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2 Os Direitos Humanos 2.1. Conceito Os direitos humanos, como o próprio nome indica, são aqueles reconhecidos a todos pelos simples fato de serem humanos. Neste sentido, eles seriam universais (aplicáveis a todos, independentemente do papel social que desempenham) e inalienáveis (não seria possível perdê-los e continuar a viver dignamente como ser humano).1 Considerando que os mesmos destinar-se-iam a satisfazer as necessidades humanas, e sabendo que não há uma definição científica e objetiva do que sejam essas necessidades, pode-se concluir que a fonte desses direitos pertence ao campo da moral e não ao direito positivo. Ao definirem-se quais os requisitos mínimos para uma vida digna, percebe-se uma escolha social acerca da potencialidade humana que se busca efetivar. São, então, as possibilidades de determinada visão de natureza humana que se procuram realizar através dos direitos humanos. Assim, os direitos humanos não são dados, seja por Deus ou pela natureza, mas construídos pelo homem, segundo certa visão moral. 2.2. As três gerações de direitos humanos Embora se observe uma tendência recente à integração dos direitos humanos e, até mesmo, ao abandono de qualquer divisão que pudesse dar margem a aplicações 1 Jack Donnelly. The Social Construction of International Human Rights. In: Tim Dunne & Nicholas Wheeler (Eds.). Human Rights in Global Politics. Cambridge University Press, 1999, p. 80. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 16 discriminatórias em favor de alguns direitos e em detrimento de outros2, é válido apresentar, a título de esclarecimento, os três grupos em que corriqueiramente se dividem os direitos humanos. O primeiro grupo diz respeito aos direitos de primeira geração, assim chamados por terem sido os primeiros a serem incluídos nas distintas constituições nacionais ocidentais, e que correspondem basicamente aos direitos civis e políticos. Estes teriam principalmente um caráter negativo, pois se destinariam a limitar o espaço de intervenção da autoridade pública, o Estado, no domínio privado. Este primeiro grupo engloba o que para muitos são os direitos mais importantes, pois seriam eles a base para a obtenção pacífica de todos os demais3. Outros, no entanto, sustentam que para pessoas privadas de educação, abrigo ou comida, os direitos civis e políticos passam a ser de pouca valia. Para estes últimos prevalecem, portanto, os chamados direitos de segunda geração, que correspondem essencialmente aos direitos sócio-econômicos Estes teriam um caráter positivo, pois obrigariam o Estado a alguma prestação, seja na forma de educação e saúde básica para todos ou através de programas de inserção social, por exemplo. Por fim, temos os chamados direitos de terceira geração, também chamados de direitos solidários. Estes correspondem àqueles direitos que seriam gozados por coletividades, mais do que por pessoas individuais, como, por exemplo, o direito à paz, ao desenvolvimento e a um meio-ambiente saudável. É importante notar, contudo, que nenhum direito é exclusivamente de caráter positivo ou negativo. O direito a voto, bem como o direito ao devido processo legal, por exemplo, requerem do Estado não apenas uma prestação negativa, ou abstenção, mas igualmente esforços positivos no sentido de assegurar o adequado gozo dos mesmos. Da mesma forma, o direito social a casar-se e fundar uma família não é 2 A ex-Alta Comissária para Direitos Humanos das Nações Unidas, Mary Robinson, afirmou categoricamente que os direitos de primeira, segunda e terceira geração deveriam fazer parte de um mesmo “pacote”. Thomas Weiss; David Forsythe; Roger Coate. The United Nations and Changing World Politics. Westview Press, 2001, p. 155. 3 Marice Cranston chega a afirmar, por exemplo, que só os direitos civis e políticos são verdadeiramente direitos humanos, conforme citado por David Forsythe em Human Rights in International Relations. Cambridge University Press, 2000, p. 29. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 17 menos negativo do que o direito à liberdade de religião. Já no tocante aos direitos solidários, ou de terceira geração, nada impede que sejam pleiteados individualmente. 2.3. Os direitos humanos e a história Os direitos humanos, como direitos universais e inalienáveis, igualmente aplicáveis a todos pelo simples fato de serem humanos constituem algo distintivo e historicamente incomum. Eles são fruto de uma visão moral própria que os reconhece como a melhor forma de realizar a natureza humana e moldar as relações sociais e políticas que caracterizam o mundo contemporâneo. Em várias sociedades pré- modernas é possível identificar o compartilhamento de valores como justiça, equidade e compaixão, sem, no entanto, objetivar-se a realização dos mesmos através de direitos universais inalienáveis. De fato, tanto em sociedades ocidentais quanto não-ocidentais era comum fazer-se distinção entre nacionais e estrangeiros, entre homens e mulheres, cristãos e não-cristãos. Nestas, não existia a idéia de humanidade compartilhada, como base para o reconhecimento de direitos políticos e sociais básicos para todos igualmente. As sociedades tradicionais da Europa ocidental, por exemplo, caracterizavam-se por uma predominância da comunidade sobre o indivíduo, incluindo-se no que se convencionou chamar de “sociedades comunitárias”.4 Eram, grosso modo, sociedades estamentais, em que prevalecia a noção de tradição e não havia lugar para a autonomia do indivíduo, tão cara aos direitos humanos. De fato, o valor e os direitos dos indivíduos variavam de acordo com o espaço ocupado dentro da comunidade, bem como segundo critérios de raça, sexo e outras considerações hierárquicas, inexistindo qualquer noção de igualdade. Fora da comunidade as pessoas não tinham existência moral, ficando destituídas de quaisquer garantias. 4 Jack Donnelly. Universal Human Rights in Theory and Practice. Cornell University Press, 1989, p. 75. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 18 A realização da dignidade humana ficava, então, restrita aos membros integrantes da comunidade, sendo variável segundo os papeis desempenhados, escapando a qualquer noção de direitos humanos inalienáveis e universais. Somente no século XVII, a idéia de direitos naturais ou direitos humanos entrou na teoria e prática política da Europa, em resposta às transformações introduzidas pela modernidade. O crescente poder coercitivo dos Estados e o avanço da economia moderna em base capitalistas, ensejou o surgimento de garantias capazes de preservar um mínimo de espaço para os indivíduos modernos autônomos. “Modern markets also created a whole new range of threats to human dignity and thus were one of the principal sources of the need and demand for human rights. And at roughly the same time, the modern state, both as an autonomous social actor and as an instrument of the newly ascendant bourgeoisie, was creating new institutions and practices that enabled it to invade the lives and threaten the dignity of a rapidly increasing number of people in new and increasingly ominous ways.”5 Para a recém surgida classe média, esses direitos em bases naturais representavam um contrapreso aos privilégios aristocráticos. Contudo, considerando a grande mobilidade social da sociedade burguesa, afeita a uma contínua e imprevisível mudança nos seus quadros, não era possível vincular o gozo e fruição dos novos direitosa critérios fixos de nascimento ou posição social. Para assegurar o efetivo alcance dos mesmos à burguesia cumpria estendê-los, ainda que formalmente, a toda a sociedade. “Thus human rights came to be articulated primarily as claims of any individual against the state”6 Os direitos humanos surgem, então, para atender aos anseios e interesses de determinada classe, a burguesia, preocupada em superar as limitações próprias do regime aristocrático que findava. “The bourgeoisie, who provided the principal support for early liberalism, did demand equality, simply as human beings, against the traditional inequalities of birth. (…) it was undeniably in their interest to make it”7 Para os liberais do século XVII, a realização da dignidade humana passava, então, obrigatoriamente pela extensão de toda a gama de direitos humanos a cada membro da sociedade, consagrando-se os princípios da igualdade e da autonomia individual. 5 Ibid., p. 64. 6 Ibid., p. 70. