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EA D Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja 2 1. OBJETIVOS • Conhecer e identificar as diferentes etapas da reforma da Igreja e suas implicações sociopolíticas. • Compreender e identificar a importância do poder papal na estruturação da ortodoxia cristã para o Ocidente. 2. CONTEÚDOS • Cluny e a influência da tradição monástica na organização eclesial. • O movimento da Paz de Deus. • A Reforma Gregoriana e a crescente sacralização da Igre- ja. • Movimentos contrários à ortodoxia papal. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 62 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) É importante que você esteja sempre em contato com a bibliografia indicada durante nossos estudos. Prelimi- narmente, recomendamos alguns textos, a começar por um dos expoentes da historiografia e do medievalismo, Georges Duby. Ele escreveu o texto Os leigos e a paz de Deus, que teve sua edição brasileira publicada na cole- tânea: • DUBY, Georges. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 2) A chamada “visão tradicional” sobre o movimento da Paz de Deus corresponde às concepções de Lore Mackin- ney, Carl Erdmann, Paul Alphandery, Bernhard Töpfer, Georges Duby e Pierre Bonnassie. Para aprofundar seus conhecimentos sobre esse assunto, veja: • BARTHÉLEMY, Dominique. La paix de Dieu dans son contexte (981-1041). Cahiers de Civilisation Médié- vale, n. 40, p. 03-35, 1997. Nesta obra, Barthélemy apresenta as principais perspectivas historiográficas sobre o tema, tecendo inúmeras críticas às chamadas abordagens tradicionais. 3) Para adquirir maiores informações sobre o bispo Adal- berão de Laon, veja: • DUBY, Georges. Adalberão de Laon e a missão régia. In: ______. As três ordens ou o imaginário do feuda- lismo. Lisboa: Estampa, 1982, p. 59-71. 4) A seguir, apresentamos alguns conceitos importantes que aparecerão durante o estudo desta unidade. Leia-os com atenção, pois isso lhe fornecerá um valioso conhe- cimento preliminar: a) Os primeiros costumes litúrgicos a serem redigidos eram contemporâneos ao abaciado de Maïeul, e foram chamados de consuetudines antiquores. 63© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja b) Pedro Damiano foi prior de Fonte Avellana (1043), de- pois bispo e cardeal de Óstia (1057). Sua orientação espiritual vinculava-se aos ensinamentos de São Ro- mualdo, fundador da Ordem Camaldulense. Até agora, a historiografia o valorizou como fonte indispensável para a compreensão do movimento de Reforma Gre- goriana, mais especificamente por sua defesa do po- der espiritual da Igreja, por seu combate à simonia e por seu desempenho diplomático nos entraves entre papado e império. c) Introduzida por volta de 1140 em regiões alemãs e no norte de Lyon. Por volta de 1170, ele abandonou seus bens em prol da leitura e da tradução do texto bíbli- co para a língua vernácula. Esse movimento teve por base a proclamação da pobreza como meio de vida e a reivindicação, em nome dos laicos, do direito de ler a Bíblia traduzida para a língua vernácula e de pregar. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na Unidade 1, acompanhamos as principais construções his- toriográficas sobre o "feudalismo”, analisando principalmente a abordagem de Alain Guerreau. Agora, precisamos verificar as es- pecificidades da instituição eclesiástica, identificada por Guerreau como o eixo articulador de todo o sistema feudal. Com o estudo desta unidade, você terá a oportunidade de desfazer alguns conceitos oriundos do senso comum a respeito da Igreja, especialmente a visão que coloca essa instituição como a grande vilã do período medieval. De fato, durante a Baixa Idade Média, a Igreja assumiu uma posição essencial na sociedade. Contudo, não se deve vê-la apenas como uma instituição manipuladora, alheia às expectativas e ide- ologias de seu tempo. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 64 Ao contrário, é verdade que, na Baixa Idade Média, a Igreja alcançou um lugar hegemônico na sociedade. Ou, melhor dizendo, “as igrejas”. Porém, isso ocorreu porque elas compartilhavam as crenças e ideologias disseminadas nesse período. O papel central da Igreja na vida social e seu poder temporal foram conquistados ao longo do movimento de Reforma – propos- ta iniciada nos ambientes monásticos, estendendo-se aos ambien- tes episcopais, até reconhecer em Roma (a Santa Sé) seu domínio primordial. Portanto, o objetivo desta unidade é proporcionar o enten- dimento do modo como a Igreja conquistou essa centralidade na sociedade feudal e como ela interferiu na organização e no contro- le do meio em que estava inserida. Para tanto, pretendemos identificar as diferentes etapas da reforma da Igreja e suas implicações sociopolíticas, compreenden- do a importância do poder papal na estruturação da ortodoxia cristã para o Ocidente. 5. CLUNY E O MOVIMENTO DE REFORMA MONÁSTICA Antes de iniciarmos esse tópico, vamos conhecer na Figura 1 a Maquete e a planta da Abadia de Cluny. Figura 1 Maquete e Planta da Abadia de Cluny. 65© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja A Igreja do sistema feudal não pode ser compreendida fora das transformações sociais ocorridas nesse período. Como Guer- reau afirma, ela dispôs de muitos mecanismos de domínio sobre a sociedade da época. No entanto, a questão que nos move é a tentativa de com- preender como essa instituição se libertou da tutela dos poderes laicos a ponto de ter se transformado em uma das expressões do poder senhorial, regulando a paz, a justiça e os bens de uma gran- de parcela de territórios. Por isso, é fundamental a retomada dos fatos que possibilita- ram que a Igreja romana exercesse sua influência não apenas nos temas espirituais do cenário feudal, mas também nos negócios e na administração dos poderes locais. Como mostram Balard (2002) e Mornet (1994), a história da Abadia de Cluny e da Ordem Cluniacense, devido a suas tendên- cias reformadoras – especialmente a reforma das práticas monás- ticas com base nas prescrições de São Bento – tiveram um grande peso no processo de reforma e fortalecimento da Igreja romana no Ocidente medieval. Essa influência esteve vinculada a pelo menos três fatos: • Direito à imunidade, outorgado a Cluny por seu doador Guilherme III, duque da Aquitânia, em sua carta de doa- ção de 910. • Privilégio da isenção, concedido pelo papa Gregório V (998) e estendido a todos os cluniacenses por João XIX, em 1024. • Redação dos