-se de uma 
nova forma de fazer ciência, que envolve: 
a) Afirmação do método. O método corresponde ao 
caminho que se deve fazer para chegar a um 
determinado conhecimento. A palavra é formada a 
partir dos vocábulos gregos meta (através) e odos 
(caminho), que quer dizer “caminho a seguir”. 
b) Substituição da dedução pela indução. A dedução 
é o modo de se conhecer em que se parte de uma ideia 
universal para se chegar às ideias particulares. Já a 
indução envolve a investigação das ideias particulares 
a fim de se encontrar uma lei universal. 
c) A generalização, visto que o conhecimento de 
uma parte deve ser aplicado à totalidade das partes. 
Ou seja, o que se conhece acerca de um indivíduo de 
uma espécie vale para todos os indivíduos da mesma 
espécie. 
d) O princípio da análise, que é a divisão do todo em 
partes. Isso quer dizer que, para se conhecer um 
determinado objeto ou ser, seria necessário 
fragmentá-lo e reduzi-lo à menor unidade observável 
possível. 
e) A concepção mecânica que tem a ver com a 
noção de que cada ação corresponde a uma reação. 
Além dessa preocupação com o conhecimento, o 
pensamento ocidental experimenta o 
desenvolvimento do humanismo como uma afirmação 
da autonomia e da dignidade da pessoa humana. No 
início da idade moderna, portanto, inicia-se um novo 
modo de olhar sobre o mundo, que é o olhar de uma 
consciência secularizada, segundo a qual o 
componente religioso é retirado para só considerar a 
natureza física e biológica. Nessa nova mentalidade, o 
corpo passa a ser objeto da ciência. Trata-se de uma 
dessacralização do corpo, caracterizado por uma 
concepção mecânica do corpo. 
 
Racionalismo 
 
René Descartes, o principal pensador desse 
período, resolveu colocar sob o crivo da dúvida todo o 
seu pensamento a fim de desenvolver uma 
investigação sobre quais seriam as ideias claras e 
distintas que lhe vinham à mente. Para tanto, ele partiu 
da dúvida metódica a respeito da realidade do mundo 
e do próprio corpo para chegar à primeira ideia clara e 
distinta, que é o próprio pensamento, ou o cogito, em 
latim. Por essa razão é que ele afirmou: “Penso, logo 
existo”. 
O princípio de seu pensamento é conhecido como 
teoria do cogito, o qual ele desenvolveu a partir da 
compreensão de que o ser humano é constituído por 
duas substâncias distintas: o eu pensante, de natureza 
espiritual, e a coisa extensa, de natureza material. Para 
Descartes, as ideias claras e distintas são ideias inatas, 
verdadeiras, não sujeitas ao erro, pois vêm da razão. 
O conceito que ficou conhecido como cogito, 
portanto, se baseia em dois aspectos: um ser pensante 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
16 
e autônomo, o sujeito; uma substância extensa, o 
objeto. A relação que há entre sujeito e objeto é 
mecânica, em que o primeiro exerce controle sobre o 
segundo. Isso envolve uma noção de corporeidade em 
que o corpo é concebido como máquina, ou ex 
machina, conforme afirmou. 
Descartes chegou a dizer que: “O que não parecerá 
de modo algum estranho a quem — sabendo quão 
diversos autômatos ou máquinas móveis a indústria 
dos homens pode produzir, sem empregar nisso senão 
pouquíssimas peças, em comparação à grande 
multidão de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e 
todas as outras partes existentes no corpo de cada 
animal — considerará esse corpo uma máquina que, 
tendo sido feita pelas mãos de Deus, é 
incomparavelmente mais bem ordenada e contém 
movimentos mais admiráveis do que qualquer das que 
possam ser inventadas pelos homens.” 
O pensamento cartesiano (como nos referimos a 
René Descartes) desencadeou uma controvérsia na 
filosofia ocidental à qual pode ser chamada de crise da 
Modernidade. De um lado, há uma tendência à 
afirmação da base do pensamento de Descartes, 
conhecido como Racionalismo e, de outro, há uma 
crítica baseada na afirmação da necessidade da 
experiência sensível para se conhecer, conhecido como 
Empirismo. 
Compare essas duas correntes: 
EMPIRISMO X RACIONALISMO 
Empirismo – o conhecimento se dá a partir da 
experiência sensível. 
A razão é adquirida. 
Ênfase no objeto. 
Preocupação com a objetividade. 
Racionalismo – o conhecimento se dá pela razão. 
A razão é inata. 
Ênfase no sujeito. 
Preocupação com a subjetividade. 
Do lado racionalista, vamos encontrar pensadores 
como Baruque de Espinosa (1632-1677), Blaise Pascal 
(1623-1662) e Leibniz (1646-1716). Dentre esses, 
Baruque de Espinosa se destaca por desenvolver uma 
compreensão de que não há uma relação de 
causalidade ou de hierarquia entre corpo e mente, mas 
de expressão e simples correspondência. Podemos 
chamar essa concepção de teoria do paralelismo. Ele 
afirmou: “Entendemos assim não apenas que a Mente 
humana é unida ao Corpo, mas também o que deve ser 
entendido pela união de Mente e Corpo”. O 
paralelismo de Espinosa apresentava duas 
proposições: uma, a de que “a Mente humana só 
conhece o próprio corpo humano e só sabe que ele 
existe pelas ideias das afecções pelas quais o corpo é 
afetado”; a outra, a de que “a Mente só conhece a si 
mesma na medida em que percebe as ideias das 
afecções do Corpo”. 
Entre os empiristas, amaioria dos filósofos eram 
ingleses. Dentre eles, podemos citar John Locke (1632-
1704), que formulou uma teoria do conhecimento, que 
se baseava na contestação da razão inata. Para ele, 
toda pessoa quando nasce é como uma “tábula rasa”, 
ou uma folha em branco, onde são inscritas as 
experiências humanas. Eram também filósofos 
empiristas: Francis Bacon, George Berkeley (1685-
1753) e David Hume (1711-1776). 
David Hume desenvolveu a noção de que não há 
ideias inatas no homem, mas que também a 
experiência sensível não nos diz muito. E isso se dá 
porque só podemos observar os fenômenos, assim 
como o mecanismo íntimo do real não é passível de 
experiência. O que é possível ser observado é a 
sucessão de fatos ou a sequência de eventos, e não o 
nexo causal entre esses eventos. Sendo assim, só 
chegamos ao conhecimento por analogia. 
 
