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4 O Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias Conforme já enfatizado acima, o surgimento dos procedimentos de controle temáticos representou um grande avanço nos mecanismo de proteção aos direitos humanos. Por serem de caráter não convencional, esses procedimentos alcançam todo e qualquer país, independentemente da assinatura ou reconhecimento de tratados específicos. Além disso, os mecanismos temáticos escapam aos ranços e rivalidades políticos inerentes aos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos. De fato, por não incidirem exclusivamente sobre determinado país, como ocorre com os procedimentos geográficos, esses mecanismos de controle são mais facilmente criados, evitando a ação eventual de lobbies e a oposição de grupos regionais de países. O grupo de trabalho sobre desaparecimentos forçados ou involuntários, criado em 1980, representou uma novidade e teve sua atuação largamente reconhecida em países como Argentina e Chile, onde ajudou a elucidar desaparecimentos obscuros e a identificar muitos dos responsáveis. Anos mais tarde, com a Guerra Fria já encerrada, foi criado outro mecanismo temático que, beneficiado pelo novo contexto internacional e pelas experiências anteriores, mostrou bons resultados no desempenho de suas atribuições e confirmou a utilidade e eficiência desses procedimentos extraconvencionais. Trata-se do Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias. 4.1. Origens O Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias foi criado em 1991 pela resolução 1991/42 da Comissão de Direitos Humanos. Tiveram participação ativa na DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 89 criação desse mecanismo países como França e Reino Unido, bem como diversas e influentes ONG’s. Vale notar que esse grupo surgiu inspirado no trabalho desenvolvido no âmbito da Sub-Comissão, pelo grupo de trabalho sobre detenção1. Este último caracterizou- se por uma estreita interação entre os membros da Sub-Comissão e certas ONG’s ativas no tema, como a Anistia Internacional e a International Commission of Jurists. É possível destacar entre suas contribuições mais importantes a elaboração do rascunho de um Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Detidas ou Presas, finalizado em 19782. Também merecem destaque a discussão de um relatório anual acerca de desenvolvimentos relativos aos detidos, a elaboração de princípios para restringir o uso da força por parte dos oficiais da lei e a consideração das repercussões das violações de direitos humanos sobre as famílias das vítimas. O grupo de trabalho sobre detenção da Sub-Comissão mostrou-se especialmente preocupado por prisões resultantes do exercício da liberdade de opinião e expressão. 4.2. Características O Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias foi inicialmente criado para um mandato de três anos3, renovados por igual período em 1994, 1997, 2000 e 2003. O Grupo, composto por cinco especialistas independentes, reúne-se um mínimo de três vezes ao ano, período durante o qual delibera e emite opiniões sobre os temas em pauta. As opiniões emanadas são tomadas por consenso e na falta deste por maioria, sendo incluídas no relatório anual a ser remetido para análise da Comissão de Direitos Humanos durante sua sessão anual. O fato dos componentes do grupo serem independentes constitui uma garantia acerca da objetividade das decisões e investigações. “In general, it is appreciated that 1 Este grupo de trabalho recebe em inglês a denominação de Sessional Working Group on Detention. 2 Dez anos mais tarde, esse documento ainda estava sob análise no âmbito do Sexto Comitê da Assembléia Geral, tendo sofrido diversas alterações em seu texto. 3 Diferentemente do seu predecessor para Desaparecimentos Forçados ou Involuntários que fora criado para um termo de apenas um ano. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 90 the investigations of situations are entrusted to independent experts who in the exercise of their functions do not depend on their Governments, an approach that has ensured objective analysis of the facts.”4 Vale dizer que sempre que houver conflito de interesses ou quando o caso em questão incidir sobre o país de um dos membros do grupo, deverá este se abster de participar da discussão. Com relação ao modus operandi, a Comissão expressamente convoca o Grupo a desempenhar suas tarefas com discrição, objetividade, imparcialidade e independência, sempre respeitando os limites de seu mandato. 4.3. O mandato O mandato do Grupo é “investigar casos de detenção impostos arbitrariamente ou inconsistentes com os padrões internacionais estabelecidos na Declaração Internacional de Direitos Humanos ou em outros instrumentos legais internacionais contratados pelos países interessados” (resolução 1991/42 da CDH). Conforme expressamente afirmado pelo próprio Grupo de Trabalho: “such investigation should be of an adversarial nature so as to assist it in obtaining the cooperation of the State concerned.” 