costumes litúrgicos, da vida em comunida- de e das relações com os poderes exteriores (bispos, reis, imperadores etc.). Vejamos o que diz Jêrome Baschet (2006, p. 185) sobre a questão da imunidade e do poderio dos monastérios: Desde o Baixo Império, e, sobretudo, desde a época carolíngia, um dos fundamentos da autoridade eclesial estava ligado ao privilégio © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 66 de imunidade, que subtraía os bens da Igreja de toda a intervenção dos agentes da autoridade pública, essa questão não tem maior importância e a afirmação do poderio dos monastérios, em Cluny e alhures, depende doravante da imunidade, que retira do bispo, autoridade soberana em sua diocese, toda a jurisdição e todo o direito de supervisão sobre os negócios dos monges. Dessa forma, para escapar aos poderes laicos ou à influência episcopal local, Cluny colocou-se diretamente sob a autoridade do papa. Com a aquisição das relíquias dos apóstolos Pedro e Paulo – patronos do mosteiro reconhecidos na carta de doação –, em 981, tornou-se um santuário autônomo,fundamentado no modo de vida em comunidade. Esses elementos contribuíram para o nascimento da ecclesia cluniacensis (igreja cluniacense), que, segundo Iogna-Prat (1998, p. 102), era uma rede eclesiástica de abadias e priorados centra- dos no santuário de Cluny, na Borgonha. Seu modo de vida “refor- mado” inspirou outros monastérios a desejarem a incorporação à rede cluniacense. Ainda segundo Baschet (2006, p. 185): A princípio, é a título pessoal que o abade de Cluny é igualmente abade dos monastérios que fazem apelo a ele para reformar seu modo de vida e seus costumes litúrgicos. Em seguida, ele é um arquiabade, chefe de todas as casas postas sob sua dependência, abadias ou, com mais freqüência conventos (que estão sob a res- ponsabilidade imediata de um simples prior). Forma-se, assim, não uma verdadeira ordem religiosa, pois não há nem organização em províncias nem instância colegiadas de direção, mas, antes, uma vasta rede de estabelecimento que adotam os mesmo costumes monásticos e estão submetidos à autoridade única do abade de Cluny. Em Cluny, era responsabilidade do abade zelar pelo respei- to aos costumes (prece, recolhimento, trabalho intelectual e tra- balhos manuais dos monges). Ele também deveria vigiar de perto as práticas ascéticas de todos aqueles que se colocavam sob sua condução, sempre privilegiando a prece e a celebração do ofício divino. O abade de Cluny, diferentemente de outros monastérios, era eleito pelos monges da abadia-mor. Esses monges, assim como aqueles dos monastérios dependentes, deviam-lhe obediência ir- restrita. 67© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja Sob os abaciados de Maïeul (954-994), Odilon (994-1049) e Hugo (1049-1109), Cluny transformou-se em uma potência espi- ritual e temporal. Isso deixou muitos bispos, como Adalberão de Laon, preocupados com aquela influência sobre a aristocracia laica e sobre os poderes régios. Essa importância junto à aristocracia laica vinha principal- mente da especialidade de Cluny na liturgia. A abadia prestava assistência aos mortos por meio de preces e da liturgia funerária. Os monastérios cluniacenses tornaram-se centros de uma rede de solidariedade que ligava os vivos e os mortos, ajudando-os a en- contrar o caminho da salvação. Recorramos novamente a Baschet (2006, p. 185): Daí as múltiplas doações – sobretudo de terras e de senhorios, mas também de igrejas e dízimos – que convergem para o monastério e suas dependências e constituem a base principal de sua riqueza. Ao mesmo tempo, essas doações ordenam as relações sociais no seio da aristocracia, hierarquizando os doadores em função de sua generosidade para com Cluny. A influência de Cluny sobre a sociedade na transição entre os séculos 10 e 11 foi considerável; ligada à sociedade feudal por suas funções de oração e pela origem de seus membros, que em sua maioria eram procedentes da aristocracia laica. Cluny também conectava-se àquela sociedade pelo seu sistema de dependência, que unia diversos monastérios, e pela tutela de inúmeros bens fundiários, nos quais exercia as relações de dominium. Direta ou indiretamente, Cluny ainda inspirou os movimen- tos de outros monastérios e da própria Sé Romana rumo à liberda- de da Igreja (libertas ecclesia), além de enfatizar a necessidade de renovação espiritual de seus membros. 6. MOVIMENTOS DA PAZ DE DEUS A exemplo de Cluny, os movimentos conciliares ocorridos entre 989 e 1020 (em Charroux, Narbonne, Puy, Poitiers, entre © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 68 outros lugares) também tiveram papel importante na divulgação de uma proposta normativa que regulasse claramente as relações entre igrejas e poderes laicos. Esses movimentos conciliares ficaram conhecidos na histo- riografia medieval como concílios de paz, e foram batizados pela historiografia como a Paz de Deus. Como mostram os estudos de Georges Duby e Dominique Barthélemy, os concílios de paz eram movimentos regionais que partilhavam de interesses comuns, especialmente a proteção das coisas sagradas. Entre as “coisas sagradas” estavam os bens eclesi- ásticos, os servidores e os seguidores de Deus. Barthélemy contrapunha-se a uma visão tradicional, que en- tendia a Paz de Deus como um movimento de união da Igreja e do povo em resposta à “anarquia” e à violência praticadas pela aristocracia senhorial durante a Baixa Idade Média. Esse autor ar- gumenta que os movimentos conciliares de paz não estavam em oposição a uma aristocracia laica. E, principalmente, que eles não eram repostas à privatização dos poderes públicos por parte dos senhores laicos. Para Barthélemy (1997), a Paz de Deus é um movimento de controle dos conflitos, no qual a associação entre os representan- tes eclesiásticos e a aristocracia assumiu papel fundamental em relação à manutenção da ordem pública. Além disso, o autor afirma que os conflitos entre aristocratas – as pilhagens – e outras manifestações da guerra não evidencia- ram o fim do poder público. Ao contrário, eles expressavam a per- manência de um poder público que buscava conservar a paz cristã. Vejamos a ata do Concílio de Charroux, de 989: Apoiados na autoridade dos concílios de nossos predecessores e em nome de nosso senhor e salvador Jesus Cristo, eu, Gombaud, arcebispo da segunda província da Aquitânia, reuni meus bispos nesta igreja chamada Charroux, no primeiro dia de junho. Estes bis- pos, assim como os clérigos e os monges, e sem contar os laicos dos dois sexos, imploramos o socorro da justiça divina. Nosso objetivo 69© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja consiste em desenraizar a atividade funesta, que nós sabemos ter germinado o mal nas nossas dioceses, devido ao fato de termos de- morado muito a convocar um concílio, e que as atividades legítimas tenham sua vantagem estabelecida. Assim, especialmente reunidos em nome de Deus decretamos, como aparece claramente nos cânones seguintes, que: 1. Se alguém ataca a santa igreja, ou toma dela o que quer que seja pela força, não terá nenhuma compensação fornecida, a não ser o anátema. 