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 19 Assim, reconhecia-se o valor e a dignidade dos indivíduos independentemente de seus papeis na comunidade. Em face dessa prevalência do indivíduo sobre a sociedade e o Estado, cabia aos direitos humanos cuidar para que esse Estado fosse um instrumento garantidor da realização da dignidade humana e não a sua ameaça. Já em 1688, os direitos naturais à vida, a liberdade e à propriedade foram consagrados por Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo.8 É possível identificar em Locke um modelo essencialmente negativo, que indica muito mais como a sociedade e o governo não devem agir, do que como devem fazê-lo. De fato, há vários argumentos contrários ao poder absoluto, à arbitrariedade, aos privilégios reais, entre outros. Estas teorias liberais do contrato social constituem os primeiros registros históricos de indivíduos efetivamente dotados de direitos iguais e inalienáveis com vistas à realização da dignidade humana. “Locke does see the individual as having interests separate from those of society, and in the areas protected by human rights he does give individual interests prima facie priority over those of society.”9 Percebe-se, contudo, que longe de almejarem uma proteção efetivamente universal, esses direitos ficavam restritos a proprietários europeus do sexo masculino. Ademais, segundo os preceitos do próprio Segundo Tratado Sobre o Governo e boa parte das teorias liberais dos séculos XVII e XVIII, os direitos humanos ficavam limitados a direitos de caráter civil e político, sendo o direito a propriedade o único de cunho econômico e social. No entanto, muito mais do que limitações inerentes ao tratamento liberal dos direitos humanos, essas características decorriam da contingência de fatos históricos. Assim, superadas essas contingências, foi inevitável para o liberalismo ir além das considerações lockeanas e entender que a realização da dignidade humana extrapolava o direito à propriedade, e que a proteção da vida e da liberdade exigia necessariamente considerar outras ameaças além das arbitrariedades do poder estatal, como, por exemplo, a escassez e a privação dos meios de subsistência. Foi, então, que 7 Ibid., p.104 8 Jack Donnelly,1999, p. 82. 9 __, 1989, p. 92. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 20 passaram a se consagrar direitos econômicos e sociais, de caráter eminentemente positivo, tais como o direito à alimentação e à saúde. “Liberalism is not a matter of fixed set of canonical details set out in Locke or anywhere else; (...) its essence is found instead in its fundamental principles – that is, in its commitments to equality and autonomy and to protecting these values through human rights”10 Tendo o desenvolvimento inicial dos direitos humanos coincidido com a consolidação dos Estados soberanos após a Paz de Westfália em 1648, é evidente que as garantias, quando existentes, se restringiam ao âmbito doméstico. A independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa representaram inegavelmente enorme impulso à proteção individual de direitos. Cumpre notar, contudo, que este desenvolvimento ficou amplamente restrito a esses países, não tendo efeitos legais imediatos sobre os demais Estados. Os direitos humanos continuavam, então, a ser vistos como uma questão nacional, respeitando-se sempre o tão caro princípio da soberania. Em sociedades não-ocidentais como a China, por exemplo, a realização da dignidade humana e da justiça social continuava exclusivamente a cargo da boa vontade de governantes supostamente iluminados, confrontados apenas com limites de ordem religiosa. Esses líderes tinham o dever para com os céus de cuidar dos interesses do povo, sem criar-se, no entanto, qualquer direito correspondente nas mãos dos indivíduos. No Islã, igualmente, buscava-se a realização da dignidade humana segundo o cumprimento de certos deveres ou em função da posição legal ou espiritual de cada um, fugindo claramente às noções de igualdade e autonomia individual própria dos direitos humanos. Assim, fica evidenciado que à época, apenas algumas sociedades, essencialmente ocidentais, reconheciam a legitimidade dos direitos humanos e formulavam leis em conformidade com os mesmos, assegurando aos indivíduos direitos e garantias pelo simples fato de serem humanos, e, não, em função de determinado dever cumprido ou função desempenhada na comunidade. Segundo Donnelly:“(…) there can be little quarrel with my broader claims that Western liberalism is the source of the contemporary idea of human rights (…)”11 10 Ibid., p. 103. 11 Ibid., p. 106. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 21 O século XIX na Europa caracterizou-se pelo surgimento de uma onda de sentimento internacional. Pela primeira vez na história as dificuldades e sofrimentos dos indivíduos passaram a ser pensados independentemente de sua nacionalidade. Esta moralidade de cunho internacional, embora ainda não diretamente ligada aos direitos humanos, sentaria as bases para o desenvolvimento futuro dos mesmos. Nesse período, um empresário suíço chamado Henry Dunant, chocado diante do fato de que soldados feridos eram abandonados à sua própria sorte, durante a batalha de Solferino (1859) pela Guerra de Sucessão Austríaca, criou o movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Estas sociedades privadas encarregaram-se não apenas de ajudar e tratar soldados necessitados como também pressionaram pela assinatura de tratados destinados a proteger e resguardar soldados doentes ou feridos. Foi assim que se aprovou a primeira Convenção de Genebra para Vítimas de Guerra ainda no ano de 1864. Embora Dunant não tenha usado a linguagem dos direitos humanos, é inegável que seu legado constitui uma das primeiras manifestações de direitos humanos internacionalmente reconhecidos.12 De fato, quando confrontado com um problema que extrapolava as fronteiras nacionais, Dunant adotou solução igualmente internacional. Buscava-se promover a dignidade humana em bases transnacionais. O movimento antiescravidão do século XIX constitui outro exemplo do esforço inicial pela promoção da dignidade humana em bases internacionais. Tendo se iniciado na Inglaterra, tal movimento tinha na Sociedade Antiescravidão sediada em Londres um de seus pilares. Em função da veemente resistência dos Estados Unidos e outros países negociadores de escravos e a despeitodos acordos firmados no âmbito do Congresso de Viena (1815) e da forte pressão exercida pela marinha britânica, o tráfico negreiro só foi definitivamente banido no final daquele século, num acordo multilateral assinado em 1890 em Bruxelas. No século XX, a proibição do tráfico negreiro, da escravidão e de práticas correlatas passou a integrar o conjunto dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Suas bases, sem dúvida, residem na moralidade transnacional dos movimentos do século XIX. 12 Na verdade, nesse caso é mais apropriado falar em direito humanitário, ou seja, em direitos humanos em tempo de guerra. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 22 O fim da Primeira Guerra Mundial, precipitada em função de rivalidades étnicas na região dos Bálcãs, deu margem à assinatura de alguns tratados para a proteção dos direitos de minorias, o que claramente colocava os direitos humanos no plano internacional. Ficou assegurado, por exemplo, o direito de petição a órgãos internacionais com o fim de reprimir quaisquer políticas discriminatórias realizadas pelas maiorias étnicas. Apesar de louvável, tal iniciativa não rendeu os frutos esperados, chocando-se em boa medida com as pressões nacionalistas que caracterizaram a década de 30 na Europa e colocaram em xeque qualquer proteção efetiva das minorias étnicas. Assim, na prática, esses tratados tiveram sua aplicação limitada a apenas alguns países do leste europeu. Embora de certa forma ligada à assinatura dos tratados supracitados, a Liga das Nações, surgida com o fim da Primeira Guerra Mundial numa tentativa de assegurar a paz internacional, não faz qualquer menção explícita aos direitos humanos internacionais em seus documentos constitutivos. É bem verdade que não faltaram esforços nesse sentido. Os Estados Unidos e o Reino Unido pressionaram, por exemplo, pela inclusão do direito de liberdade religiosa no Pacto da Liga das Nações durante a Conferência de Versalhes de 1919. Recuaram, contudo, como forma de bloquear a proposta japonesa de inclusão do princípio da igualdade racial, largamente temido pelo presidente Wilson. É inegável, outrossim, que a Liga estava permeada de um sentimento de solidariedade moral que extrapolava as fronteiras nacionais. Questões como tráfico de drogas, liberdade de comunicações e prevenção e controle de doenças foram expressamente incluídas no Pacto da Liga das Nações (art. 23). No âmbito da Liga, houve igualmente a criação da Comissão de Mandatos que supervisionava os Estados europeus que controlavam outros territórios, conclamando-os para o respeito e promoção dos interesses dos povos autóctones. Houve, por fim, a criação do Escritório para Refugiados da Liga das Nações, que mesmo na ausência de tratados específicos sobre o tema, encarregava-se de auxiliar esses indivíduos, representando importante precedente para a assinatura do tratado de 1951 no âmbito da ONU. Paralelamente à Liga e como parte integrante do seu sistema houve a criação da Organização Internacional do Trabalho com sede em Genebra. Além da efetiva DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 23 assinatura de diversos tratados e acordos internacionais reconhecendo direitos trabalhistas, esta organização seria uma das primeiras a exercer a função de monitoramento