5 Ainda nesse sentido: “the Working Group considers that the adoption of an adversarial - and not accusatory - procedure is the only option that will enable it to satisfy the requirement of objectivity imposed on it by the Commission on Human Rights in paragraph 4 of its resolution 1991/42.”6 4 Parágrafo 73 do relatório de 1998 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 5 Parágrafo 2º do Anexo I do Relatório de 1996 do Grupo de Trabalho. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 6 Parágrafo 3º da Deliberação III, parte B, adotada na quarta sessão do Grupo de Trabalho de 28 de setembro a dois de outubro de 1992. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 91 De início, vale notar que é papel do Secretário-Geral assegurar ao Grupo de Trabalho toda a assistência necessária para o desempenho de seu mandato, tanto no tocante a pessoal quanto a recursos, seja para funções de investigação correntes, seja para a realização de missões de campo. Considerando o teor da resolução 1991/42 da Comissão e o próprio nome do Grupo de Trabalho, para muitos o mandato do Grupo de Trabalho deveria restringir- se apenas aos casos de detenção, entendida como a privação de liberdade que ocorre previamente a uma sentença judicial. Assim, por esta corrente, o Grupo não teria poder de ação sobre os casos de prisão decididos por ordem do judiciário. Esses argumentos levam em conta a distinção apresentada no Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sob Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, considerado um dos instrumentos legais a nortear a ação do Grupo. Neste documento aprovado pela resolução 43/173 da Assembléia Geral, estabelece-se uma clara diferença entre “prisão” e “detenção”. O primeiro termo diria respeito apenas aos casos de privação de liberdade resultantes de condenação judicial, já o segundo englobaria os casos de privação de liberdade aos quais faltasse essa característica. Vale observar, aliás, que essa distinção, consagrada no Corpo de Princípios, não se repete em outros instrumentos jurídicos relevantes que também embasam os trabalhos do Grupo. No Padrão de Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, por exemplo, o termo detençãorefere-se a pessoas já sentenciadas. O mesmo ocorre nas Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade e no Padrão de Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (“The Beijing Rules”).7 Nas próprias legislações nacionais falta uniformidade no tratamento diferenciado dos termos em questão. Alguns países, como o Brasil, chegam inclusive a empregar o termo prisão em casos em que ainda se espera julgamento. Então, diante da própria falta de consenso em torno das definições estabelecidas no Corpo de Princípios, não parece adequado vincular a ação do Grupo de Trabalho às mesmas. 7 Parágrafos 67,68 e 69 do relatório 1997/4 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 92 A Comissão de Direitos Humanos ao elaborar a resolução 1991/42 estaria mais preocupada com o termo ‘arbitrário’ do que propriamente com preciosismos acerca do real significado e alcance da palavra ‘detenção’. De fato, ao mencionar no terceiro parágrafo do preâmbulo dessa resolução o artigo 10 da Declaração Universal, que trata especificamente das garantias legais de um julgamento justo e imparcial, parece inadequado pensar que a Comissão estivesse criando um Grupo desprovido de competência para investigar casos de privação de liberdade resultantes de julgamentos viciados, em que não se respeitasse o devido processo legal e demais garantias. Pensemos, por exemplo, que corroborando aquela interpretação restritiva do mandato, o Grupo não teria competência para agir diante de casos claramente arbitrários como quando determinada pessoa é presa após condenação por um crime pelo qual já foi anteriormente julgada (e eventualmente até absolvida) ou por um ato que no momento de sua prática não estava tipificado como crime. Estes dois exemplos configuram casos de condenação judicial que nitidamente violam princípios basilares do direito como o da legalidade (nullum crime sine lege) e o do non bis in idem. Vale dizer, outrossim, que carece de sentido a aplicação de interpretações restritivas de certos termos, como detenção, que acabem por imunizar o judiciário de responsabilidade, sujeitando apenas o executivo (prisões administrativas, etc) e outros órgãos à ação do Grupo de Trabalho. De fato, pelo princípio da unidade do Estado na esfera da responsabilidade, o direito internacional visa a assegurar que todo Estado seja responsável pelos atos praticados por seus órgãos no exercício de suas funções, não deixando margem para o surgimento de paraísos de impunidade dentro do mesmo. Assim, não parece adequado o Grupo de Trabalho pautar-se por práticas de caráter seletivo capazes de excluir de responsabilidade determinado poder estatal. A própria postura da Comissão de Direitos Humanos