* Leia o texto: Pensamentos (Anexo IV). 
 
Iluminismo 
 
O século XVIII traz consigo um movimento 
intelectual que procurou afirmar o domínio da razão 
sobre os poderes da religião e do Estado. A ênfase 
recaía sobre a capacidade humana de conhecer e de 
realizar as transformações da sociedade sem a tutela 
de nenhuma outra instância, apenas pela razão. Esse 
movimento é chamado de Iluminismo ou Século das 
Luzes, mas também pode ser chamado de 
Esclarecimento ou pela palavra alemã Aufklarung. 
Dentre os pensadores do Iluminismo, vamos 
encontrar: 
a) Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que afirmou 
que o homem em sua natureza é bom, mas a sociedade 
o corrompe. É dele também a obra O contrato social, 
na qual propõe que as pessoas façam um novo acordo 
de vida em sociedade com base na liberdade. 
b) Denis Diderot (1713-1784), que é considerado o pai 
do enciclopedismo, que procurava interferir no modo 
como as pessoas pensavam, incentivando o saber 
secularizado. Ele organizou a primeira Encyclopédie. 
c) Montesquieu (1689-1755), que foi um forte 
defensor das ideias liberais e formulou as bases do 
princípio constitucionalista. 
b) Voltaire (1694-1778), que foi um defensor das 
liberdades civis e um crítico da Igreja Católica e das 
instituições de seu tempo. 
O Iluminismo marcou profundamente a política na 
Europa, com a promoção dos ideais que motivaram a 
Revolução Francesa (em 1782), conhecidos pelo lema 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
17 
“Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, bem como 
influenciou os movimentos de independência dos 
Estados Unidos da América (em 1776) e a Inconfidência 
Mineira no Brasil (em 1789). 
O pensador mais importante desse período é 
Immanuel Kant (1724-1804). Ele entendia que a 
humanidade havia encontrado sua forma de superar 
sua menoridade, que corresponde à falta de habilidade 
de se usar o próprio entendimento sem a necessidade 
de um guia. Esse era o verdadeiro sentido do 
Iluminismo. Ele usou a expressão Sapere Aude, que 
quer dizer “ouse conhecer”, que corresponde a “ter 
coragem de usar o seu próprio entendimento”. Para 
ele, “o esclarecimento requer nada além do que 
liberdade – e o mais puro de tudo isso é a liberdade de 
fazer uso público da razão em qualquer assunto”. 
Filósofo alemão, Kant procurou investigar a razão a 
partir de uma atitude crítica, influenciado pelas ideias 
de David Hume. Na verdade, ele procurou fazer uma 
síntese entre racionalismo e empirismo, procurando, 
assim, superar a crise da Modernidade. Para Kant, a 
consciência possui uma estrutura a priori que permite 
que se conheça a realidade apenas através dos 
fenômenos. A realidade é constituída pelos fenômenos 
e pelas coisas em si ou o real, mas entre eles há um 
abismo que a razão não consegue transpor. 
Em sua obra principal, Crítica da Razão Pura, Kant 
enfatiza que o sujeito conhece porque tem em si 
mesmo faculdades que o tornam capaz de conhecer. 
Ele mesmo denominou sua teoria como uma 
“revolução copernicana”, visto que iria alterar os 
rumos da Filosofia e a solução da crise moderna entre 
racionalismo e empirismo. A sua filosofia é conhecida 
como crítica, ou criticismo kantiano, ao tentar 