de direitos internacionalmente reconhecidos dentro dos Estados. O seu sucesso foi tal que mesmo com o fim da Liga a OIT foi absorvida pelas Nações Unidas, passando a figurar com uma de suas agências. Durante os anos da Liga houve esforços renovados pelo reconhecimento do caráter internacional dos direitos humanos. Nos anos 30, por exemplo, no âmbito da Assembléia da Liga, a França e a Polônia pressionaram pela assinatura de um acordo internacional de direitos humanos, não obtendo sucesso. Faltava à maioria dos Estados o empenho e a vontade política necessários para promover um adensamento legal e institucional das proteções e garantias individuais. Os arroubos de moralidade nem sempre se coadunam com a raison d’état tradicional. Assim, a moralidade transnacional nascida na Europa no século XIX, embora largamente expandida no âmbito da Liga das Nações só conseguiria traduzir-se em direitos humanos efetivamente reconhecidos no plano internacional anos mais tarde, com a criação das Nações Unidas, uma vez superados os entraves impostos pelo fascismo, militarismo, nacionalismo, racismo e isolacionismo característicos do período que findava. Percebe-se, então, que mais do que soluções duráveis ou definitivas para o problema da proteção dos direitos humanos no plano global, as etapas e processos históricos relatados acima serviram muito mais para amadurecer a idéia de que a violação dos direitos elementares à dignidade humana constitui um problema que extrapola as fronteiras nacionais e que deve ensejar, portanto, uma solução igualmente internacional. Os dissabores da Segunda Guerra Mundial constituem o passo que faltava em direção ao reconhecimento da necessidade do tratamento transnacional da questão, que ficaria consagrado com a criação das Nações Unidas. 2.4. Os direitos humanos e a ONU Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pela comunidade internacional para lidar com as violações de direitos humanos durante a Liga das Nações, o militarismo DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 24 japonês e o fascismo europeu renovaram os ímpetos em busca de uma proteção efetiva dos direitos humanos no plano internacional. É bem verdade, contudo, que a mudança de posição deveu-se mais ao desenvolvimento de novas concepções no plano intelectual do que propriamente à tomada de conhecimento das atrocidades especificamente praticadas por nazistas e japoneses, que só viriam a público anos mais tarde. Já no início dos anos 40, por exemplo, opiniões apresentadas por intelectuais nos Estados Unidos e Inglaterra conclamavam para o tratamento dos direitos humanos como uma questão inerente às motivações da Segunda Guerra Mundial. Nessa linha, Franklin Delano Roosvelt faz em 1941 o famoso discurso das “quatro liberdades” onde apresenta um quadro ideológico para a participação dos EUA na guerra e esboça uma possível paz para o pós-guerra, destacando direitos que futuramente estariam incluídos na Carta Internacional de Direitos Humanos. Roosevelt e, mais tarde, Truman compartilhavam da opinião de que a consagração dos direitos humanos nas relações internacionais constituía medida sine qua non para evitar e impedir novas agressões do tipo praticadas por Alemanha, Japão e Itália. Assim, estava estabelecida uma ligação entre direitos humanos e paz e segurança internacionais. As Nações Unidas deveriam, então, não apenas coordenar as relações diplomáticas entre Estados, mas igualmente prover as sociedades carentes das condições mínimas necessárias, em termos de garantias sociais e econômicas, para evitar que novos ditadores com discursos populistas fossem alçados ao poder e terminassem por aventurar-se em agressões internacionais. Assim, a preocupação com o caráter internacional dos direitos humanos na política externa americana foi fruto muito mais de uma consideração acerca da segurança internacional do que o resultado de uma crescente moralidade política. O próprio teor do artigo 55 da Carta das Nações Unidas parece não deixar dúvidas quanto à relação entre direitos humanos e paz internacional. O referido artigo reza assim: “Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdadede direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: (c) o respeito DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 25 universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” 13 Não se pode, contudo, descartar de todo a presença de preocupações concernentes ao bem-estar e a dignidade humana, na política de direitos humanos internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial. Conforme afirmado por Weiss & Forsythe, certamente ambos os fatores supracitados estiveram presentes na política diplomática que guiou as Nações Unidas em direção a uma proteção transnacional dos direitos humanos14. Vale notar, contudo, que apesar de constituir o primeiro exemplo histórico de proteção internacional dos direitos humanos, a Carta das Nações Unidas adota uma linguagem predominantemente vaga e genérica. Tal fato não causa qualquer estranheza considerando-se, por exemplo, as pressões exercidas por setores conservadores e racistas sobre o executivo americano, ou a contraditória política inglesa, interessada em preservar seus laços coloniais. Para Stalin, igualmente, não haveria possibilidade de acordo caso os compromissos firmados contemplassem obrigações diretas e específicas que pudessem ameaçar sua liberdade de ação. Na União Soviética, o endosso de uma linguagem genérica de direitos humanos era visto com uma forma de reduzir as desconfianças à política soviética sem, no entanto, criar embaraços ou constrangimentos para a mesma. Então, embora as grandes potências tenham reconhecido a correlação entre violações domésticas de direitos humanos e agressões externas, e estivessem empenhadas no reconhecimento internacional dos mesmos, elas não estavam dispostas a firmarem compromissos mais firmes e específicos capazes de limitar sua liberdade de ação ou criar-lhes constrangimentos maiores no plano internacional. O novo impulso dado pela Carta da ONU aos direitos humanos não representou, todavia, uma radical transformação do ordenamento das relações internacionais de modo a privilegiar os indivíduos. De fato, nem as Nações Unidas nem qualquer outro organismo internacional foram dotados de poderes supranacionais capazes de assegurar ou impor o cumprimento dos direitos humanos aos Estados. A proteção dos mesmos continuou a ser feita através de uma diplomacia estatal tradicional. Assim, se 13 Carta das Nações Unidas e Estatutos da Corte Internacional de Justiça. New York: The United Nations, Departamento de Informações Públicas, 1957. 14 Weiss et al., op. cit., p. 152. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 26 de um lado houve a consagração dos direitos humanos universais, do outro, houve a reafirmação da soberania dos Estados sobre os assuntos domésticos, expressa, por exemplo, no artigo 2º (7) da Carta que contempla o princípio da não-intervenção. Essa contradição foi, desde o início, uma das marcas da política de direitos humanos do sistema ONU, ensejando vários debates acerca do tema. 2.5. A Carta Internacional de Direitos Considerando que a Carta da ONU limitava-se a fazer referências aos direitos humanos, sem especificá-los, era preciso elaborar documentos capazes de listá-los de modo mais preciso. Assim, no dia 10 de dezembro de 194815 a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou o texto da Declaração Universal de Direitos Humanos, contando com 48 votos a favor, 9 em contra e apenas 8 abstenções (União Soviética, Bielorússia, Ucrânia, Polônia, Theco-eslováquia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul). Este documento constituía apenas uma recomendação da Assembléia Geral, destituída de qualquer caráter vinculante sobre os países membros. Ademais, o documento em questão pouco inovava, consagrando, na verdade, aqueles direitos há muito aceitos e aplicados em países ocidentais, daí ter um reconhecido caráter liberal. Durante o período de negociações de 1946 a 1948 pouco se discutiu acerca de universalismo ou relativismo cultural ou sobre a divisão dos direitos em distintas gerações, evitando assim o tratamento de temas polêmicos16. Todos esses fatores contribuíram para a relativa facilidade com que foi aprovadas esta Declaração, considerada a pedra fundamental de todo o regime de direitos humanos das Nações Unidas. Embora não se tenha discutido à época acerca da preeminência de uma ou outra categoria de direitos humanos, é possível identificar claramente três grupos distintos de direitos dentre os trinta princípios consagrados na Declaração. Em primeiro lugar, 15 Hoje reconhecido como Dia Mundial dos Direitos Humanos. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 27 há direitos relativos à integridade física e espiritual da pessoa humana. Nesta categoria incluem-se o direito à vida, a proibição da escravidão ou servidão, a proibição da tortura e da punição cruel, desumana ou degradante e a restrição da prisão arbitrária e do exílio. A liberdade de pensamento, consciência e religião também pertencem a este grupo. Numa segunda categoria estão previstos os direitos que dizem respeito à vida política, garantindo-se a liberdade de opinião e expressão e a liberdade de associação e participação no governo, seja diretamente ou mediante representação. Por fim, o terceiro grupo compreende direitos sociais, econômicos e culturais, dentre os quais podemos destacar a seguridade social, livre escolha do emprego, condições justas de trabalho, participação na vida cultural da comunidade, descanso e lazer, educação e garantias contra o desemprego. Muito mais árduo foi o processo de transcrição da Declaração em tratados de conteúdo mais específico e de caráter cogente. A Guerra Fria representou um sério obstáculo para a continuidade da evolução dos direitos humanos, ao menos dentro do quadro de relativa tranqüilidade e rapidez que caracterizou o imediato pós - Segunda Guerra Mundial. Os direitos humanos passaram a ser mais uma arena para as disputas entre as superpotências. A Comissão de Direitos Humanos, por exemplo, predominantemente formada por países ocidentais privilegiava os direitos de caráter civil e político como o direito à liberdade de informação, garantia esta severamente violada pelos países comunistas. Estes, em contrapartida, centravam suas atenções sobre problemas como discriminação racial e desemprego, na tentativa de embaraçar seus rivais ideológicos. Da mesma forma, Estados Unidos e União Soviética não duvidavam em apoiar ditaduras e outros regimes aliados transgressores dos direitos humanos, em nome de interesses geopolíticos. Assim, o processo de redação, negociação e assinatura de tratados mais específicos sobre direitos humanos, embora reconhecidamente necessário, ficou entravado em meio a disputas ideológicas. Na década de 60, contudo, com o processo de descolonização dos países africanos e asiáticos e o conseqüente alargamento do número de países votantes no âmbito da ONU, deu-se novo alento à luta pelos 16 David Forsythe, op. cit., p.38. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 28 direitos humanos. Estes novos países, tendo sofrido as agruras da dependência colonial, tornaram-se, de fato, francos defensores dos direitos econômicos e sociais. Assim, após dez anos de longos trabalhos e negociações, os Pactos Sobre Direitos Civis e Políticos e Sobre Direitos Econômicos,Sociais e Culturais foram finalmente aprovados pela Assembléia Geral, em 16 de dezembro de 1966. Dez anos mais ainda se passariam, contudo, até que se obtivessem as 35 ratificações necessárias para fazê- los entrar em funcionamento. Isso demonstra uma certa cautela dos Estados em passarem do compromisso vago e genérico, representado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, para tratados mais específicos, capazes de limitar a liberdade de escolha em assuntos de política doméstica e externa. “Despite the fact that substantive negotiations for the two treaties were completed by 1966, it took another decade for the required number of legal adherences to be obtained in order to bring the treaties into legal force for the full parties”17 Um dos principais obstáculos evidenciados durante os entendimentos pela aprovação dos pactos residiu na distinta ênfase dada, por um lado, aos direitos civis e políticos, e por outro, aos econômicos, sociais e culturais, que colocou em evidência as disputas Norte x Sul e Leste x Oeste. Para os países não-ocidentais, representados pelo bloco soviético, os países em desenvolvimento e as nações recém-independentes, a preeminência dos direitos econômicos e sociais justificava-se a partir da idéia de que é preciso fornecer abrigo, comida e vestimentas, para só depois pensar em “direitos de luxo” como participação política e liberdade negativa, entre outros. Além de contrariar as expectativas de governos ocidentais, principalmente o dos Estados Unidos (pressionado por forças ultranacionalistas, conservadoras e racistas), tal posicionamento representava firme ameaça à democracia, pois legitimava em última instância a violação de direitos fundamentais em nome do desenvolvimento, consagrando a atuação de regimes autoritários. Finalmente, uma solução foi alcançada com a aprovação de dois pactos em separado para cada um dos grupos de direitos, apoiados igualmente em diferentes mecanismos de fiscalização e monitoramento. Anos antes, em 1951, a Assembléia 17 Ibid., pp. 39-40. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 29 Geral já havia aprovado proposta relativa à separação, determinando a preparação de dois pactos distintos. Essa rígida separação dos direitos humanos em dois grupos apoiava-se não apenas em visões ideológicas contrastantes, mas também em considerações a respeito da aplicabilidade e implementação dos mesmos. Era comum afirmar-se, por exemplo, que os direitos civis e políticos poderiam ser aplicados de imediato (graças às vontades políticas já existentes) e poderiam ser impostos através de mecanismos judiciais. Em contrapartida, os direitos sócio-econômicos requereriam políticas de implementação mais demoradas, largamente afetadas por fatores econômicos e sociais exógenos, não podendo tampouco ser impostas judicialmente. Pode-se dizer, todavia, que a pertinência moral dessa divisão dos direitos humanos é altamente questionável. Jack Donnelly18, por exemplo, criticando os países que tentavam estabelecer a prevalência de uma categoria sobre a outra, pergunta se teriam qualquer significação moral as diferenças eventualmente encontradas entre um regime que tortura pessoas, mas alimenta bem a todos e outro que deixa as pessoas sofrerem de mal-nutrição e não tortura ninguém. Assim como a Declaração, os Pactos devem ser entendidos dentro do contexto histórico em que estão inseridos. A influência dos países africanos e asiáticos levou a uma ênfase sobre o direito à autodeterminação dos povos, finalmente aceito pelos países ocidentais e incluído no artigo 1º de ambos os documentos. As antigas nações coloniais insistiam em que deveriam estar aptas a governar seus destinos políticos e econômicos, livres da influência dos países imperialistas. Conjuntamente considerados, os Pactos e a Declaração Universal formam o que se convencionou chamar de Carta Internacional de Direitos. É certo haver, todavia, algumas pequenas discrepâncias entre os documentos. Assim, o direito à propriedade, o direito à nacionalidade e o direito a se buscar e gozar de asilo, muito embora previstos na Declaração, foram omitidos dos Pactos. Além disso, os Pactos muitas vezes aprofundam e especificam direitos já garantidos nas trinta normas da Declaração. 18 Jack Donnelly. International Human Rights. Second Edition, Westview Press, 1998, p.25. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 30 Conforme já foi afirmado, cada Pacto prevê um mecanismo próprio de fiscalização da aquiescência. O Pacto Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em vigor desde 3 de janeiro de 1976, exige que as partes forneçam periodicamente relatórios para o Secretário Geral da ONU que explicitem as medidas adotadas e os progressos feitos para se chegar à observância dos direitos. Estes relatórios serão submetidos ao Comitê para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, constituído de 18 especialistas e estabelecido em 1987 pelo ECOSOC. O papel do Comitê é analisar os relatórios nacionais e remeter suas conclusões à apreciação do ECOSOC, que poderá fazer recomendações de natureza geral. O Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, em vigor desde 23 de março de 1976, conta com o Comitê de Direitos Humanos para fazer o papel de supervisão. Este comitê também é formado por 18 membros dotados de alto caráter moral e de reconhecida competência no campo dos direitos humanos. O artigo 40 inciso I do Pacto de 1966 reza que as partes: “undertake to submit reports on the measures they have adopted which give effect to the rights recognized herein and on the progress made in the enjoyment of those rights”19 Ainda no contexto do Comitê de Direitos Humanos, o artigo 41 autoriza o mesmo a receber e considerar reclamações proferidas por determinado Estado acerca de desrespeitos aos diretos humanos realizados em outro, desde que as partes envolvidas tenham-lhe reconhecido essa competência específica. Urge tratar, por fim, do chamado “Protocolo Facultativo”. Aos cidadãos dos países contratantes lhes é reconhecido o direito de comunicarem ao Comitê quaisquer violações a direitos humanos previstos no Pacto que tenham sido cometidas pelo Estado. Nestes casos, em julgando a comunicação admissível, o Comitê levará a questão à atenção do Estado interessado. Este terá, então, um prazo de seis meses para submeter explicações escritas ou declarações esclarecendo a questão e indicando as providências tomadas. Em seguida, caberá ao Comitê apresentar suas conclusões tanto ao indivíduo quanto ao Estado. Neste processo, o Comitê acabou por formar, ao longo dos anos, valioso histórico de recomendações e decisões (case law) que 19 Documento disponível em: <http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/a_ccpr.htm> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 31 constitui notável fonte de interpretação de importantes artigos do Pacto. É importante esclarecer que o Comitê de Direitos Humanos não é uma corte, carecendo suas decisões de força vinculante, constituindo, na verdade, um mecanismo capaz de fazer a publicidade negativa de determinado Estado recalcitrante, o que para Donnelly, “may occasionally embarrass a state into altering its practices”20 Em 1989, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou um “Segundo Protocolo Facultativo” ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, destinado à abolição da pena de morte. Apesar de representarem uma evolução significativa em relação à Declaração Universal, os Pactos Internacionaisde Direitos Humanos mostraram-se, ainda, bastante respeitosos às soberanias nacionais, restringindo a capacidade de atuação dos Comitês para interferir de maneira substantiva no sentido de corrigir situações contrárias aos direitos estabelecidos. 