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EA D 3 Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica 1. OBJETIVOS • Distinguir os processos históricos de formação dos pri- meiros reinos germânicos. • Conhecer a organização político-administrativa dos visi- godos, lombardos e francos. • Identificar os processos de cristianização dos povos ger- mânicos. 2. CONTEÚDOS • Instalação germânica no Ocidente. • Fusão entre as instituições romanas e a comunidade ger- mânica. • Disputas políticas entre os reinos germânicos. • Papel cristianizador da Igreja episcopal. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 86 3. ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para uma melhor compreensão desta unidade, tenha sempre em mente que a fusão entre culturas não signifi- ca o fim destas. Na verdade, corresponde ao nascimento de uma terceira cultura, que traz em seu seio elementos importantes de suas raízes. Portanto, temos a transcul- turação e não a aculturação. 2) Para complementar seus estudos, sugerimos a consulta à obra: ANDERSON, P. Passagens da Antigüidade ao Feu- dalismo. São Paulo: Brasiliense, 1995. 3) Os temas relativos ao século 3º foram tratados de ma- neira mais sistemática na Unidade 2. Portanto, se con- siderar necessário, retome os conteúdos estudados e confira tais informações. 4) Se você quiser saber mais sobre as pesquisas arqueoló- gicas, sugerimos que procure nos sites de busca textos dos arqueólogos Patrick Périn e Laure-Charlotte Feffer. 5) Caso você tenha interesse em se aprofundar sobre o tema da Lei Sálica, encontrará uma tradução francesa de J. M. Pardessus sobre essa lei no site disponível em: <http://remacle.org/bloodwolf/loisalique/rable.htm>. Acesso em: 25 jan. 2008. 6) As informações a seguir serão importantes para uma melhor compreensão do conteúdo que será trabalhado nesta unidade. Leia-as atentamente e complemente seu conhecimento. • A História Augusta é o conjunto de biografias dos imperadores romanos, de Adriano a Numeriano. Foi escrita provavelmente no final do século 4º. Você encontra a versão latina e traduções em inglês no site. Disponível em: <http://www.livius.org/hi-hn/ ha/hist_aug.html>. Acesso em: 17 fev. 2011. 87© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica • Os escotos e os pictos (pictos, em latim, significa “pintados”) eram tribos que habitavam, respecti- vamente, regiões da atual Irlanda e o centro-norte da Escócia. Ambas eram inimigas dos bretões e de- fendiam a não anexação de seus territórios ao Im- pério Romano. Saiba mais informações sobre o as- sunto acessando o site disponível em: <http://www. nucleohumanidades.ufma.br/pastas/CHR/2005_1/ adriana_zierer_v3_n1.pd>. Acesso em: 17 fev. 2011. 7) A seguir, você poderá travar um conhecimento prévio com algumas das importantes figuras históricas que se- rão citadas nesta unidade: Rômulo Augústulo Rômulo Augústulo, também conhecido como o pequeno Au- gústulo por ter assumido o Império ainda criança, é consi- derado o último imperador romano (texto: disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/IRRumAug. html>. Acesso em: 25 jan. 2008. Imagem disponível em: <http://www.historiaclasica.com/2007/07/romulo-augustulo- -el-ltimo-emperador.html>. Acesso em: 17 fev. 2011). Santo Ambrósio Santo Ambrósio foi bispo de Milão entre 374 e 397. Sua obra principal De Fide ad Gratianum é composta por cinco livros destinados a esclarecer Graciano sobre a heresia ariana. Sua biografia está disponível no site: <http://brasiliavirtual. info/tudo-sobre/ambrosio-de-milao>. Acesso em: 25 jan. 2008 (imagem disponível em: <http://www.paulinas.org.br/diafeliz/ santo.aspx?Dia=07&Mes=12>. Acesso em: 17 fev. 2011). © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 88 Teodorico Teodorico foi um líder ostrogodo responsável pelo estabele- cimento de seu povo no território italiano. Foi considerado o mais romanizado dos bárbaros. Seu reinado durou cerca de 30 anos (493-526) (imagem disponível em: <http://www.tra- sosmontes.com/forum/viewtopic.php?f=6&t=3754>. Acesso em: 17 fev. 2011). 