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Iluminismo e Direito Penal Arno Dal Ri Júnior Alexandre Ribas de Paulo Alexander de Castro Ricardo Sontag Florianópolis 2 0 0 9 Iluminismo e Direito Penal © Fundaçao José Arthur Boiteux EDITORA FUNDAÇÃO BOITEUX Conselho Editorial Prof. Aires José Rover Prof. Arno Dal Ri Júnior Prof. Carlos Araujo Leonetti Prof. Orides Mezzaroba Secretária Executiva Thálita Cardoso de Moura Capa, projeto gráfi co STUDIO S Diagramação & Arte Visual e diagramação (48) 3025-3070 studios@studios.com.br Imagem da Capa Detalhe de “L’Accademia dei pugni” (1766), Antonio Perego, óleo sobre tela (52 x 37 cm), 1766, coleção privada Revisão Marco Beck Impressão Nova Letra Gráfi ca e Editora (47) 3325-5789 – novaletra@novaletra.com.br Endereço UFSC – CCJ – 2º andar – Sala 216 Campus Universitário – Trindade Caixa Postal: 6510 – CEP: 88036-970 Florianópolis – SC Tel./Fax: 3233-0390 (Ramal 201) E-mail: livraria@funjab.ufsc.br Site: www.funjab.ufsc.br Catalogação na publicação por: Aline Cipriano Aquini CRB-14/961 Ficha Catalográfi ca D15r Dal Ri Júnior, Arno. Iluminismo e direito penal/ Arno Dal Ri Júnior... [et al.]. – Florianó- polis: Fundação Boiteux, 2009. 208 p. Inclui bibliografi a ISBN: 978-85-7840-013-2. 1. Iluminismo – aspectos jurídicos. 2. Filosofi a moderna -Séc. XVIII. 4. Filosofi a do direito. Direito penal – fi losofi a. 2. Direitos fundamentais. I. Paulo, Alexandre Ribas de II. Castro Alexander de. III. Sontag, Ricardo. IV. Título. CDDir. 340 Sumário INTRODUÇÃO ....................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 Cesare Beccaria e o Direito Penal do absolutismo esclarecido: O reformismo habsbúrgico e o iluminismo na lombardia austríaca Alexander de Castro Introdução.............................................................................................. 15 1. Iluminismo e absolutismo no século XVIII .................................... 18 2. O Iluminismo milanês e o reformismo habsbúrgico na Lombardia .......................................................................................... 27 3. O Legislador e o absolutismo esclarecido de Helvétius a Beccaria ............................................................................................... 37 4. O utilitarismo em Dei delitti e delle pene: o rei-legislador e a efi cácia do direito penal .................................................................... 55 Conclusão .............................................................................................. 62 Referências bibliográfi cas .................................................................. 63 CAPÍTULO 2 Lei penal e exemplaridade econômica: A execução das penas como extensão dos enunciados legislativos em Jeremy Bentham Ricardo Sontag Introdução: O problema penal em Jeremy Bentham ...................... 69 1. O soberano, a ordem e o direito penal ........................................... 76 2. A dupla face da lei penal .................................................................. 78 3. Exemplaridade econômica ............................................................... 83 4. A prisão como pena .......................................................................... 95 Considerações fi nais: declinações benthaminianas do iluminismo penal ................................................................................ 105 Referências bibliográfi cas ................................................................ 110 CAPÍTULO 3 A construção do crime contra a autoridade do Estado no discurso iluminista Arno Dal Ri Júnior Introdução............................................................................................ 117 1. Contestações Iluministas: Montesquieu, Beccaria, Marat ......... 118 2. O Despotismo da Liberdade .......................................................... 136 Considerações fi nais .......................................................................... 148 Referências bibliográfi cas ................................................................ 149 CAPÍTULO 4 O discurso jurídico-penal iluminista no direito criminal do império brasileiro Alexandre Ribas de Paulo Introdução............................................................................................ 155 1. Matrizes discursivas do Direito Estatal Moderno ...................... 156 2. O surgimento do Iluminismo e o contexto político do século XVIII ...................................................................................... 160 3. Período Humanitário do Direito Penal e os postulados de Cesare Beccaria ................................................................................ 164 4. O direito penal no Brasil ................................................................. 174 4.1. O Direito Penal no Brasil Colônia .......................................... 174 4.2. A cultura jurídica brasileira e o Código Criminal do Império ...................................................................................... 179 4.3. O Período Regencial e o Código de Processo Criminal do Império ....................................................................................... 191 Referências bibliográfi cas ................................................................ 202 Introdução A modernidade ocidental é, em muitos aspectos, tributária do discurso iluminista do século XVIII. O direito penal, longe de constituir qualquer exceção, esteve no centro do debate iluminista. Com a presente obra intentamos resgatar este importante capítulo da história das idéias fi losófi cas que tanto marcaram a cultura jurídica moderna. A importância do Iluminismo para a formação do direito penal moderno é sufi cientemente reconhecida em todos os manuais e tratados de direito penal escritos no Brasil. Tal reconhecimento, porém, nem sempre é acompanhado do aprofundamento histórico- jurídico necessário para a compreensão tanto da centralidade do problema penal no século XVIII quanto para uma avaliação mais criteriosa das rupturas e continuidades existentes entre o Iluminismo jurídico-penal e os outros momentos, anteriores e posteriores, da cultura jurídico-penal ocidental. Desta maneira, ao contrário da busca pela origem tranqüilizadora que perpassa as introduções históricas de tantos livros didáticos de direito penal, o objetivo dos textos que compõem este livro é problematizar esta origem, bem como perceber as especifi cidades históricas de tal discurso. Para executar essa tarefa selecionamos alguns dentre os pontos da história do Iluminismo jurídico-penal que consideramos de especial interesse para o leitor brasileiro. Assim, começamos com Cesare Beccaria, passamos por seu “discípulo” Jeremy Bentham, pela questão dos crimes políticos entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, chegando às reverberações do Iluminismo no direito penal brasileiro do princípio do século XIX. O capítulo de abertura da obra, Cesare Beccaria e o direito penal do absolutismo esclarecido, trata do jurista e fi lósofo que mais profun- damente marcou os debates da Ilustração sobre o tema do direito penal. Procurou-se analisar as relações de sua principal obra, Dos delitos e das penas, com a fi losofi a iluminista, por um lado, e com a formação do absolutismo esclarecido na Lombardia austríaca, por outro. Considerado o marco principal da fundação do direito penal ILUMINISMO E DIREITO PENAL 10 | Introdução moderno, o livro foi escrito sob forte infl uência do Iluminismo fran- cês, num contexto em que seu autor e todo o grupo de fi lósofos a que pertencia aproximava-se dos projetos reformistasda coroa da Áustria em seu domínio italiano. O tratamento da questão penal dado por Beccaria é estudado, assim, em conexão com a análise do projeto de reformas da dinastia habsbúrgica na Lombardia e do papel que, nesse processo, coube aos intelectuais iluministas e à própria fi losofi a do Iluminismo. Ao fi m procurou-se ressaltar os fundamentos teóricos de índole utilitarista que, infl uenciados pelo fi lósofo francês Helvétius, inspiraram a obra de Beccaria, tentando-se traçar ainda algumas conexões entre ela e as necessidades do reformismo austríaco. Na seqüência, com o capítulo intitulado Lei penal e exempla- ridade econômica, aborda-se as conhecidas concepções de pena de Jeremy Bentham a partir do cruzamento entre direito penal e teoria da legislação. A partir disso, a análise se concentra nas penas como extensões dos enunciados legislativos e revisa as relações entre as concepções de Bentham e a tradição penal iluminista. Tomando como porta de entrada a teoria da legislação foi possível relativi- zar a excessiva vinculação da teoria da pena benthaminiana com as chamadas sociedades de vigilância do século XIX (tal como se de- preenderia da obra de Foucault), pois a necessidade de enquadrar tanto o panopticon como os outros tipos de prisão no esquema da pena-representação denuncia uma vinculação maior de Bentham com a tradição jurídico-penal iluminista. No capítulo A construção do crime contra a autoridade do Estado no discurso iluminista percorre-se o itinerário do tratamento dado aos crimes políticos dentro do discurso jurídico-penal iluminista. Iniciando com a análise da questão do crimen laesae maiestatis nas obras de Montesquieu, Beccaria e Marat, e fi nalizando com a análi- se da formação do crime de lèse-république, procura-se demonstrar como Robespierre, Danton, Saint-Just e Couthon, bradando contra os inimigos da République, articularam uma espécie de transfi guração onde grande parte dos elementos que compunham o núcleo da noção de crimen laesae maiestatis migrou para os novos e modernos crimes contra a segurança do Estado. Procura-se