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Mito e religião

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TEXTO 1: [Mito e religião] 
(...) O verdadeiro substrato do mito não é de pensamento, mas de sentimento. O mito e a religião primitiva não são, de 
maneira alguma, totalmente incoerentes, nem destituídos de senso ou de razão; mas sua coerência depende muito 
mais da unidade de sentimento que de regras lógicas. Esta unidade é um dos impulsos mais vigorosos e profundos do 
pensamento primitivo. Se o pensamento científico desejar descrever e explicar a realidade será obrigado a empregar 
seu método geral, que é o de classificação e sistematização. A vida é dividida em províncias separadas, que se 
distinguem nitidamente uma da outra. As fronteiras entre os reinos das plantas, dos animais, do homem — as diferenças 
entre as espécies, famílias e gêneros — são fundamentais e indeléveis. Mas a mente primitiva ignora e rejeita todas 
elas. Sua visão da vida é sintética e não analítica; não se acha dividida em classes e subclasses, É percebida como 
um todo ininterrupto e contínuo, que não admite distinções bem definidas e incisivas. Os limites entre as diferentes 
esferas não são barreiras intransponíveis, mas fluentes e flutuantes. Não existe diferença específica entre os vários 
reinos da vida. Nada possui forma definida, invariável, estática: por súbita metamorfose qualquer coisa pode 
transformar-se em qualquer coisa. Se existe algum traço característico e notável do mundo mítico, alguma lei que o 
governe — é a da metamorfose. Mesmo assim, dificilmente poderemos explicar a instabilidade do mundo mítico pela 
incapacidade do homem primitivo de apreender as diferenças empíricas das coisas. Neste sentido, o selvagem, muito 
frequentemente, demonstra sua superioridade em relação ao homem civilizado, por ser suscetível a inúmeros traços 
distintivos, que escapam à nossa atenção. Os desenhos e pinturas de animais, que encontramos nos estádios mais 
baixos da cultura humana, na arte paleolítica, foram amiúde admirados pelo seu caráter naturalista. Revelam 
assombroso conhecimento de toda sorte de formas animais. A existência inteira do homem primitivo depende, em 
grande parte, de seus dotes de observação e discriminação; se for caçador, deverá estar familiarizado com os menores 
detalhes da vida animal e ser capaz de distinguir os rastros de vários animais. Tudo isto está pouco de acordo com a 
presunção de que a mente primitiva, por sua própria natureza e essência, é indiferenciada ou confusa, pré-lógica ou 
mística. O que caracteriza a mentalidade primitiva não é sua lógica, mas seu sentimento geral da vida. O homem 
primitivo não vê a natureza com os olhos do naturalista que deseja classificar coisas com a finalidade de satisfazer uma 
curiosidade intelectual, nem dela se acerca com um interesse puramente pragmático ou técnico. Não a considera mero 
objeto de conhecimento nem o campo de suas necessidades práticas imediatas. Temos o hábito de dividir nossa vida 
nas duas esferas da atividade prática e da teórica. Nesta divisão, somos propensos a esquecer que existe um estrato 
inferior debaixo de ambas. O homem primitivo não é vítima deste tipo de esquecimento; seus pensamentos e 
sentimentos estão ainda encerrados nesse estrato original inferior. Sua visão da natureza não é meramente teórica 
nem meramente prática; é simpática. Se deixarmos escapar este ponto não poderemos abordar o mundo mítico. O 
traço mais fundamental do mito não é uma direção especial de pensamento nem uma direção especial da imaginação 
humana; é fruto da emoção e seu cenário emocional imprime, em todas as suas produções, sua própria cor específica. 
O homem primitivo não carece, de maneira nenhuma, da capacidade de apreender as diferenças empíricas das coisas. 
Mas, em sua concepção da natureza e da vida, todas as diferenças são apagadas por um sentimento mais forte: a 
profunda convicção de uma fundamental e indelével solidariedade da vida, que transpõe a multiplicidade e a variedade 
de suas formas isoladas. Não atribui a si mesmo um lugar único e privilegiado na escala da natureza. (...) CASSIRER, 
Ernst, Antropologia filosófica. São Paulo, Mestre Jou, s.d. p. 134-136.

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