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Conforme estudamos na unidade anterior, há inúmeros pro- cessos sociais, políticos, religiosos e culturais que permitem a in- serção de um período intermediário entre o que se convencionou chamar de Antiguidade e o que chamamos de Idade Média: a An- tiguidade Tardia. Esse período, como afirma Peter Brown, representaria a con- tinuidade das estruturas antigas unida à religiosidade cristã. Por isso, mesmo com relação à Alta Idade Média (século 7º a século 10), não podemos afirmar que os referenciais da Antiguidade ti- vessem sido superados e alterados por completo. Muito do legado imperial romano foi mantido ou adaptado à realidade dos povos germânicos, assim como elementos germânicos foram assimilados pelos romanos. O objetivo desta unidade é apresentar o processo de insta- lação dos povos germânicos no Ocidente, reconhecendo a união de sua tradição à herança político-cultural deixada pelos romanos. Desde já, chamamos sua atenção para o fato de que as entradas germânicas não foram sempre ofensivas, conforme é divulgado pela historiografia tradicional. 5. A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO A história da entrada e permanência dos povos germânicos no Ocidente é muito controversa. Isso se deve às inúmeras proble- 89© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica máticas históricas suscitadas por diferentes correntes historiográ- ficas a respeito da inclusão do elemento germânico na realidade sociocultural do Império Romano Tardo Antigo. Dentre essas problemáticas, temos o questionamento sobre o que teria provocado a “queda” ou a “crise” do Império Romano. Também se discute sobre quais são os elementos que definem a Alta Idade Média como período diverso da Antiguidade Tardia. Os textos presentes em livros didáticos do Ensino Médio apresentam o início da Idade Média como o momento da queda do Império Romano provocada pela onda de invasões bárbaras. Dessa forma, é impossível não reconhecer a deposição de Rô- mulo Augústulo pelo chefe ostrogodo Odoacro, em setembro de 476, como o fato que decreta oficialmente o fim do Império Romano. Entretanto, a leitura simplificada desse fato esconde debates ainda sem consenso sobre duas questões. A primeira questão diz respeito ao que teria ocasionado a ruína da estrutura imperial no Ocidente romano: uma crise interna “natural” arrastada durante séculos ou a pressão germânica, forte o suficiente para desmante- lar uma estrutura imperial de mais de cinco séculos. A segunda questão provém da primeira e trata de procurar os motivos que levaram os povos germânicos a pressionar as fron- teiras do Império Romano do Ocidente. Ferdinand Lot (1991) e Perry Anderson (1995) são alguns dos historiadores que defendem a ideia da lenta crise interna que le- vou ao desmoronamento do Império. Segundo Lot, os fatores que explicam essa decadência não se encontram apenas nas invasões bárbaras. A queda do Império foi um processo longo, diante do qual as invasões foram apenas um agravante final, e não o fator mais importante. Desde o século 3º, a crise era sentida dentro da estrutura "decrépita" do Império. Vejamos alguns elementos importantes dessa crise: © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 90 • A influência crescente do exército na vida política, a pon- to de ser determinante na sustentação ou na deposição dos imperadores. • O enfraquecimento do Senado em sua condição de insti- tuiçãopública deliberativa. • A crise econômica provocada pela diminuição da arreca- dação de impostos e pela queda da produção agrícola. Tais fatores acarretaram, também, uma desvalorização mone- tária, a ponto de o povo retomar a troca de bens em lugar da utiliza- ção da moeda. Anderson segue a mesma linha de Lot, reconhecendo no sé- culo 3º o início da queda do Império. Segundo ele, com o fim das guerras de expansão imperial, uma consequente crise de abasteci- mento de mão de obra escrava se estabeleceu no Império. Essa cri- se se irradiou, adensando outros elementos como a crise urbana, a estagnação demográfica e a crise de produção agrícola. Para dar conta da manutenção à estrutura imperial, foi pre- ciso enrijecer a repressão a qualquer tipo de contestação civil, o que tornou necessário o apoio do exército. Em consequência dis- so, cresceram os investimentos no setor militar e o aumento da cobrança de impostos junto à população. Observemos que, quando Anderson trata do aumento da pressão germânica sobre as fronteiras do Império, ele descreve, inicialmente, a contaminação dos germanos pelo modo de vida ro- mano, a partir da incorporação de homens oriundos desses povos à estrutura do exército imperial. Dessa forma, "o perigo vindo das fronteiras germânicas cres- cia à medida que a civilização romana gradualmente as alterava" (ANDERSON, 1995, p. 98). Para Anderson, o Império cavou sua própria cova ao desintegrar os modelos de produção comunitários das florestas germânicas, contaminando-os com a noção de pro- priedade e com os lucros advindos das trocas comerciais. 91© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica Com um posicionamento contrário ao dessas teses, o his- toriador André Piganiol (1972) defendeu que o período entre os séculos 3º e 5º não pode ser considerado um ciclo de decadência, uma vez que então se desenvolveu uma nova estrutura imperial, marcada pela ideia de monarquia sagrada e absoluta. Além disso, após a crise do século 3º, houve, durante o século 4º, uma recupe- ração monetária e demográfica do Império. Segundo Silva (2006, p. 7), a imagem catastrófica atribuída ao Império Romano com base no assassinato do Imperador Alexan- dre Severo (235 d.C.) "é o fruto de documentos da época romana cujo ponto de vista é bastante tendencioso". É o caso da História Augusta, obra que refletia a perspectiva do Senado – instituição que perdia influência sobre o Império. Através da releitura das fontes, os historiadores têm mostrado que as reformas militares, políticas e econômicas puseram fim ao pior da crise antes mesmo do final do século 3 e que, do ponto de vista da ameaça representada pelos bárbaros, a situação nas fronteiras se restabeleceu sob o imperador Aureliano, nos anos 270 (SILVA, 2006, p. 8). A tese sustentada por Piganiol de que, entre o final do século 4º e o início do século 5º houve um "assassinato" do Império, pro- movido pelas violentas invasões bárbaras, também guarda suas reservas. Há uma grande polêmica entre os historiadores sobre o significado das grandes invasões. Se, por um lado, há aqueles que acreditam que elas resultaram na conquista do Império Romano do Ocidente e na destruição da influência romana na região, por outro lado, há aqueles que acreditam que as tradições e as práticas políticas do mundo romano sobreviveram aos povos bárbaros e através deles (SILVA, 2006, p. 12). Efetivamente, temos entre o final do século 4º e o início do século 5º um crescente deslocamento de povos germânicos em di- reção às fronteiras do Império. Mas, se observarmos o movimento de cada povo, perceberemos que esses deslocamentos ora se de- ram de forma violenta, ora de forma pacífica. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 92 Em vista disso, podemos afirmar que muito do que apren- demos no Ensino Médio está em contradição com o que acaba- mos de estudar. Por isso, reafirmamos sempre: é preciso que nos desvencilhemos de conhecimentos difundidos por interpretações que não consideram o contexto em sua totalidade, bem como de afirmações oriundas do senso comum. 6. A INSTALAÇÃO GERMÂNICA NO OCIDENTE A entrada dos germanos no Império Romano ocorreu em dois momentos: entre 375 e 410, e de 411 a 470. O primeiro mo- mento (375-410) foi caracterizado tanto por deslocamentos vio- lentos quanto por migrações pacíficas, muitas vezes marcadas pelo pedido de asilo ao Império. Inicialmente, entraram no Império os seguintes povos: alanos, alamanos, visigodos, ostrogodos, suevos, burgúndios, francos e vândalos. Você deve estar se perguntando: que motivos justificariam a entrada desses povos no Império? Os motivos são inúmeros. Se- gundo Anderson (1995), o que levou os povos germânicos a pres- sionar e invadir as fronteiras do Império foi a ameaça representada pela aproximação dos hunos – nômades da Ásia Central que dispu- nham de fama extremamente amedrontadora. Já Le Goff (2005) chama a atenção para a mudança climática, "um resfriamento que, da Sibéria à Escandinávia, teria reduzido as áreas de cultivo e de criação dos povos bárbaros e os teria posto em movimento, uns empurrando os outros, para o sul e para o oeste, até os confins do mundo ocidental, rumo à Bretanha, à Gá- lia, à Espanha e à Itália". Além disso, ele menciona o crescimento demográfico dos germanos e a atração que os ricos territórios im- periais despertavam entre eles. Ao observar a Figura 1, você poderá verificar que tanto os ostrogodos quanto os visigodos entraram no Império ao fugir dos hunos, entre 375 e 376. Ambos os povos receberam refúgio do imperador, mas a cordialidade entre eles não durou muito. 93© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica Em 378, os visigodos entraram em guerra contra o exército romano. Sob a liderança do rei Alarico (370-410), os visigodos va- garam por todo o Império até que cercaram e saquearam Roma, em 410. Em 418, o imperador Honorius aceitou fixá-los na região da Aquitânia (atual sul da França) na condição de federados, ou seja, de aliados do Império. Nesse momento, nasceu o primeiro reino bárbaro do Ocidente. Figura 1 Mapa dos deslocamentos germânicos entre 375 e 420. Na figura anterior, também podemos perceber que, no início do século 5º, os hunos foram os responsáveis por impelir os alanos, os vândalos, os burgúndios e os suevos em direção ao Ocidente. Enquanto burgúndios e alanos se instalaram na margem esquerda do Reno, suevos e vândalos atravessaram os Pirineus e atacaram a Península Ibérica. Os vândalos atravessaram o estreito de Gibraltar e após terem saqueado Cartago, instalaram-se na parte oriental da África. Eles obtiveram o controle do Mediterrâneo Ocidental, ao ocupar as Ilhas Baleares, a Sardenha a Córsega e a Sicília (SILVA, 2006, p. 12). © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 94 O segundo momento das invasões (411-470) é marcado pela entrada dos francos, dos anglo-saxões e, tardiamente, dos lombar- dos. De acordo com Anderson, essas incursões foram diferentes das primeiras: antes de tudo, representavam uma expansão militar dos domínios originais desses povos, respectivamente localizados na Bélgica, na costa alemã e na baixa Áustria. Para o autor, foi nesse momento que ocorreu a sedimenta- ção cultural, responsável por alterações significativas na cultura do Ocidente: as mudanças vão desde o surgimento de um novo siste- ma agrário até a incorporação linguística de palavras germânicas ao vocabulário latino. No caso específico dos francos, Silva (2006, p. 18) questiona a visão de que eles tenham levado a cabo uma oposição radical aos romanos. Esse autor afirma que "os francos sálicos, uma vez esta- belecidos nas terras do Império,estiveram entre seus mais fiéis defensores, mesmo quando para tanto devessem combater outros povos de origem germânica". Essa afirmação baseia-se nas pesquisas arqueológicas mais recentes, que originaram uma hipótese que defende que os francos não germanizaram a Gália; ao contrário, foram progressivamente assimilados no interior de uma população bem mais numerosa. Os anglo-saxões, como assinala Balard (2002), auxiliaram os bretões a combaterem a pirataria escota e o assalto dos pictos, que desde 420 ameaçavam os territórios romanizados da Grã-Bretanha. Como federados, tanto os anglos quanto os saxões contiveram a ameaça marítima sobre a ilha. Diante desse quadro, é complicado defender a tese do caráter militar dessa segunda onda de desloca- mentos. Ao que parece, o primeiro contato entre esses povos e o Ocidente foi marcado muito mais pelo estabelecimento de acor- dos e parcerias do que por conflitos militares violentos. Contudo, isso não significa que os grupos germânicos permaneceram nesta condição de parceiros durante todo o século 5º. Segundo Balard 95© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica (2002), entre os anos de 450 e 455, após expulsarem os invasores, os anglo-saxões voltaram-se contra seus hóspedes bretões, esta- belecendo um processo de colonização que atingiu boa parte da Grã-Bretanha. 7. PRIMEIROS REINOS GERMÂNICOS Ao observar o mapa na Figura 2, referente aos reinos germâ- nicos do século 6º, você verificará a divisão do Império Romano do Ocidente em vários territórios estruturados de acordo com os assentamentos finais dos povos germânicos. No entanto, é impor- tante desmistificar esse recurso visual, afirmando a dificuldade que os primeiros reinos tiveram para desenvolver um domínio ter- ritorial duradouro. No final do século 6º, a maioria daqueles reinos, excetuando- se o reino franco e o reino visigodo, teve seus territórios anexados ou substituídos por outros reinos em virtude da expansão constan- te de outros povos germânicos. É o caso dos ostrogodos, na Itália, que tiveram seu território tomado pelos lombardos; dos alamanos e burgúndios, que foram submetidos pelos francos; e dos visigodos, que conquistaram e incorporaram ao seu reino o território suevo. Figura 2 Mapa dos reinos germânicos. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 96 Ao entrarem no Império, os germanos constituíam, essencial- mente, federações de tribos relativamente organizadas, incapazes de substituir completamente o sistema administrativo romano. A maioria deles permaneceu vinculada às antigas estruturas do Im- pério Romano, mantendo certo dualismo institucional. Isso significa que, tanto no campo político-administrativo quanto no campo social, a aristocracia romana e os germanos mantiveram seus modos de vida, apesar da ocorrência de alguns sincretismos importantes entre ambos. Essa característica dualista, presente durante todo o século 5º, resultou do contato entre as diferentes concepções políticas, econômicas, sociais e culturais dos germanos e dos romanizados. Os primeiros tiveram preservado o seu modo de vida por meio do regime de hospitalidade, que previa a entrega de mais ou menos dois terços da área das grandes propriedades romanas aos hóspe- des germânicos. Estes tiveram total independência para cuidar de seus sortes (lotes de terras destinado ao hóspede germânico). Do ponto de vista jurídico, o regime de hospitalidade previa, em troca do serviço militar prestado a Roma, que os germanos resguardassem suas leis e seus próprios chefes ou reis. De acordo com Balard (2002), esse regime foi praticado tanto por visigodos quanto por burgúndios e ostrogodos. Os francos e alamanos re- presentaram um caso à parte, pois ocuparam o norte da Gália – onde se encontravam terras vazias e abandonadas. Códigos jurídicos diversos subsistiram normalmente e eram aplicados a cada população: os visigodos tinham o Código de Euri- co; os burgúndios, a Lei de Gombette (do rei Gondebaud); os fran- cos, a Lei Sálica (Figura 3), e os lombardos, o Édito de Rotário. Esses códigos foram pronunciados oralmente, passando a ser redigidos em latim com a estruturação dos primeiros reinos germânicos no Ocidente. Os códigos continham influências e elementos do código im- perial de Teodósio II. Ao mesmo tempo que as leis germânicas ga- nhavam textos escritos, os romanos que ainda viviam entre esses 97© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica povos conservavam seu próprio Direito. Figura 3 Fac-símile de uma página do manuscrito da lei sálica da Biblioteca Monástica de S. Gallo. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 98 Apesar da distinção presente em quase todos os reinos, o convívio entre germanos e romanos existiu regularmente, mesmo durante os momentos mais críticos da instalação germânica. Como os germanos preservaram aspectos da estrutura administrativa ro- mana (tendo inclusive mantido, muitas vezes, antigos funcionários do Império), o relacionamento entre eles nunca foi completamen- te hostil. Dessa forma, em grande parte, o contato entre romanos e germanos ocorreu em proveito das estruturas imperiais. As pri- meiras monarquias germânicas repetiram em muitos aspectos as instituições romanas, que permaneceram intactas mesmo após o desaparecimento do governo central no Ocidente. Segundo Balard (2002, p. 28), os documentos oficiais das re- alezas germânicas foram redigidos em latim, reproduzindo as fór- mulas romanas: E mesmo se as moedas visigodas ou francas portam a imagem do rei, elas são cunhadas com o peso, o título e as inscrições do impé- rio. Na Gália, o soberano franco é o sucessor direto do fisco roma- no, tornado fisco real. A identificação com Roma e com os símbolos imperiais ga- rantiu a adesão e a lealdade das elites romanas aos reinos recém- formados, como no caso dos reinos de visigodos e francos. Em termos institucionais, a novidade implantada pelos germanos en- contrava-se nas formas de escolher o rei. Para os francos, a hereditariedade era fundamental na su- cessão e, quando havia mais de um herdeiro, o reino era dividido entre todos os filhos do rei. Os visigodos, ao contrário, não se ape- garam ao modelo de sucessão hereditário. Seus príncipes tenta- ram consolidar seu poder apoiando-se sobre os concílios que eles mesmos reuniam em Toledo e que os sustentavam nos processos legislativos. Diferentemente do que apresentam as teses tradicionais a respeito da privatização do poder presente nos reinos germânicos, 99© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica subsistiu entre eles uma noção de poder público fundamental para alicerçar seus reinos. Em oposição à ideia de que os deslocamentos germânicos instituíram uma ordem política patrimonializada (privada), Silva (2006) defende que a ordem política presente durante o Império manteve