parece corroborar uma interpretação do mandato também extensiva àqueles casos em que já houve condenação judicial. Com efeito, a reiterada aprovação dos relatórios do Grupo de DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 93 Trabalho em que se apresentavam diversas opiniões relativas a privações de liberdade pós-julgamento8, constitui forte indicativo nesse sentido. A Comissão chegou inclusive a modificar, no texto da resolução 1997/50, os termos usados para definir o mandato do Grupo de Trabalho, não mais falando em detenção. Assim, afirma no parágrafo 15 da referida resolução: “Decides to renew, for a three-year period the mandate of the Working Group, composed of five independent experts entrusted with the task of investigating cases of deprivation of liberty imposed arbitrarily” Para a identificação do caráter arbitrário da privação de liberdade existem três categorias legais a serem consideradas.9 Categoria I: Não é possível encontrar qualquer base legal que justifique a privação de liberdade. Neste grupo incluem-se os casos em que já foi cumprida a pena ou quando é aplicável algum benefício como anistia ou liberdade condicional. Categoria II: Quando a privação de liberdade resulta do exercício dos direitos e liberdades garantidos pelos artigos 7 (igualdade perante a lei, sem qualquer discriminação), 13 (liberdade de movimento e residência), 14 (liberdade para pedir asilo em outros países em casos de perseguição de caráter político), 18 (liberdade de pensamento, consciência e religião), 19 (liberdade de expressão e opinião), 20 (liberdade de reunião e associação) e 21 (direito de participação política, diretamente ou mediante escolha de representantes) da Declaração Universal de Direitos Humanos. São igualmente incluídos nessa categoria os casos de detenção resultantes do simples exercício de direitos e liberdades assegurados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos10, especificamente aqueles previstos nos artigos 12 (liberdade de movimento e residência, podendo entrar e sair livremente de seu país), 18 (liberdade de pensamento, consciência e religião), 19 (liberdade de opinião e expressão), 21 (liberdade de reunião para fins pacíficos), 22 (liberdade de associação, mesmo sob a forma de sindicatos), 25 (liberdade de participação política no governo, 8 De setembro de 1992 a setembro de 1996, 55 % das decisões adotadas pelo Grupo referiam-se a casos de prisão mediante sentença. 9 Estas categorias foram estabelecidas pelo Grupo de Trabalho em sua terceira sessão, em março de 1992, sendo confirmada anualmente nos relatórios do grupo. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 94 diretamente ou mediante o voto), 26 (igualdade perante a lei, sem qualquer discriminação) e 27 (direitos e garantias das minorias). Categoria III: Quando a não observância total ou parcial das normas relativas ao direito de um julgamento justo e imparcial, previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos (artigos 10 e 11), bem como em outros documentos internacionais relevantes, for de tal gravidade a ponto de macular a privação de liberdade em questão com os vícios da arbitrariedade. Durante a implementação de suas atividades, o Grupo de Trabalho considera, além da Declaração Universal e do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, outros instrumentos internacionais já citados tais como: o Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sob qualquer forma de Detenção ou Prisão, o Padrão de Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, as Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de sua Liberdade e o Padrão de Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (“The Beijing Rules”). A maioria dos casos de privação de liberdade investigados pelo Grupo de Trabalho resulta do exercício dos direitos à livre opinião e expressão, incidindo, então, na categoria II, já apresentada. O Grupo de Trabalho, por diversas vezes, manifestou à Comissão sua preocupação pelo fato das detenções arbitrárias serem facilitadas e agravadas pelo uso do chamado “estado de emergência” por parte dos Estados. Durante este período não são respeitadas as garantias individuais, nem mesmo o consagrado princípio da proporcionalidade entre as medidas adotadas e as infrações cometidas. As próprias ofensas ou crimes contra a segurança do Estado que justificam medidas de exceção não são claramente definidos em lei, dando margem a interpretações questionáveis que “legitimam” boa parte das arbitrariedades praticadas. A partir do alerta feito pelo Grupo de Trabalho em relação aos abusos cometidosdentro do “estado de emergência”, a Comissão de Direitos Humanos encorajou os governos: “Not to extend ‘states of emergency’ beyond what is strictly required by the situation, in accordance with the provisions of article 4 of the International Covenant on Civil and Political Rights, or to limit their effect; 10 Nesta hipótese, consideram-se apenas casos que incidem sobre países contratantes do referido Pacto. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 95 To pay special attention, during ‘states of emergency’, to the exercise of those rights that ensure protection against arbitrary detention.”11 Pelo teor do citado artigo 4º do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, o “estado de emergência” é permitido, desde que não seletivo ou discriminatório, e em circunstâncias excepcionais, sem prejuízo para certas garantias como: o direito a vida, a proibição da tortura e tratamentos cruéis ou degradantes, o princípio da legalidade penal, e a liberdade de pensamento, consciência ou religião. O Grupo defende, por exemplo, que a garantia do habeas corpus, dada sua importância no combate à detenção arbitrária, não pode ser derrogada por força do “estado de emergência”: “The Working Group considers, after three years' experience, that habeas corpus is one of the most effective means to combat the practice of arbitrary detention. As such, it should be regarded not as a mere element in the right to a fair trial but, in a country governed by the rule of law, as a personal right which cannot be derogated from even in a state of emergency.”12 Então, mesmo esse remédio de exceção colocado à disposição dos Estados não pode ser usado livre e indiscriminadamente, devendo ater-se a certos requisitos e limites. Também é latente a preocupação do Grupo de Trabalho quanto aos abusos cometidos pelos tribunais militares. Nesse sentido é de grande valia o relatório do Grupo sobre sua visita ao Peru. “The Commission on Human Rights cannot remain indifferent to the injustices committed by military courts in many countries, as this has become a universal problem of the utmost seriousness”13 Nesse mesmo relatório, o Grupo apresenta alguns critérios a serem observados pela justiça militar, quais sejam: I) Incompetência para julgar civis. II) Incompetência para julgar militares, caso entre as vítimas se incluam civis. 11 Parágrafo 3, (c) e (d) da resolução 2003/31 da Comissão de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 12 Parágrafo 74 do relatório 1994/27 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 96 III) Incompetência para julgar civis ou militares no caso de rebeliões ou outros episódios que ameacem ou arrisquem ameaçar o regime democrático. IV) Impossibilidade de aplicar a pena de morte em quaisquer circunstâncias. Vale enfatizar que situações de conflito armado, cobertas pelas Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 e por seus Protocolos Adicionais, escapam à competência do Grupo de Trabalho em questão. Pode-se dizer, então, que não há qualquer duplicação de funções do Grupo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Na verdade, muito embora o CICV também lide com a problemática dos presos, o enfoque adotado e os objetivos perseguidos são bem diferentes daqueles próprios do Grupo de Trabalho. O primeiro preocupa-se basicamente com as questões humanitárias que envolvem a prisão, já o segundo lida com o caráter legal da mesma, investigando eventuais vícios e arbitrariedades. Nos termos do Vice-Chairman do Grupo, senhor Louis Joinet: “The Working Group and ICRC did not duplicate each other’s work. They actually complemented each other, one of them dealing with the legal aspect of the problem and the other, the humanitarian aspect.”14 Finalmente, pela resolução 1997/50 da Comissão de Direitos Humanos, o Grupo de Trabalho foi especificamente convocado a devotar a máxima atenção a relatórios relativos a imigrantes ou pessoas em busca de asilo, que estejam por longo período sob custódia administrativa, sem beneficiar-se de remédios jurídicos ou administrativos eventualmente aplicáveis. Assim, em resposta à referida resolução e após consulta com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Grupo de Trabalho decidiu incluir no anexo II ao seu relatório de 2000 alguns critérios a serem considerados para determinar a arbitrariedade ou não dessas custódias, dentre os quais se destacam: a definição de um prazo, não muito longo, para a custódia; o livre acesso do pessoal da ACNUR e da CICV aos centros de custódia; o direito ao 13 Parágrafo 178 do relatório do Grupo sobre a missão ao Peru de 26 de janeiro a 6 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 14 Afirmação feita durante a 29 ª reunião da 55ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos (1999), cujo resumo está disponível em: DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 97 assessoramento de um advogado e representante consular e o acesso a remédio judicial para a autoridade competente que deverá se pronunciar acerca da legalidade ou não da medida. 