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1 Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO Filosofia Prof. Irenio Silveira Chaves CORPOREIDADE “O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa”, Eduardo Galeano. É muito comum a gente pensar que conhece bem nosso corpo, seus limites e sua capacidade. O fato é que, embora tenha uma relação de pertença com o corpo, nossa experiência corporal é marcada por uma complexidade de tal modo que a gente pode passar a vida inteira sem ter condições de conhecê-lo, sem saber como ele funciona, como ele se forma e como se transforma. Num primeiro momento, poderíamos afirmar que o sentido de corporeidade envolve todas as qualidades, condições e circunstâncias relativas ao corpo. Por corporeidade entendemos as relações do corpo com o mundo, com sua existência e com suas formas de expressão. Pensar no corpo e suas relações implica o sentido de presença no mundo, as relações do sujeito consigo mesmo e com outros corpos, bem como as interferências do ambiente e das coisas tal qual elas também estão dadas no mundo. O emprego do termo corporeidade é uma construção do pensamento contemporâneo, que abandona uma concepção dualista de corpo e mente como realidades distintas. Não se trata, porém, de uma ideia dissociada da história do desenvolvimento da compreensão acerca da relação corpo-mente que marcou todo o percurso do pensamento ocidental. Corporeidade, portanto, é um construto que se refere a uma relação em que o corpo é tratado como lugar de realização da existência. Segundo David Le Breton, em A Sociologia do Corpo (Petrópolis: Vozes, 2007), “antes de qualquer coisa, a existência é corporal”. Isso tem a ver com a maneira como o sujeito se reconhece e como percebe sua condição de existência no mundo. Nossa existência, portanto, é regida por uma relação de corporeidade. Para usar uma conceituação mais acadêmica, Giovanina Gomes de Freitas, em O esquema corporal, a imagem corporal, a consciência corporal e a corporeidade (Ijuí: Unijuí, 1999), diz: “A corporeidade implica, portanto, a inserção de um corpo humano em um mundo significativo, a relação dialética do corpo consigo mesmo, com outros corpos expressivos e com os objetos do seu mundo (ou as “coisas” que se elevam no horizonte de sua percepção). [...] Mas [o corpo], como corporeidade, como corpo vivenciado, não é o início nem o fim: ele é sempre o meio, no qual e por meio do qual o processo da vida se perpetua”. A noção de corporeidade abarca pelo menos seis dimensões de nossa relação com o mundo. São elas: a) Fisiológica, que abrange as formas de funcionamento em uma estrutura física que se movimenta em um espaço. b) Psicológica, que abrange o campo da afetividade e da percepção. c) Cultural, que se expressa simbolicamente e está inserida dentro de uma realidade social e histórica. d) Moral, que trata das relações normativas e os valores que orientam a vida social. e) Estética, que se refere ao modo como o sujeito se mostra é visto, numa perspectiva do belo e de como se sente aceito e acolhido pelos outros. f) Espiritual, que aponta para abertura para o que está além das circunstâncias concretas e desperta a busca pelo sentido da vida, a criatividade, a superação e a esperança. O corpo não é só uma realidade biológica, mas é constituído de uma multiplicidade de fatores simbólicos que unem aspectos físicos, biológicos, culturais e subjetivos. A maneira como se trata a relação com o corpo tem a ver como a gente se vê e como a gente é visto pelo outro. Corpo e consciência se conjugam nas formas de expressão do sujeito. Corpo Corporeidade Consciência A noção de corporeidade, portanto, articula um duplo sentido: o de que o corpo consiste em uma estrutura física na qual se dá a experiência de vida e o de que o corpo está inserido num contexto em que se percebe e se é percebido, conhece e é conhecido. Isso quer dizer que existimos como corpo e existimos Fundamentos Filosóficos da Corporeidade / Irenio Chaves 2 como consciência de tal forma que uma coisa não anula a outra. As relações de corporeidade envolvem questões ligadas à autoimagem e à identidade, que que remetem não só à maneira como somos construídos diante do mundo, do outro e de nós mesmos, mas também à tensão constante que se dá entre uma tendência de generalização, massificação e uniformidade e o esforço de afirmação como indivíduo. Como diz, David Le Breton (na obra já citada): “Pela corporeidade, o homem faz do mundo a extensão de sua experiência; transforma em tramas familiares e coerentes, disponíveis à ação e permeáveis à compreensão. Emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural”. Maurice Merleau-Ponty (em Fenomenologia da Percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1999) afirmou que “o corpo é a nossa ancoragem no mundo”. Podemos entendê-lo como um locus no qual o sujeito manifesta a sua existência no mundo, carregado de uma pluralidade de significados, como presença sensível e visível. O corpo, portanto, está inserido num contexto de interações, de símbolos e de implicações históricas e culturais. Todo corpo é inerente a processos em que está em jogo a consciência que o sujeito tem de si e de sua relação de existência no mundo. Os processos que estão implicados são: a) Interação – que corresponde aos gestos, linguagens e símbolos que são constantemente interpretados e representados. a) Sexualidade – que corresponde as formas de expressão do desejo, de nossas escolhas de e de se mostrar para o outro. A sexualidade traz implicações no que diz respeito à relação de gênero e a direitos individuais e coletivos. b) Oportunidades – que se referem as formas como se dá a relação de poder e até as condições de aquisição de bens, formação e serviços. Inclui-se aí as discussões em torno da desigualdade social, do preconceito e da intolerância. c) Conflitos – que dizem respeito às ambiguidades e contradições inerentes à afirmação de identidade, à assimilação da cultura e à contracultura. d) Intencionalidades – que se referem ao fato de que nossas crenças, pensamentos e desejos são sempre em relação a alguma coisa. e) Temporalidade – que permite reconhecer o contexto e as circunstâncias temporais em que se dá ação, em meio às expectativas, às memórias e o sentido de finitude. A noção de corporeidade está vinculada à ideia de sujeito, ou seja, ela tem a ver com nossa condição de pessoas social e culturalmente construídas, uma vez que é com o corpo que nos envolvemos de inúmeras formas com o trabalho, com a arte, com a saúde, com o amor, com o sexo e com toda possibilidade de atividade física e social. É através das ações em que o corpo está implicado que interferimos na natureza e desenvolvemos atitudes significativas que proporcionam a descoberta de si e do outro. É, por assim dizer, a integração de corpo e consciência na unidade do sujeito. É preciso ir além de um olhar que se restringe a explicar apenas o corpo físico para compreendê-lo como produzido e atravessado pela e em meio à cultura. E isso é o que propõe a atual reflexão sobre corporeidade. A partir da noção de corporeidade é possível entender o corpo como dotado de uma singularidade que somente pode ser compreendida à luz da relação com outros corpos. Isso gera um novo modo de conhecer o corpo em que está em jogo a pluralidade de corpos e a pluralidade de relações que estão nele implicadas. Desse modo, a corporeidade permite conceber o corpo como lugar de existência, que se vela e se desvela, que se percebe e é percebido, que se reconhece como sujeito e ao mesmo tempocomo objeto do conhecimento. * Leia o texto: “O seu corpo – essa casa onde você não mora” (Anexo I). Desenvolvimento da noção de corporeidade / Irenio Chaves 3 Anexo I O seu corpo – essa casa onde você não mora. Por Thérèse Bertherat (do livro O corpo tem suas razões, de Thérèse Bertherat e Carol Bernstein. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 11-15). Neste instante, esteja você onde estiver, há uma casa com o seu nome. Você é o único proprietário, mas faz tempo que perdeu as chaves. Por isso fica de fora, só vendo a fechada. Não chega a morar nela. Essa casa, teto que abriga suas mais recônditas e reprimidas lembranças, é o seu corpo. “Se as paredes ouvissem…” Na casa que é o seu corpo, elas ouvem. As paredes que tudo ouviram e nada esqueceram são músculos. Na rigidez, crispação, fraqueza e dores dos músculos das costas, pescoço, diafragma, coração e também do rosto e do sexo, está escrita toda a sua história, do nascimento até hoje. Sem perceber, desde os primeiros meses de vida, você reagiu a pressões familiares, sociais, morais. “Ande assim. Não se mexa. Tire a mão daí. Fique quieto. Faça alguma coisa. Vá depressa. Aonde vai você com tanta pressa…?” Atrapalhando, você dobrou-se como pôde. Para conformar-se, você se deformou. Seu corpo de verdade – harmonioso, dinâmico e feliz por natureza – foi sendo substituído por um corpo estranho que você aceita com dificuldade, que no fundo você rejeita. É a vida, diz você; não há outra saída. Respondo-lhe que você pode fazer algo para mudar e que só você pode fazer isso. Não é tarde demais para liberar-se da programação de seu passado, para assumir o próprio corpo, para descobrir possibilidades até então inéditas. Ser é nascer continuamente. Mas quantos se deixam morrer pouco a pouco, enquanto vão se integrando perfeitamente às estruturas da vida contemporânea, até perderem a vida pois que se perdem de vista? Saúde, bem-estar, segurança, prazeres, deixamos tudo a cargo dos médicos, psiquiatras, arquitetos, políticos, patrões, maridos, mulheres, amantes, filhos. Confiamos a responsabilidade de nossa vida, de nosso corpo, aos outros, por vezes àqueles que não desejam essa responsabilidade e que se sentem esmagados por ela; quase sempre aqueles que pertencem a Instituições cuja primeira finalidade é a de nos tranquilizar e, portanto, de nos reprimir. (E quantos há, independentemente de idade, cujo corpo ainda pertence aos pais? Crianças submissas, esperando em vão, durante toda a vida, licença para vivê-la. Menores de idade psicologicamente, não ousam nem olhar a vida dos outros, o que não os impede, porém, de tornarem-se impiedosos censores.) Quando renunciamos à autonomia, abdicamos de nossa soberania individual. Passamos a pertencer aos poderes, aos seres que nos recuperaram. Se reivindicamos tanto a liberdade é porque nos sentimos escravos; e os mais lúcidos reconhecem ser escravos-cúmplices. Mas como poderia ser de outro jeito, se não chegamos a ser donos nem de nossa primeira casa, da casa que é nosso corpo? Você pode, no entanto, reencontrar as chaves do seu corpo, tomar posse dele, habitá-lo, enfim nele encontrar a vitalidade, saúde e autonomia que lhe são próprias. Como? Não, certamente, se você considerar o corpo como uma máquina fatalmente defeituosa e que o atravanca; como uma máquina composta de peças soltas (cabeça, costas, pés, nervos…) que devem ser confiadas cada uma a um especialista, cuja autoridade e veredicto são aceitos de olhos fechados. Não, certamente, se você aceitar como definitivas as etiquetas de “nervoso”, “insone”, “com mau funcionamento do intestino”, “fraco”, etc. E não, certamente, se você procurar fortalecer-se pela ginástica que se contenta com o adestramento forçado do corpo-carne, do corpo considerado sem inteligência, como um animal a domar. Nosso corpo somos nós. Somos o que parecemos ser. Nosso modo de parecer é nosso modo de ser. Mas não queremos admiti-lo. Não temos coragem de nos olhar. Aliás, não sabemos como fazer. Confundimos o visível com o superficial. Só nos interessamos pelo que não podemos ver. Corporeidade / Irenio Chaves 4 Chegamos a desprezar o corpo e aqueles que se interessam por seus corpos. Sem nos determos sobre nossa forma – nosso corpo – apressamo-nos a interpretar nosso conteúdo, estruturas psicológicas, históricas. Passamos a vida fazendo malabarismos com palavras, para que elas no revelem as razões de nosso comportamento. E que tal se, através de nossas sensações, procurássemos as razões do próprio corpo? Você poderá deixar cair máscaras, disfarces, poses, o “faz-de-conta”, e passar a ser, a ter coragem de ser autêntico. Você pode livrar-se de uma infinidade de males – insônia, prisão de ventre, distúrbios digestivos – fazendo com que trabalhem para você, e não contra você, músculos que até agora você nem sabe onde ficam. Você pode despertar seus cinco sentidos, aguçar suas percepções, ter e saber projetar uma imagem de si mesmo que o satisfaça a que lhe mereça respeito. Você pode afirmar sua individualidade, reencontrar sua capacidade de iniciativa, a confiança em si mesmo. Você pode aumentar sua capacidade intelectual melhorando antes de tudo os impulsos nervosos entre cérebro e músculos. Você pode desaprender os maus hábitos que o levam a favorecer e, por conseguinte, a hiper- desenvolver e deformar certos músculos; romper os automatismos do seu corpo e descobrir-lhe a eficácia e espontaneidade. Você pode tornar-se um poliatleta que, a qualquer momento e em qualquer movimento que faça, conta com o equilíbrio, com a força, com a graça do próprio corpo. Você pode libertar-se dos problemas de frigidez ou de impotência e, depois de liberto das proibições que emanavam de seu corpo, conhecer a rara satisfação que consiste em nele habitar realmente. Em qualquer idade, você pode livrar-se das pressões que cercam sua vida interior e seu comportamento corporal, conseguindo perceber o ser belo, bem feito, autêntico, que você deve ser. Se lhe falo com tanta convicção e entusiasmo, é porque vejo isso acontecer diariamente. Desenvolvimento da noção de corporeidade / Irenio Chaves 5 DESENVOLVIMENTO DA NOÇÃO DE CORPOREIDADE NO PENSAMENTO OCIDENTAL “A alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivente”, Aristóteles. 1. Na Filosofia Antiga. Período Pré-Socrático Aristóteles reconheceu que foi a partir de Tales de Mileto que teve início uma forma de pensar que questionava o tipo de saber próprio do pensamento mítico, a partir de uma insatisfação com a explicação que este tipo de saber apresentava sobre os fenômenos naturais. Esta atitude caracterizou o que podemos chamar de período pré-socrático, que é aquele que foi marcado pelo rompimento com o apelo ao sobrenatural e ao mistério para dar lugar a uma abordagem filosófico-científica sobre o mundo natural, o mundo da physis (natureza, em grego). A principal característica desse modo de pensar consistia na explicação causal, em que cada fenômeno era considerado como um efeito de uma causa natural que lhe era anterior. Esse princípio de causalidade tinha um caráter regressivo e visava alcançar o que esses primeiros filósofos consideravam como princípio causador de tudo ou a causa primeira de todas as coisas, a arché em grego. Para eles, a natureza como um todo é dotada de uma certa ordem, que implicava em uma harmonia e uma beleza próprias, que poderia ser compreendida racionalmente e explicada discursivamente. Eles usavam o conceito de cosmos (kosmos, ou harmonia em grego) para se referir à essa ordem, que se opõe ao caos (kaos, ou desordem em grego). Para explicar essa ordem, faziam uso do logos, que é o discurso racional, fundado em uma argumentação, que se referia à essência das coisas mesmas.Essa argumentação, no entanto, não era feita de forma dogmática e retórica, como era a explicação mítica. Ela se baseava numa reflexão crítica, cuja exigência seria a necessidade de justificativas e fundamentações que pudessem ser submetidas à análise, e até contestação, de outro pensador. Os filósofos pré-socráticos se notabilizaram por essa capacidade de investigação dos fenômenos naturais a partir dos próprios fenômenos através de uma atitude crítica. Além de Tales, destacaram-se ainda Pitágoras, Zenão, Demócrito, Empédocles e diversos outros que, sem a ajuda de recursos tecnológicos avançados e contando apenas com a racionalidade, desenvolveram princípios que são levados em consideração até hoje e que influenciaram na formação de uma nova mentalidade. A atuação dos filósofos pré-socráticos, no entanto, foi profundamente contestada pelos mestres do saber mítico da época, que na Grécia eram chamados de sofistas. Eles faziam uso de recursos como a retórica e a oratória para ensinar os mitos tradicionais aos jovens para formá-los para a vida pública. Geralmente, os sofistas eram também políticos, magistrados e nobres que tinham a função de transmitir o saber considerado válido para a formação da sociedade grega. O ponto principal do questionamento dos sofistas aos primeiros filósofos dizia respeito ao tema da verdade. Para os sofistas, a verdade não era um direito dado aos homens, pois correspondia a um saber restrito às divindades. Entretanto, os filósofos afirmavam que estavam em busca dela a qualquer preço. A afirmação de um sofista fez com que a investigação filosófica ganhasse um novo sentido, uma nova preocupação. Foi Protágoras, sofista do século V a.C., quem afirmou: “O homem é a medida de todas as coisas”. Isso lembra um princípio humanista de que a nossa capacidade de conhecer as coisas é limitada e pode variar de acordo com as circunstâncias em que o conhecimento se dá. Essa nova preocupação da filosofia, portanto, está relacionada sobre a maneira como conhecemos e sobre o que conhecemos. Dois filósofos pré-socráticos são importantes para apontar caminhos para essa nova abordagem. Embora suas ideias pareçam opostas entre si e tenham sido objeto de uma controvérsia, na verdade elas se constituem princípios orientadores que apontaram o modo como a filosofia iria tratar do conhecimento. São eles Heráclito e Parmênides. Heráclito (544-484 a.C.) – Viveu em Éfeso, cidade da atual Turquia. Para ele, a nossa experiência de conhecimento se dá a partir do movimento e da multiplicidade das coisas, uma vez que tudo está em movimento, tudo muda. Afirmou que “ninguém se banha na água de um mesmo rio duas vezes”, visto que não só a água do rio flui como também nossa experiência não é mais a mesma. Comparou o conhecimento à chama de uma vela, a uma criança que brinca e a um rio que flui. Empregou dois termos com os quais a filosofia lida até hoje: o primeiro é devir, que em grego quer dizer “fluir”; e o segundo é logos, que Corporeidade / Irenio Chaves 6 pode ser traduzido por “discurso” como também por “ideia”. Parmênides (540-470 a.C.) – Viveu em Eleia, cidade da atual Itália. Para ele, o conhecimento depende da aparência, uma vez que a realidade é única, imutável e marcada por uma certa continuidade, visto que aquilo que aparece permanece. A palavra grega para “aparência” é phainomenon. Baseou seu pensamento na expressão: “o ser é, o não ser não é”, o que permite compreender um princípio de identidade que relaciona o ser ao pensar. É por causa dessa relação entre ser e pensar que o homem pode conhecer a verdade das coisas. Período Clássico Essa preocupação com o conhecimento despertou o interesse de Sócrates (469-399 a.C.) em investigar o que as pessoas de seu tempo tinham certeza a respeito do que afirmavam. Ele foi aluno da escola de Parmênides, viveu em Atenas e desenvolveu uma reflexão filosófica baseada em diálogos com as pessoas de seu tempo a respeito de assuntos relativos à diversas áreas, especialmente sobre ética e política. Para tanto, desenvolveu um método baseado num jogo de perguntas que denominou de maiêutica, termo que corresponde ao trabalho de parto em grego. Este método começava com uma ironia e resultava no reconhecimento de que o conhecimento carecia de maiores investigações. Por essa razão, ele desenvolveu a ideia de que “só sei que nada sei” para se referir à necessidade de se buscar a sabedoria. O pensamento socrático tratou do conhecimento a partir de dois conceitos: (1) o do conhecimento de si como princípio de todo saber e (2) o do cuidado de si como finalidade do saber. O conhecimento verdadeiro é aquele que vem de dentro e que para isso é preciso usar a razão. Para conhecer a si mesmo, é preciso ocupar-se menos com as coisas e voltar-se para o cuidado de si. É preciso conhecer a si para saber como construir relações consigo, com o outro e com o mundo. Esse modo de pensar e seus diálogos o levaram a um confronto com algumas autoridades da época que o acusaram de desrespeitar as tradições religiosas da cidade e de corromper a juventude. A assembleia de Atenas o condenou à morte. Quando estava preso, seus amigos ainda tentaram convencer a escapar daquela condenação, mas ele preferiu agir conforme a sua consciência e aceitar a aplicação daquela sentença. Antes de sua morte, por ingestão de uma taça de veneno, Sócrates proferiu um belíssimo discurso conhecido como “A imortalidade da alma” na presença de seus discípulos. Sócrates não deixou textos escritos. Tudo o que sabemos dele estão em relatos de Xenofontes e diálogos registrados por Platão, seu mais brilhante aluno. Nesses diálogos, Sócrates aparece como um personagem através do qual Platão vai construindo conceitos que estão ligados às temáticas do conhecimento verdadeiro, da moral e da política. Platão (428-347 a.C.) também viveu em Atenas e fundou sua escola filosófica à qual chamou de Academia. O pensamento platônico trata o conhecimento a partir da concepção da realidade como dominada por duas esferas contrárias: o mundo sensível, dos fenômenos da physis (natureza, em grego), e o mundo das ideias, inteligível e acessado pela psyche (alma, em grego). O mundo sensível é percebido pelos sentidos e por essa razão comporta a ilusão e o engano, podendo levar ao erro, uma vez que as coisas se mostram de formas múltiplas e mutáveis. O conhecimento resultante dos sentidos é marcado pela opinião e pela crença. Acima desse mundo ilusório está o mundo das ideias, onde estão as essências imutáveis, ao qual atingimos pela contemplação da alma, superando o engano dos sentidos. Há, portanto, uma dialética fundada em ideias contrárias que exige que a alma se liberte das coisas aparentes e se eleve até as ideias verdadeiras. Sendo assim, o corpo é uma prisão da alma e, por isso, deve ser disciplinado para que a alma alcance as ideias verdadeiras. O sentido de alma aqui tem a ver com a mente e o pensamento. Todo problema humano para Platão consiste num dilema em que está em jogo uma alma suprema e racional e um corpo irracional que é sede de corrupção, apetites e paixões. A alma superior precisa exercer controle sobre o corpo para que esse alcance uma condição moral adequada. Encontramos nessa maneira de pensar a primeira concepção de corporeidade do pensamento ocidental, que vamos chamar de dualismo psicofísico, pois corresponde à relação alma-corpo ou mente-corpo como realidades contrárias. É a dupla realidade da mente separada do corpo. Esse conceito está ligado à máxima grega “mente sã em corpo são” e estará presente na maior parte do tempo e ainda interferirá nas formas de pensamento na contemporaneidade. * Leia o texto: “O Anel de Giges” (Anexo II). Aristóteles(384-322 a.C.), que foi aluno de Platão, criticou o seu mestre com relação ao conceito de mente-corpo como esferas contrárias. Ao retomar a reflexão sobre o conhecimento, ele afirmou que a ciência é a forma de conhecimento verdadeiro, que se dá através das causas, e que é suficiente para superar Corporeidade / Irenio Chaves 7 o engano bem como de compreender a dinâmica do devir. Reafirmou o dualismo psicofísico, mas rejeitou a concepção de realidades contrárias entre o mundo inteligível e o mundo sensível. Para ele, a alma tem a forma do corpo, que faz com que este interaja com o mundo através dos sentidos, da intuição e da consciência. No seu texto Sobre a alma, ele afirmou categoricamente que a alma é a forma e a perfeição de um corpo. A alma unifica o corpo. O corpo realiza ao mesmo tempo a função de sujeito e matéria enquanto que a alma é necessariamente uma forma específica de um corpo natural que tem vida em potência. Na base do pensamento aristotélico, tudo tende a uma mudança, a um devir constante. Sua concepção está firmada na ideia de que tudo o que existe possui uma substância individual, que por sua vez corresponde a uma essência, que são características ou atributos principais que fazem com que as coisas sejam o que são. A substância é aquilo que uma coisa é em si mesma e a essência tem a ver com aquilo que faz com que uma coisa seja o que é. As características essenciais do ser são necessárias, que são aquelas que não pode deixar de possuir, caso contrário deixa de ser o que é. Porém, esse mesmo ser possui características que são contingentes, visto que são varáveis e mutáveis. Para compreender essa relação, Aristóteles desenvolveu a noção de matéria e forma. A matéria é aquilo de que as coisas, no mundo físico, são formadas ou aquilo de que algo é feito. É pura passividade e contém a forma em potência. A forma, por sua vez, é aquilo que faz com que as coisas se tornem o que elas são. É o princípio inteligível, a essência de uma coisa. Todo ser é constituído de matéria e forma de maneira indissociável, de tal modo que tudo que existe tem em si a possibilidade de mudar. Aristóteles desenvolveu também a noção de ato e potência. O ato é aquilo que é e potência é o que pode vir a ser. Todas as coisas existem primeiramente em ato e trazem em si a potência de vir a ser outra coisa. Uma coisa pode ser una e múltipla, visto que para que possa transformar-se em algo é preciso que sofra a ação de outro ser que já existe em ato. Ele usou o exemplo da semente do carvalho que possui em si a potência de vir a ser uma árvore. Porém, essa potência foi gerada por uma árvore de carvalho em ato. Dentro de sua concepção, o homem é sobretudo um ser pensante que deve dirigir suas ações pela razão, mas também o concebe como um ser político que deve guiar-se a partir das relações com o outro dentro dos limites da vida em comum. A ação humana deve orientar-se pela aquisição de virtudes, que consiste num meio termo em direção ao bem. Aristóteles produziu uma vasta obra filosófica. Dentre as principais, encontram-se tratados relativos à metafísica, à ética, à obra de arte, à lógica e à política. Trata-se de um pensador que inspirou a Filosofia apontando-lhe caminhos que são levados em consideração até hoje. Período greco-romano Na verdade, o pensamento de Platão e de Aristóteles se constitui em duas diretrizes que vão marcar o período clássico da Filosofia e irão orientar toda a produção filosófica desde então. O platonismo e o aristotelismo serão tratados como dois eixos principais que vão inspirar o pensamento nos períodos seguintes e ainda servirão de base para as reflexões filosóficas até os dias atuais. Dentre os acontecimentos após o período clássico, ocorreu o que chamamos de período helênico ou greco-romano, marcado pelos movimentos filosóficos decorrentes da abordagem platônica e aristotélica, como o estoicismo, o hedonismo e o ceticismo. Esses movimentos inauguram uma nova perspectiva filosófica, voltada para a moral que não está diretamente relacionada ao conhecimento de si, à relação com o outro ou à vida na sociedade (na polis), mas em relação ao universo. O problema moral está ligado à necessidade natural do mundo. A maneira de se encontrar felicidade não está mais na realização da ação concreta na direção do outro. Num tempo em que a sociedade greco-riomana experimentava a decadência política e a crise social, a felicidade só poderia ser encontrada