demonstrar, assim, que, muito embora embasado pelas críticas feitas pelos autores do apogeu do Iluminismo jurídico-penal, o regime revolucionário foi guiado pelo Arno Dal Ri Júnior • Alexandre Ribas de Paulo • Alexander de Castro • Ricardo Sontag Introdução | 11 espírito e os métodos de um feroz direito penal político que domi- naria todo o conjunto da atividade repressiva, tornando difi cílimo demarcar com nitidez a linha que separava as ações estritamente jurídico-penais daquelas que diziam respeito aos delitos políticos. Por fi m, com o capítulo intitulado O discurso jurídico-penal iluminista no direito criminal do Império brasileiro, tentou-se verifi car, de maneira sintética, alguns refl exos do saber iluminista na cultura jurídico-penal brasileira no tempo do Império. O texto inicia com o contexto histórico europeu do século XVIII, onde se dissemina o pen- samento jurídico-político iluminista de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, e chega ao contexto histórico, político e jurídico-penal brasileiro pré e pós-Independência, para que se possa compreender como foram sendo estruturadas as instituições burocráticas ofi ciais no Brasil. Procurou-se analisar a conjugação da reprodução do dis- curso jurídico iluminista do século XVIII com práticas jurídico-penais marcadas pelo clientelismo, pela manutenção de privilégios às elites tradicionais e pela imposição de respeito às autoridades legalmente investidas pelo Poder soberano. A obra que agora apresentamos é o resultado parcial de algu- mas pesquisas individuais realizadas dentro do Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (Ius Commune) da Universidade Federal de Santa Catarina, mais exatamente dentro do módulo sobre Ilumi- nismo e Direito Penal. Coordenado pelo Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior, este grupo de pesquisas tem se esforçado para ajudar a desenvolver e consolidar o estudo da história do direito no Brasil, procurando travar um intenso debate com o que de melhor vem sendo produzido na Europa e América Latina, e buscando ainda abrir novas linhas de pesquisa e perspectivas de abordagem. As pesquisas do grupo têm sido conduzidas com base na idéia de que a história do direito deve agir como uma espécie de consciência crítica do jurista, não apenas fa- zendo uma crítica externa ao direito, mas, sobretudo, desmitifi cando para ele próprio seu imaginário. Dessa maneira busca-se problema- tizar as experiências jurídicas ocidentais como fenômenos culturais historicamente localizados, apartando-se tanto das abordagens que alçam a experiência jurídica a uma dimensão atemporal quanto das que a reduzem a refl exos automáticos das formações sociais. ILUMINISMO E DIREITO PENAL 12 | Introdução Em tal empreitada contamos com a colaboração de inúmeros outros pesquisadores de renomadas instituições nacionais e inter- nacionais, aos quais devemos muitos agradecimentos. Dentre eles destacamos, na pessoa do Prof. Dr. Paolo Grossi, a Escola de Floren- ça. Agradecemos ainda a todos os professores e alunos do Grupo de Pesquisas em História da Cultura Jurídica que de alguma maneira contribuíram para a realização desta obra. Os autores Junho de 2008 CAPÍTULO 1 Cesare Beccaria e o Direito Penal do absolutismo esclarecido: O reformismo habsbúrgico e o iluminismo na lombardia austríaca Alexander de Castro Mestre em Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC (CPGD/UFSC). Pesquisador do Grupo de Pesquisas em História da Cultura Jurídica da UFSC. Professor de Direito Penal da UFSC INTRODUÇÃO A obra Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria, é geralmente lem-brada pelos especialistas em direito penal de todo o Ocidente como um dos marcos fundadores da modernidade de sua ciência. Produzida no âmbito da cultura iluminista, ela marcou a inserção, no saber jurídico-penal, dos princípios racionalistas que caracteriza- vam a fi losofi a iluminista e que seriam os pilares para a construção de toda a arquitetura política moderna. A magnitude de tal feito transformou seu autor no iluminista italiano mais conhecido fora da Itália. A reconhecida importância de Beccaria para a história das idéias jurídicas contrasta, entretanto, com a carência de bibliografi a monográfi ca em língua portuguesa sobre ele, tanto no Brasil quanto em Portugal, e com a falta, durante longo tempo, de uma boa e fi el tradução para o vernáculo de sua principal obra.1 Cesare Beccaria escreveu Dei delitti e delle pene entre o fi nal de 1763 e o princípio de 1764, publicando-a nos primeiros meses desse ano. Ele residia em Milão, centro da Lombardia, uma região que, desde a guerra da sucessão espanhola, fazia parte dos domínios da monarquia austríaca. O jovem marquês contava então apenas 26 anos e fazia parte de um grupo de jovens intelectuais que lia entu- siasticamente os autores do Iluminismo francês e que, escrevendo a partir de suas idéias, fi xaria defi nitivamente a fi losofi a iluminista na Lombardia austríaca. Ao mesmo tempo a coroa austríaca, em meio a seu projeto político autocrático, implementava em seus domínios 1 Consultamos inúmeras traduções para o português feitas no Brasil e em Portugal, e todas apresentam problemas relevantes. As mais antigas, em especial, continham erros e dis- torções consideráveis, como a curiosa tradução do nome Farinaccio (conforme o original) por Francisco, a fusão de capítulos, a supressão de palavras e a inexplicável mudança da ordem dos parágrafos (que em alguns casos afeta consideravelmente a estrutura da obra). Recomendamos, no entanto, a tradução feita por José Cretella Júnior e Agnes Cretella: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. rev. e atualiz. Trad. José Cretella Júnior e Agnes Cretella. São Paulo: Revistados Tribunais, 1997. Em Portugal, uma tradução menos equivocada é a de José de Faria Costa: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. José de Faria Costa revista por Primola Vingiano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 16 | Capítulo 1 um potente programa de reformas que tendia à racionalização da administração e à maximização da efi ciência administrativa e que, na medida em que se chocava frontalmente com interesses nobiliár- quicos, acabaria exercendo na Lombardia um papel modernizador. O progressivo sucesso de tal projeto, aliado à ausência de quaisquer outras tendências sufi cientemente fortes que elaborassem as pressões por mudanças sob formas mais ousadas (como no caso da Inglaterra do século XVII), canalizou os interesses progressistas mais conseqüen- tes para o lado do projeto do absolutismo austríaco. O Iluminismo lombardo não seria uma exceção. Na Alemanha, e em especial na Prússia, a fi losofi a do Ilu- minismo nasce e se desenvolve muito próxima ao absolutismo e à refl exão pró-absolutista. Na França, diferentemente, o Iluminismo teve sempre uma relação ambivalente com o absolutismo, em parte causada pela própria indisposição da coroa francesa em imple- mentar um programa de reformas que atacasse decisivamente os poderes estamentais e ao mesmo tempo incorporasse as tendên- cias modernizadoras que provinham de determinados setores da sociedade. Tal ambivalência do Iluminismo francês em relação ao absolutismo aparece nas páginas de alguns dos grandes autores franceses das décadas de 50, 60 e 70 do século XVIII, onde o fl erte com o absolutismo – baseado na esperança de que a coroa pudesse aprofundar seu papel modernizador, atacando com mais fi rmeza o poder nobiliárquico e realizando as reformas desejadas, tal como acontecia na Prússia com Frederico II – dividia espaço com o eco das idéias liberais da Inglaterra que, nas penas dos iluministas franceses, davam origem a concepções políticas de orientação republicana e, por vezes, até democrática. O Iluminismo lombardo desenvolve- se tendo como referência e inspiração os autores franceses, mas na construção de seu Iluminismo os intelectuais da Lombardia con- frontavam-se com uma situação política e social consideravelmente diferente da francesa. O fato de a coroa austríaca ter incorporado em seu projeto absolutista um programa de reformas que romperia o poder patrício, fomentaria o desenvolvimento econômico e moder- nizaria as instituições fez com que as tendências pró-absolutistas do Iluminismo lombardo, que estavam presentes já em suas matrizes francesas, se desenvolvessem com toda força. Alexander de Castro Capítulo 1 | 17 Nos escritos dos autores iluministas despontava, com relativa importância, a chamada questão penal2 como um capítulo dentro da construção teórica do Estado moderno. A obra Dei delitti e delle pene foi certamente a mais signifi cativa dentre as que, no seio da fi losofi a das Luzes, ocuparam-se com o direito penal, vindo a marcar boa parte do debate sobre o tema. Na época de sua publicação, a dinastia habs- búrgica preparava-se, depois de breve interrupção, para aprofundar decisivamente sua política de reformas na Lombardia – uma política que, ao fi m do governo de José II, criaria ali outro mundo. Escrita na juventude do fi lósofo – num período em que o grupo dos jovens ilu- ministas de Milão, reunido na chamada Società dei Pugni, lutava para afi rmar-se no cenário político, inserindo-se, com seu periódico Il Caffè, nos debates públicos mais importantes da época, ao mesmo tempo em que se encantava com os novos horizontes trazidos pelo reformismo habsbúrgico – Dei delitti e delle pene retrataria com profundidade os planos e esperanças que orientaram a formação do Iluminismo na Lombardia. O projeto de sistema penal elaborado por Beccaria pode revelar muito sobre como a empreitada política do absolutismo tar- dio do século XVIII era vista pelo Iluminismo, sobre os desafi