4.4. Submissão e consideração de comunicações As comunicações enviadas ao grupo de trabalho deverão ser feitas pelos indivíduos interessados, seus parentes ou representantes. Aceitam-se, outrossim, comunicações transmitidas por governos, organizações intergovernamentais e não- governamentais (ver item 4.7 abaixo).15 É facultado, igualmente, ao grupo de trabalho agir por sua própria iniciativa (parágrafo 4º da resolução 1993/36) para considerar casos que possam constituir privação arbitrária da liberdade. No caso de comunicações individuais, elas não poderão ser anônimas, devendo especificar-se o nome completo e o endereço do emitente. É preciso fornecer, também, uma quantidade de informações suficientes que permitam esclarecer a identidade da pessoa detida, bem como as circunstâncias (data, local, etc) em que se deu a detenção.16 A comunicação deve apresentar, ainda, as razões dadas pelas autoridades para justificar a detenção, bem como indicar a legislação aplicável e as medidas tomadas (ou não) em relação ao caso (investigação, remédios jurídicos, etc). Por fim, devem ser arroladas as razões pelas quais se considera a detenção arbitrária.17 <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 15 Parágrafo 12 do anexo I do relatório 1998/44 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 16 Parágrafo 9 e 10 (a) do anexo I do relatório 1998/44 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 17 Parágrafo 10 (b), (c), (d) e (e) do anexo I do relatório supracitado. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset>Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 98 Vale esclarecer neste ponto, que muito embora o Grupo de Trabalho também considere a detenção à luz do ordenamento vigente no país em questão (daí a solicitação de se indicar a legislação aplicável), a opinião acerca da arbitrariedade ou não da mesma não ficará restrita ao âmbito da legalidade doméstica, considerando-se igualmente padrões internacionais. “(…)having to look into domestic legislation so as to determine whether domestic law has been respected and, if so, whether this domestic law conforms to international standards. It may thus have to consider ... whether [the practice of arbitrary detention] is not made possible as a result of laws which may be in contradiction with international standards”18 É bom enfatizar, igualmente, que diferentemente do que alguns defendem, a admissibilidade da comunicação para o Grupo de Trabalho não está sujeita ao prévio esgotamento de todos os recursos domésticos existentes para remediar a detenção tida como arbitrária. “The Working Group therefore considers that it is not within its mandate to require local remedies to be exhausted in order for a communication to be declared admissible.”19 Com vistas a assegurar a lisura de todo o procedimento e de garantir um mínimo de cooperação mútua dos atores envolvidos, as comunicações deverão ser trazidas à atenção do governo interessado, cuja resposta, por sua vez, deverá ser levada à consideração dos emitentes da comunicação para eventual realização de comentários. Esta característica do procedimento representa um alento para a objetividade do mesmo e atende a uma das recomendações para a revitalização do procedimento 1503 feitas no início dos anos 90 (“participação mais ativa dos reclamantes durante o procedimento, podendo fornecer informações adicionais e responder às negativas dos governos”).20 “(...)out of this same concern for objectivity, the rapporteurs and working groups have always used an adversarial procedure, hearing both the alleged 18 Parágrafo 10 do relatório 1992/20 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 19 Parágrafo 8 da deliberação II, adotada pelo Grupo de Trabalho em sua terceira sessão, de 23 a 27 de março de 1992. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 20 Ver item 3.4.1 do capítulo 3. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 99 victims and the State, thus making it possible for the reports to reflect each point of view”.21 O governo interessado tem um prazo de 90 dias para fazer as investigações necessárias e reunir a maior quantidade de informações possíveis com o fim de emitir uma resposta para o Grupo. Em casos excepcionais, e mediante um pedido formal justificado por parte do governo, existe a possibilidade de concessão de até mais dois meses para a emissão da resposta. Mesmo no caso de não haver qualquer resposta, pode o Grupo de Trabalho apresentar sua opinião acerca do caso, com base nas informações recebidas e obtidas. Diante das informações obtidas, alguns cursos de ação se abrem para o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias. Em primeiro lugar, caso a pessoa tenha sido posta em liberdade, por qualquer motivo que seja, deve o caso ser arquivado. Mesmo nesta hipótese, contudo, é assegurado ao Grupo o direito de emitir sua opinião acerca da arbitrariedade ou não da detenção. Em 1992, por exemplo, o Grupo de Trabalho se valeu desse direito de opinar pela arbitrariedade da detenção de pessoas já liberadas: “In view of the reported release of Abu Bakr El Amin, Sid Ahmed El Hussein and Gassim Mohammed Salih, their cases are filed. Nevertheless, the Working Group decides that their detention had an arbitrary character”.22 No caso de o Grupo concluir pela não arbitrariedade da detenção, deve esta opinião ser formalmente produzida e remetida à Comissão de Direitos Humanos. Na hipótese de necessitar de maiores informações por parte do governo ou da fonte, poderá deixar o caso em suspenso até o recebimento das mesmas, momento em que deverá exarar sua opinião. Se o Grupo, todavia, concluir pela impossibilidade de obtenção de maiores informações sobre o caso, poderá arquivá-lo provisória ou definitivamente. 