compreender quais são os limites da razão e quais são 
os limites da experiência. Kant parte da concepção de 
que a realidade é constituída daquilo que chamou de 
“coisa em si” ou o real e dos conceitos que conceitos 
que elaboramos sobre a realidade, que ele denominou 
de fenômeno. Desse modo, a razão possui uma 
estrutura a priori que permite que se conheça a 
realidade apenas através dos fenômenos. 
De acordo com o pensamento kantiano, há um 
abismo entre o real e o fenômeno que a razão não 
consegue transpor. Por essa razão, só podemos 
analisar os objetos na medida em que eles aparecem à 
nossa consciência. Sua capacidade é de formular 
conceitos que tornam possíveis a experiência e foi essa 
ideia que o levou a formular sua teoria dos juízos, que 
são formas de conhecimento que consiste na 
associação de conceitos. O conhecimento é constituído 
de matéria e forma, sendo que a matéria são as 
próprias coisas e a forma somos nós mesmos. Há, 
então, duas fontes do conhecimento: a sensibilidade, 
através da qual os objetos são dados pela intuição; e o 
entendimento, através do qual os objetos são 
pensados por meio de conceitos. Para que o 
conhecimento seja estabelecido, é preciso que a 
percepção aconteça em primeiro lugar na dimensão de 
tempo e espaço. O espaço é a forma de sentido externa 
e o tempo é a forma interna. O espaço e o tempo não 
são conceitos aprendidos pela experiência, mas 
tornam possível toda e qualquer experiência. Em 
linguagem kantiana, o espaço e o tempo são as formas 
a priori da sensibilidade. 
O pensamento kantiano despreza o conhecimento 
metafísico, uma vez que temos diante de nós toda uma 
realidade fenomênica que precisa ser analisada e 
investigada. O papel da metafísica ficou relegado ao 
campo da moral, que deve ser orientada pelo dever. 
Segundo Kant, o dever deve pautar-se por uma decisão 
da vontade livre. Para ressaltar o papel da vontade, ele 
formulou o conceito de imperativo categórico, que diz: 
“age de tal maneira que a máxima da tua vontade seja 
a base de uma lei universal”. A moral kantiana está 
voltada para o bem comum, que vem antes até da 
felicidade. 
A relação corpo-alma para Kant faz parte do que ele 
chamou de idealismo transcendental, que se refere a 
uma atitude em que o sujeito possa reconhecer o 
corpo como um objeto em meio a outros objetos. 
Trata-se de uma relação que se constrói no mundo e a 
partir do mundo. O corpo é um objeto reflexivo, que 
pode olhar para si, atribuindo sentido às suas 
experiências, partindo da noção de que não existe 
sujeito nem objeto separados do mundo. O lugar do 
sujeito pensante no interior do mundo sensível é 
precisamente o espaço de seu corpo. 
O pensamento kantiano foi duramente criticado 
pelos pensadores românticos e pelos do idealismo 
alemão. Entre eles, encontram-se Johann Fichte (1762-
1814) e Friedrich Schelling (1775-1854). O principal 
aspecto dessa crítica está na questão acerca da 
condição humana e a capacidade de superar as 
limitações da natureza. Para tais filósofos, não há uma 
separação entre o fenômeno e a coisa em si, como 
afirmava Kant, uma vez que estes fatores estão juntos 
numa mesma coisa. Há uma identidade entre ambos e 
é isso que corresponde à ideia de absoluto ou de 
totalidade. 
 