os que a formação desse absolutismo teria de enfrentar e, principalmente, sobre o papel do direito penal na dinâmica institucional do século XVIII. Além de tudo isso, Dei delitti e delle pene marcou a inserção do Iluminismo lombardo no mapa da cultura ilustrada da Europa do século XVIII, fazendo com que toda ela voltasse um pouco de sua atenção para o que escreviam os jovens patrícios de Milão. De tal maneira, analisaremos a obra Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria, tentando entender o signifi cado de seu sistema penal no contexto marcado pela implementação, na Lombardia, das refor- mas conduzidas pela coroa austríaca, pelo conseqüente confronto entre o poder patrício e os representantes do absolutismo habsbúrgico e pela progressiva aproximação entre os intelectuais iluministas e 2 “Forse in nessun periodo come nella seconda metà del XVIII secolo è stato intensamente dibattuto il problema penale. Per ‘problema penale’ si intende un complesso di problemi tra loro conessi, di cui è diffi cile presentare una lista completa” (TARELLO, Giovanni. Il “problema penale” nel secolo XVIII. In: TARELLO, Giovanni (org.). Materiali per una storia della cultura giuridica. Vol. V. Genova: Il Mulino, 1975, p. 15). CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 18 | Capítulo 1 a coroa austríaca. As conseqüências desse conjunto de fenômenos permitirão aprofundar nossos conhecimentos sobre o nascimento do direito penal moderno, sobre o Iluminismo, sobre o absolutismo e sobre o fenômeno chamado de absolutismo esclarecido.3 O trabalho está dividido em quatro etapas. Primeiramente analisaremos as relações entre Iluminismo e absolutismo e o lugar do absolutismo esclarecido dentro do cenário político moderno. Em seguida trataremos da implementação do projeto de reformas pro- movido pela coroa austríaca e por seus representantes na Lombardia, e do papel que coube, nesse processo, aos intelectuais iluministas. Posteriormente estudaremos a infl uência do fi lósofo francês Helvétius em Beccaria e o papel político que o Legislador adquire na obra de ambos. Por fi m tentaremos estabelecer algumas conexões entre certos aspectos da obra Dei delitti e delle pene e a dinâmica institucional do absolutismo do século XVIII. 1. Iluminismo e absolutismo no século XVIII O Iluminismo do século XVIII é apresentado geralmente como a fi losofi a que preparou a Revolução Francesa e a tomada do poder pela burguesia. De tal forma, o Iluminismo teria um estreito víncu- lo com o Liberalismo e seria, por princípio, oposto ao absolutismo monárquico. Não obstante a evidência dos vínculos entre a fi losofi a do Iluminismo e a Revolução Francesa – e, portanto, entre o discurso 3 A carência de estudos, na América Latina, sobre as conexões políticas concretas em meio às quais a obra de Beccaria foi produzida leva inúmeros autores a deixar de lado sua relação com o absolutismo e a estabelecer exagerados vínculos com o liberalismo político. Mencio- namos, a título de exemplo, um caso ilustre, mais exatamente o do criminalista argentino Eugenio Raul Zaffaroni, certamente um dos maiores juristas da América Latina. Em obra didática dedicada ao direito penal brasileiro (escrita em parceria com o colega brasileiro José Henrique Pierangeli), ele apresenta o autor com as seguintes palavras: “Beccaria nasceu em Milão, em 1738, e morreu na mesma cidade, em 1794. Pode ser considerado como o autor a quem coube a fortuna de lançar as bases do direito penal contemporâneo, posto que é em função de sua crítica que a legislação penal européia começa a limpar-se, um pouco, de seu banho constante de sangue e tortura”. Depois de assim fi xar a importância de Beccaria para a história do direito penal, Zaffaroni afi rma o seguinte: “Seu pensamento pertence mais ao pensamento revolucionárioque ao despotismo ilustrado, visto que pertencia ao círculo revolucionário, em que sobressaíam os irmãos Verri, em Milão” (ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V. 1: parte geral. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 234). Alexander de Castro Capítulo 1 | 19 iluminista e o discurso do liberalismo –, tal esquema está longe de constituir um modelo de interpretação universalmente válido. E se mesmo na França – onde o específi co desenvolvimento econômico e institucional pôde colocar Liberalismo e Iluminismo lado a lado – as relações entre o absolutismo e o discurso iluminista apresentam sinuosidades ao longo do desenvolvimento de todo o processo, muito mais complexa é a relação da fi losofi a das Luzes e de seus portadores com os monarcas absolutistas nos Estados onde o atraso econômico e institucional tornava anacrônica a recepção das idéias liberais.4 O discurso iluminista do século XVIII tem como marca princi- pal a defesa da causa da emancipação humana pelo uso da razão. A fórmula célebre de Kant sapere aude (ousai saber), o apelo à autono- mia do sujeito a partir das suas potencialidades racionais e o uso da ciência na dissolução da imagem mística e encantada do mundo são o que melhor caracteriza o pensamento das Luzes. No plano político, a reivindicação da emancipação pela razão fez com que o Iluminismo ganhasse uma tonalidade fortemente crítica que, em suas formas extremadas, assumiu um caráter contestatório consideravelmente subversivo em relação aos poderes constituídos. E quanto mais nos aproximamos dos grandes centros econômicos europeus, onde as pressões dos interessados em uma economia racional de mercado se confrontavam de forma cada vez mais irresolúvel com instituições burocráticas arcaicas, maiores eram os radicalismos conseqüentes do Iluminismo em seu combate ao Antigo Regime. Já onde o quadro político-social não se caracterizava por uma tensão tão acirrada colo- cada sobre estas bases, a pressão por mudanças institucionais pôde tomar o caminho de uma conciliação de interesses e se transformar em um moderado discurso reformista. De outro lado, este discurso reformista teve seus caminhos facilitados na medida em que a reforma institucional era, para os 4 ASTUTI, Guido. O absolutismo esclarecido em Itália e o estado de polícia. Trad. António Manuel Hespanha. In: HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 254. Nesta obra, Astuti analisa as relações entre Iluminismo e absolutismo no caso italiano dentro do contexto do Estado de Polícia. Percebendo bem que a afi nidade entre Iluminismo e liberalismo não é infl exí- vel e deve necessariamente ser revista em determinadas circunstâncias. Achamos muito problemáticos, entretanto, alguns de seus posicionamentos. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 20 | Capítulo 1 Estados economicamente periféricos da Europa da metade do século XVIII – como Prússia, Áustria e Portugal –, uma necessidade impos- tergável. Assim, paralela ao discurso reformista de origem fi losófi ca, houve uma tendência à racionalização instrumental das instituições administrativas que se guiava exclusivamente por considerações pragmáticas. Ambas as pressões por racionalização caminharam para uma confl uência e o discurso fi losófi co reformador do Ilumi- nismo se conciliou com as pretensões dos monarcas absolutistas no sentido de uma centralização e modernização funcional no plano político-institucional. A progressiva fusão dessas duas tendências que apontavam para a racionalização nos permite falar na formação de um absolutismo esclarecido nestes Estados europeus. Na França, o absolutismo monárquico encontra-se consolidado já na segunda metade do século XVII, num processo iniciado no go- verno de Richelieu e relativamente estabilizado com Luís XIV. Este absolutismo não implicava a eliminação completa do conjunto dos poderes intermediários da nobreza que inclusive constituiriam, no século seguinte, um dos pilares da teoria política de Montesquieu.5 Mas o desenvolvimento econômico obtido pela França com o comér- cio e com as manufaturas gerava os recursos necessários para que se sustentasse o exército e a estrutura administrativa da coroa, possibi- litando que o Estado francês se estabelecesse como potência dentro do cenário político internacional mesmo sem alcançar um grau maior de centralização administrativa. De tal forma, a eliminação destes poderes intermediários, embora fosse um desejo contínuo da coroa, não era, entretanto, uma necessidade tão proeminente. O discurso iluminista francês não deixara de fazer críticas ao poder político da nobreza, mas a insensibilidade ou inaptidão da coroa francesa para atender a determinadas demandas, conjugada com a existência de uma alta burguesia com poder político e social, somadas ao exem- plo da Inglaterra, de onde vinha boa parte dos modelos fi losófi cos dos intelectuais franceses, fez com que o Iluminismo francês fosse 5 Vale ressaltar que os poderes intermediários do Antigo Regime não se resumem, evidente- mente, aos poderes senhoriais nobiliárquicos. Sobre isso, ver: OESTREICH, G. Problemas estruturais do absolutismo europeu. Trad. António Manuel Hespanha. In: HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p.187. Alexander de Castro Capítulo 1 | 21 perdendo a fé no absolutismo e começasse a caminhar em direção a valores liberais que preparariam a Revolução de 1789.6 Em Portugal, na Prússia e na Áustria, por exemplo, onde a situação econômica era muito mais incômoda, os monarcas sentiram a necessidade, em meados do século XVIII, de impor à sociedade a disciplina social necessária à promoção de uma política de potência – o que evidentemente implicava o incentivo e mesmo o impulso a atividades econômicas internas, de onde se retirariam recursos para a organização da burocracia centralizada e do exército profi ssional permanente. Na Prússia, o