21 Parágrafo 73 do relatório de 1998 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 22 Parágrafo 10 (b) da decisão nº 5/1992 (Sudão). Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 100 Finalmente, em considerando arbitrária a detenção, deve o grupo emitir opinião formal nesse sentido, bem como fazer recomendações ao governo em questão. Três semanas após a remessa das opiniões ao governo, devem as mesmas ser transmitidas à fonte. Vale esclarecer que até 1997 era comum falar-se em decisões, e não opiniões, no tocante às conclusões emitidas pelo Grupo de Trabalho. Isto, porém, dava margem a dúvidas quanto ao real mandato desse mecanismo temático. De fato, o termo decisão pode remeter a um suposto mandato jurisdicional, ausente nos trabalhos do Grupo, o que poderia, por exemplo, dificultar a apreciação de determinado caso no âmbito do Comitê de Direitos Humanos ou da Comissão Européia de Direitos Humanos, por já ter sido previamente decidido, pelo Grupo, o mérito quanto à não-arbitrariedade da detenção. Essa mudança na terminologia passou a vigorar a partir da 18ª Sessão do Grupo, em 17 de maio de 1997.23 Vale notar que, já em 1994, a American Association of Jurists chamou a atenção para esse problema em um comunicado que fez circular no âmbito da Comissão de Direitos Humanos. “In order to avoid creating unfortunate confusion, the Group should use terms of a more neutral nature, such as ‘opinions’ or ‘views’, and confine itself to ‘considering’ or ‘believing’ that a detention is or is not arbitrary.”24 O relatório anual do Grupo de Trabalho remetido à Comissão de Direitos Humanos em Genebra encarrega-se de informá-la acerca de todas as opiniões produzidas pelo mesmo. O Grupo de Trabalho tem o dever de acompanhar o “follow up” das recomendações feitas, obtendo dados dos governos acerca de medidas tomadas para adequar-se às mesmas. Com isso, a Comissão de Direitos Humanos será permanentemente informada dos progressos alcançados e, eventualmente, das dificuldades e falhas encontradas. Assim como é facultado ao Grupo o direito de realizar visitas durante a etapa de investigação da procedência ou não das alegações 23 Parágrafo 11 do relatório 1998/44 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 24 Parágrafo 15 do comunicado da ONG citada, Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> , sob o símbolo E/CN.4/1994/NGO/18. Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 101 recebidas, também lhe é permitido realizá-las a título de “acompanhamento”. Em considerando-se que a grande dificuldade dos governos está justamente em adequar- se às recomendações recebidas após uma primeira visita, as “visitasde acompanhamento” podem muito bem representar instrumentos extras de estímulo e pressão. Ainda no tocante às visitas, para muitos críticos elas eram viciadas por uma certa seletividade. Na verdade, contudo, segundo dados de 1999, quatro dos cinco continentes haviam servido de palco para as mesmas, exceção sendo feita à África25. Nesse mesmo ano, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos, solicitou-se especificamente aos países africanos a efetivação de um convite ao Grupo para a realização de uma visita no continente. Vale notar, por fim, que as opiniões emanadas do Grupo de Trabalho são passíveis de reconsideração a partir de pedidos tanto do governo quanto da fonte. Para tanto, algumas condições devem ser respeitadas, quais sejam: I. Os fatos em que se baseia o pedido são considerados inteiramente novos pelo Grupo, e, em tendo-os conhecido anteriormente, a opinião produzida seria outra. II. Os fatos não eram anteriormente conhecidos ou acessíveis às partes de onde emana o pedido de reconsideração. III. No caso de governos, o pedido de reconsideração só é permitido àqueles que respeitaram o prazo de resposta de 90 dias, ou sua prorrogação. 