Idealismo 
 
Georg Hegel (1770-1831) foi um pensador alemão 
que levou a Modernidade ao seu auge. Sua mais 
importante obra é a Fenomenologia do espírito, na qual 
desenvolve uma abordagem sobre os modos como a 
consciência atua. Ele foi um crítico de Kant, 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
18 
influenciado pela filosofia dos românticos, 
principalmente em relação à ideia de uma razão 
originária e da impossibilidade da razão apreender o 
real. Hegel inovou em sua época ao perceber o 
conhecimento como resultado de um processo,segundo o qual a razão é histórica, a verdade é 
construída no tempo. 
Hegel desenvolveu uma nova compreensão, que 
ficou conhecida como a base do idealismo: a de que a 
razão é histórica, de que a verdade é construída no 
tempo. Para ele, a consciência interfere diretamente 
na construção da realidade, tendo como base o devir – 
o ser como processo, movimento, como vir-a-ser. 
Sendo assim, faz-se necessária uma nova lógica para 
dar conta da dinâmica do real, tendo como base a 
contradição, à qual chamou de dialética. Trata-se de 
um processo através do qual a consciência toma posse 
do real. A dialética se baseia no fato de que toda ideia 
tende a morrer para dar lugar a uma nova ideia. É de 
fato uma lógica que, segundo Hegel, parte do princípio 
da contradição para dar conta da dinâmica do real, cujo 
movimento se faz em três etapas: tese, antítese e 
síntese. 
Hegel utiliza a metáfora do senhor e do escravo 
para explicar a sua dialética. O senhor corresponde ao 
sujeito e o escravo ao objeto. Conforme explica Hegel, 
só há senhores porque alguém foi submetido à 
condição de escravos. Embora domine, o senhor não 
pode se dizer livre, pois está acostumado a ser servido 
e não pode se realizar de forma autoconsciente pois 
está dependente do outro. É na relação com o outro 
que o escravo adquire a consciência de si e está em 
condições de libertar-se. A intenção é demonstrar 
como a consciência é conduzida a um saber absoluto, 
na qual o sujeito encontra seu fundamento último e a 
consciência de si. 
Na concepção de corporeidade de Hegel, ele reduz 
o homem ao pensamento, um ser abstrato e espiritual. 
O homem concreto, de carne e osso, em sua dimensão 
essencialmente corpórea, aparece como existência 
efêmera, não objetivo, que tem no conhecimento de si 
seu único comportamento objetivo. 
O pensamento hegeliano teve desdobramentos 
importantes no final do período que chamamos de 
moderno. Ainda no século XIX, dois pensadores 
contemporâneos a Hegel desenvolveram duras críticas 
às suas ideias. O primeiro deles foi o dinamarquês 
Soren Kierkegaard (1813-1855), que se autointitulou o 
anti-Hegel. Para ele, a condição humana é marcada não 
por uma consciência absoluta, mas pela angústia e pelo 
desespero. Ao analisar a existência humana, 
Kierkegaard afirma que ela se dá em três estágios: o 
ético, marcado por uma vida regrada; o estético, 
marcado pela aparência, e o religioso, marcado pela 
vida de fé como a capacidade de assumir quem de fato 
é. Ele é considerado o primeiro pensador que deu 
origem à corrente filosófica do Existencialismo. 
O outro pensador é o alemão Arthur Schopenhauer 
(1788-1860), que foi contemporâneo de Hegel. 
Segundo ele, a vida humana é regida pela vontade, que 
acaba por produzir um sentimento de incompletude ao 
nunca se realizar, o que leva a sempre querer mais e, 
com isso, ao sofrimento. 
 