absolutismo começa a chegar a seu auge apenas entre os anos 30 e 40 do século XVIII, enquanto na Áustria e em Portugal isso aconteceu apenas ao longo da segunda metade do século XVIII – com certo atraso, portanto, em relação a França e, sobre- tudo nos últimos dois casos, em concomitância à recepção das idéias do Iluminismo. Esta circunstância parece ter imposto um signifi cado diverso ao absolutismo e à sua relação com a fi losofi a das Luzes. A eliminação do conjunto dos poderes intermediários autô- nomos em favor da construção de meios administrativos que pos- sibilitassem ao monarca a consecução das suas tarefas de reforma e modernização será desejada por ele e por todos os interessados no desenvolvimento das atividades econômicas.7 Assim, a racio- nalização da administração pública e o bem-estar social produzido por este processo (identifi cado geralmente com a produção de bens materiais) permitirão ao discurso iluminista se conciliar com esta demanda que vem do trono, mas também de setores sociais politi- camente inferiores do Antigo Regime. As esperanças de burgueses e setores intelectuais relativas à implementação de reformas acabam recaindo sobre a fi gura do príncipe e este, por sua vez, começa a perceber nesse apoio uma base importante para a consolidação e extensão de seu domínio no plano interno (dissolvendo os poderes intermediários que o obstaculizavam) e para o desenvolvimento 6 ASTUTI, Guido. op. cit. pp. 260-1. Astuti enxerga bem a ausência de uma política re- formadora na França e sua relação com a Revolução, mas falha, em nossa opinião, ao determinar suas causas. 7 FRIGO, Daniela. Principe, giudici, giustizia: mutamenti dottrinali e vicende istituzionali fra sei e settecento.In: COLAO, F.; BERLINGER, L. (org.) Iluminismo e dottrine penali. Milano: Giuffrè, 1990, p. 18. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 22 | Capítulo 1 de reformas destinadas a promover o fortalecimento institucional do Estado com relação a seus concorrentes externos. Neste con- texto, o príncipe deve quase que necessariamente aparecer como o sujeito das reformas institucionais a quem incumbe reorganizar a sociedade de forma racional, orientando-a para a consecução do bem-estar dos súditos.8 É precisamente assim que a literatura política começa a encará-lo. Nessa conciliação entre o Iluminismo e o absolutismo, os ideais liberais, que tanta afi nidade tinham com o discurso iluminista da autonomia individual fundada na racionalidade, acabam fi cando em segundo plano. A conciliação entre os interesses do soberano e de setores sociais politicamente inferiores começa a aparecer como uma conciliação teórica entre o interesse social e o interesse do próprio monarca. Surgem, então, os temas da felicidade pública e do bem- estar geral. As novas funções dadas ao soberano fazem com que a imagem do príncipe, em meados do século XVIII, comece a mudar. A antiga imagem, correspondente à estrutura das monarquias me- dievais, de um soberano que deve apenas zelar pela manutenção da ordem social, de uma ordem sagrada dada de antemão a qual ele não pode mudar de maneira alguma, a imagem de um príncipe que, estando no topo da ordem social, deve limitar-se apenas a ze- lar pela harmonia das ordens de poder inferiores sem, no entanto, interferir em suas autonomias,9 passa a dar lugar à imagem de um príncipe que deve agir sobre a sociedade governando-a efetivamen- te, administrando-a, mudando-a quando necessário, criando leis para ela e em tudo a submetendo a desígnios utilitaristas.10 Este esquema político em que, dada a situação de atraso econômico e institucional, as esperanças de reforma e modernização são deposi- tados sobre o soberano e em que ele se transforma, assim, no agente do aperfeiçoamento social, encontra seu auge justamente na cultura iluminística. O Iluminismo dará um novo impulso à idéia de que 8 FRIGO, Daniela. op. cit., p. 20. 9 HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime. In: HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 66. 10 FRIGO, Daniela. op. cit., pp. 13-8; SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia e o rei- legislador. In: História do direito brasileiro: Leituras da ordem jurídica nacional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 97-8. Alexander de Castro Capítulo 1 | 23 o monarca, concentrando em suas mãos o poder, deve usá-lo na realização das mudanças que promovam o bem-estar geral. Não é difícil entender as razões para isso. O culto às capacidades racionais do ser humano e, portanto, à capacidade humana de, pela razão, melhorar suas condições de vida, bem como o culto ao progresso que daí advém, são características centrais do Iluminismo. As novas tarefas confi adas ao príncipe fazem com que seja necessário dar-lhe também instrumentos hábeis a realizá-las: o direito será um dos principais. De tal maneira, o processo de for- mação do absolutismo monárquico foi acompanhado pela luta, nem sempre bem-sucedida, para impor a legislação real como a única ou, ao menos, como a principal fonte do direito, à qual todas as outras deveriam submeter-se. A idéia de que o direito, sob a forma de legislação, deveria ser utilizado pelo soberano para conduzir a sociedade em direção aos objetivos almejados dá origem ao que podemos chamar de um uso instrumental do direito. De novo, é no seio do Iluminismo que a visão do direito enquanto instrumento de organização e direcionamento social será fortalecida e elabora- da de maneira sistemática. E, por evidente, as teorias iluministas que faziam da legislação um instrumento de racionalização social através do qual se poderia moldar e aperfeiçoar a sociedade teriam um cenário extremamente favorável na identifi cação do Iluminismo com governos centralizados que utilizavam a legislação para impor determinados caminhos ao conjunto social. Tal teoria, na sua origem francesa, era parte de uma polêmica contra a teoria dos climas de Montesquieu, pois apresentava as leis como verdadeira causa das virtudes e vícios humanos, pondo de lado as determinações climáticas. Assim, se a legislação é a respon- sável pela formação dos cidadãos, bem como de toda a dinâmica social, então o legislador se transforma no artífi ce da sociedade e é sobre ele que recai a responsabilidade de aperfeiçoá-la. E, como essas teses são acompanhadas da defesa da supremacia do poder monárquico sobre os poderes intermediários, esse legislador de- positário das esperanças de modernização acaba sendo o próprio monarca. Temos aí, então, a formação da imagem de um rei-legislador a quem incumbe a tarefa de racionalizar a organização social e de CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 24 | Capítulo 1 promover o progresso e o aperfeiçoamento da sociedade.11 Mas, se essa imagem do monarca absoluto enquanto rei-legislador apa- rece já nos projetos do Iluminismo francês (sobretudo na obra de Helvétius), será apenas nos absolutismos tardios do século XVIII, dentro da tentativa de fortalecimento estatal em uma situação de atraso econômico e institucional, que encontraremos os espécimes que mais se aproximarão desse modelo teórico.12 11 Daniela Frigo refere-se à formação da imagem de um “príncipe-legislador” (Cf. FRIGO, Daniela. op. cit., p. 7). No Iluminismo francês, a imagem do rei-legislador encontrará sua expressão mais forte na obra de Helvétius, como veremos mais à frente. Todavia, podemos encontrar em Voltaire alguns elementos que apontam para ela. Ao tecer críticas à obra Do espírito das leis, de Montesquieu, Voltaire também criticaria a teoria dos climas para colocar em seu lugar a infl uência do governo, da religião e da educação. Em seus Comentários sobre algumas máximas principais de ‘O espírito das leis’, ele afi rma: “Convenhamos pois em que, se o clima faz os homens loiros ou morenos, é o governo que lhes faz as virtudes e os vícios. Confessemos que um rei verdadeiramente bom é o mais belo presente que o céu pode oferecer à terra” (VOLTAIRE, François-Marie. Comentários sobre algumas máximas principais de ‘O espírito das leis’. In: Comentários políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 81). E mais à frente: “Montesquieu, para explicar o poder do clima, nos diz que ele fez gelar uma língua de carneiro e que as papilas nervosas dessa língua se manifestaram visivelmente quando ela foi descongelada. Mas uma língua de carneiro jamais explicará por que a querela do Império e do sacerdócio escandalizou e ensangüentou a Europa durante mais de seiscentos anos. Ela não explicará os horrores da rosa vermelha e da rosa branca, nem dessa multidão de cabeças coroadas que na Inglaterra tombaram sobre o cadafalso. O governo, a religião, a educação produzem tudo entre os infelizes mortais que rastejam, sofrem e raciocinam neste globo” (VOLTAIRE, François-Marie. Comentários... p. 82). Falta, nos trechos citados, uma referência expressa à legislação. Todavia, o que está em questão aqui, como também na obra de Helvétius, é a substituição de um esquema de determinação natural (vinda dos climas) por outro em que os fatos humanos são conseqüência de determinações sociais e, portanto, da organização social. A referência, no fi nal do primeiro trecho, ao “rei verdadeiramente bom”, feita depois de Voltaire dizer que as virtudes e os vícios são produtos do governo, nos permite ver claramente que papel ele esperava que fosse cumprido pelo monarca. 