2.6. Os direitos humanos em convenções e declarações sobre temas específicos Considerando que os países estão muito mais dispostos a negociar tratados, do que a aceitar a criação de tribunais especiais ou outros mecanismos de enforcement para os direitos humanos, não restou às Nações Unidas outra alternativa que não a elaboração de tratados e convenções sobre temas cada vez mais específicos, como forma de expandir a proteção e ampliar o compromisso dos Estados. Assim, já em 194821, a Assembléia Geral aprovou a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, definido como a deliberada erradicação de um povo ou de sua cultura. Em 1965, adotou-se a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, entendida como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o 20 Jack Donnelly, 1998, p.58. 21 A implementação efetiva desta convenção só se daria em 1951. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 32 reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade dos direitos humanos e liberdades fundamentais”. Sem dúvida, o principal impulsor desse compromisso foi o movimento de emancipação das antigas colônias européias, que, uma vez independentes, passaram a buscar o fim das práticas segregacionistas e discriminatórias, dentre as quais já se destacava o apartheid. No tocante à discriminação baseada no sexo, há uma série de convenções específicas aprovadas pela Assembléia Geral. Dentre elas podemos destacar a Convenção Sobre os Direitos Políticos da Mulher de 1952 e a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres de 1979. Sobre os direitos individuais dos presos, podemos destacar a Declaração Contra a Tortura, Punições Cruéis, Desumanas ou Degradantes de 1975, e a convenção sobre o mesmo tema de 1984. Vale mencionar, ainda, uma declaração de 1981 que propugnava a eliminação de todas as formas de discriminação baseadas em religião ou crença. Por fim, a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 1989, exorta os Estados-parte a proteger a criança de todas as formas de discriminação e a assegurar-lhe assistência apropriada. 2.7. A proteção regional dos direitos humanos No que concerne à proteção regional de direitos humanos, podemos citar, em primeiro lugar, o caso europeu. Este sistema tem por base a Convenção Européia dos Direitos Humanos de 1950, onde se define um conjunto de direitos civis e políticos. Para a implementação dos mesmos, o regime europeu apoiava-se, até 1998, na Comissão Européia de Direitos Humanos, na Corte Européia de Direitos Humanos e no Comitê de Ministros. A primeira funcionava como um mediador coletivo, que respondia a queixas estatais ou privadas22, exclusivamente no plano de direitos civis e políticos, e visava a alcançar um acordo fora dos tribunais. De início a Comissão procedia à tarefa de 22 Apenas no caso dos países que expressamente aceitam tal procedimento opcional. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 33 filtragem das comunicações recebidas dentro de critérios bastante rígidos, dentre os quais se destacava o esgotamento dos recursos internos. Em seguida, e uma vez acolhida a reclamação, havia uma investigação preliminar dos fatos e tentativa de solução amistosa entre as partes. No caso de não se alcançar um acordo, a Comissão elaborava um relatório sobre os fatos alegados e dava seu parecer acerca da configuração ou não de violação às obrigações previstas na Convenção. A partir daí remetia o caso para a Corte Européia de Direitos Humanos, no caso das partes aceitarem a jurisdição da mesma, ou para o Comitê de Ministros, no caso de não o fazerem. Na hipótese de julgar procedente a alegação de violação da Convenção, a Corte determinava a reparação do dano, ou de acordo com o artigo 50 da própria Convenção, impunha uma compensação material à parte lesada. Quando era o Comitê de Ministros que determinava que houve a violação, fixava-se um prazo para a reparação dos danos. No caso deste prazo não ser observado, podia o Comitê levar o assunto a conhecimento público, ou, ainda, proceder à expulsão do Estado-membro que não garantisse a todas as pessoas sob sua jurisdição o gozo dos direitos humanos23. Conforme observa Cançado Trindade, e diferentemente do sistema das Nações Unidas: “Aqui, quer se trate de parecer da Comissão Européia, de julgamento da Corte Européia, ou de decisão do Comitê de Ministros – os três órgãos da Convenção, – as petições, sejam elas interestatais ou individuais, são efetivamente julgadas”.24 Vale dizer que em meados dos anos 90, os membros do Conselho da Europa começaram a considerar a possibilidade de os cidadãos remeterem diretamente suas demandas individuais à corte, sem necessidade da intermediação ou filtragem da Comissão. Além disso, em face do aumento do número de recursos, sua complexidade crescente e a ampliação do próprio Conselho que passou de 23 para 40 membros entre 1989 e 1996, procedeu-se, em 1998, a uma revisão do procedimento. Assim, 23 Punição prevista no artigo 8º do Conselho da Europa. 24 Antonio Augusto Cançado Trindade. A Evolução Doutrinária e Jurisprudencial da Proteção aos Direitos Humanos no Plano Global e Regional: as Primeiras Quatro Décadas. Revista de Informação Legislativa, nº 90, abr./jun. 1986, p. 243. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 34 pelo Protocolo número 11 da Convenção Européia de Diretos Humanos, foi estabelecido um tribunal único, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em substituição à Comissão e à Corte. A nova instituição, diretamente acessível aos indivíduos, cuida de todas as fases preliminares bem como da emissão das sentenças. Ao Comitê, instituição remanescente do sistema anterior, cabe, grosso modo, controlar a execução das sentenças do Tribunal, assegurando, por exemplo, o pagamento das indenizações à parte demandante. No âmbito das Américas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) criada em 1959, teve inicialmente apenas a tarefa de promoção e não de proteção específica dos direitos humanos. O seu efetivo fortalecimento veio com o Protocolo de Buenos Aires de 1967, que emendou a Carta da OEA e estendeu o seu mandato. Assim, desde então, a CIDH foi elevada à categoria de órgão principal da OEA, devendo “promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria” (artigo 150). Para tanto, pode receber e considerar queixas estatais e individuais, além de estar autorizada a dirigir- se a qualquer dos Estados americanos a fim de obter informações e formular recomendações. A CIDH, composta por sete membros eleitos pela Assembléia Geral da OEA a título pessoal, passou a ser também o órgão encarregado de supervisionar o cumprimento da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também conhecida como Pacto de San José. Vale dizer que, embora haja uma clara divisão, conforme se trate de países signatários do Pacto de San José ou simplesmente membros da OEA, as funções desenvolvidas pela CIDH é praticamentea mesma para as duas categorias. Praticamente, a única diferença está na base jurídica das decisões, que de um lado será o próprio Pacto e de outro, o Protocolo de Buenos Aires e os direitos definidos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948. Diferentemente do sistema europeu, no âmbito da CIDH as queixas individuais serão apreciadas independentemente da assinatura de qualquer protocolo facultativo. É para o caso de queixas interestatais que se faz necessário tal compromisso. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 35 No regime americano, há também uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, criada e definida pelo Pacto de San José. Esta tem competências consultiva e contenciosa. A primeira, aberta a todos os países americanos, independentemente da ratificação do Pacto, destina-se tanto à interpretação das normas da própria Convenção Americana e de outros tratados de direitos humanos no âmbito das Américas, quanto à elaboração de pareceres acerca da compatibilidade dos ordenamentos nacionais com tais instrumentos jurídicos regionais. A segunda, contenciosa, só se aplica aos países signatários do Pacto e tem por escopo o julgamento de casos a ela submetidos, função esta muito pouco desempenhada se comparada à anterior. Neste sistema, é sintomática a evolução normativa ocorrida nos últimos anos, com a assinatura de diversas convenções que inegavelmente ampliam e fortalecem o regime de proteção regional dos direitos humanos. Em 1988, por exemplo, a Assembléia Geral da OEA aprovou um Protocolo Adicional sobre Direitos Econômicos e Sociais que complementa o Pacto de San José, através da enumeração de tais direitos e o estabelecimento de formas de supervisão. Mais recentemente, em 1994, documentos como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas demonstram a continuidade do processo evolutivo de proteção aos direitos na região. Por fim, é bom ressaltar a capacidade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de deslocar-se ao território de qualquer Estado americano, seja com a anuência ou a convite do respectivo governo, para observar in loco a situação dos direitos humanos. Ao final da visita, a CIDH elabora um relatório que será remetido ao Estado em questão. Ao longo dos anos a Comissão já realizou diversas visitas, sendo algumas marcantes, como no caso da Argentina, onde foi determinante para o fim dos desaparecimentos do regime militar. Em outros regimes regionais de direitos humanos, como, por exemplo, o africano, os resultados alcançados não foram nada alentadores se comparados aos dos sistemas europeu e americano. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 36 2.8. O direito humanitário, seus instrumentos legais e suas instituições Paralelamente à evolução normativa dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas, deu-se um avanço legal e institucional do chamado direito humanitário. Tendo também por objetivo final a promoção da dignidade da pessoa humana, o direito humanitário atua basicamente durante conflitos armados, daí ser conhecido igualmente por direitos humanos em tempo de guerra. Embora a regulamentação das condutas de guerra pelo direito internacional em muito preceda o aparecimento dos direitos humanos internacionais, a evolução recente de ambos os sistemas legais ocorreu quase que de forma paralela. De fato, as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial ensejaram também um aperfeiçoamento normativo das garantias individuais fundamentais durante os conflitos armadas. Assim, em 1949, apenas um ano após a aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos, adotam-se as quatro Convenções de Genebra para a Proteção das Vítimas de Guerra. Pela primeira vez na história um tratado contemplou o direito de assistência humanitária da população civil em conflitos armados e territórios ocupados. Houve, ainda, a extensão das garantias das convenções aos conflitos internos25. Consideradas a pedra fundamental do direito humanitário moderno, essas convenções foram complementadas em 1977 por dois Protocolos aprovados durante uma conferência convocada pelo governo suíço, historicamente reconhecido como o depositário natural do direito humanitário. O primeiro Protocolo tratava dos conflitos internacionais e proibiu, por exemplo, o uso da fome com instrumento legítimo de guerra. O segundo Protocolo representou o primeiro tratado individualizado sobre as vítimas de guerras internas. Tendo por objetivo principal a humanização da guerra, o direito humanitário visa a assegurar a proteção e assistência de prisioneiros de guerra, bem como de outros combatentes feridos ou doentes. A população civil, em última instância a maior vítima dos conflitos armados, também é alvo primordial das garantias desse sistema DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 37 legal, encarregado de prover-lhes, entre outros benefícios, abrigo, comida e cuidados médicos. O ponto fundamental, então, é que mesmo em tempos de guerra as partes beligerantes devem observar certos limites e regras com o objetivo de minimizar o sofrimento humano. No plano do direito humanitário, é fundamental o papel exercido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, tecnicamente uma associação privada suíça, que centra seu trabalho na assistência a vítimas de guerra, seja a soldados feridos ou presos seja a civis em zonas de conflito. Vale dizer, que esse Comitê atua também no patrocínio a tratados internacionais, tendo participado inclusive dos trabalhos de elaboração das Convenções de Genebra. Por fim, e conforme foi consagrado no bojo dessas convenções, o seu direito de visita a presos de guerras internacionais está assegurado no âmbito do direito internacional público. 2.9. As relações entre direitos humanos e direito humanitário Embora tanto os direitos humanos quanto o direito humanitário objetivem grosso modo a promoção da dignidade humana, eles são aplicados, sob o conceito tradicional, em situações bem diferenciadas. Assim, os direitos humanos regulariam as relações dos Estados com os indivíduos submetidos à sua jurisdição, em todos os aspectos ordinários da vida, mas tornar-se- iam inaplicáveis em situações de emergência que colocassem em risco a vida, a independência e segurança do Estado. Já o direito humanitário, governaria as relações em tempos de guerra entre os Estados beligerantes, bem como entre eles e os inimigos ou neutros de outros países, mas jamais os próprios nacionais. Hoje, diante de desenvolvimentos recentes ocorridos no bojo de ambos os sistemas legais, pode-se dizer que a clássica distinção apresentada fica por vezes comprometida. Nesse sentido, é possível encontrar direitos humanos de terceira geração que consagram, por exemplo, os direitos à paz e ao desenvolvimento, e se 25 Todas as quatro Convenções de 1949 foram dotadas de um artigo 3º comum que estendia o direito DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 38 aplicam a indivíduos ou coletividades que não se restringem ao âmbito nacional.26 Assim, surgem direitos solidários que podem ser alegados por povos de um Estado em face de outros Estados. Da mesma forma, com a adoção do Segundo Protocolo de 1977 que cuida dos conflitos armados internos houve a expansão do alcance do direito humanitário para incluir também as relações entre os Estadose seus próprios nacionais. Vale ressaltar, outrossim, que a partir do final dos anos 60 verificou-se uma crescente interação entre direitos humanos e direito humanitário. Nesse momento, enquanto os direitos humanos viviam um período de grande expansão e afirmação após a aprovação dos Pactos Internacionais em 1966, o direito humanitário sofria uma certa paralisia evidenciada pela desconfiança com que foi recebida pela maioria dos países a proposta de aprovação de regras suplementares de proteção à população civil em tempos de guerra, feita pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha durante a 19ª Conferência da Cruz Vermelha em Nova Déli.27 Assim, com a paradoxal retração do direito humanitário, por um lado, e a crescente necessidade de assistência e proteção em tempos de guerra em regiões como Argélia, Nigéria, Oriente Médio e Península da Indochina, por outro, não houve alternativa a não ser promover uma aproximação com o cada vez mais vigoroso regime de direitos humanos das Nações Unidas. Já na Conferência Internacional das Nações Unidas de Teerã, em 1968, ficou evidenciada a inclusão de questões relativas ao direito humanitário nos distintos foros de discussão. A primeira resolução da Conferência, intitulada de Respeito e Imposição dos Direitos Humanos nos Territórios Ocupados, conclamava Israel a aplicar tanto a Declaração Universal de Direitos Humanos, quanto as Convenções de Genebra de 1949 nos territórios ocupados. A resolução XXIII, intitulada de Respeito aos Direitos Humanos em Conflitos Armados, também adotada no âmbito da referida Conferência, afirmava em seu texto que “a paz constituía uma precondição para a plena observância dos direitos humanos, sendo a guerra a sua negação” e que humanitário escrito aos conflitos armado internos. 26 René Provost. International Human Rights and Humanitarian Law. Cambridge University Press, 2002, p.7 27 Ibid., p.2 DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 39 “mesmo em tempos de guerra os princípios humanitários deveriam prevalecer”. Esta resolução, a despeito de seu caráter vago e genérico, constitui um ponto de inflexão nas concepções até então existentes acerca da relação entre direitos humanos e direito humanitário.28 Naquele mesmo ano, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a resolução 2444, em que reafirmava o teor da resolução XXIII da Conferência de Teerã. Em 1970, a resolução 2675, também da Assembléia Geral, afirmava explicitamente que “os direitos humanos fundamentais, aceitos pelo direito internacional e consagrados em instrumentos internacionais continuavam a ser plenamente aplicáveis em situações de conflito armado”. A partir dessa crescente e reconhecida interação entre direitos humanos e direito humanitário, as Nações Unidas passaram a desempenhar papel de destaque numa área até então considerada incompatível com os objetivos da organização e com a proibição de uso da força do artigo 2 (4) da Carta das Nações Unidas. 