Positivismo 
 
A crítica ao pensamento hegeliano influenciou 
também o surgimento do Positivismo, uma doutrina 
filosófica que estava voltada para a valorização da 
ciência e a rejeição da teologia e da filosofia. Ele foi 
fundado pelo francês Augusto Comte (1798-1857) e se 
baseava na concepção de que as ideias positivas são 
aquelas que aparecem objetivamente à razão. O 
conhecimento objetivo é aquele que “busca ver para 
prever a fim de prover”. Isso significa que o 
conhecimento objetivo deve ter a finalidade de ajudar 
a humanidade a superar seus problemas. 
Para fundamentar sua concepção, Comte formulou 
a teoria dos três estágios. São eles: 
1°) O estágio mítico, que se baseia nas explicações 
sobrenaturais e na atitude religiosa, orientado pela 
teologia. 
2°) o estágio metafísico, que se baseia na capacidade 
de indagação, orientado pela filosofia. 
3°) o estágio positivo, que via a solução prática dos 
problemas humanos e é orientado pela ciência. 
O Positivismo surgiu na Europa num momento de 
grandes transformações sociais, econômicas, políticas 
e culturais, principalmente decorrentes da revolução 
industrial e do fortalecimento do capitalismo. Além 
disso, o Positivismo influenciou grandemente a 
formação da mentalidade científica no século XIX, 
tornando-se uma verdadeira febre nos ambientes 
acadêmicos. O filósofo espanhol Garcia Morente 
(1886-1942) certa vez afirmou que “o positivismo é a 
morte da Filosofia”. 
O lema do Positivismo era: “O Amor por princípio; a 
Ordem por base; o Progresso por fim”. Fundado nesse 
paradigma, Comte afirmou que sua filosofia iria se 
transformar na nova religião da humanidade, que 
superaria, inclusive, o cristianismo. Por causa dessa 
ideia, Comte foi desprezado, mas seu Positivismo 
continuou produzindo seus efeitos, inclusive no Brasil, 
com a formação do ideal republicano e a abolição da 
escravatura. Daí a razão pela qual a expressão “Ordem 
e Progresso”, retirada do lema positivista, encontrar-se 
na bandeira brasileira. Um fato curioso é que o Brasil 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
19 
possui o único templo destinado à religião positivista, 
que está situado na cidade do Rio de Janeiro. 
A partir da afirmação de que a ciência tem todas as 
respostas, o Positivismo também influenciou a 
formação de uma crença de que a ciência pode tudo. 
Trata-se do cientificismo, que consiste na afirmação de 
que a ciência possui uma superioridade sobre todas as 
demais formas de conhecimento humano e de 
compreensão da realidade, sendo capaz de encontrar 
solução prática para os problemas vividos pelo homem. 
 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
20 
Anexo IV 
Pensamentos 
 
O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. 
Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo. Um vapor, uma gota d’água é 
bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre 
do que o que o mata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universo tem sobre ele, o 
universo a ignora. 
Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É daí que é preciso nos 
elevarmos, não do espaço e da duração que não saberíamos encher. Trabalhemos, pois, para 
bem pensar: eis o princípio da moral. 
[...] 
O pensamento é, pois, uma coisa admirável por natureza. Era preciso que tivesse 
estranhos defeitos para ser desprezível. Mas, tem tais que nada é mais ridículo. 
 
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 
 
Corporeidade / Irenio Chaves 
 
21 
“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social 
que lhe determina a consciência.” Karl Marx 
 
 
4. Na Filosofia Contemporânea 
 
Crítica à racionalidade moderna 
 
O que chamamos de Filosofia Contemporânea tem 
a ver com a fase do desenvolvimento do pensamento 
ocidental que tem início nos meados do século XIX, 
perpassa todo o século XX e chega até o século XXI. É o 
período em que nos encontramos. O projeto moderno 
de afirmação da razão suficiente e da autonomia do 
sujeito, dando condições ao homem de ter o controle 
sobre a Natureza passou a ser visto com desconfiança. 
A Filosofia havia alcançado um nível de abstração e 
distanciamento da vida, e foi isso que despertou a 
crítica de três principais pensadores – o que chamo de 
críticos da racionalidade ou “filósofos da suspeita”, 
como o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) os 
designou. São eles: Sigmund Freud (1856-1839), Karl 
Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). 
Ao questionar o racionalismo moderno, Freud – 
pensador austríaco – discordou do fato de que a 
consciência humana é o centro das decisões e do 
controle dos desejos. Para ele, as forças conflitantes 
das pulsões estão ligadas ao inconsciente, que é 
constituído de duas instâncias: o id, que é a pulsão do 
desejo, e o superego, que são as censuras e sansões 
que são exercidas sobre o desejo.

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