12 A imagem do rei-legislador é identifi cada em Portugal por Seelaenderno período do governo do Marquês de Pombal (Cf. SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia e o rei-legislador...). O contexto em que o aumento da atividade legislativa se deu em Portugal é marcado por uma situação de letargia e crise econômicas. Em face dessa situação era imperioso que a coroa assumisse função mais ativa para viabilizar a superação das adversi- dades. A conseqüência é que ela acaba, através da legislação, assumindo um papel diretivo em face da sociedade, buscando organizá-la de um modo que produza a prosperidade e o fortalecimento do reino. Nas palavras do autor: “Na segunda metade do século XVIII verifi cou-se uma conjunção de ameaças externas com desequilíbrios na balança comercial, enquanto graves crises afetavam setores-chave da economia (ouro, vinhos, produtos colo- niais). Tal que por sua vez demandava novas soluções. Nesse contexto precisava a Coroa não só enfrentar de forma decidida as adversidades, mas também atuar de modo distinto do usual, impondo-se novas tarefas ou utilizando de modo mais intenso os mecanismos preexistentes de controle e intervenção na vida social. Tais metas e tarefas eram numerosas e variadas. Observando o princípio – então largamente aceito – da interdependência entre o tamanho da população, o progresso das atividades econômicas, o grau de prosperidade do país e seu poderio como partícipe do jogo político internacional, o governo português Alexander de Castro Capítulo 1 | 25 A imposição das leis da coroa como a principal das fontes do direito, à qual todas as outras deveriam submeter-se, tinha como principal obstáculo as resistências da categoria dos juristas práticos, e em especial dos juízes.13 Muitas das instituições judiciárias do Antigo Regime europeu possuíam autonomia em face do poder real e cons- tituíam muitas vezes centros de poder nobiliárquico. Essas institui- ções, dentre as quais podemos lembrar os Parlements da França, eram compostas por cargos suscetíveis de apropriação privada e que faziam parte, portanto, dos privilégios comprados ou herdados. Assim, elas possuíam autonomia face ao poder central e, conseqüentemente, acabariam sendo forças centrífugas que atuariam contrariamente ao processo de centralização institucional do absolutismo.14 preocupou-se em remover obstáculos ao crescimento populacional, passando também a fomentar mais a agricultura e as manufaturas” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia... p. 99). E mais à frente: “Papel de relevo coube aqui à legislação real, que clara- mente assumiu à época uma função diretiva: através de mais e mais normas tentou-se guiar e determinar o comportamento dos indivíduos, instituições e grupos sociais, fazendo-os contribuir de forma mais efetiva para a prosperidade e fortalecimento do reino” (SEELA- ENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia... p. 104). 13 Nas palavras de Tarello: “La prevalenza di um particolare gruppo di norme, cioè quelle volute e create direttamente dal monarca, su tutte le altre, passava invece non solo per l’accentramento della giurisdizione, ma anche per un saldo dominio del monarca sulla corporazione dei giudici” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 57). 14 Sobre os Parlements, Tarello teceu as seguintes observações: “La situazione giudiziaria francese, come si avrà occasione di accennare, è estramamente complessa. I grandi tribu- nali territoriali, chiamati Parlements cioè Parlamenti, non erano, in origine, di creazione regia e non erano affatto suscettibili di facile e semplice subordinazione da parte del monarca, né potevano con facilità essere sottordinati a un tribunale centrale dato che, ciascuno, giudicava in base a diritto sostanziale diverso (le diverse coutumes). I secoli XVII e XVIII videro tentativi del monarca di subordinare i Parlements, e un’accanita resistenza dei Parlements che molte volte si sarebbe tradotta, nel secolo XVIII, nella disapplicazione o nella ritardata applicazione della legislazione generale nuova. L’accentramento della giurisdizione, generalmente parlando, non avvenne perciò tanto a favore di un tribunale centrale (il Parlement di Parigi), quanto a favore dei diversi Parlements, che erosero le altre giurisdizioni con competenza territoriale, e divennero autorevolissimi, ciascuno nella sua sfera: autorevolezza cui corrispose una remora all’unifi cazione del diritto anche se, formal- mente, tutti i Parlements erano ritenuti giudicare nel nome del sovrano. Si trattò sempre di un accentramento molto relativo; le vecchie giurisdizioni restarono, sia pure talvolta con competenza piú limitata e gerarchicamente subordinata; e i confl itti continuarono” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 57). Na tentativa de bloqueio do voluntarismo legislativo real, um expediente extremamente útil foi o recurso à doutrina das leis fundamentais. O Parlement de Paris, o principal tribunal francês do Antigo Regime, utilizou-se da lei sálica (tida então como a lei fundamental do reino francês) para se insurgir contra atos legislativos da coroa francesa. A situação é mencionada por Seelaender: “Veiculando a idéia de que o poder real tinha por fundamento uma lei positiva que simultaneamente o limitava, o conceito de loi fondamentale logo foi assimilado pela linguagem técnica dos juristas em um período no qual membros do principal tribunal francês – o Parlement de Paris – estavam CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 26 | Capítulo 1 Há outro elemento por enquanto não sufi cientemente analisado pela historiografi a especializada. Este projeto político de moderni- zação pelo alto demandaria funcionários que, além de fi éis, fossem também competentes o sufi ciente para servir ao soberano em tão ousada empreitada. Face à escassez de recursos humanos com com- petência necessária para a tarefa, o soberano não pôde desprezar o apoio das camadas intelectuais inspiradas na fi losofi a do Iluminismo. Assim, elas acabaram constituindo uma fonte de recursos humanos para a composição do quadro administrativo real. De tal forma, além da mera afi nidade teórica, os membros dessas camadas intelectuais teriam forte interesse prático-pessoal para se posicionar em favor do absolutismo. Essa circunstância aprofunda a coalizão de interesses entre o soberano e os intelectuais iluministas. A fusão dos ideais iluministas e da proposta absolutista leva a duas conseqüências im- portantes. A primeira é que, graças à infl uência exercida pela fi losofi a das Luzes, a proposta absolutista tem seus horizontes abertos e passa a incorporar uma série de outros elementos além daqueles ligados de forma evidente e imediata com o fortalecimento monárquico. Destarte, além das questões relativas à modernização econômica e ao aumento da efi ciência do aparato administrativo, o programa de reformas do soberano começa a atingir também outras áreas – a exemplo do sistema penal e da instrução – e, na medida em que demonstram uma relação (ainda que menos imediata) com os interesses da centralização e do fortalecimento estatal, acabam sendo incorporadas ao conjunto do reformismo absolutista. Podemos dizer que, graças ao Iluminismo, o reformismo absolutista é ampliado e acaba absorvendo uma série de conteúdos que ultrapassam o imediatamente necessário à viabilização da proposta absolutista, reforçando seu caráter modernizante. preocupados em fi xar defi nitivamente as regras de transmissão da Coroa e quais leis eram imutáveis ou passíveis de alteração pela vontade real. Em 1583, o Parlement já lastreava nas leis fundamentais sua recusa em registrar um edito real; após a morte de Henrique III (1589), fazia o mesmo para declarar ‘nulos’ todos os ‘tratados feitos ou por fazer [...] para o restabelecimento’ como monarca ‘de um príncipe ou de uma princesa estrangeira’” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Notas sobre a constituição do direito público na Idade Moderna:a doutrina das leis fundamentais. In: Seqüência: estudos jurídicos e políticos. Florianópolis: Boiteux, 1980 – Semestral, p. 200). Como lembra o autor, muito embora o recurso a leis fundamentais tenha sido um útil instrumento para interesses no- biliárquicos, ele não deixou de assumir também uma veste pró-absolutista. De qualquer forma, o discurso iluminista não deixaria de atacar esse que foi muitas vezes um óbice à execução das tarefas modernizadoras e racionalizadoras do trono. Alexander de Castro Capítulo 1 | 27 Por outro lado, a fusão da proposta absolutista e da fi losofi a iluminista leva à atrofi a dos ideais democráticos e liberais desta últi- ma. A dedicação à causa da emancipação humana é um componente essencial do Iluminismo. Essa emancipação, que pode aparecer sob várias formas (tais como a emancipação das forças da natureza, do jugo de tradições irracionais ou da própria ignorância), assume, na esfera política, a forma de ideais democráticos, republicanos ou liberais. A idéia de que a racionalidade individual é fonte de uma autonomia igualmente individual possui evidentes conexões com essas tendências políticas, mas na fusão entre Iluminismo e absolu- tismo elas terão de fi car em segundo plano. Ante a necessidade de apoiar o poder monárquico absolutístico para conseguir um avanço em relação ao poder tradicional dos estamentos, os representantes do Iluminismo daqueles Estados onde se desenvolveu o absolutismo tardio do século XVIII acabarão deixando de lado as propensões po- líticas que, sob a marcante infl uência de Locke, apareciam na refl exão política francesa do século XVIII. O Iluminismo que se desenvolve no contexto do absolutismo tardio constitui certamente um projeto de modernização, mas uma modernização autocrática marcada por considerável descuido em relação àqueles valores humanistas que justifi cariam o projeto da modernidade. As condições históricas específi cas a que nos referimos deram espaço para que o aspecto instrumental da fi losofi a das Luzes se desenvolvesse sem a contra- posição daqueles valores que faziam do ser humano uma fi nalidade em si mesmo. É interessante notar que justamente a Áustria, onde o absolutismo absorveu com mais vigor as tendências reformadoras e exerceu, mais que em qualquer outro lugar, um papel moderniza- dor, iria, no século XIX, liderar a Santa Aliança e colocar toda a sua maquinaria burocrática e militar na defesa dos ideais tradicionais e reacionários tão combatidos pelo Iluminismo. 