2. Se alguém toma por saque ovinos, bois, burros, vacas, cabras, bodes ou porcos de um camponês (agricolae) ou de outros po- bres (pauperes) – a menos que seja por uma falta da vítima – e deixe de fazer a reparação, torna-se um anátema. 3. Se qualquer um ataca, captura ou fere um padre, ou um diácono, ou qualquer clérigo que não porta armas (tal como um escudo, uma espada ou um capacete), mas que simplesmente se desloca ou permanece em sua casa, salvo se uma investigação do seu próprio bispo mostrar que a vítima cometeu alguma falta, então ele será culpado por sacrilégio, e se, além disso, não se apresen- tar para saldar sua dívida, que ele seja considerado estrangeiro, excluído da santa igreja de Deus. Assinado por Gomboud, arcebispo de Bordeaux, Gilbert, bispo de Poitiers, Hildegard, bispo de Limoges, Frotarius bispo de Périgueux, Abbo, bispo de Saintes, Hugo bispo de Angoulême. Conforme acompanhamos na ata do Concílio de Charroux, não há uma identificação de quem são os criminosos que atacam as Igrejas, muito menos o reconhecimento de que sejam senhores laicos. Além disso, não há a descrição de um descontrole universal, marcado por ondas de violência incontroláveis. O texto, no caso, remete-se à regulamentação de ações cla- ramente localizadas que, em virtude da demora na convocação do concílio, vinham sendo estabelecidas à revelia das autoridades lo- cais. As normatizações prescritas estão mais próximas da organiza- ção dos costumes do que de uma perda de referência do poder ou de uma fragilização da autoridade pública. Como afirma Barthélemy (1997), a Paz de Deus reuniuprin- cípios jurídicos tradicionais e valores sociais. Sua originalidade re- © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 70 sidia na mistura de medidas e práticas que variavam de acordo com as províncias. Seus objetivos eram próprios de uma instituição religiosa: os bispos chamavam o clero e o povo aos bons modos, conclamando-os a respeitar os ritos e os interditos estabelecidos. Dessa maneira, a Paz de Deus e, mais tardiamente, a Trégua de Deus, disciplinaram conflitos específicos e ajudaram os eclesi- ásticos a delimitar os domínios de sua autoridade, estabelecendo quais conflitos eram justos. A Trégua de Deus, vigente a partir de 1037 (Concílio de Ar- les), suspendia de forma geral ou temporária as atividades milita- res de um território, especialmente em dias santos ou reconheci- dos como importantes no calendário litúrgico. Houve um deslocamento na abordagem dada até então à questão da paz: Deus transmitiria a paz à Igreja, que por sua vez ficaria incumbida de investir o rei do poder de instaurar essa paz, mesmo que para isso tivesse que usar a força. A Paz e a Trégua de Deus ajudaram os poderes eclesiásticos a partilhar com o poder real do uso legítimo da violência. Se até então os clérigos dispunham apenas do domínio teórico da paz, a partir dos movimentos da Paz e da Trégua da Deus passaram a intervir efetivamente, delimitando os conflitos bélicos, que deve- riam ter um caráter “santo”. Juntamente aos concílios de paz – em geral, expressões de episcopados localizados na Gália – nascia no episcopado romano, sob a influência do movimento de renovação espiritual que vinha dos mosteiros, a preocupação com a moral e a disciplina do clero. Constatava-se também que esse aperfeiçoamento só seria possí- vel com a liberação das igrejas (episcopados, dioceses e mosteiros) da tutela dos poderes laicos. 71© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja 7. A REFORMA GREGORIANA E A CRESCENTE SACRA- LIZAÇÃO DA IGREJA A historiografia medieval, ao tratar do tema da reforma da Igreja Cristã, apresenta diversas periodizações para a extensão do movimento e de seus efeitos. A maioria dos autores identifica a segunda metade do sé- culo 11 como o ponto inicial da reforma da Igreja, e as primeiras décadas do século 12 como o momento final deste período de re- formas. A ideologia de renovação e reforma era anterior a 1050, e o processo de efetivação de suas normas iria até o início do século 13. No entanto, a historiografia fixou o ano de 1057 como a data do nascimento do movimento reformador, especialmente em vir- tude da ascensão do grupo reformista ao controle do papado. Como marco para o fim desse movimento, adotou-se espe- cificamente o período da Concordata de Worms (1122-1123), que regulamentou a questão da "Querela das Investiduras", separan- do nitidamente a investidura eclesiástica da investidura laica. A Querela das Investiduras foi um conflito entre o papa e o imperador, que discordavam a respeito de quem teria o direito a promover a investidura dos bispos. Até 1075, quando o decreto pontifical de Gregório VII inter- ditou a investidura de bispos por laicos, esses eclesiásticos eram ti- dos como instrumentos da autoridade imperial e exerciam ao mes- mo tempo um poder temporal e um cargo espiritual. A interdição não foi aceita por parte do Imperador Henrique IV, o que deu início a uma série de embates sobre a investidura eclesiástica. Somente em 1122 o imperador Henrique V e o papa Calisto II chegaram a um compromisso viável, conhecido como a Concor- data de Worms. Esse acordo regulamentou a questão da "querela das investiduras", separando nitidamente os dois tipos de investi- dura: © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 72 • Eclesiástica: concedia a função espiritual ao bispo eleito pelo clero local, com a consignação do anel e do pastoral pelo papa ou por um enviado deste. • Laica: utilizando a espada e o cetro, o imperador conferia ao bispo os poderes condais, ou seja, um governo de ca- ráter temporal e seus respectivos benefícios. As diversas facetas e grupos que compuseram os movimentos reformadores dentro da Igreja ficaram conhecidos como a expres- são de um movimento único: a Reforma Gregoriana. Você pode estar se