retirando-se da vida social, encontrando em si mesmo a tranquilidade da alma e a autossuficiência. Epicuro (341-271 a.C.), um dos pensadores do hedonismo, desenvolveu uma filosofia cujo objetivo era o de se atingir a felicidade, estado caracterizado pela aponia, a ausência de dor física, e a ataraxia ou tranquilidade da alma. Seu pensamento é considerado como naturalista, uma vez que o homem, a exemplo dos animais, busca afastar-se da dor e aproximar-se do prazer. Com isso, seria possível identificar o que é bom ou ruim. O pensamento de Epicuro serviu de base para o movimento hedonista. A busca pela felicidade é marcada pela existência de dores e prazeres. Quanto às dores físicas, nem sempre seria possível evitá-las, embora não sejam duradouras e possam ser suportadas com as lembranças de bons momentos que o indivíduo tenha vivido. Piores e mais difíceis de lidar são as dores que perturbam a alma. Essas podem continuar a doer mesmo muito tempo depois de terem sido despertadas pela primeira vez. Para essas, Epicuro recomenda a reflexão. As dores da alma estão Corporeidade / Irenio Chaves 8 frequentemente associadas às frustrações e, em geral, oriundas de um desejo não satisfeito. Para Epicuro, “o essencial para a nossa felicidade é nossa condição íntima e dela somos senhores”. Daí a expressão muito comum entre os hedonistas: “carpe diem”, que quer dizer aproveite bem o dia. Contrária a essa visão hedonista, encontra-se o movimento conhecido como estoicismo. Fundado por Zenão de Cítio (334-261 a.C.) e que teve entre seus principais pensadores Marco Aurélio, Sêneca e Epicteto. O princípio do pensamento estóico é a apatheia, uma atitude de aceitação de tudo o que acontece como parte de um plano superior orientado por uma razão universal. A alma está identificada com o princípio divino – o logos – que governa o universo, do qual pertence. É esse logos que dá origem e ordem a tudo e promove a harmonia – kosmos. Tudo o que resta ao homem é aceitar o seu destino e agir consciente dele. Surgem duas consequências éticas: primeiramente, deve-se viver conforme a natureza, o que significa dizer que deve-se viver de acordo com a razão em segundo plano. É por meio da razão que o homem se torna livre e feliz. A matéria-prima da arte de bem viver é a própria vida. O estoicismo defendia uma renúncia aos prazeres através da superação e do controle sobre o corpo e a mente, o que proporcionaria o alcance da vida virtuosa. Embora esses movimentos se opusessem, eles apontam para nós a ambiguidade de nossa condição humana, como se a necessidade de prazer e de discplina servissem como pêndulos que orientam nossas escolhas. Uma das conntribuições desses movimentos é a ideia que se desenvolveu a respeito da necessidade da prática de exercícios voltados para o cuidado de si. Trata-se de exercícios espirituais que, desde Platão, são dedicados ao conhecimento de si e que são identificados como ascese, que vem da palavra grega askesis, que quer didizer exercícios. Durante o período greco-romano, esses exercícios ou ascese correspondiam a uma livre escolha por parte do sujeito no sentido de se constituir enquanto arte de viver. Nesse caso, obedece a uma forma que se deve conferir à própria vida, um estilo de vida quenão obedece necessariamente a uma regularidade, a uma trama que se perpetua ao longo da vida. Essa ascese se dá em duas dimensões: uma de meditação, como meletân, e outra como uma prática, uma ginástica de preparação, como gymnázein. Abrange tanto um trabalho do pensamento sobre ele mesmo que visa preparar o indivíduo para os exercícios quanto uma prática organizada em que se põe à prova as próprias ações em situações com as quais se depara na própria vida. O ceticismo é outro movimento filosófico decorrente do pensamento clássico e que também caracterizou o período greco-romano. Ele teve início com Pirro de Elis (360-275 a.C.), que debateu com os estoicos a respeito do conhecimento. Para ele, nada pode ser afirmado pois todo saber comporta a impossibilidade de se ter certeza. O termo cético vem do grego skeptikos, que quer dizer “observar”, “ver” ou até mesmo “refletir”. Este era o nome dado aos seguidores das ideias de Pirro. Os filósofos céticos duvidavam de tudo, até mesmo da percepção de seus próprios sentidos. O ceticismo, então, se dedicava a examinar criticamente todo conhecimento a partir de uma atitude de suspenção do juízo, chamada em grego de époche, diante da possibilidade dele ser verdadeiro ou falso. O objetivo dessa atitude era atingir a ataraxia, ou a condição de não se deixar perturbar por coisa alguma, até alcançar a eudaimonia, que é o estado pleno de felicidade. Corporeidade / Irenio Chaves 9 Anexo II O anel de Giges Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. E esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — sofrê-la quando se é incapaz de vingança. Entre estes dois extremos, a justiça é apreciada não como um bem em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça lhe dá valor. Com efeito, aquele que pode praticar esta última jamais se entenderá com ninguém para se abster de cometê-la ou sofrê-la, porque seria louco. E esta, Sócrates, a natureza da justiça e a sua origem, segundo a opinião comum. Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça é o que compreenderemos bem se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamo-los e observemos até onde o desejo leva a um e a outro. Apanharemos o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é isso que a natureza toda procura como um bem, mas que, por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio. Este homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível. Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citar-se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto. PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2004. Livro II, p. 43-44. Corporeidade / Irenio Chaves 10 “O homem é como Deus, mas não de modo absoluto, porque é homem. É, portanto, um Deus humano”. Nicolau de Cusa 2. Na Filosofia Medieval Período Neoplatônico De um modo geral, o pensamento ocidental sempre tendeu a explicar o ser humano a partir de uma concepção que procura compreender o homem como composto de duas partes distintas, uma realidade material e uma realidade espiritual e consciente à qual chamamos de dualismo psicofísico. No pensamento greco-romano, essa relação consistia na compreensão da alma como tendo acesso às ideias verdadeiras e, para tanto, deveria ser liberta para que as alcançasse. O corpo era tratado como uma prisão da alma, que precisa ser disciplinado em suas paixões e desejos a fim de que a alma estivesse livre para acessar as ideias perfeitas. Nos séculos I e II da era cristã principalmente, essa ideia foi desenvolvida por pensadores como Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Epicteto (55-135 d.C) e Marco Aurélio (121-180). Como pensadores do estoicismo, eles desenvolveram uma preocupação centrada no homem, sobre sua formação e suas competências, tendo em vista obter o máximo do conhecimento de si e da compreensão acerca da complexidade da natureza humana. Esse modo de pensar desencadeou o movimento do neoplatonismo, baseado no resgate das ideias de Platão a respeito da alma humana. Os neoplatônicos acreditavam na perfeição humana e que tanto a perfeição quanto a felicidade seriam possíveis neste mundo, que poderiam ser alcançadas mediante a contemplação e a filosofia. Um dos principais pensadores neoplatônicos foi Plotino (204-270). Para ele, tudo no mundo se refere ao Uno, uma espécie de expressão divina como um ser supremo, fonte de onde emana toda a felicidade. O homem só tem acesso a essa felicidade de forma parcial, pois jamais é capaz de conhecer o Uno em sua totalidade. Para chegar ao Uno, ele precisade auxílio do conhecimento, que pode ser por meio da percepção sensível, da racionalidade e do conhecimento de si. O corpo e o mundo material seriam como representações, tidas com as mais belas imagens do mundo invisível e inteligível. A Idade Média tem sido tratada como uma fase da histórica marcada por uma baixa produção filosófica e científica. Alguns até se referem a ela como “a idade das trevas”. Entretanto, isso não corresponde à realidade. O período medieval propiciou um grande avanço nos estudos platônicos e na abordagem sobre a lógica e a retórica. O traço predominante será a aproximação entre a filosofia e a teologia cristã, que influenciou de forma decisiva o pensamento ocidental. Período Patrístico Essa época também foi marcada pelo movimento dos primeiros cristãos que, anunciando uma mensagem baseada no pensamento judaico-cristão, procuraram aproximar-se do pensamento greco- romano. Podemos chamar esse período de Patrístico, que começa ainda o século I da era cristã e se desenvolve até o século VI. Tem esse nome como uma referência aos primeiros padres da igreja cristã. Entre eles, podemos citar: Clemente de Roma, Orígenes, Inácio e Tertuliano. A aproximação entre o cristianismo e o pensamento greco-romano foi um fator decisivo para o desenvolvimento da cultura ocidental de tal modo que, a partir desse