2. O Iluminismo milanês e o reformismo habsbúr- gico na Lombardia A tarefa de modernização institucional começou a ser executada pelo absolutismo austríaco depois da guerra de sucessão austríaca, já no reinado de Maria Teresa, graças ao impacto da disputa pela CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 28 | Capítulo 1 Silésia.15 A Lombardia, que era possessão da Áustria desde a guerra de sucessão espanhola, seria alvo, a partir de então, de um programa de reformas. A primeira etapa do reformismo lombardo transcorreu entre os anos de 1749 e 1760 e foi levada a cabo, inicialmente, por Gian Luca Pallavicini e, depois, por Beltrame Cristiani e Pompeo Neri.16 Essa etapa se encerraria, entretanto, no ano de 1757, com a partida de Neri para a Toscana. Com as atenções de Viena concentra- das na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) o empenho reformador na Lombardia sofrerá uma interrupção. A segunda fase do reformismo lombardo começa em 1760, depois da chegada, no ano anterior, do conde Carlo di Firmian, novo plenipotenciário dos Habsburgs. Quando, a partir de 1763, Carlo di Firmian e Kaunitz resol- veram, por fi m, acelerar o reformismo habsbúrgico na Lombardia, reanimando-o do abalo sofrido pela Guerra dos Sete Anos e pela contra-ofensiva patrícia e eclesiástica que marcou seu período de adormecimento, Milão já possuía um novo círculo de intelectuais que se candidatava ao protagonismo cultural dos próximos anos. Esse grupo reunia-se em torno de Pietro Verri e era composto por jovens, quase todos patrícios, dentre os quais podemos lembrar Alessandro Verri (irmão de Pietro), Alfonso Longo, Giambattista Biffi , Pietro Secco Comneno, Giuseppe Visconti, Sebastiano Franci, Luigi Lambertenghi e Paolo Frisi. É nesse grupo que se encontra também Cesare Beccaria. Sob a liderança de Pietro Verri, esses jovens formaram a chamada Società dei Pugni, destinada a ser uma associação para o livre pensamento e a livre discussão, sem estatuto ou mesmo um programa defi nido, e voltada a combater o atraso e o imobilismo da sociedade.17 O novo grupo de jovens intelectuais inspirava-se entusiasticamente nas idéias do Iluminismo francês e assim, acompanhando o espírito dessa fi losofi a, reivindicava re- 15 A forma como os métodos administrativos do absolutismo prussiano foram construídos no âmbito da refl exão cameralística e, em especial, da ciência de polícia, causaram profundas impressões no governo austríaco de Maria Teresa quando aplicados na Silésia, região que foi alvo de disputas entre Prússia e Áustria ao longo do século XVIII. Ver: SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di governo alle scienze dello stato: il cameralismo e l’assolutismo tedesco. Milano: Giuffrè, 1968, p. 228. 16 WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola; VENTURI, Franco. Storia d’Italia. Vol. 3. Dal primo settecento all’unità. Torino: Giulio Einaudi, 1978, p. 85-6. 17 CONSOLI, Domenico. Dall’arcadia all’illuminismo. Bologna: Universale Cappelli, 1972, p. 126. Alexander de Castro Capítulo 1 | 29 formas que modernizassem a sociedade, rompessem as estruturas tradicionais que impediam o progresso e reorganizassem, por fi m, o conjunto social segundo os parâmetros da razão.18 Nos anos 60 do século XVIII temos, portanto, na Lombardia austríaca, a insurgência de duas tendências reformadoras que bus- cavam a racionalização das instituições e da sociedade. A primeira partia da dinastia da Áustria, a casa de Habsburg, e era represen- tada em Milão por Carlo di Firmian. O contexto de nascimento do reformismo austríaco, produto da inspiração do modelo prussiano baseado na Polizeiwissenschaft (Ciência da Polícia), permite ver clara- mente os objetivos a que visava. A racionalização social e institu- cional deveria servir, sobretudo, ao fortalecimento do poder real, à consolidação do absolutismo e ao acúmulo de forças que garantissem uma posição vantajosa em relação aos confl itos externos. Por outro lado, na vizinha França, a década de 1750 tinha consolidado de uma vez por todas a nova fi losofi a das Luzes. Podemos dizer, portanto, que ela marca defi nitivamente a ascensão dos philosophes na França. Teríamos, então, um novo grupo social cada vez mais infl uente e que acreditava poder reavaliar todas as crenças e condições da vida humana a partir da razão, removendo o que atrapalhasse a realização das potencialidades humanas e promovendo, assim, o progresso. A força das idéias francesas garantiria sua difusão em toda a Europa e na década de 1760 elas já se faziam presentes em grande parte dela. A instauração defi nitiva da fi losofi a das Luzes na Lombardia, com o grupo de jovens fi lósofos da Società dei Pugni, traria consigo outra tendência que, ao lado da que partia da dinastia austríaca, apontava para as reformas sociais e para a racionalização. A questão econômica torna-se, desde logo, o ponto central do interesse dos jovens fi lósofos. Antes do início da publicação de Il Caffè, o grupo da Società dei Pugni já havia debutado no mundo das letras ao intervir na questão da moeda de Milão.19 Depois das intervenções 18 WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola; VENTURI, Franco. Op. cit., p. 86-7. 19 A intervenção se deu com Beccaria através da obra Del disordine e de’ rimedi delle monete nello stato di Milano. In: BECCARIA,Cesare. Opere. Sergio Romagnoli (a cura di). Firenze: Sansoni, 1958. Na seqüência desenvolveu-se um acalorado debate, colocando a Società dei Pugni contra o marquês Carpani. CAPRA, Carlo. I progressi della ragione. Vita di Pietro Verri. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 184-6. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 30 | Capítulo 1 nessa discussão, os temas econômicos reapareceriam em inúmeras outras obras.20 Outra característica interessante dos escritos dos jovens membros da Società dei Pugni é a postura antinobiliárquica. Ambas as questões articulam-se, entretanto, no problema maior do reformismo habsbúrgico em Milão. Em princípio, as idéias econômicas dos fi lósofos da Società dei Pugni favoreciam os setores produtores emergentes, como o dos proprietários de terras, que tentavam aproveitá-las utilizando métodos modernos voltados à produção para o mercado, e o dos empreendedores, que haviam instalado as primeiras manufaturas da Lombardia naquela mesma época. Inspirando-se na literatura iluminista fi siocrática, que na década de 1760 já alcançara enorme popularidade, eles reivindicariam a eliminação dos vínculos feudais sobre a terra – que impediam seu uso econômico mais racional e efi - ciente –, a eliminação das corporações que impediam a existência do livre-mercado, o aperfeiçoamento do sistema fi scal e administrativo em geral, e a eliminação da proibição de exercício do comércio para os nobres.21 Como já dissemos, a questão econômica era também importantíssima para a política de fortalecimento do poder real. A óbvia relação entre a situação fi nanceira de um Estado e sua condi- ção na política internacional faria com que a monarquia austríaca buscasse por todas as formas aumentar suas fontes de renda. A dinamização da economia, portanto, deveria necessariamente fazer parte da política de fortalecimento do poder monárquico, pois per- mitiria que se extraíssem, pela tributação, os recursos necessários ao fortalecimento tanto da burocracia quanto do exército real. Essa dinamização econômica seria feita com o estímulo à produção e ao comércio interno e, assim, favorecia justamente os setores produtivos emergentes sufocados pelas estruturas feudais e corporativas. Assim, 20 Ver, a título de exemplo, as seguintes obras dos iluministas lombardos: BECCARIA, Cesare. Elementi di economia publica. In: BECCARIA, Cesare. Opere. Sergio Romagnoli (a cura di). Firenze: Sansoni, 1958; CARLI, Gianrinaldo. Del libero commercio de’ grani. In: VENTURI, Franco. Illuministi italiani. Tomo III, Riformatori lombardi, piemontesi e toscani. Milano: Riccardo Riccardi; LONGO, Alfonso. Istituzioni economico politiche. In: VENTURI, Franco. Illuministi italiani. Tomo III, Riformatori lombardi, piemontesi e toscani. Milano: Riccardo Riccardi; VERRI, Pietro. Considerazioni sul commercio dello stato di Milano. Milano: Università Luigi Bocconi, 1939. 