4.5. O procedimento de ações urgentes Este procedimento repete outros previamente incorporados a alguns grupos de trabalho, podendo e devendo ser empregado sempre que houver conhecimento de que determinada pessoa está sendo privada de sua liberdade e que a continuação dessa situação constitui um sério risco à sua saúde e mesmo à sua vida. Entre as sessões do Grupo de Trabalho, o diretor e o vice-diretor estão autorizados a transmitir estas DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 102 comunicações, pelos meios mais rápidos de que dispuserem, aos ministros das relações exteriores dos governos em questão. Mesmo em casos em que não se verifica risco para a saúde ou a vida do detido também é possível recorrer a este procedimento, desde que as circunstâncias particulares o justifiquem, como no caso de falha no cumprimento de uma ordem judicial de soltura. Vale ressaltar que estes procedimentos urgentes, dotados de um puro caráter humanitário, de nenhuma forma antecipam a opinião do Grupo de Trabalho acerca da arbitrariedade ou não da privação de liberdade. Uma vez que este mecanismo exige a soltura de determinados detentos, mesmo sem julgar acerca da arbitrariedade ou não da detenção, ele tem sido chamado na doutrina de habeas corpus internacional.26 Em 1996, por exemplo, o Grupo de Trabalho transmitiu 75 apelos urgentes a 35 governos diferentes, dentre eles os da França, Brasil e China.27 Conforme já foi afirmado, este tipo de procedimento representa um grande avanço no plano dos mecanismos extraconvencionais. Antes, as violações a determinado indivíduo não recebiam proteção especial destinada a revertê-las. No caso do procedimento 1503, por exemplo, violações individuais eram consideradas apenas para configurar o caráter sistemático das mesmas. Somente no âmbito dos mecanismos convencionais, como no caso do Protocolo Facultativo ao Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, é que se admitia o recebimento de queixas individuais a serem especificamente respondidas. 4.6. Coordenação com outros mecanismos de direitos humanos 25 Até mesmo países de grande prestígio e influência internacional como o Reino Unido foram objeto de visitas do Grupo. 26 André de Carvalho Ramos. Processo internacional de direitos humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, pp. 153 e 161. 27 Ibid., p. 161. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 103 A Comissão de Direitos Humanos, preocupada com a boa coordenação entre os diversos órgãos das Nações Unidas envolvidos com a proteção dos direitos humanos, encorajou especificamente o Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias: “to take all the necessary steps to avoid duplication with those mechanisms, in particular regarding the treatment of the communications it receives and field visits”.28 Assim, nesse contexto, sempre que o Grupo constatar que determinada alegação de violação pode ser melhor tratada no âmbito de outro grupo de trabalho ou relator especial, não tardará em remeter o caso para o referido mecanismo. No ano de 1999, por exemplo, seis alegações de detenção arbitrária foram remetidas para outros mecanismos de direitos humanos.29 Da mesma forma, em verificando que determinada alegação tanto reside nos limites de sua competência como nos de outros mecanismos temáticos, passará a considerar a possibilidade de realizarem-se ações conjuntas e coordenadas com os demais grupos ou relatores competentes. Na hipótese da comunicação endereçada ao Grupo de Trabalho versar sobre situação já tratada por outro mecanismo, será preciso verificar qual o teor do tratamento dado por este. Caso o mesmo lide com o desenvolvimento dos direitos humanos num plano mais genérico, nada impedirá o Grupo de Trabalho de preservar sua competência para o caso em questão e responder à comunicação. Contudo, caso o mecanismo já mobilizado para aquela situação considere casos individuais (como na hipótese do Comitê de Direitos Humanos), deverá o Grupo de Trabalho transmitir a alegação ao mesmo, renunciando à sua competência. Isto, é claro, desde que as pessoas e fatos envolvidos sejam os mesmos. Em 1992, por exemplo, diante de uma alegação de tortura do senhor Wilfredo Saavedra, já investigada pelo relator especial sobre tortura da CDH, o Grupo de Trabalho expressamente renunciou à sua competência: “The Special Rapporteur stated that a special commission headed by the Dean of the Medical Association ‘had found that Dr. Saavedra's wrists bore marks of having been 28 Resolução 1997/50 da CDH, parágrafo 1 (b). Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 29 Anexo I do relatório 2000/4 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 104 bound and there were contusions on his body’. Accordingly, it is not appropriate for the Working Group on Arbitrary Detention to pronounce on a matter which has already been dealt with by another organ of the Commission”30 Por fim, o Grupo não deverá realizar visitas a países para os quais a Comissão já nomeou grupos ou relatores geográficos, ou qualquer outro mecanismo específico para aquele país, salvo as hipóteses em que o convite para a visita parta dos próprios responsáveis pelos mecanismos. 