o caráter público, mesmo depois de seu fim, por meio da universalização do ideal salvífico cristão. Ou seja, o processo de conversão dos povos germânicos ao cristianismo contribuiu para a conservação de conceitos e práticas próprias da rex publica im- perial. Eles reconheciam no âmbito público (aquilo que é visto e ou- vido por todos) a existência de uma autoridade responsável por governar, que tivesse o objetivo de “promover a salvação”. Nesse sentido, os reis germânicos não foram apenas chefes militares do- tados do poder de comandar e contrair relações em âmbito priva- do: seu poder foi construído com base na capacidade de estruturar uma autoridade pública, fundamentando uma ordem e uma justi- ça comum a todos. No entanto, ao mesmo tempo que conservaramo ideal salvi- fíco cristão, alguns reinos germânicos convertidos ao cristianismo – ostrogodos, visigodos, burgúndios, vândalos e suevos – adota- ram a doutrina de Arius, condenada pela ortodoxia católica desde o Concílio de Niceia, no ano de 325. Mesmo com a condenação por parte de alguns, como é o caso de Santo Ambrósio, os germanos arianos tentaram, como no caso de Teodorico, estabelecer uma Igreja ariana em pé de igual- dade com a Igreja católica. De acordo com Le Goff (2005, p. 26), "o que poderia ter sido um laço religioso, veio a ser um motivo de discórdia e engendrou ásperas lutas entre bárbaros arianos e romanos católicos". Além disso, houve discórdia com os germanos convertidos ao catolicis- mo, como foi o caso dos francos. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 100 Assim, sob o reinado de Clovis (481-511), batizado em Reims em 498, os francos combateram a propagação do arianismo. Os burgúndios do sul da Gália foram os primeiros a sofrer suas incur- sões militares. Diante das vitórias de Clóvis, sua fama de defensor da ortodoxia cristã chegou até os bispos católicos do reino visigo- do, que recorreram ao seu auxílio para expulsar os arianos que ocupavam seus territórios. 8. TEXTO COMPLEMENTAR Agora, você terá a oportunidade de ler um texto da historiadora Rossana Alves Baptista Pinheiro a respeito dos suevos, povo germâni- co que ocupou o território da Galécia Medieval. Boa Leitura! O reino dos Suevos (409-579) e as fontes escritas para seu estudo –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Situado entre o Rio Douro e o Rio Minho, o reino suevo experimentou um breve período de existência na Península Ibérica. Povos oriundos da Panônia, os sue- vos chegaram à Península Ibérica em 409, juntamente com alanos e vândalos. Com a partilha do território peninsular em 411, coube a eles a Galécia, região do Noroeste Peninsular, cuja capital administrativa desde o Império Romano era Braga. Assim como sua fixação territorial dependeu da disputa com alanos, vân- dalos e visigodos, sua história religiosa também foi marcada pela instabilidade. Segundo a narração do bispo da cidade de Chaves, Idácio, os suevos experi- mentaram a conversão ao cristianismo em 448, quando seu rei Requiário, filho de Réquila, deixou de ser pagão e foi convertido pelas mãos do bispo Balcônio de Braga. Isto faria dos suevos os primeiros povos bárbaros situados em terras ocidentais a se converterem ao cristianismo. É curioso salientar que nem ao menos a adesão ao cristianismo niceno fez com que o bispo Idácio fosse simpático a estes que considerava bárbaros, cultural- mente inferiores e repletos de vícios. Requiário, apesar de cristão, não era visto com bons olhos pelo bispo de Chaves, que nele acentuou a política ambiciosa de expansão territorial e ampliação de poderes na Península Ibérica. Com este propósito, Requiário teria chegado à Bética, atual Andaluzia, onde estabelecera alianças com visigodos e romanos. Todavia, Idácio diz que o rei suevo não man- tinha sua palavra e descumpria sem pudor os acordos firmados. Após a morte de Requiário, Remismundo tornou-se rei e se converteu ao arianismo por obra do bispo visigodo Ájax. Esta conversão foi interpretada pelo historiador José Matto- so como uma demonstração da influência dos visigodos sobre os suevos durante este período. A Crônica de Idácio é o primeiro documento escrito que temos acerca da forma- ção do reino suevo, que lhe foi quase contemporâneo, uma vez que o bispo de Chaves abarcou em sua obra desde a chegada dos suevos na Península até 101© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica 469. Com