21 BECCARIA, Cesare. Elementi di economia publica... ; LONGO, Alfonso. Istituzioni economico... Alexander de Castro Capítulo 1 | 31 as reformas executadas na Lombardia pela coroa austríaca estariam, em boa medida, de acordo com aquilo que era proposto pelo círculo dos intelectuais que escreviam em Il Caffè. Graças à questão econômica, a característica luta dos monarcas contra os estamentos ganha novo componente: agora eles não são apenas os rivais da coroa na luta pelo poder dentro do Estado, eles são também aqueles que impedem a aplicação de uma política mais racional, voltada para o desenvolvimento econômico e o conseqüen- te fortalecimento institucional – o que afeta a luta política face aos concorrentes externos. O poder político e os privilégios nobiliárqui- cos, especialmente patrícios, que caracterizavam a estrutura política milanesa eram óbices para o programa econômico modernizador e dinamizador que necessariamente deveria fazer parte do projeto absolutista da monarquia austríaca – e, assim, o avanço do reformis- mo habsbúrgico na esfera econômica implicaria necessariamente o declínio do patriciado milanês.22 Além do declínio do poder político patrício, as reformas econômicas ainda conduziam à ascensão de no- vos grupos sociais. Podemos dizer, destarte, que a questão econômica não muda apenas o sentido da luta interna pelo poder político entre o monarca e os estamentos, ela também altera sua dinâmica, pois o papel negativo que a aristocracia acabaria adquirindo em relação ao desenvolvimento econômico (que, é claro, não interessava apenas à coroa, mas ao próprio conjunto social, de forma geral) contribuiria decisivamente para eliminar a hegemonia social da aristocracia. Além disso, o sucesso das reformas econômicas, ao promover a ascensão de novos grupos sociais, criaria uma enorme base social de apoio ao monarca.23 Ante os benefícios sociais mais ou menos gerais advindos da política de fortalecimento econômico, a nobreza – e o patriciado em particular – cairá em progressivo e crescente descrédito face ao con- junto social.24 A partir de então, difi cilmente ela conseguirá mobilizar 22 CARPANETTO, Dino; RICUPERATI, Giuseppe. L’Italia del settecento: crisi, trasformazioni, lumi. Roma-Bari: Laterza, 1994, p. 198. 23 SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla Lombardia. In: MAD- DALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro (org.). Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 201-2. 24 GORANI, Giuseppe. Il vero dispotismo. In: VENTURI, Franco. Illuministi italiani. Tomo III, Riformatori lombardi, piemontesi e toscani. Milano: Riccardo Riccardi. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 32 | Capítulo 1 as massas, sejam urbanas ou camponesas, em rebeliões contra o poder real, tal como as que marcaram o século XVII por toda a Europa. A percepção, por parte dos jovens fi lósofos, de que o monarca era a única força que, naquele contexto, realmente poderia realizar as reformas necessárias e implementar um processo de desenvolvimento econômico nos termos propostos levou-os defi nitivamente para o lado do absolutismo. A questão econômica – ou, mais exatamente, a mesma posição em relação aos problemas econômicos – propiciava a aproximação entre os fi lósofos do círculo do Il Caffè e o absolutismo austríaco. Na medida em que os estamentos, com seus privilégios, impediam o desenvolvimento econômico e a implementação de reformas de interesse geral, eles eram retratados nos escritos dos jovens iluministas lombardos como o verdadeiro poder despótico contra o qual se deveria lutar e contra o qual o soberano já estava efetivamente lutando.25 Podemos dizer, assim, que a identifi cação dos jovens fi lósofos iluministas da Lombardia com o absolutismo baseava-se, ao menos em princípio, na posição comum em relação à questão econômica e na postura antinobiliárquica. O absolutismo esclarecido é a fusão da tendência moderniza- dora e racionalizadora que vinha da fi losofi a iluminista com aquela outra tendência, também modernizadora e racionalizadora, que partia das dinastias reinantes em cada Estado. A articulação entre as duas propostas reformadoras e a formação, a partir delas, de uma única tendência reformista que articulava os desígnios centralizadores dos monarcas, em sua luta pelo poder contra adversários internos e externos, com o anseio fi losófi co por reformas que melhorassem as condições de vida e promovessem o progresso humano, implicava necessariamente a articulação entre os portadores dessa fi losofi a, os fi lósofos iluministas, e o projeto político absolutista em uma espécie de aliança, ainda que tácita, entre eles e a coroa. Para que isso fosse possível era necessário que os próprios sujeitos da fi losofi a iluminista aderissem ao projeto absolutista da casada Áustria e que sua colabo- ração fosse aceita – isto é, que exercessem alguma infl uência sobre os 25 GORANI, Giuseppe. Il vero dispotismo... ; CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato nell’Illuminismo lombardo. In: MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro (org.). Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 972-3. Alexander de Castro Capítulo 1 | 33 caminhos trilhados pela coroa em sua luta pela centralização política e no que foi feito por ela com o poder concentrado em suas mãos.26 Como visto, os fi lósofos da Società dei Pugni contribuíram decisivamente, com sua defesa da necessidade de reformas que mo- dernizassem a Lombardia, para reformular a imagem do monarca em sua empreitada absolutista. Mas para que a fusão da fi losofi a iluminista com a proposta absolutista realmente se realizasse – isto é, para que as duas tendências que buscavam, por motivos próprios, a racionalização institucional e social convergissem e formassem uma só tendência reformadora – era necessário que os fi lósofos fossem incorporados, de alguma forma, ao projeto político monárquico e passassem a exercer, com suas idéias, alguma infl uência importante. As características singularizadoras do contexto em que esse absolu- tismo tardio se desenvolvia determinavam suas necessidades que, antes de qualquer coisa, diziam respeito ao aumento de efi ciência da máquina burocrática e ao desenvolvimento econômico necessário para o fortalecimento institucional. Por um lado isso demandava, de Viena, uma política reformadora dirigida à modernização insti- tucional e à racionalização burocrática das instituições. Por outro, era necessário implementar políticas que rompessem os entraves à dinamização da economia. Tudo isso determinaria o tipo de co- laboração e de colaboradores demandados por Viena. Para que tal projeto fosse viável era necessário, sobretudo, contar com um qua- dro administrativo que, além de fi el à coroa, fosse sufi cientemente competente para realizar as tarefas necessárias. A identifi cação entre a proposta absolutista e as reivindicações dos jovens fi lósofos do Il Caffè – baseadas, sobretudo, na questão econômica (isto é, na idêntica postura pró-desenvolvimentista) e na questão nobiliárquica (isto é, na postura antinobiliárquica e, principalmente, antipatrícia), além da notória capacidade intelectual daqueles jovens polemistas que, com seu jornal e suas obras individuais, opinavam sobre todas as questões importantes da política e da economia milanesas – não permitiria que fossem ignorados por muito tempo pelos representantes da coroa austríaca. A absorção dos iluministas milaneses nos quadros funcio- 26 BARBARISI, Gennaro. L’elogio di Maria Teresa di Paolo Frisi. In MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro (org.). Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 352. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 34 | Capítulo 1 nais da coroa, em sua empreitada absolutista, completa o processo de formação do absolutismo esclarecido na Lombardia austríaca.27 A fusão das duas tendências modernizadoras – a representada pela fi losofi a iluminista e a do absolutismo tardio – não confi gu- rava, entretanto, um encontro perfeito. As urgentes necessidades que atingiam com toda força o projeto de poder das dinastias que se confrontavam, de tempos em tempos, no cenário político inter- nacional e que, em meio a uma economia capitalista cada vez mais desenvolvida, miravam-se no exemplo de potências como a França e a Inglaterra, obrigavam-nas a um agressivo programa de racionalização social que deveria tornar mais efi ciente a administração do Estado, fomentar o desenvolvimento econômico e submeter os estamentos e os poderes políticos autônomos. O Iluminismo, por outro lado, era uma corrente fi losófi ca que fundava na racionalidade humana um projeto de emancipação; uma emancipação da tradição, dos dogmas religiosos, das forças da natureza, mas uma emancipação também do poder político ilegítimo, assim considerado aquele que não se base- ava na autonomia humana individual, inerente à idéia de que cada ser humano é um ser racional. A poderosa infl uência do liberal John Locke na formação do ideário iluminista, tão perceptível quando se vasculham os textos da fi losofi a francesa do século XVIII, não poderia não ter deixado marcas profundas. Portanto, se bem analisarmos, apesar da convergência verifi cada entre ambos, constataremos que Iluminismo e absolutismo possuíam interesses específi cos quando consideramos um em relação ao outro. Não havendo, destarte, uma coalizão perfeita no compromisso entre o absolutismo e a fi losofi a iluminista, o lugar central, o lugar de comando, caberia certamente ao absolutismo. A racionalidade das Luzes fi cava, de certa forma, subordinada à racionalidade do acúmulo de poder. É claro que algo do espírito original do Iluminismo deveria perder-se. A fi losofi a do século XX nos ensina que o projeto da moderni- dade, do qual o Iluminismo é o principal representante, ancorava-se em uma racionalidade instrumental, que apontava para a domina- ção, e em uma racionalidade comunicativa, que apontava para a emancipação – ou em um pilar regulatório e outro emancipatório, 27 CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato..., p. 969. Alexander de Castro Capítulo 1 | 35 se preferirmos.28 Quando olhamos para as idéias que fervilhavam nas obras dos autores do século XVIII vemos que as duas coisas, dominação e emancipação, estavam profundamente imbricadas. Segundo a crítica fi losófi ca contemporânea, os problemas da moder- nidade teriam começado quando o aspecto instrumental colonizou o comunicativo-emancipatório. O fato de os ideais democráticos e republicanos do Iluminismo ter sido relegados a segundo plano, na sua fusão com o absolutismo, talvez seja um indício de que, efetivamente, na aliança