perguntando: por que a reforma recebeu esse nome? Esse nome faz referência ao pontificado de Gregório VII (1073-1085), cuja administração representou um dos momentos fortes de afirmação do poder papal frente à influência e ao contro- le do imperador germânico. O grande problema dessa nomenclatura reside no fato de ela restringir as várias expressões reformistas à intenção ou à obra de um único homem, o papa Gregório VII. Essa perspectiva de homogeneização limitou a apreensão da complexidade ideológica dos reformadores e dos diferentes mo- mentos do movimento que, desde seu início, esteve voltado para "a reforma da hierarquia secular sob a autoridade centralizada do papado e o reforço da separação hierárquica entre laicos e cléri- gos" (BASCHET, 2006, p. 190). Por isso, Giles Constable (1991), em suas análises sobre a Reforma Gregoriana, buscou reconhecer as singularidades do pe- ríodo reformista, dividindo-o em dois momentos. Esses momentos não teriam estado necessariamente vinculados a fatos específicos, mas sim à renovação de valores e ideologias conduzida pela Igre- ja. 73© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja Primeiro momento O primeiro momento situa-se durante os séculos 11 e 12. Foi marcado pelo ideal de reforma com os olhos voltados para o passado, objetivando o retorno às origens da prática espiritual dos tempos de Cristo e de seus apóstolos. Sob a aparente vontade de retorno à Igreja primitiva, a prin- cipal preocupação desse período foi a restauração de uma hierar- quia eclesiástica que suprimisse a intervenção laica nos assuntos eclesiásticos. Caracterizando-se também pelas ideias de renovação vindas dos mosteiros, especialmente pela concepção de que cerimônias de batismo ou penitenciais eram um meio de recorrer à bonda- de de Deus, o movimento reformador incorporou a renovatio no sentido de renovação da sociedade cristã e de suas instituições (CONSTABLE, 1991). Como mostra Constable (1991), essa aplicação do ideal da renovatio (renovação) refletiu uma nova percepção: a de que a mudança institucional era possível. Essa mudança começou con- centrada no disciplinamento do clero, por meio da recuperação do exemplo monástico como referência aos clérigos seculares (cléri- gos que participavam da vida civil). Como você pode ver, o monasticismo cluniacense, estudado no Tópico 5 desta unidade, tornou-se um difusor importante da ideologia de renovação espiritual. Essa ideologia cimentou os mo- vimentos reformadores dentro da unidade cristã. De acordo com Franz Neiske (2006), houve sem dúvida uma proximidade entre as intenções reformadoras da experiência monástica de Cluny e da reforma romana da Igreja. Entretanto, o campo de ação dos movimentos era distinto. Cluny orientava sua ação para a vida social, assistindo doentes, pe- regrinos e pobres, enquanto os reformadores romanos agiam no campo político, instituindo, por meio de concílios e cânones, seu projeto de moralização e de libertação. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 74 Além disso, havia uma perspectiva regional no movimento encabeçado por Cluny e também nos concílios de paz, que divergia do centralismo de Roma nas ações e reflexões da reforma eclesi- ástica. Essa preocupação com o disciplinamento do clero estava amplamente vinculada à necessidade de justificação da condição superior dos eclesiásticos na tutela de seus próprios assuntos. Não é sem motivo que umelemento importante foi incorporado aos ideais da reforma: o ideal de libertas ecclesiae (liberdade da Igre- ja). A preocupação com a liberdade da Igreja estava presente nos escritos dos primeiros reformadores, a exemplo de Pedro Da- miano (1007-1072). Essa preocupação surgia como fundamento para proibir a apropriação por parte dos laicos, fossem eles impe- radores, reis ou senhores, do direito de dispor dos bens das igrejas e de designar os dignitários eclesiásticos, como bispos, arcebispos, cardeais, abades e o próprio papa. Qual era a situação da Igreja antes da Reforma? Bolton (1983, p. 20) afirma: A Igreja tornara-se negligente e mundana nas suas atividades. Rei- nara a simonia, isto é, o abuso do tráfico de dignidades eclesiásti- cas, e os leigos exerciam uma influência desproporcionada na no- meação de dignitários da igreja. Do mesmo modo, o papado ou se cingia estreitamente ao modo de vida de certas famílias romanas ou se encontrava sob controle apertado do Império. Frente a essa situação, a saída possível era promover o dis- ciplinamento do clero a fim de elevar a dignidade sacerdotal por meio do celibato. Além disso, era preciso que a Igreja retomasse o controle dos cargos eclesiásticos, para não macular sua estrutura com membros suscetíveis aos poderes laicos e aos vícios munda- nos. Segundo Baschet (2006, p. 192), a tentativa de disciplina- mento do clero representou a condenação de dois males: 75© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja 1°. O combate à simonia, entendida como toda forma de interven- ção dos laicos nos negócios da Igreja, particularmente a posse senhorial das igrejas e dos dízimos. 2º. A condenação do casamento e do concubinato dos padres e a conseqüente exigência do celibato dos clérigos, que passa a ser visto mais como uma norma imperativa do que apenas uma exigência moral. Fazendo da renúncia inapelável à sexualidade – e por conseqüên- cia, do celibato – a regra definidora do estado clerical, a reforma empenha-se em sacralizar os clérigos, o que segundo a etimologia deste termo quer dizer colocá-los à parte, distingui-los radicalmen- te dos laicos, no mesmo momento em que a Igreja estabelece, para estes últimos, um modelo cristão de casamento. A obsessão da 'pureza' do clero e o cuidado em afastar dele todo risco de mácula estão à altura da nova sacralidade reivindicada pelos clérigos. Portanto, esse primeiro momento da reforma eclesiástica produziu uma renovação institucional, que teve como caracterís- ticas principais a defesa dos atributos do clero e sua consequente liberação da tutela laica. Segundo momento O segundo momento apresentado por Constable iniciou-se já no século 12 e estendeu-se até a primeira metade do século 13. Então, a ideia de reformatio, assumida por uma Igreja que já des- frutava de centralidade social e de liberdade administrativa, volta- va seus olhos para o futuro, para uma existência reformada, uma materialização do reino de Deus na terra. Assim, o ideal de reformatio passou a assumir as prerrogati- vas defendidas por uma monarquia