fato, nem a Filosofia nem o cristianismo serão mais os mesmos. Os primeiros pensadores do Período Patrístico se apropriaram tanto da lógica aristotélica quanto das práticas do cuidado de si do platonismo, ajustando o discurso cristão a essa maneira de compreender a realidade. O resultado é uma nova maneira de tratar a relação corpo e mente, em que o corpo não será mais visto como prisão da alma, mas como uma morada para Deus. As práticas do cuidado de si visam transformar o corpo em uma habitação digna. * Leia o texto: “A dignidade régia do homem” (Anexo III). Com o cristianismo, a filosofia medieval foi dominada por uma compreensão de que o corpo é lugar sagrado, mas sujeito à degradação por causa dos desejos e paixões, assolado o tempo todo pelas Pensamento Medieval Pensamento Greco-Romano Pensamento Judaico-Cristão Período Patrístico Corporeidade / Irenio Chaves 11 tentações carnais, sobretudo relativas à sexualidade. Por meio do controle dos desejos e pela renúncia dos prazeres físicos, procurava-se a sacralização do corpo com práticas como jejuns, abstinências e autoflagelação. Desenvolve-se, então, o que podemos chamar de ascetismo: um conjunto de exercícios espirituais e práticas de abstinência e autoflagelação que se destinava a exercer controle sobre os desejos e paixões do corpo a fim de transformá-lo em um lugar sagrado. O primeiro pensador desse período que irá influenciar de forma decisiva a Filosofia Medieval é Agostinho (354-430). Ele era natural do norte da África e iniciou seus estudos filosóficos com base no pensamento dualista. Já na fase adulta, converteu-se ao cristianismo e se tornou um dos principais doutores da igreja, exercendo o papel de bispo na cidade de Hipona, na Argélia. Ele defendeu a superioridade da alma humana sobre o corpo, a superioridade da esfera espiritual sobre a material. Ele entendia que a alma foi criada por Deus para reinar sobre o corpo e conduzi-lo para a prática do bem. Entretanto, o homem, usando de sua liberdade de escolha (ou de seu livre-arbítrio) deu lugar ao pecado, provocando a submissão da alma ao corpo, o que equivale a uma subordinação do espírito à matéria, do eterno ao transitório, da essência à aparência. A maneira de superar esse desequilíbrio seria submeter as escolhas livres do homem à vontade divina. A verdadeira expressão do livre-arbítrio é fazer a vontade de Deus. Portanto, ao examinar a relação corpo-alma, Agostinho afirma que eles constituem uma unidade e que somente alcança essa condição quando voltada para Deus. Para Agostinho, o corpo não é mau por natureza, mas a união do corpo com a alma é resultado de uma criação divina. A alma nasce com o indivíduo e se destina a reger o corpo. O homem é tratado como uma alma racional que se serve de um corpo, a alma tem uma substância distinta do corpo e é o que o “anima”. Nesse sentido, a alma sente, pensa, recorda, entende, julga e conhece por meio do pensamento, e se reconhece como pertencente a um corpo com quem tem uma união consubstancial. Ela é mediadora entre o corpo e a vontade divina, a quem Deus ilumina com sabedoria e orientações para a busca da perfeição. Agostinho desenvolveu dois conceitos importantes para o pensamento ocidental. O primeiro é o de interioridade como uma forma de pensar a subjetividade. Para chegar às ideias verdadeiras, a alma precisa dar um mergulho interior e, no mais íntimo de si, encontrará Deus que se identifica com a razão humana. Ele dizia que Deus é mais íntimo a nós do que nós mesmos. Uma obra que descreve bem essa compreensão é Confissões. O segundo tem a ver com a compreensão histórica como uma linearidade, ou seja, vivemos uma realidade no mundo que se confronta com a idealização do mundo debaixo da graça divina. Ele chama essa primeira vivência como cidade dos homens ou terrena, dominada pelo amor a si mesmo e o desprezo de Deus, onde acontecem todas as formas de maldade, exploração, opressão e injustiça. E ele chama esse mundo idealizado de cidade de Deus, onde estão as ideias perfeitas de liberdade, de igualdade e de justiça, marcado pelo amor a Deus e o desprezo de si. A grande experiência humana é aproximar as ações na cidade terrena das aspirações que só podem ser encontradas na cidade divina. Essa ideia está registrada na obra Cidade de Deus. Período Escolástico O pensamento agostiniano predominou na Europa por quase toda a Idade Média. Muitas de suas ideias, principalmente relacionadas à subjetividade e à temporalidade, irão influenciar o pensamento ocidental até os dias atuais. Sobretudo pelo fato de que o Ocidente experimentará uma fase de declínio político, no século VI, com a queda do império romano e o consequente avanço do império otomano sobre a Europa. O que restou do império romano se estabeleceu na cidade de Bizâncio (daí o chamado império bizantino) e Roma passou a sofrer influência do poder da igreja. Ao mesmo tempo, a presença dos árabes na península ibérica contribuiu para que novos estudos sobre a influência do aristotelismo fossem levados a efeito. Por volta do século VIII, com a ascensão de Carlos Magno e o estabelecimento do Sacro Império Romano- Germânico, também conhecido como domínio carolíngio, a Europa passou por uma tentativa de unificação, com o despertar do apreço pela educação e pelas artes. A igreja centralizada em Roma era entendida como a guardiã dos valores morais e do conhecimento que caracterizavam a cultura ocidental, que se tornou predominantemente cristã. Como tal, ela desenvolveu, a partir do século IX, um programa educacional voltado para os filhos dos grandes proprietários de terra para disseminar os saberes construídos pelo Ocidente (como a gramática, a matemática, a geometria, a astronomia, a música, a retórica, a lógica e a filosofia). Esse programa se baseava no estabelecimento de escolas que deram origem posteriormente às grandes universidades europeias, como Sorbonne, Oxford, Salamanca, Cambridge e muitas outras. Esse modelo ficou conhecido como escolasticismo e enfatizava a relação entre fé e razão. Anselmo de Cantuária (1033-1109), considerado como o “pai da Corporeidade / Irenio Chaves 12 escolástica”, notabilizou-se pela sua preocupação com a definição da fé como vinculada à racionalidade. Também ficou conhecido pelo seu argumento ontológico sobre aexistência de Deus. Durante o escolasticismo, o dualismo psicofísico é preservado, na medida em que o corpo é compreendido como uma habitação que deve ser apreciado numa perspectiva mais estética. Trata-se da sacralização do corpo. Outro pensador desse período, Bernardo de Claraval (1090- 1153), declamou: “Tu, alma, vives em uma casa sublime, fabricada pessoalmente pelo próprio Deus. Refiro-me a teu corpo, tão bem idealizado, disposto e ordenado, que te serve como uma morada gloriosa e deleitável, e que para teu corpo construiu outro excelso, amplíssimo e encantador palácio, que é esse mundo sensível e habitável”. O principal pensador do Período Escolástico é Tomás de Aquino (1225-1274), que escreveu uma vasta obra intitulada Summa Theologica. Seu pensamento tenta resgatar as ideias aristotélicas ao afirmar o princípio racional da ética. Na sua definição de corporeidade, a alma é a forma substancial do corpo. Ele diz: “Ora, na constituição do homem, o corpo se comporta como matéria e a alma, como forma. A virtude implica uma perfeição da potência. Há dois tipos de potência: potência para existir e potência para agir. A potência para existir fundamenta-se na matéria, que é ente em potência, ao passo que a potência para agir fundamenta-se na forma, que é princípio de ação, porque cada uma age na medida em que está em ato. [...] Por isso é que a virtude humana de que estamos tratando não pode pertencer ao corpo, mas só ao que é próprio da alma. Assim, a virtude humana não implica uma ordenação para existir, mas antes para a ação”. É no corpo que a alma realiza o sentido e o desafio mais profundo de sua natureza, experimentando a relação que envolve o vir-a-ser e o mundo ao redor. Para Tomás de Aquino, a paixões são a conjugação das disposições e tendências inatas para com as circunstâncias e suas contingências. O pathos corresponde à maneira como recepcionamos nossa relação com o mundo, como um sentir e um compreender, que são, de certo, modo, uma forma de padecer. A razão é que modera nossas ações a partir de uma reflexão intelectual. O período escolástico começa a enfrentar uma crise quando o modelo de abordagem sobre razão associado a uma perspectiva sobre a fé enfrenta críticas. Isso se dá no início do século XIV, com o avanço dos estudos aristotélicos que superam a influência do pensamento agostiniano e platônico, dando lugar a novas possibilidades para a ciência. Guilherme de Ockham (1285-1347) foi quem propôs a separação do ensino de filosofia e de teologia, uma vez que a filosofia não é suficiente para esclarecer os elementos ligados à fé e a teologia se destina a discutir os temas que apontam para a salvação da alma. Período Renascentista Com a abertura para novas abordagens sobre a razão humana, independentemente da fé, o pensamento e a cultura ocidental experimentaram uma fase de transformações