da fi losofi a das Luzes com aquelas formas políticas autocráticas, o elemento instrumental de sua racionalidade tenha sido isolado e alçado ao primeiro plano. A absorção dos intelectuais do Iluminismo lombardo no projeto político do absolutismo habsbúrgico, na condição de funcionários da coroa, colocou a capacidade intelectual daqueles jovens intelectuais a serviço do planejamento das estratégias da ascensão da autocracia régia contra a pluralidade de poderes políticos que caracterizava a sociedade do Antigo Regime. Nesse processo, o intelectual iluminista, assim absorvido e transformado em funcionário administrativo da co- roa, tem seu papel redefi nido: agora ele não é mais o conselheiro do rei que pensa globalmente a sociedade, não apenas ajudando-o a alcançar as metas estipuladas, mas interferindo também na defi nição das pró- prias metas; agora ele é o técnico em problemas jurídicos, econômicos ou cameralísticos que articula os meios necessários para alcançar os fi ns determinados pelo monarca e seus altos ministros.29 É claro que aquela imagem de conselheiro do rei, ao menos na Lombardia, nunca correspondeu propriamente à realidade, mas era a maneira como os iluministas lombardos compreendiam, em princípio, seu papel dentro do projeto modernizador e reformador do absolutismo habsbúrgi- co. A subordinação do intelectual iluminista ao projeto autocrático do absolutismo tardio é a subordinação do próprio Iluminismo aos 28 Estamos nos referindo aqui, evidentemente, às idéias de Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos, respectivamente. 29 As Consulte amministrative de Beccaria são um eloqüente exemplo do tipo de trabalho intelectual que se esperava de um funcionário josefi no (BECCARIA, Cesare. Consulte amministrative. In: BECCARIA, Cesare. Opere. SergioRomagnoli (a cura di). Firenze: Sansoni, 1958). Sobre o tema, ver: CAPRA, Carlo. Il gruppo del “Caffè” e le riforme. In: FERRONE, Vincenzo; FRANCIONI, Gianni (org.). Cesare Beccaria: la pratica dei lumi. Atti del Convegno. Firenze: Leo S. Olschki, 2000, p. 66. CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 36 | Capítulo 1 desígnios da pura acumulação do poder, à lógica de uma espécie de nova razão de Estado.30 Podemos nos perguntar, certamente, se isso ainda tem alguma coisa a ver com Iluminismo ou se estamos em uma zona na qual o que se vê é apenas a projeção das sombras criadas por suas Luzes. Esse pode ser, no entanto, um falso problema, pois, de qualquer maneira, a sombra sempre tem alguma coisa a ver com a luz que a tornou possível. Cesare Beccaria talvez tenha representado justamente o caso mais extremo desse fenômeno.31 A história do Iluminismo lombardo guarda, entretanto, um momento de singular brilhantismo para a cultura italiana do século XVIII. Um momento em que, em Paris, capital mundial da fi losofi a das Luzes, falava-se com curiosidade e entusiasmo dos progressos da École di Milan. O ponto-chave desse momento, seu fato propulsor, foi a publicação da obra Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria. Graças a essa obra, a cosmopolita república das letras da Europa tomou co- nhecimento da existência dos jovens patrícios milaneses. A partir de então Beccaria seria, perante a Europa, a fi gura central do Iluminismo na Lombardia, o grande representante das Luzes em Milão, o que lhe renderia enorme inveja e profundo rancor da parte de Pietro Verri. Veremos então Beccaria trocar correspondência com alguns ilustres nomes da Ilustração francesa, ser recebido em Paris como celebridade pelo círculo dos philosophes, ser convidado por Catarina II, soberana da Rússia, para escrever o código penal de seu império. Veremos também Voltaire, o arrogante líder do partido dos philosophes franceses, que era bajulado por uma infi nidade de jovens escritores que acorriam a Paris buscando fazer carreira no mundo intelectual, pedir humildemente a Beccaria alguns conselhos jurídicos referentes aos célebres processos em que se envolveu nas décadas de 1760 e 1770.32 Nesse momento de brilho do Iluminismo lombardo, protagoni- zado justamente por Beccaria, aquele que mais do que qualquer outro simbolizaria seu declínio, não haveria nada que indicasse os destinos 30 FRIGO, Daniela. op. cit. 31 CAPRA, Carlo. Il gruppo..., p. 68; ZORZI, Renzo. Cesare Beccaria. Il drama della giustizia. Milano: Bollati Borighieri, 1996. 32 Veja-se, a esse respeito, a carta de Voltaire a Beccaria contida em: VOLTAIRE. Comentários políticos. Trad. Antonio de Pádua Danesi, revisão Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Alexander de Castro Capítulo 1 | 37 da cultura iluminista em Milão? Não haveria nada que antecipasse a triste decadência dos valores liberais, republicanos e democráticos, tão profundamente ligados ao código genético do Iluminismo, e a ascensão exclusivista de uma racionalidade instrumental soberana e autocrática? São precisamente essas as perguntas a que tentaremos res- ponder, analisando alguns aspectos da obra Dei delitti e delle pene. 3. O Legislador e o absolutismo esclarecido de Hel- vétius a Beccaria Quando se lê as primeiras páginas de Dei delitti e delle pene, a atenção de qualquer conhecedor da história do pensamento político é imediatamente atraída para as idéias contratualistas que Beccaria utiliza ao fundamentar a estrutura política em que inscreve seu sistema penal.33 Essas idéias apresentam uma enorme proximidade com o contratualismo inglês (de Hobbes e de Locke), o que leva muitos estudiosos a buscar nesses autores possíveis infl uências. O fato de o contratualismo ser tão profundamente ligado à imagem de Jean-Jacques Rousseau levou mais de um analista a afi rmar, ao contrário, que a verdadeira raiz das idéias políticas de nosso autor foi o polêmico genebrino.34 Quanto à afi rmação de que o contratualismo de Beccaria se inspirava em Hobbes, pois ele partia da hipótese de uma guerra de todos contra todos, devemos objetar que, ainda que parta da idéia de um estado de guerra original, o contrato social visa sacrifi car apenas uma parcela da liberdade para proteger o restante.35 Temos muito 33 Vejamos algumas passagens onde desponta o contratualismo de Beccaria: “La prima conseguenza di questi principii è che le sole leggi possono decretar le pene su i delitti, e quest’autorità non può risedere che presso il legislatore, che rappresenta tutta la società unita per un contratto sociale” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Itália: Garzanti, 1987, p.13.). Ainda: “La seconda conseguenza è che se ogni membro particolare è legato alla società, questa è parimente legata con ogni membro particolare per un contratto che di sua natura obbliga le due parti” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 13.). E ainda: “Le leggi sono le condizioni, colle quali uomini indipendenti ed isolati si unirono in società, stanchi di vivere in un continuo stato di guerra e di godere una libertà resa inutile dall’in- certezza di conservala. Essi ne sacrifi carono una parte per goderne il restante con sicurezza e tranquillità” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p.10). 34 VENTURI, Franco. Utopia e riforma nell’Illuminismo. Torino: Einaudi, 1989. 35 Além disso, o próprio Beccaria afi rma que seu modelo contratualista não é de tipo hob- CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO... 38 | Capítulo 1 mais um esquema de pensamento de índole liberal. Mas antes de afi rmarmos, então, que se trata de um modelo inspirado em Locke, devemos lembrar que dois obstáculos nos impedem de traçar um paralelo perfeito entre os dois autores: o primeiro é que, em Locke, não há propriamente uma contradição entre a liberdade do Estado de natureza e a do estado social, pois o que se concede é apenas o direito de aplicar as sanções às violações do direito natural; o segundo são as críticas que Beccaria faz ao direito de propriedade, que fun- damenta toda a arquitetura política de Locke. A afi rmação, já muito repetida, de que Beccaria partiria do contratualismo de Rousseau é, acreditamos, desprovida de fundamento, entre outros motivos pelo fato de Beccaria trabalhar com a idéia de representação política, condenada por Rousseau. O problema não-resolvido da origem das idéias contratualis- tas de Beccaria é complementado por outro. Há muito se percebeu que, no sistema de Dei delitti e delle pene, a argumentação de Beccaria muitas vezes vale-se de idéias de índole utilitarista. O utilitarismo, como sabem os leitores de Bentham, era profundamente hostil às idéias de contrato social e de direito natural.36 De tal maneira, como seria possível a Beccaria compatibilizar as duas ordens de idéias? Será que ele não tinha consciência da profunda incompatibilidade entre ambas ou será que, sendo consciente dela, resolveu comprometer a solidez de seu edifício teórico compondo um ecletismo conveniente, mas absurdo? A investigação da origem das idéias utilitaristas de Beccaria pode ajudar a resolver este emaranhado de questões. A origem das idéias utilitaristas de Beccaria está na poderosa infl uência exercida por Claude-Adrien Helvétius – um fi lósofo hoje besiano: “Sarebbe un errore a chi, parlando di stato di guerra prima dello stato di società, lo prendesse nel senso hobbesiano, cioè di nessun dovere e di nessuna obbligazione an- teriore, in vece di prederlo per un fatto nato dalla corruzione della natura umana e dalla mancanza di una sanzione espressa. Sarebbe un errore l’imputare a delitto ad uno scrittore, che considera le emanazioni del patto sociali, di non ammetterle prima del patto istesso” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p.5). 36 Ver: SONTAG, Ricardo.
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