papal. As prerrogativas dessa monarquia assentavam-se funda- mentalmente na centralidade pontifícia. Ao menos desde 1190, as intervenções da Sé Romana "estendem-se ao conjunto da cristan- dade, a tal ponto que o papado parece governar a cristandade, como uma única diocese" (BASCHET, 2006, p. 194). © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 76 Como lembra Baschet, a centralidade pontifícia podia ser sentida em sua crescente intervenção nos procedimentos litúrgi- cos, respaldando a prática sacerdotal com suas concepções dou- trinais. Um bom exemplo da centralização pontifical foi a mudança dos procedimentos de canonização de santos. Na Alta Idade Mé- dia, a santidade era atribuída a partir da expressão de um culto popular, reconhecido e legitimado pelo bispo local. No século 12, o reconhecimento e a confirmação dos cultos tornaram-se atribui- ções do papa. Contudo, a centralidade pontifícia não pode ser pensada se não for considerado o peso representativo da figura papal. O que mudou no entendimento da autoridade papal para que ela paula- tinamente se sobrepusesse a todas as outras autoridades? É difícil responder a essa questão, mas não é impossível vis- lumbrar uma resposta. Segundo Baschet, o papa desfrutava havia muito tempo da honra de ser visto como sucessor de São Pedro. Mas isso era pouco perto da força que o papa adquiriu no século 12. Baschet (2006, p. 195) afirma: Sobretudo com Inocêncio III, o papa se reserva o título de 'vicário de Cristo'. Proclamando-se a imagem terrestre do Salvador, ele ma- nifesta o caráter monárquico de seu poder, à imagem da realeza de Cristo, ele se afirma como o chefe da Igreja. O papa, como representante terrestre de Cristo, constituiu-- -se na fonte de poder da Igreja, que a partir de então passou a interferir em inúmeros assuntos, sobretudo naqueles que se refe- riam ao “aperfeiçoamento moral” da sociedade. Assim, a reforma ocorrida nos séculos 12 e 13 apresentou-se como uma iniciativa de moralização muito mais ambiciosa. O foco do disciplinamento não se restringia apenas ao ambiente clerical, objetivava toda a sociedade, na qual o papado pretendia fazer rei- nar a justiça segundo a vontade de Deus. O autoridade do papado esteve presente: 77© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja • na regulamentação dos conflitos armados, como ocorreu na convocação das Cruzadas; • na elaboração de uma doutrina matrimonial; • na incorporação do matrimônio na lista dos sacramentos oficiais da Igreja (em 1234, o Papa Gregório IX reafirma a integração do casamento essa lista). Esses são apenas alguns dos exemplos da interferência da Igreja em assuntos que até então eram inteiramente dominados pelos laicos. 8. MOVIMENTOS CONTRÁRIOS À ORTODOXIA PAPAL Você pode estar pensando que os poderes adquiridos pelo papado e a força de intervenção institucional da Igreja eram ilimi- tados. Sem dúvida, a Igreja foi a instituição dominante do sistema feudal. No entanto, é exagero encará-la como possuidora de pode- res ilimitados. Isso porque foi ao longo desse período (séculos 12 e 13) que a instituição eclesial sofreu uma série de resistências e contestações. Nesse sentido, Brenda Bolton (1983) chama a atenção para a proliferação de movimentos laicos. Esses movimentos, inspirados pela incorporação do ideal da vita apostolica (vida em comunida- de, baseada na pobreza voluntária, que tinha como exemplo a re- lação entre Cristo e os apóstolos) no seio das Reformas Monástica e Gregoriana, buscavam viver também uma vida espiritual de ação secular. Ou seja, uma existência no plano civil regida por princípios cristãos. Como indica essa autora, a multiplicação desses grupos apos- tólicos laicos indicava claramente as aspirações dos fiéis por uma relação mais direta com Deus e pelo aprofundamento de sua fé. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 78 Ao proclamar o valor absoluto e literal dos Evangelhos, as aspirações morais desses movimentos ultrapassavam a fronteira entre o domínio clerical e o domínio laico. Com um espiritualismo exacerbado, experimentado por meio da imitação dos Evangelhos e da prática do celibato, laicos envolvidos com os movimentos apostólicos tinham pretensão de assumir funções restritas ao clero. Isso provocou um grande des- contentamento nos bispos e sacerdotes, que compreendiam essas manifestações como contrárias à ortodoxia estabelecida pela Igre- ja papal. Segundo Bolton (1983, p. 32), O risco que a Igreja corria era potencialmente grande e com freqü- ência provou que o era de fato. Os leigos, uma vez conseguindo a liberdade evangélica, podiamabusar dela. Tendo começado a imi- tar os Evangelhos, podiam também afirmar que tinham o direito de ensinar e, por esta razão, de pregar. Assim, a Igreja, apoiada por seus quadros, interpretou e li- dou de diferentes formas com cada um desses movimentos apos- tólicos laicos. Segundo Monique Zerner (2002), apesar de algumas mani- festações apostólicas estarem presentes desde o ano 1000, ape- nas no século 12 esses movimentos ganharam evidência a ponto de serem perseguidos e combatidos pela Igreja. Conhecidos por nossa contemporaneidade como “movimentos heréticos”, eles es- tiveram presentes no Ocidente desde muito antes do século 12. Heresias De acordo com Zerner, a heresia – palavra que etimologica- mente significa escolha – nasceu com o cristianismo, especialmen- te no momento em que se discutiam a definição do corpo canô- nico do texto bíblico, aproximadamente no século 2º. No entanto, a interpretação deste documento se deu ao longo da Antiguidade Tardia e Alta Idade Média. A crescente universalização doutrinal do cristianismo, con- comitante ao movimento de construção e hegemonia da Igreja, 79© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja criou uma ortodoxia (conjunto de verdades recebidas que forma um todo indissociável, a fé) doutrinal. Isso gerou, em contraparti- da, uma identidade para o não ortodoxo (o herege). Era herético aquele que se desligava de um elemento da fé, rompendo a sua unidade. Essa escolha promovia uma ruptura pes- soal, mas também representava uma ruptura com a comunidade que partilhava dos preceitos da fé cristã. Especialmente a partir da Reforma Gregoriana, o termo “herege” invadiu os escritos reformadores partidários do papado, transformando-se em sinônimo daquelas pessoas que questiona- vam a hierarquia constituída da Igreja. Também era muito comum serem classificados como heréticos os movimentos que contesta- vam as