em todas as áreas das atividades humanas, influenciados pela leitura de outros textos dos períodos clássico e greco-romano e a retomada dos padrões artísticos que caracterizaram a antiguidade clássica. Por essa razão, considerava-se que havia um renascimento cultural, assim definido por ser uma época de descobrimento do mundo e do ser humano, com ênfase no naturalismo e na dignidade humana. É desse período o surgimento da imprensa, a descoberta do continente americano e a formação dos estados nacionais na Europa. Além disso, houve avanços nas ciências, na literatura, na arquitetura e nas artes em geral. Veja alguns acontecimentos do período renascentista: a) Na política, com o surgimento dos estados nacionais, formados a partir do fortalecimento da nobreza, constituída pelos grandes proprietários de terra, e pelo estabelecimento da monarquia. b) Na vida urbana, com o crescimento dos burgos e o surgimento dos grandes centros urbanos, marcado pela arquitetura que resgata o classicismo romano. c) Na economia, com a substituição do regime feudal pelo mercantilismo. d) Na ciência, com as novas teorias astronômicas de Galileu e Copérnico. Galileu comprovou que a Terra é redonda e gira em torno de seu próprio eixo. Copérnico afirmou que a Terra não é o centro do Universo, mas o Sol, ao comprovar que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário. e) Na arte, com a busca das formas humanas perfeitas na escultura e na pintura, sobretudo com os estudos de Leonardo da Vinci e as obras de Michelangelo. f) Na literatura, com o surgimento das obras de grandes autores que ressaltavam a personalidade individual, como: Miguel de Cervantes com Dom Quixote, Dante Alighieri com Divina Comédia e William Shakespeare com diversos textos teatrais. g) Na religião, com a Reforma Protestante e a formulação de uma teologia reformada baseada na afirmação da capacidade humana de compreender a revelação divina por si mesmo por meio da graça. Corporeidade / Irenio Chaves 13 Essas transformações apontavam uma tendência de valorização do humano, inclusive com a exaltação da beleza corporal. No âmbito da filosofia, essa tendência corresponde ao surgimento do humanismo, que irá influenciar todo o pensamento desde então. O humanismo corresponde a um descentramento, que consistem em retirar Deus do centro do conhecimento para colocar nele o homem. Um dos primeiros pensadores do humanismo renascentista foi Nicolau de Cusa (1401-1464). Entre os pensadores desse período, podemos mencionar: Thomas Moore (1478-1535), que escreveu A Utopia; Erasmo de Roterdã (1466-1536), que escreveu Elogio da Loucura; Maquiavel (1469-1527), que é conhecido pela obra O Príncipe; e Thomas Hobbes (1588-1679), que escreveu Leviatã. O humanismo constitui-se como um movimento que orientou a produção intelectual, compreendendo o homem como uma totalidade constituída de corpo e alma, destinado a dominar a natureza e a viver no mundo de forma autônoma. Na Filosofia, vai se verificar um crescente desprezo à metafísica e um interesse pelas leis que regem a natureza, que será a base da ciência moderna. É também desse período o surgimento do contratualismo, que se baseia na ideia de que a vida social emerge a partir de acordos firmados entre os indivíduos. O encerramento do período renascentista – e consequentemente da Filosofia Medieval – será dominado por uma pergunta comum, que estava implícita na busca de novos saberes: “como erramos tanto?” Essa pergunta dá lugar a outra, que visa encontrar uma resposta sobre o que é conhecimento: “como se erra?” Corporeidade / Irenio Chaves 14 Anexo III A dignidade régia do homem Da mesma maneira como, nas coisas humanas, os artífices dão aos instrumentos que fabricam aquela forma que parece ser a mais idônea ao uso a que se destinam, assim o Sumo Artífice fabricou nossa natureza como uma espécie de instrumento, apto para o exercício da realeza; e para que o homem fosse completamente idôneo para isso, dotou-lhe não só de excelências enquanto a alma, senão, na mesma figura do corpo. E é assim que a alma põe de manifesto sua excelsa dignidade régia, muito estranha a baixeza privada, pelo fato de não reconhecer a ninguém por senhor e fazer tudo por seu próprio arbítrio. Ela, por seu próprio querer, como dona de si, se governa a si mesma. E, de quem mais, que não seja um rei, é próprio semelhante atributo? Segundo o costume humano, os que fazem as imagens dos imperadores, tratam primeiramente de reproduzir sua figura e, revestindo-a de púrpura, expressam justamente a dignidade imperial. É já uso e costume que a estátua do imperador se lhe chame imperador; assim, a natureza humana, criada para ser senhora de todas as outras criaturas, pela semelhança que em si leva do Rei do universo, foi elevada como uma estátua vivente e participa da dignidadee do nome do original primeiro. Não se veste de púrpura, nem ostenta sua dignidade pelo cetro e o diadema pois, tão pouco, o original ostenta estes sinais. Em vez de púrpura, reveste-se de virtude, que é a mais régia das vestes; em lugar de cetro se apoia e se radica na bem-aventurança da imortalidade; e, no lugar do diadema, cinge-se com a coroa da justiça; de sorte que, reproduzindo pontualmente a beleza do original, a alma ostenta em tudo a dignidade régia. GREGÓRIO DE NISSA, A criação do homem. Capítulo 4. Fonte: GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, 1985. Coleção Patrologia. Gregório de Nissa (330-395) foi um dos pensadores cristãos do Período Patrístico que se baseou na filosofia platônica. Corporeidade / Irenio Chaves 15 “Mente e corpo são um só.” Espinosa 3. Na Filosofia Moderna Teoria do Conhecimento A Modernidade é um período do pensamento ocidental que tem início no século XVII e foi marcado por uma forte ênfase na razão suficiente, na afirmação da autonomia do sujeito e na compreensão mecânica das relações entre sujeito e objeto. O início da Modernidade se deu a partir de uma preocupação com o conhecimento, principalmente com o modo como o erro acontece. Na tentativa de explicar como o erro acontece, Francis Bacon (1561-1626) formulou a teoria dos ídolos, que se referia às noções falsas, preconceitos e maus hábitos que interferem em conhecimento e que nos impedem de se chegar à verdade. Os ídolos são: da caverna, que corresponde aos nossos sentidos; da tribo, que correspondem às crenças e valores de nossa cultura; do teatro, que correspondem as representações do real; e do fórum, que corresponde aos juízos estabelecidos. A única maneira de extirpar esses ídolos da mente é conhecer a si mesmo e desenvolver um método para se chegar ao conhecimento verdadeiro. Outro pensador que tentou explicar a origem do erro foi René Descartes (1596-1650), que procurou demonstrar que o erro nasce tanto pela precipitação quanto pela prevenção em se aceitar qualquer afirmação como verdade sem antes investigar. Para ele, a experiência adquirida pelos sentidos é enganadora, sendo assim fonte de erros. Por isso ele afirmava que não se deve confiar inteiramente naquilo que já foi fonte de engano. Nessa tentativa de se buscar uma forma de conhecimento que evitasse o erro, surge uma nova mentalidade científica, cujas características principais envolve a necessidade de formulação de um método para conhecer. O campo de investigação que procura estabelecer os princípios da atitude científica é chamado de Teoria do Conhecimento. Trata-se de uma nova forma de fazer ciência, que envolve: a) Afirmação do método. O método corresponde ao caminho que se deve fazer para chegar a um determinado conhecimento. A palavra é formada a partir dos vocábulos gregos meta (através) e odos (caminho), que quer dizer “caminho a seguir”. b) Substituição da dedução pela indução. A dedução é o modo de se conhecer em que se parte de uma ideia universal para se chegar às ideias particulares. Já a indução envolve a investigação das ideias particulares a fim de se encontrar uma lei universal. c) A generalização, visto que o conhecimento de uma parte deve ser aplicado à totalidade das partes. Ou seja, o que se conhece acerca de um indivíduo de uma espécie vale para todos os indivíduos da mesma espécie. d) O princípio da análise, que é a divisão do todo em partes. Isso quer dizer que, para se conhecer um determinado objeto ou ser, seria necessário fragmentá-lo e reduzi-lo à menor unidade observável possível. e) A concepção mecânica que tem a ver com a noção de que cada ação corresponde a uma reação. Além dessa preocupação com o conhecimento, o pensamento ocidental experimenta o desenvolvimento do humanismo como uma afirmação da autonomia e da dignidade da pessoa humana. No início da idade moderna, portanto, inicia-se um novo modo de olhar sobre o mundo, que é o olhar de uma consciência secularizada, segundo a qual o componente religioso é retirado para só considerar a natureza física e biológica. Nessa nova mentalidade, o corpo passa a ser objeto da ciência. Trata-se de uma dessacralização do corpo, caracterizado por uma concepção mecânica do corpo. Racionalismo René Descartes, o principal pensador desse período, resolveu colocar sob o crivo da dúvida todo o