2.10. A atuação dos órgãos principais das Nações Unidas na proteção aos direitos humanos 2.10.1. O Conselho de Segurança Este órgão tem, segundo a Carta das Nações Unidas, a responsabilidade pela manutenção da paz e segurança internacionais. Assim, em identificando determinada situação como uma ameaça ou ruptura da paz, pode o Conselho de Segurança invocar o capítulo VII da Carta e aplicar medidas de força de caráter vinculante sobre os Estados, tanto no plano econômico, quanto no plano militar. Os demais assuntos que escapem à seara da segurança serão tratados através de resoluções destituídas de força cogente, elaboradas no âmbito do capítulo VI da Carta. Embora, num primeiro momento, a questão dos direitos humanos fuja às noções tradicionais de segurança, é inegável que em certas circunstâncias podem as violações 28 Ibid., p.4 DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 40 desses direitos influir negativamente sobre a paz internacional, ensejando a aplicação pelo Conselho do capítulo VII da Carta. Mesmo durante a Guerra Fria, e apesar da relativa paralisia do Conselho em meio a disputas ideológicas, é possível vislumbrar dois exemplos de invocação do capítulo VII em episódios que de certa forma envolviam questões de direitos humanos. Assim, em 1968, o Conselho adota uma resolução que impunha sanções econômicas ao governo de Ian Smith na Rodésia, fazendo menção expressa à situação dos direitos humanos no país, bem como a secessão ilegítima do Reino Unido. Mais tarde, em 1977, o Conselho aprova um embargo de armas à África do Sul, diante da “situação existente no país”.29 Mesmo sem uma referência explícita aos direitos humanos, sabia-se que a preocupação da comunidade internacional com a situação do país dizia respeito, principalmente, a assuntos como racismo, negação da autodeterminação dos povos e falta de participação política da maioria. Com o final da Guerra Fria houve uma clara expansão no uso do Capítulo VII para assuntos relativos a direitos humanos. Pode-se dizer que o Conselho de Segurança ampliou a noção de paz e segurança internacionais a tal ponto que fica difícil estabelecer uma clara distinção entre os assuntos que sejam relativos a segurança e os que sejam relativos a direitos humanos. Nesse sentido, segurança poderia referir-se também à segurança das pessoas dentro dos Estados, considerando o respeito aos direitos humanos, e não apenas a problemas de agressão militar transnacional.30 Assim, a atuação do Conselho foi marcante em conflitos cujas causas eram muito mais internas, e poucos reflexos tinham no plano internacional, como no caso da Somália, Camboja e Guatemala. Temas como liberdade de expressão e credo, participação política e eleições livres passaram a nortear muitas vezes os debates no Conselho. Desta forma, afetou-se inegavelmente o conceito de soberania estatal e o caráter exclusivista da jurisdição doméstica. Como exemplo desse novo perfil de atuação do Conselho vale citar a resolução 794 de 1992. Aprovada no âmbito do capítulo VII, tal resolução visava a criar um ambiente seguro para a prestação de assistência humanitária na Somália, autorizando 29 Weiss et al., op. cit., p.168. 30 Ibid., p.168 e David Forsythe, op. cit., p.58. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 41 para tanto o uso de “todos os meios necessários”. Dado o caráter predominantemente interno do conflito, muitos enxergam neste caso um valioso precedente para o uso do capítulo VII em ações puramente humanitárias, que fugissem ao alcance dos conceitos de ameaça à paz e segurança internacionais31. É certo, contudo, que para evitar constrangimentos futuros e facilitar a aprovação da resolução, o Conselho ressaltou o “caráter único” da situação na Somália, alegando, por exemplo, a inexistência de soberania estatal num Estado completamente falido e mergulhado no caos. Por fim, vale dizer, que embora tenha contribuído em certos casos para expandir o respeito aos direitos humanos, o Conselho de Segurança foi muitas vezes omisso diante de violações gritantes que deveriam ensejar uma atuação firme e decisiva. É inegável o caráter seletivo das incursões do Conselho, dando-se preferência a regiões que representem alguma ameaça a interesses dos países hegemônicos, como ocorreu no caso do Haiti, em que levas de refugiados preocupavam autoridades americanas. Em outros locais não tão atrativos,como Camboja e Ruanda, a inércia do Conselho, e das Nações Unidas como um todo, foi decisiva para o agravamento das crises e violações a direitos humanos. Os freqüentes vetos de China e Rússia a resoluções no âmbito do capítulo VII, em nome da defesa dos princípios da soberania estatal e não- intervenção, demonstram, igualmente, a clara preocupação com possíveis interferências sobre sua política interna, muitas vezes marcada por violações a direitos e garantias individuais. Finalmente, é nítida a clivagem existente entre o teor das resoluções do Conselho, muitas dotadas de força e caráter vinculante, e a disposição e vontade política dos países em arcarem com os custos das mesmas, muitas vezes contabilizados em vidas humanas. O recuo da intervenção na Somália, após a morte de alguns soldados americanos em 1993, revela a inconsistência e fragilidade do compromisso dos Estados com as ações de caráter humanitário. 2.10.2. A Assembléia Geral 31 Vale notar que, formalmente, o Conselho alegou motivos de ameaça a paz e segurança internacionais, atendendo ao teor do artigo 39 da Carta das Nações Unidas. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 42 Este órgão, além de elaborar declarações, pactos e tratados, também pratica uma proteção indireta dos direitos humanos, seja através da aprovação de resoluções que condenam ou chamam a atenção para violações de direitos, seja por meio da criação de agências ou convenções que financiam e lidam com esses direitos. Cerca de um terço das resoluções aprovadas pela Assembléia Geral tem por objeto os direitos humanos.32 É certo, contudo, que a eficácia de resoluções destituídas de força e caráter vinculante dá margem a questionamentos. Na questão do apartheid na África do Sul, por exemplo, é difícil aferir qual foi impacto exato das condenações emitidas pela Assembléia na queda do regime de segregação racial. Ao longo dos anos, é curioso notar a variação na ênfase dada aos direitos humanos pela Assembléia, segundo a composição da mesma. De 1945 a 1955, por exemplo, composta em sua maioria por países ocidentais, a Assembléia dava preferência a questões como trabalho forçado em países comunistas, em detrimento de discussões acerca de discriminação racial. No período seguinte, com a entrada de vários países em desenvolvimento recém-egressos dos processos de independência, e com a constituição de uma nova maioria, temas como autodeterminação dos povos e fim da discriminação racial passaram a permear os debates no referido órgão. No final dos anos 80 e início dos anos 90, ficou latente o conflito Norte-Sul, que contrapunha, de um lado, os defensores do direito de assistência humanitária, independentemente do princípio da não-intervenção e, de outro, os países que afirmavam a todo custo o princípio da soberania estatal. No decorrer dos anos 90, todavia, é possível observar um aumento no diálogo entre ambas as partes, com um maior comprometimento e abertura dos países do sul a temas como democracia e participação política. Assim, várias resoluções aprovadas endossaram tanto a preeminência da democracia, quanto a vinculação entre os direitos civis e políticos e os programas de desenvolvimento. 2.10.3. O escritório do Secretário Geral 32 Weiss et al., op. cit., p.173. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 43 Preocupados principalmente com a promoção da paz e segurança internacionais, os primeiros secretários-gerais optaram por adotar um discurso mais cauteloso quanto aos direitos humanos, evitando assim embaraços e constrangimentos que pudessem comprometer o êxito de suas funções. De fato, qualquer discurso mais vigoroso sobre temas sensíveis, como os direitos humanos, poderia indispor de forma irreversível o secretário-geral com qualquer um dos blocos em disputa na Guerra Fria. Fica difícil, por exemplo, imaginar a posição de mediador de U Thant durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, caso ele houvesse anteriormente condenado com veemência a violação dos direitos humanos na União Soviética. Trygve Lie e Dag Hammarskjiöld pouco interesse mostraram na promoção dos direitos humanos via Nações Unidas. O primeiro, tornou-se ineficaz e acabou por renunciar diante de sua clara oposição à invasão comunista da Coréia do Sul. Já o segundo, embora tenha se empenhado em assuntos de segurança no Congo Belga (atual Zaire), entrando em choque com a União Soviética, e tenha se dedicado intensamente a encontrar um papel de destaque para a ONU durante o conflito Leste- Oeste, pareceu pouco devoto à causa dos direitos humanos. Kurt Wadhein, a despeito de seu passado como militar nazista, mostrou maior comprometimento com algumas questões relativas aos direitos humanos e direito humanitário, como no caso dos refugiados na África. Em seguida, o peruano Javier Pérez de Cuéllar foi ainda mais incisivo na proteção aos direitos humanos, tendo tido relevante participação em El Salvador e Nicarágua, onde percebeu que a paz e a segurança na região não poderiam ser dissociadas de uma maior garantia e progresso desses direitos. Assim, em El Salvador foi o mediador de acordos com vistas a promover uma reconciliação nacional, pondo fim a esquadrões da morte e outras violações maciças de direitos humanos. Na Nicarágua, igualmente, mediou um acordo de paz e o desarmamento de grupos rebeldes, bem como promoveu a primeira supervisão de eleições de um Estado Soberano. Por fim, patrocinou a supervisão de eleições no Haiti, em 1991, fato inédito num país tão devastado por guerras civis. Percebe-se, então, que os secretários-gerais aumentavam cada vez mais sua influência sobre questões de direitos, antes consideradas de competência doméstica e exclusiva dos Estados soberanos. Paradoxalmente, a gestão de Pérez de Cuéllar em relação aos DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 44 direitos humanos também foi marcada pela dispensa do ativista holandês Theo Van Boven como diretor do Centro de Direitos Humanos da ONU, em função de pressões da Junta militar argentina e de seus aliados no governo Reagan, por ter se mostrado um estorvo às práticas transgressoras dos direitos humanos, então correntes no país sul-americano. Boutros Boutros-Ghali foi decisivo na defesa dos direitos humanos, principalmente no tocante aos direitos civis e políticos. De fato, em sua Agenda para o Desenvolvimento, ele consagra a democracia e o respeito aos direitos de primeira geração como bases inexoráveis para o desenvolvimento. O secretário-geral tentou, assim, suprir a falta de integração entre direitos humanos e desenvolvimento nos programas das Nações Unidas. Coube a ele, igualmente, nomear o primeiro Alto Comissário para Direitos Humanos da ONU, na pessoa do equatoriano José Ayala Lasso, em 1994. Por fim, Koffi Annan deu um impulso definitivo à figura do secretário-geral como peça chave do regime de direitos humanos das Nações Unidas. Com efeito, ele colocou os direitos humanos como prioridade máxima de sua gestão, centrando todos os esforços de seu gabinete no avanço da proteção aos mesmos. Igualmente, exaltou a força da lei internacional e consagrou os valores universais de igualdade, tolerância e dignidade humana, conforme apresentados na Carta. Como exemplo de sua posição vale transcrever frase lapidar proferida durante um discurso perante a UNESCO: “Nossa crença na centralidade dos direitos humanos no trabalho e vida das Nações Unidas reside numa simples proposição: aqueles Estados que respeitam os direitos humanos, respeitam as leis da sociedadeinternacional. (...) Os Estados que tratam seu povo com respeito estão mais propensos a tratar seus vizinhos com o mesmo respeito”. A escolha da ex-presidente da Irlanda Mary Robinson, pessoa ativa e firme na busca de seus objetivos, para o cargo de Alto Comissário para Direitos Humanos, demonstra também o tamanho do comprometimento do senhor Annan com a causa dos direitos humanos. Assim, pode-se perceber claramente que a evolução da participação dos secretários-gerais em assuntos relativos aos direitos humanos ocorreu de forma linear ao longo do tempo e obedeceu a uma tendência da própria organização, que aos poucos se firmava na tarefa de guardiã e promotora dos direitos humanos DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 45 internacionais. Da mesma forma, considerando que é prioridade dos secretários-gerais promover e mediar a paz e segurança internacionais, é evidente que à medida que se reconhece a relação entre segurança e direitos humanos, dar-se-á maior destaque a estes na agenda dos mais altos funcionários da organização. 2.10.4. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) Este órgão, que tem seus 15 juízes eleitos pelo Conselho de Segurança e pela Assembléia Geral, e goza de certa independência, embora constitua um dos pilares do sistema ONU, não legou, até o presente momento, qualquer contribuição importante para o histórico e a evolução dos direitos humanos. Isto se deve, em parte, ao fato de só os Estados terem assento perante a Corte, os quais jamais demonstraram muito interesse em processar ou ser processados em cortes internacionais, principalmente no âmbito de direitos humanos. Mesmo hoje, com o fim da Guerra Fria, e considerando um aumento no número de casos submetidos perante a Corte, ainda é raro ocorrer um pronunciamento decisivo sobre direitos humanos. O estatuto da Corte prevê que os Estados podem reconhecer voluntariamente a jurisdição da corte para julgar acerca de um ou vários assuntos e pendências em que forem partes. Cumpre notar, contudo, que muitos poucos países adotaram tal procedimento. Mesmo na hipótese de alguns tratados em que se define a CIJ como o foro próprio para dirimir litígios e julgar os casos sob o tema em questão, surgem ressalvas excludentes de jurisdição. Exemplo disso é a Convenção sobre Genocídio de 1948, que prevê em determinado artigo a jurisdição compulsória da CIJ para os casos previstos no tratado, e que foi deliberadamente objeto de ressalva por parte dos Estados Unidos, que se recusou a ficar adstrito à competência da referida Corte. Conclui-se, então, que os Estados ainda não estão dispostos a submeter sua soberania à decisão de juízes independentes de várias nacionalidades, que julgam conforme a lei internacional e não em função dos interesses ou pressões dos distintos países. 2.10.5. O Conselho Econômico e Social (ECOSOC) DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 46 Embora constitua um dos órgãos principais do sistema das Nações Unidas, este Conselho passou a funcionar basicamente como um canal de ligação entre seus órgãos subsidiários e a Assembléia Geral. No tocante aos diretos humanos, três decisões importantes resumem sua atuação desde 1945. A primeira definiu que a Comissão de Direitos Humanos seria composta por representantes dos Estados e não por especialistas. Ficava caracterizado, assim, o caráter político e não meramente técnico dessa importantíssima Comissão subsidiária do ECOSOC, o que será mais largamente discutido no âmbito do capítulo seguinte. Mais tarde, o Conselho Econômico e Social adotou a resolução 1235 que autorizava a Comissão a receber queixas específicas sobre países também específicos. Por fim, a resolução 1503 permitiu que a Comissão analisasse reclamações individuais, sempre que evidenciassem um padrão consistente de violações flagrantes de direitos humanos. Vale destacar, também, a existência, no âmbito do Conselho, de um comitê encarregado de decidir quais ONG’s serão dotadas de caráter consultivo dentro do sistema das Nações Unidas, tendo assim a possibilidade de participar das reuniões e fazer circular documentos dentro da Organização. É evidente que este comitê foi muitas vezes objeto de pressões por parte de países interessados em negar o “status” consultivo a ONG’s que pudessem investigar ou denunciar fatos que lhes causassem embaraço. Em suma, pode-se dizer que o Conselho Econômico e Social não conseguiu promover uma maior integração dos direitos humanos com o campo econômico e social no sentido mais amplo. Aliás, é possível notar que o Conselho tem falhado até mesmo na sua função mais genérica de promover, guiar e coordenar os distintos órgãos e agências especializadas da ONU.33 Com tudo isso, verifica-se um certo esvaziamento de suas atribuições, perdendo importância não apenas para órgãos não diretamente submetidos a ele, que se reportam diretamente à Assembléia Geral, mas também para outros que, em tese, lhe são hierarquicamente inferiores, como é o caso da Comissão de Direitos Humanos. 33 Declan O’Donovan. The Economic and Social Council. In: Philip Alston (Org.). The United Nations And Human Rights: A Critical Appraisal. Clarendon Paperbacks,1995, p. 122. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 47 Uma vez apresentados os aspectos gerais e propedêuticos da proteção internacional dos direitos humanos, cumpre passar no próximo capítulo a um estudo mais detalhado do regime de direitos humanos das Nações Unidas, tendo como principal objeto de análise a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra. Para Jack Donnelly: “The Commission on Human Rights has (…) firmly established itself as the single most important United Nations organ in the human rights field, despite its subordinate status as one of several specialized (‘functional’) commissions answerable to the Economic and Social Council and, through it, to the General Assembly”34 34 Philip Alston, op. cit., p.126 DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA
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