a conclusão da crônica e a morte do cronista, não teremos outros tes- temunhos escritos acerca do reino suevo até meados do século VI. Os concílios hispânicos do momento serão reunidos do sul da Península até Toledo. Neste momento, suevos e visigodos dividiam o território ibérico, cabendo ainda aos suevos à Galécia e aos visigodos o restante dos territórios. Ambos eram arianos, e isto poderia explicar o porquê da inexistência de concílios no reino suevo até a chegada de Martinho de Braga, ou de Dume em 550. Este monge, consagrado bispo desempenhou um papel central na estruturação da Igreja e no fortaleci- mento de uma monarquia pautada nos princípios cristãos definidos no concílio de Nicéia de 325 que combateu o arianismo, doutrina então professada pelos reis suevos. As razões de sua ida ainda são pouco evidentes aos historiadores que se debru- çaram na compreensão deste momento da história da formação dos reinos bárba- ros. O pouco que se sabe a seu respeito é proveniente da análise de seu epitáfio, dos escritos de Gregório de Tours, de Venâncio Fortunato, de Isidoro de Sevilha e do Breviário Bracarense do Cônego Soeiro. A partir da leitura dessas fontes, formaram-se duas correntes. A primeira foi unânime até cerca de 1950, e deter- minava que o bispo havia nascido na Panônia, recebera sua formação monástica no Oriente e de lá teria se dirigido até a Galécia. Esta perspectiva reforçava, en- tão, um Martinho comprometido com a conversão de seus conterrâneos a partir das determinações do Imperador Justiniano, que desejava reunificar o Império após a perda de territórios para os germanos. Esta tese foi questionada em 1963 por Luís Ribeiro Soares, para quem nada assegurava com certeza que o bispo de Braga havia nascido na Panônia e formara-se no monasticismo oriental. Em contrapartida, o autor postulou a romanidade de Martinho de Braga ao dar uma nova interpretação ao seu epitáfio, visto em conjunto com as outras obras citadas acima e que, até então, não haviam sido levadas em consideração. Seguindo a perspectiva de Soares, em 1993 Arnaldo Monteiro Espírito Santo aceitou não só a romanidade de Martinho, como também sugeriu que este havia nascido na Gália e que, de lá, havia partido para a Galécia, na intenção de desempenhar um trabalho evangelizador junto os reis que ele sabia serem arianos. A despeito das discussões em torno da biografia e das motivações de Martinho de Braga, seus escritos são um dos melhores e, quase os únicos testemunhos sobre o reino suevo no século VI. Sua obra mais conhecida é um sermão, escri- to por volta de 579 e intitulado postumamente de A correção dos rústicos. Sua interpretação também não é passível de unanimidade, o que pode ser visto na discussão levada a cabo entre os historiadores Jean-Claude Schmitt e Dieter Harmening sobre a questão das superstições. Este sermão teria sido escrito em conformidade com as determinações do II Concílio de Braga de 572, reunido com a finalidade de erradicar o paganismo e qualquer tipo de dubiedade litúrgica, ca- nônica ou doutrinal na Galécia. Nele, o bispo propõe-se apresentar a origem dos ídolos que enganam os homens ignorantes e os conduzem ao afastamento e es- quecimento de Deus. Neste percurso, Martinho de Braga enumera uma série de práticas realizadas pelos homens em sua ignorância de Deus e é justamente na condenação destas práticas que os autores atribuem ao bispo ou uma vinculação ao modelo de Cesário de Arles, ou uma descrição fidedigna das superstições que pressionavam e faziam frente à expansão do cristianismo na Galécia. Os autores que se dedicaram ao estudo dos escritos de Martinho de Braga afir- mam que o bispo tinha um projeto cristianizador que abarcava o reino suevo como um todo, e para cada setor ele teria dedicado uma obra. Nesta perspectiva, sua Fórmula da Vida Virtuosa seria uma obra para a instrução da aristocracia © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 102 sueva, os cânones dos dois concílios de Braga que ele promoveu seriam refe- rentes ao disciplinamento do clero e o sermão atestaria uma preocupação com a cristianização das aldeias e com as regiões menos romanizadas da Galécia. Todavia,o que podemos perceber é que no interior de seus textos há um diálogo com todas as esferas da sociedade indistintamente. Esta constatação reforça o empenho do bispo em tornar o reino suevo cristão e, principalmente, aqueles vinculados ao poder, como era o caso da aristocracia e do clero. A partir daí, podemos começar a refletir a importância da adesão de uma religião nos jogos de poder do período. No caso do reino suevo, cuja existência conturbada vai até 585, quando foi incorporado pelos visigodos, a cristianização pode ser pensada como recondução e rememoração dos postulados estabelecidos e reafirmados desde Nicéia. E, para acompanhar este percurso, os escritos de Martinho de Bra- ga são, ainda hoje, um dos únicos testemunhos escritos deixados ao historiador (PINHEIRO, 2007, texto cedido pela autora). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Após o estudo desta unidade, é possível manter a explicação taxativa de que o declínio do Império Romano do Ocidente foi causado apenas pelas “inva- sões” bárbaras? Justifique sua resposta. 2) Para uma melhor compreensão sobre a organização política administrativa dos “bárbaros”, elabore um quadro em que esta organização fique eviden- ciada, principalmente em relação aos germânicos, lombardos e francos. 3) Você é capaz de apontar os elementos essenciais ao processo de cristianiza- ção dos povos germânicos? Reflita e faça um esquema sobre o assunto, para auxiliar em seus estudos. 4) Entendendo por aculturação o processo em que uma cultura “apaga” os elementos culturais de um povo subordinado, você diria que o que houve entre as instituições romanas e comunidades germânicas foi um processo de aculturação? Justifique sua resposta. 10. CONSIDERAÇÕES Como vimos nesta unidade, a fusão de elementos germâni- cos à cultura romana foi uma característica constante no estabe- lecimento dos reinos que substituíram o Império Romano. Muito dessa fusão deveu-se à integração militar desses povos, à enfra- 103© Os Primeiros Reinos Germânicos: A União do Legado Romano à Tradição Germânica quecida estrutura imperial do século 4º, e, sobretudo, à sobrevi- vência e ao consequente fortalecimento de uma das instituições mais representativas da tradição latina: a Igreja. Após ter ajudado e sustentado as populações durante as in- vasões, os bispos transformaram-se em verdadeiros “chefes tem- porais”, perpetuando a estrutura da cidade romana. Sua influência foi tamanha que os reis reclamavam o apoio do corpo episcopal reunido em concílio como forma de legitimar seu governo. Assim, a Igreja ganhava progressivamente novos espaços de atuação e in- tervenção. Segundo Banniard (1980), os êxitos da Igreja estão, sem dú- vida, relacionados à conversão dos germanos ao cristianismo, es- pecialmente à conversão dos francos e visigodos. Entretanto, por ser o centro de conservação da tradição antiga, principalmente escrita, a Igreja forneceu apoio intelectual aos reinos recém-or- ganizados, e esse apoio foi imprescindível para o fortalecimento desses reinos. Na próxima unidade, conheceremos a grandiosidade da união entre a Igreja católica e a tradição franca: o chamado Império Carolíngio, a principal organização política da Alta Idade Média. 11. E-REFERÊNCIAS Figura 1 Mapa dos deslocamentos germânicos entre 375 e 420. Disponível em: <http:// www.denarii.com.br/wp-content/uploads/2011/01/barbaros_invasoes.jpg>. Acesso em: 17 fev. 2011. Figura 2 Mapa dos reinos germânicos. Disponível em: <http://www.ecunico.com.br/ eisohomem/daniel/barbaros_reinos.jpg>. Acesso em: 17 fev. 2011. Figura 3 Fac-símile de uma página do manuscrito da lei sálica da Biblioteca Monástica de S. Gallo. Disponível em: <http://mek.oszk.hu/01200/01267/html/img/nagy/04-357. jpg>. Acesso em: 25 jan. 2008. 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, P. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1995. BALARD, M; GENET, J.; ROUCHE, M. Le Moyen Age en Occident. Paris: Hachette, 2002. © História Medieval I Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 104 BANNIARD, M. A alta idade média ocidental. Lisboa: Europa-América, 1980. LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Bauru: Edusc, 2005. LOT, F. O fim do mundo antigo e o princípio da idade média. Lisboa: Edições 70, 1991. PIGANIOL, A. L'empire chrétien. Paris: Presses Universitaires de France, 1972. PINHEIRO, R. A. B. O reino dos Suevos (409-579) e as fontes escritas para seu estudo. Texto cedido pela autora. SILVA, M. C. da. 4 de Setembro de 476 - A queda de Roma. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.
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