seu pensamento a fim de desenvolver uma investigação sobre quais seriam as ideias claras e distintas que lhe vinham à mente. Para tanto, ele partiu da dúvida metódica a respeito da realidade do mundo e do próprio corpo para chegar à primeira ideia clara e distinta, que é o próprio pensamento, ou o cogito, em latim. Por essa razão é que ele afirmou: “Penso, logo existo”. O princípio de seu pensamento é conhecido como teoria do cogito, o qual ele desenvolveu a partir da compreensão de que o ser humano é constituído por duas substâncias distintas: o eu pensante, de natureza espiritual, e a coisa extensa, de natureza material. Para Descartes, as ideias claras e distintas são ideias inatas, verdadeiras, não sujeitas ao erro, pois vêm da razão. O conceito que ficou conhecido como cogito, portanto, se baseia em dois aspectos: um ser pensante Corporeidade / Irenio Chaves 16 e autônomo, o sujeito; uma substância extensa, o objeto. A relação que há entre sujeito e objeto é mecânica, em que o primeiro exerce controle sobre o segundo. Isso envolve uma noção de corporeidade em que o corpo é concebido como máquina, ou ex machina, conforme afirmou. Descartes chegou a dizer que: “O que não parecerá de modo algum estranho a quem — sabendo quão diversos autômatos ou máquinas móveis a indústria dos homens pode produzir, sem empregar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande multidão de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal — considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens.” O pensamento cartesiano (como nos referimos a René Descartes) desencadeou uma controvérsia na filosofia ocidental à qual pode ser chamada de crise da Modernidade. De um lado, há uma tendência à afirmação da base do pensamento de Descartes, conhecido como Racionalismo e, de outro, há uma crítica baseada na afirmação da necessidade da experiência sensível para se conhecer, conhecido como Empirismo. Compare essas duas correntes: EMPIRISMO X RACIONALISMO Empirismo – o conhecimento se dá a partir da experiência sensível. A razão é adquirida. Ênfase no objeto. Preocupação com a objetividade. Racionalismo – o conhecimento se dá pela razão. A razão é inata. Ênfase no sujeito. Preocupação com a subjetividade. Do lado racionalista, vamos encontrar pensadores como Baruque de Espinosa (1632-1677), Blaise Pascal (1623-1662) e Leibniz (1646-1716). Dentre esses, Baruque de Espinosa se destaca por desenvolver uma compreensão de que não há uma relação de causalidade ou de hierarquia entre corpo e mente, mas de expressão e simples correspondência. Podemos chamar essa concepção de teoria do paralelismo. Ele afirmou: “Entendemos assim não apenas que a Mente humana é unida ao Corpo, mas também o que deve ser entendido pela união de Mente e Corpo”. O paralelismo de Espinosa apresentava duas proposições: uma, a de que “a Mente humana só conhece o próprio corpo humano e só sabe que ele existe pelas ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado”; a outra, a de que “a Mente só conhece a si mesma na medida em que percebe as ideias das afecções do Corpo”. Entre os empiristas, amaioria dos filósofos eram ingleses. Dentre eles, podemos citar John Locke (1632- 1704), que formulou uma teoria do conhecimento, que se baseava na contestação da razão inata. Para ele, toda pessoa quando nasce é como uma “tábula rasa”, ou uma folha em branco, onde são inscritas as experiências humanas. Eram também filósofos empiristas: Francis Bacon, George Berkeley (1685- 1753) e David Hume (1711-1776). David Hume desenvolveu a noção de que não há ideias inatas no homem, mas que também a experiência sensível não nos diz muito. E isso se dá porque só podemos observar os fenômenos, assim como o mecanismo íntimo do real não é passível de experiência. O que é possível ser observado é a sucessão de fatos ou a sequência de eventos, e não o nexo causal entre esses eventos. Sendo assim, só chegamos ao conhecimento por analogia. * Leia o texto: Pensamentos (Anexo IV). Iluminismo O século XVIII traz consigo um movimento intelectual que procurou afirmar o domínio da razão sobre os poderes da religião e do Estado. A ênfase recaía sobre a capacidade humana de conhecer e de realizar as transformações da sociedade sem a tutela de nenhuma outra instância, apenas pela razão. Esse movimento é chamado de Iluminismo ou Século das Luzes, mas também pode ser chamado de Esclarecimento ou pela palavra alemã Aufklarung. Dentre os pensadores do Iluminismo, vamos encontrar: a) Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que afirmou que o homem em sua natureza é bom, mas a sociedade o corrompe. É dele também a obra O contrato social, na qual propõe que as pessoas façam um novo acordo de vida em sociedade com base na liberdade. b) Denis Diderot (1713-1784), que é considerado o pai do enciclopedismo, que procurava interferir no modo como as pessoas pensavam, incentivando o saber secularizado. Ele organizou a primeira Encyclopédie. c) Montesquieu (1689-1755), que foi um forte defensor das ideias liberais e formulou as bases do princípio constitucionalista. b) Voltaire (1694-1778), que foi um defensor das liberdades civis e um crítico da Igreja Católica e das instituições de seu tempo. O Iluminismo marcou profundamente a política na Europa, com a promoção dos ideais que motivaram a Revolução Francesa (em 1782), conhecidos pelo lema Corporeidade / Irenio Chaves 17 “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, bem como influenciou os movimentos de independência dos Estados Unidos da América (em 1776) e a Inconfidência Mineira no Brasil (em 1789). O pensador mais importante desse período é Immanuel Kant (1724-1804). Ele entendia que a humanidade havia encontrado sua forma de superar sua menoridade, que corresponde à falta de habilidade de se usar o próprio entendimento sem a necessidade de um guia. Esse era o verdadeiro sentido do Iluminismo. Ele usou a expressão Sapere Aude, que quer dizer “ouse conhecer”, que corresponde a “ter coragem de usar o seu próprio entendimento”. Para ele, “o esclarecimento requer nada além do que liberdade – e o mais puro de tudo isso é a liberdade de fazer uso público da razão em qualquer assunto”. Filósofo alemão, Kant procurou investigar a razão a partir de uma atitude crítica, influenciado pelas ideias de David Hume. Na verdade, ele procurou fazer uma síntese entre racionalismo e empirismo, procurando, assim, superar a crise da Modernidade. Para Kant, a consciência possui uma estrutura a priori que permite que se conheça a realidade apenas através dos fenômenos. A realidade é constituída pelos fenômenos e pelas coisas em si ou o real, mas entre eles há um abismo que a razão não consegue transpor. Em sua obra principal, Crítica da Razão Pura, Kant enfatiza que o sujeito conhece porque tem em si mesmo faculdades que o tornam capaz de conhecer. Ele mesmo denominou sua teoria como uma “revolução copernicana”, visto que iria alterar os rumos da Filosofia e a solução da crise moderna entre racionalismo e empirismo. A sua filosofia é conhecida como crítica, ou criticismo kantiano, ao tentar compreender quais são os limites da razão e quais são os limites da experiência. Kant parte da concepção de que a realidade é constituída daquilo que chamou de “coisa em si” ou o real e dos conceitos que conceitos que elaboramos sobre a realidade, que ele denominou de fenômeno. Desse modo, a razão possui uma estrutura a priori que permite que se conheça a realidade apenas através dos fenômenos. De acordo com o pensamento kantiano, há um abismo entre o real e o fenômeno que a razão não consegue transpor. Por essa razão, só podemos analisar os objetos na medida em que eles aparecem à nossa consciência. Sua capacidade é de formular conceitos que tornam possíveis a experiência e foi essa ideia que o levou a formular sua teoria dos juízos, que são formas de conhecimento que consiste na associação de conceitos. O conhecimento é constituído de matéria e forma, sendo que a matéria são as próprias coisas e a forma somos nós mesmos. Há, então, duas fontes do conhecimento: a sensibilidade, através da qual os objetos são dados pela intuição; e o entendimento, através do qual os objetos são pensados por meio de conceitos. Para que o conhecimento seja estabelecido, é preciso que a percepção aconteça em primeiro lugar na dimensão de tempo e espaço. O espaço é a forma de sentido externa e o tempo é a forma interna. O espaço e o tempo não são conceitos aprendidos pela experiência, mas tornam possível toda e qualquer experiência. Em linguagem kantiana, o espaço e o tempo são as formas a priori da sensibilidade. O pensamento kantiano despreza o conhecimento metafísico, uma vez que temos diante de nós toda uma realidade fenomênica que precisa ser analisada e investigada. O papel da metafísica ficou relegado ao campo da moral, que deve ser orientada pelo dever. Segundo Kant, o dever deve pautar-se por uma decisão da vontade livre. Para ressaltar o papel da vontade, ele formulou o conceito de imperativo categórico, que diz: “age de tal maneira que a máxima da tua vontade seja a base de uma lei universal”. A moral kantiana