verdades doutrinais reconhecidas pela Sé Apostólica Ro- mana. O estudo das heresias medievais é muito problemático, uma vez que os próprios hereges não deixaram documentos descreven- do suas intenções. Tudo o que temos são as condenações feitas pela instituição eclesiástica. Isso torna mais difícil a tarefa de descrever o que os hereges defendiam, tendo em vista o fato de que a sobreposição de heresias era um recurso utilizado na condenação deles por par- te da Igreja. Os dois principais movimentos que surgiram no século 12 e foram combatidos de modo acirrado pela Igreja são a heresia valdense, cujo nome vem de seu mais eminente membro, Pedro Valdes, e aquela que conhecemos como heresia cátara (pura), mas que nos documentos da época aparece como sendo a heresia dos “bons homens”. Heresia cátara De acordo com Mornet (1994), os cátaros apoiavam-se em uma construção doutrinal muito complexa – especialmente por- © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 80 que os clérigos interpretaram esse movimento projetando nele as categorias das heresias descritas por Agostinho. Talvez seja por isso que as descrições das crenças cátaras fo- ram revestidas por uma coloração dualista – cujo princípio funda- mental estava no antagonismo entre um Deus do bem e um Deus do mal – comum ao maniqueísmo combatido por Agostinho. Segundo Baschet (2006, p. 225), não se sabe muito bem se no catarismo estava presente um dualismo radical ou um dualismo moderado: O primeiro professaria a existência de duas divindades, um Deus do bem, que criou unicamente os anjos e as almas, e um Deus do mal, ao qual se imputa a criação do mundo material e dos corpos. De tal cosmogênese, decorre que estes últimos são inteiramente maléfi- cos e não podem ser objeto de nenhuma redenção. A Encarnação de Cristo é, então, impensável (Deus não pode se encarnar, pois isso seria entregar-se ao mal), e a salvação pode ser atingida so- mente pela alma (de onde a negação da ressurreição dos corpos), através de uma rejeição de todo contato com a matéria e ao termo de um ciclo de reencarnações concebidas como purificações pro- gressivas. Enquanto o dualismo radical nega os próprios fundamen- tos do cristianismo, o dualismo moderado aproxima-se mais dele. Ele parece admitir a idéia de um Deus único, sendo que a criação do mundo passa a ser imputada a um anjo decaído, inferior a Deus, mas dotado de autonomia maior que na doutrina cristã. Nos dois casos, entretanto, a recusa do casamento e da procriação carnal é total e a crítica à Igreja é extrema: os clérigos são lobos rapaces e os sacramentos podem ser conferidos pelos laicos. Entretanto, o problema que gerava a atribuição e a acusação de heresia naquele período ia muito além da questão do dualismo. O problema central era a reivindicação, por parte dos hereges, da possibilidade de que laicos professassem os sacramentos. Nesse ponto, houve um grande choque com os membros da Igreja. Seguindo a proposta gregoriana de separação entre laicos e clérigos, eles não admitiam a possibilidade de um homem comum querer exercer funções sacerdotais. 81© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja Reação da Igreja A reação da Igreja não demorou a chegar. Partindo de um combate verbal, progressivamente uma série de sanções – desde os decretos pontificais de Lúcio III, do ano de 1184, até Inocêncio III, em 1215 – foram definindo as ações repressivas contra as he- resias. Excomunhão, morte pelo fogo, confisco de bens, uma das Cruzadas. Enfim, várias ações tentaram impedir a proliferação des- ses movimentos no interior da cristandade. Uma das estratégias da Igreja para conter a proliferação e a possível oposição desses movimentos apostólicos laicos à sua autoridade foi a integração deles no seio de sua instituição. Um exemplo claro desse processo de incorporação foi o reconheci- mento das ordens mendicantes no século 13. Bolton (1983) mostra que dominicanos e franciscanos apare- ceram no cenário urbano do século 13 com pretensões bem mo- destas. Devido ao sucesso de suas ações de pregação e de exemplo de vida humilde, alcançaram muitos seguidores junto à população dos centros urbanos, a ponto de serem chamados a se apresen- tar perante a Sé Romana, que os reconheceu e os incorporou na hierarquia eclesiástica, entre as ordens popularmente conhecidas como “ordens menores”. Após o ano de 1215, a vita apostolica emergiu como ideal entre os mendicantes, que encontravam nela o exemplo para a prática da pregação itinerante. De acordo com Bolton (1983, p. 78): O ideal destas duas ordens – Franciscanos eram chamados de fra- des menores e Dominicanos de frades pregadores – era uma vida que combinasse pobreza evangélica, amor caritativo e proselitismo itinerante no mundo. Eles representavam uma evolução gradual na espiritualidade, um afastamento de um ideal puramente ascético de perfeição cristã para uma devoção nova à humanidade de Cris- to. O ideal de imitação dos apóstolos e santos foi substituído pelo ideal da imitação do próprio Cristo. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 82 Dominicanos Os dominicanos tiveram no cônego regular castelão Domin- gos de Calahorra (1172-1221) o fundador do modelo de vida que, posteriormente, foi reconhecido como ordem pelo papa Honório III (em 1216). Impelidos pelo desejo de pregar, Domingos de Calahorra e seus primeiros seguidores percorreram a região do Languedoc e de Toulouse, a fim de combater a heresia cátara em nome do ver- dadeiro cristianismo. Numa ação de oposição à heresia cátara, que era particular- mente forte naquela região, Domingos decidiu consagrar-se total- mente à atividade apostólica, com o claro objetivo de impedir a expansão do movimento cátaro. Convencido de que a mensagem cristã só seria assimilada se fosse apresentadapor meio da hu- mildade e da pobreza, Domingos renovou a forma de efetuar a pregação. A pobreza voluntária dos pregadores era uma arma contra os cátaros, que criticavam a riqueza da Igreja. Além disso, era uma estratégia para que os pregadores fossem recebidos e compreen- didos pela massa dos fiéis. Mesmo buscando aproximar o máximo possível a mensa- gem cristã dos ambientes urbanos, a ordem dos frades pregadores preocupou-se com a formação de seus quadros, priorizando o tra- balho intelectual entre seus membros. Não é sem motivo que eles se tornaram referência no ambiente universitário do período. Franciscanos Os franciscanos tiveram na figura do jovem burguês de Assis, Francisco (1182-1226), e em seus seguidores Bernardo de Quinta- val e Pedro de Catane, os fundadores de um modo de vida baseado na imitação de Cristo e na vida penitente. Foi a partir de uma "crise 83© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja pessoal" que Francisco despertou para a necessidade do trabalho penitente na prece e na pregação. Vejamos a afirmação de Bolton (1983, p. 80): O seu modo de vida era extraordinariamente duro, na verdade muito mais duro de suportar do que o modo de vida das ordens monásticas mais ascéticas, incluídos mesmo os Cartuxos, porque Francisco tinha como objetivo renunciar não só a toda propriedade individual como também a toda propriedade comunitária, privan- do assim os seus seguidores mesmo da segurança coletiva normal da comunidade cenobítica. Além disso, Francisco pretendia que os seus seguidores combinassem este padrão de pobreza extraordi- nariamente rigoroso com uma atividade secular de assistência e sacerdócio. Apesar da dificuldade em precisar se Francisco queria mes- mo formar uma ordem incorporada à Igreja, é fato que a permis- são e o reconhecimento papal para o seu trabalho fizeram parte de suas pretensões, tanto que no ano de 1215 recorreu a Inocêncio III para solicitar-lhe autorização. As condições que possibilitaram que a comunidade francis- cana se organizasse como uma ordem não são muito claras. Se- gundo Bolton (1983, p. 81), "teria Francisco querido simplesmente a renovação da vida cristã, seguindo um exemplo atualizado dos apóstolos, um movimento de que a hierarquia então se apropriara, canalizara para uma ordem e subordinara aos planos da Cúria?". É uma questão que não pretendemos responder aqui. O fato é que no final do século 13, com uma rede de mais de 1.500 casas divididas em 34 províncias, a Ordem Franciscana estava instituída e estendia-se de Portugal à Irlanda. Se Francisco quis mesmo desenvolver entre seus discípulos o espírito de pobreza, o amor mútuo, a humildade e a paciência, o fato é que naquele período a ordem era um braço culto da Igreja, profundamente envolvido com as universidades e usufruindo de muitos bens, mesmo sem os possuir. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 84 9. TEXTO COMPLEMENTAR A leitura complementar desta unidade abre uma série de três leituras complementares, que se completa nas Unidades 3 e 4, sobre os gêneros documentais e os temas presentes no estudo e na produção da História Medieval. Você terá a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre os documentos eclesiásticos normativos por meio da análise deste texto adaptado da análise de Carolina Gual da Silva sobre a obra Concordia discordantium canonum, de Graciano. Concordia discordantium canonum: um manual de direito canônico do século XII –––––––––––––––––––––––––––––––– O Decretum de Graciano, composto possivelmente por volta de 1140, já foi inú- meras vezes objeto de estudo de historiadores do direito medieval. Seu nome ori- ginal é Concordia discordantium canonum, ou seja, “Concordância dos cânones discordantes”, título que foi abreviado para Decretum. [...] Poucos anos após a sua primeira aparição, o Decreto já havia sido transfor- mado no manual base para o estudo de leis canônicas, existindo mais de 600 manuscritos – uma quantidade expressiva para a época – e sendo uma das primeiras obras medievais a ser impressa, em 1471, em Estrasburgo. O núme- ro de comentários, glossas, abreviações e sumas feitas a partir de Graciano é abundante, incluindo quase todos os grandes juristas do século XII e início do XIII como Paucapalea, Rufino, Huguccio, entre outros (Adaptado de Silva, 2008). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Alguns autores consideram Graciano como o pai do Direito, embora pouco ou quase nada saibamos sobre ele. Possivelmen- te era professor de leis em Bolonha e monge. Essa suposição é contestada por John T. Noonan, em seu texto Gratian slept here: the changing identity of father of systematic study of canon law, de 1979. Porém, no geral é aceita por estudiosos, principalmente devido à menção de Graciano como sendo um monge, encontrada na Summa parisiensis – comentário anônimo sobre o Decretum, escrito aproximadamente vinte anos mais tarde. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Em relação à autoria do texto, para além do fato de conhecermos praticamente nada de quem tenha sido Graciano, para alguns autores o Decreto não seria obra de um só autor. Pelo grande número de textos que se repetem sem motivo 85© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja aparente, Jean Gaudemet concluiu que é muito provável que o texto tenha sido elaborado não por um único homem, mas por um grupo de letrados, onde cada membro receberia como tarefa reunir as diferentes autoridades o que, mesmo sob supervisão de Graciano, tornaria o controle do trabalho extremamente com- plicado, ocasionando as repetições e aparentes contradições do texto. [...] A palavra “decreto” imediatamente nos leva a pensar em um gênero. Imagina- mos prescrições legais sendo ditadas, ou decretadas, por autoridades. Entretan- to, o Decreto de Graciano não tinha poder de lei. A obra não havia sido encomen- dada oficialmente por nenhum papa ou bispo, mas acabou se transformando no manual para ensino do direito canônico nas universidades italianas e francesas e foi, posteriormente, incorporada como a primeira parte do Corpus iuris canonici. Sua importância e autoridade foram conferidas pelas fontes utilizadas e pelo fato da obra abordar uma variedade incrível de assuntos de maneira organizada e clara. [...] Como o próprio nome da obra indica, Concordia canonun discordantium, o objetivo do autor era reunir diferentes e contraditórias fontes, confrontá-las e ten- tar resolvê-las. [...] Composto por 3823 capítulos divididos em três partes, tratava-se de uma compilação de cânones conciliares, decretos papais, citações das Escrituras, dos pais da Igreja, penitenciais, Leis Romanas e outras autoridades, além de incluir análises e conclusões do próprio Graciano com o objetivo de solucionar as aparentes contradições entre as diferentes fontes (Adaptado de Silva, 2008). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Da mesma forma que se questiona a autoria do Decreto, sua organização, tal qual a conhecemos hoje, também é debatida. O Decreto chegou até nós composto por três partes: na primeira, chamada de Distinctiones (Distinções), o autor propõe-se a uma teorização sobre a natureza das leis e da autoridade e sobre a disciplina e as ordens da Igreja. A segunda parte, Causae (Casos), descreve problemas que poderiam acontecer na vida cotidiana e propõe ações e soluções possíveis. A última parte, denominada de Consecratione (sobre a Consagração), é composta por cinco distin- ções sobre sacramentos e culto. Acredita-se que originalmente ele fosse composto apenas pelas Distinctiones e pelas Causae. Os textos de Direito romano seriam adições posteriores, feitas pelos decretistas – autores que comentaram a obra de Graciano no decorrerdos séculos seguin- tes. Além disso, algumas partes do texto parecem ter sido acres- centadas após o Decreto já estar finalizado, como, por exemplo, © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 86 a parte conhecida como de Poenitentia (Sobre a Penitência). Essa parte é composta por sete distinções, e seu texto é interrompi- do abruptamente após a Causa 33, na Parte II, rompendo toda a estruturação da seção. A terceira parte, que não parece seguir a lógica do resto da obra, também pode ter sido incorporada mais tarde. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Graciano usa grande número de fontes que incluem concílios e sínodos da Igre- ja, determinações papais, autores patrísticos e as escrituras. As primeiras vinte distinções da primeira parte são totalmente baseadas nas Etimologias de Isidoro de Sevilha. Outras coleções que provavelmente forneceram os principais frag- mentos a Graciano foram Anselmo de Lucca, Panormia de Ivo de Chartres, a Tripartitia, Polycarpus, o Liber de Misericordia et Iustitia de Alger de Liège. A grande inovação da obra de Graciano era a presença dos dicta (ditos), em que ele expressava suas próprias opiniões e resolvia os confrontos apresentados. [...] Para resolução desses confrontos, Graciano baseia-se numa classificação das autoridades em três tipos: 1- Texto inquestionável (principalmente de caráter espiritual, como as Escrituras); 2- Texto que depende da dignidade e peso de um autor; 3- Texto que tem o poder que emana de um cargo ou instituição. No Tratado de Matrimônio, que corresponde aos casos 27 a 36 da segunda parte, a principal autoridade para Graciano é Agostinho junto com o Novo Testamento, particularmente Mateus 19:6 e 19:9, os dois trechos mais citados no Tratado. […] Vejamos um exemplo concreto da estruturação do texto nas causae. O caso 33 afirma que um homem é impedido por feitiçaria de satisfazer o débito conjugal. Enquanto isso, um outro homem seduz sua esposa secretamente. Ela separa do marido e se casa com o homem que a seduziu publicamente. Ela confessa o cri- me que cometeu apenas no seu próprio coração para Deus. O primeiro homem volta a ter capacidade de conhecê-la <carnalmente> e exige que ela volte a ser sua esposa. Após aceitá-la de volta, ele jura manter continência para se dedicar melhor às orações e se aproximar de Deus em um estado de pureza. Mas a sua mulher não consentiu. Pergunta-se: primeiro, a mulher pode deixar seu marido se ele não puder manter relações? Segundo, após a separação ela pode se casar com o homem com quem ela havia fornicado anteriormente? Terceiro: um crime pode ser inocentado apenas com a confissão interna? Quarto: pode-se pagar o débito conjugal duran- te o período de orações? Quinto: o marido pode jurar continência sem o consen- timento de sua esposa ou ele pode arrancar este consentimento dela através de medo e ameaças? Feita esta introdução, Graciano procura dissecar cada uma das cinco questões apresentadas, com as autoridades e suas próprias conclusões, explicando para seus leitores quais as atitudes corretas caso eles se encontrem na mesma situa- ção. Cada questão, por sua vez, é subdividida em capitula, e todas as contradi- ções são resolvidas a partir dos dicta. [...] Assim, o texto do Decreto faz aparecer, além das autoridades, a voz do próprio autor. Graciano explica, em primeiro lugar, por que existem as contradições, se pela passagem do tempo, por uma interpretação errada. Em seguida, baseado na escala de autoridades mencionada anteriormente, ele diz qual a decisão que 87© Construção da Cristandade Ocidental: Reforma da Igreja deve ser seguida. Por vezes chega à conclusão que não havia contradições, mas sim interpretações equivocadas (Adaptado de Silva, 2008). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Assim, o texto do Decretum constitui um “manual” para o estudo e o entendimento de questões legais complexas relativas a vários assuntos como o casamento, a sexualidade, a feitiçaria e os crimes vistos da perspectiva da Igreja. O Concordia discordantium canonun, devido a sua importân- cia e grande circulação, aparece como uma das fontes que podem nos ajudar a entender como a Igreja lidava com a administração da Justiça naquele período. Lembremo-nos de que, ao mesmo tem- po em que a Igreja passava por profundas transformações em sua organização e doutrina, ela também se constituía como uma das únicas instituições verdadeiramente influentes na sociedade. 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Quais são as características dos movimentos de Reforma Monástica e de Reforma Gregoriana? 2) O que foram a Paz e a Trégua de Deus? 3) Quais foram os motivos para o crescimento dos movimentos heréticos no século 12? 11. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, acompanhamos os principais processos que compuseram a trajetória de fortalecimento e expansão da institui- ção eclesiástica no período feudal. Vimos, também, como a Igreja fortaleceu-se a partir do pa- pado e da incorporação de ideais reformadores em sua ação pas- toral, bem como o quanto ela "ordenou e excluiu" os grupos den- tro das organizações clericais e laicas. © História Medieval II Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 88 Além disso, pudemos entender o desenvolvimento dos mo- vimentos contrários à supremacia da Igreja e as estratégias que ela usou para suprimi-los ou mesmo incorporá-los. Na próxima unidade, trataremos do desenvolvimento das cruzadas e de seu papel na expansão da cristandade ocidental. 12. E-REFERÊNCIAS Figura 1 Maquete e planta da Abadia de Cluny. Disponível em: <http://peristilo. wordpress.com/2009/06/28/arquitectura-francia/a08-abadia-de-cluny-planta/>. Acesso em: 10 mar. 2011. Sites pesquisados ATA DO CONCÍLIO DE CHARROUX DE 989. Disponível em: <http://www.encyclopedie- universelle.com/abbaye3%20-%20mutations4.html>. Acesso em: 29 maio 2008. SILVA, C. G. 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