está voltada para o bem comum, que vem antes até da felicidade. A relação corpo-alma para Kant faz parte do que ele chamou de idealismo transcendental, que se refere a uma atitude em que o sujeito possa reconhecer o corpo como um objeto em meio a outros objetos. Trata-se de uma relação que se constrói no mundo e a partir do mundo. O corpo é um objeto reflexivo, que pode olhar para si, atribuindo sentido às suas experiências, partindo da noção de que não existe sujeito nem objeto separados do mundo. O lugar do sujeito pensante no interior do mundo sensível é precisamente o espaço de seu corpo. O pensamento kantiano foi duramente criticado pelos pensadores românticos e pelos do idealismo alemão. Entre eles, encontram-se Johann Fichte (1762- 1814) e Friedrich Schelling (1775-1854). O principal aspecto dessa crítica está na questão acerca da condição humana e a capacidade de superar as limitações da natureza. Para tais filósofos, não há uma separação entre o fenômeno e a coisa em si, como afirmava Kant, uma vez que estes fatores estão juntos numa mesma coisa. Há uma identidade entre ambos e é isso que corresponde à ideia de absoluto ou de totalidade. Idealismo Georg Hegel (1770-1831) foi um pensador alemão que levou a Modernidade ao seu auge. Sua mais importante obra é a Fenomenologia do espírito, na qual desenvolve uma abordagem sobre os modos como a consciência atua. Ele foi um crítico de Kant, Corporeidade / Irenio Chaves 18 influenciado pela filosofia dos românticos, principalmente em relação à ideia de uma razão originária e da impossibilidade da razão apreender o real. Hegel inovou em sua época ao perceber o conhecimento como resultado de um processo,segundo o qual a razão é histórica, a verdade é construída no tempo. Hegel desenvolveu uma nova compreensão, que ficou conhecida como a base do idealismo: a de que a razão é histórica, de que a verdade é construída no tempo. Para ele, a consciência interfere diretamente na construção da realidade, tendo como base o devir – o ser como processo, movimento, como vir-a-ser. Sendo assim, faz-se necessária uma nova lógica para dar conta da dinâmica do real, tendo como base a contradição, à qual chamou de dialética. Trata-se de um processo através do qual a consciência toma posse do real. A dialética se baseia no fato de que toda ideia tende a morrer para dar lugar a uma nova ideia. É de fato uma lógica que, segundo Hegel, parte do princípio da contradição para dar conta da dinâmica do real, cujo movimento se faz em três etapas: tese, antítese e síntese. Hegel utiliza a metáfora do senhor e do escravo para explicar a sua dialética. O senhor corresponde ao sujeito e o escravo ao objeto. Conforme explica Hegel, só há senhores porque alguém foi submetido à condição de escravos. Embora domine, o senhor não pode se dizer livre, pois está acostumado a ser servido e não pode se realizar de forma autoconsciente pois está dependente do outro. É na relação com o outro que o escravo adquire a consciência de si e está em condições de libertar-se. A intenção é demonstrar como a consciência é conduzida a um saber absoluto, na qual o sujeito encontra seu fundamento último e a consciência de si. Na concepção de corporeidade de Hegel, ele reduz o homem ao pensamento, um ser abstrato e espiritual. O homem concreto, de carne e osso, em sua dimensão essencialmente corpórea, aparece como existência efêmera, não objetivo, que tem no conhecimento de si seu único comportamento objetivo. O pensamento hegeliano teve desdobramentos importantes no final do período que chamamos de moderno. Ainda no século XIX, dois pensadores contemporâneos a Hegel desenvolveram duras críticas às suas ideias. O primeiro deles foi o dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), que se autointitulou o anti-Hegel. Para ele, a condição humana é marcada não por uma consciência absoluta, mas pela angústia e pelo desespero. Ao analisar a existência humana, Kierkegaard afirma que ela se dá em três estágios: o ético, marcado por uma vida regrada; o estético, marcado pela aparência, e o religioso, marcado pela vida de fé como a capacidade de assumir quem de fato é. Ele é considerado o primeiro pensador que deu origem à corrente filosófica do Existencialismo. O outro pensador é o alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), que foi contemporâneo de Hegel. Segundo ele, a vida humana é regida pela vontade, que acaba por produzir um sentimento de incompletude ao nunca se realizar, o que leva a sempre querer mais e, com isso, ao sofrimento. Positivismo A crítica ao pensamento hegeliano influenciou também o surgimento do Positivismo, uma doutrina filosófica que estava voltada para a valorização da ciência e a rejeição da teologia e da filosofia. Ele foi fundado pelo francês Augusto Comte (1798-1857) e se baseava na concepção de que as ideias positivas são aquelas que aparecem objetivamente à razão. O conhecimento objetivo é aquele que “busca ver para prever a fim de prover”. Isso significa que o conhecimento objetivo deve ter a finalidade de ajudar a humanidade a superar seus problemas. Para fundamentar sua concepção, Comte formulou a teoria dos três estágios. São eles: 1°) O estágio mítico, que se baseia nas explicações sobrenaturais e na atitude religiosa, orientado pela teologia. 2°) o estágio metafísico, que se baseia na capacidade de indagação, orientado pela filosofia. 3°) o estágio positivo, que via a solução prática dos problemas humanos e é orientado pela ciência. O Positivismo surgiu na Europa num momento de grandes transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, principalmente decorrentes da revolução industrial e do fortalecimento do capitalismo. Além disso, o Positivismo influenciou grandemente a formação da mentalidade científica no século XIX, tornando-se uma verdadeira febre nos ambientes acadêmicos. O filósofo espanhol Garcia Morente (1886-1942) certa vez afirmou que “o positivismo é a morte da Filosofia”. O lema do Positivismo era: “O Amor por princípio; a Ordem por base; o Progresso por fim”. Fundado nesse paradigma, Comte afirmou que sua filosofia iria se transformar na nova religião da humanidade, que superaria, inclusive, o cristianismo. Por causa dessa ideia, Comte foi desprezado, mas seu Positivismo continuou produzindo seus efeitos, inclusive no Brasil, com a formação do ideal republicano e a abolição da escravatura. Daí a razão pela qual a expressão “Ordem e Progresso”, retirada do lema positivista, encontrar-se na bandeira brasileira. Um fato curioso é que o Brasil Corporeidade / Irenio Chaves 19 possui o único templo destinado à religião positivista, que está situado na cidade do Rio de Janeiro. A partir da afirmação de que a ciência tem todas as respostas, o Positivismo também influenciou a formação de uma crença de que a ciência pode tudo. Trata-se do cientificismo, que consiste na afirmação de que a ciência possui uma superioridade sobre todas as demais formas de conhecimento humano e de compreensão da realidade, sendo capaz de encontrar solução prática para os problemas vividos pelo homem. Corporeidade / Irenio Chaves 20 Anexo IV Pensamentos O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo. Um vapor, uma gota d’água é bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universo tem sobre ele, o universo a ignora. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É daí que é preciso nos elevarmos, não do espaço e da duração que não saberíamos encher. Trabalhemos, pois, para bem pensar: eis o princípio da moral. [...] O pensamento é, pois, uma coisa admirável por natureza. Era preciso que tivesse estranhos defeitos para ser desprezível. Mas, tem tais que nada é mais ridículo. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. Corporeidade / Irenio Chaves 21 “Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.” Karl Marx 4. Na Filosofia Contemporânea Crítica à racionalidade moderna O que chamamos de Filosofia Contemporânea tem a ver com a fase do desenvolvimento do pensamento ocidental que tem início nos meados do século XIX, perpassa todo o século XX e chega até o século XXI. É o período em que nos encontramos. O projeto moderno de afirmação da razão suficiente e da autonomia do sujeito, dando condições ao homem de ter o controle sobre a Natureza passou a ser visto com desconfiança. A Filosofia havia alcançado um nível de abstração e distanciamento da vida, e foi isso que despertou a crítica de três principais pensadores – o que chamo de críticos da racionalidade ou “filósofos da suspeita”, como o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) os designou. São eles: Sigmund Freud (1856-1839), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ao questionar o racionalismo moderno, Freud – pensador austríaco – discordou do fato de que a consciência humana é o centro das decisões e do controle dos desejos. Para ele, as forças conflitantes das pulsões estão ligadas ao inconsciente, que é constituído de duas instâncias: o id, que é a pulsão do desejo, e o superego, que são as censuras e sansões que são exercidas sobre o desejo.
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