4.7. Cooperação com as Organizações Não-Governamentais Já na resolução 1991/42 da Comissão de Direitos Humanos, ficava o Grupo de Trabalho convocado a cooperar com as ONG’s. Estas teriam papel fundamental, contribuindo com suas informações, opiniões e observações para aperfeiçoar e facilitar o trabalho do Grupo, podendo, inclusive, fazer sugestões quanto ao método de trabalho a ser adotado. “During the period covered by the present report, non-governmental organizations continued their fruitful cooperation with the Working Group by making several useful suggestions, some of which were taken into account by the Group when it revised its methods of work”31 É admitido às ONG’s, igualmente, provocar aação do Grupo mediante comunicações acerca de detenções de caráter supostamente arbitrário. No período de fevereiro a dezembro de 1993, por exemplo, 7 comunicações relativas a 65 casos individuais foram emanadas de ONG’s locais ou regionais e 32 comunicações relativas a 110 casos individuais foram transmitidas por ONG’s internacionais.32 30 Parágrafo 6 (h) da decisão nº7/1992 (Peru) do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 31 Parágrafo 11 do Relatório 1993/24 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 32 Parágrafo 12 do Relatório 1994/27 do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 105 4.8. Contexto de sua criação – Pós-Guerra Fria Segundo Jack Donnelly: “(...) not only do human rights have firm place in international relations, in sharp contrast to just a half century ago, but their place is more prominent than at any other time in history”33 O final da Guerra Fria e o triunfo do capitalismo deram margem a uma onda de otimismo exagerado acerca da supremacia do Ocidente, consagrando-se o Estado liberal e democrático como a direção para onde todos tenderiam inapelavelmente a orientar-se. Em pouco tempo, contudo, é sabido que esse triunfalismo ocidental cedeu o lugar a um período de incertezas caracterizado, por exemplo, por pressões migratórias dos países periféricos e pelo avanço do fundamentalismo religioso, da xenofobia e de práticas neofascistas na Europa, bem como de movimentos separatistas e segregacionistas em diversas partes do mundo. Percebia-se, claramente, que a História ainda estava longe de seu fim. No tocante aos direitos humanos, o simples avanço da democracia e da “ética do mercado” estão longe de representar, por si só, um maior respeito aos mesmos. De fato, o inegável avanço de regimes eleitos democraticamente não foi acompanhado por um progresso equivalente na proteção e observância dos direitos humanos. Na verdade, a democracia eleitoral, representada pela garantia da participação da maioria pelo voto (“governo pelo povo”), em nada assegura o estabelecimento de um regime promotor dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Por vezes, o governo da maioria, engajando-se em práticas populistas e demagógicas, usará seu poder para combater minorias, eventualmente inimigas, violando direitos individuais consagrados. Os Estados Unidos, por exemplo, mesmo quando praticantes de uma política de discriminação racial, constituíam inegavelmente uma democracia (eleitoral). Os direitos humanos são na realidade minority rights, garantidos a toda e qualquer pessoa, individualmente considerada, e constituem, em essência, os limites a serem 33 Jack Donnelly, 1998, p. 17. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 106 observados pelos governos democráticos. “Human rights empower autonomous individual and seek to assure that personal and societal goals are pursued within the confines of guaranteeing every individual certain minimum goods, services, and opportunities.”34 O que se deve buscar, então, é a chamada democracia liberal (“governo para o povo”), esta, sim, consoante com os direitos humanos internacionais, preocupada não apenas com a vontade da maioria, mas também com a realização dos direitos dos cidadãos. “The distinction between electoral and liberal democracy concerns not who rules but how (within what limits).”35 O mercado, por sua vez, não conseguiu garantir a estabilidade e prosperidade esperadas nas democracias capitalistas desenvolvidas, resultando em taxas de desemprego assustadoras. Para os países em desenvolvimento, a ética do mercado foi um agravante das desigualdades já existentes, principalmente pela postulação de medidas de austeridade econômica destinadas a cortar gastos em áreas sociais. Fica latente o descompasso entre as políticas neoliberais e a garantias derivadas dos direitos econômicos e sociais internacionalmente reconhecidos. Assim, percebe-se que a simples afirmação da democracia eleitoral e do capitalismo, como resultantes do fim da Guerra Fria, em muito pouco contribuíram para um avanço efetivo na proteção e respeito aos direitos humanos. É certo, contudo, que o fim da disputa ideológica entre Leste e Oeste criou um ambiente mais propício ao diálogo e à consolidação de certas concepções extremamente valiosas para o progresso dos direitos humanos. Para Ruggie deu-se, por exemplo, um novo impulso ao multilateralismo: “multilateral norms and institutions (…) appear to be playing a significant role in the management of a broad array of regional and global changes in the world system today”36 Sem dúvida, o fim da Guerra Fria favoreceu a afirmação dos direitos humanos como tema global. Antes, em meio a um mundo bipolar, caracterizado por uma confrontação ideológica entre comunismo e capitalismo, era mais fácil escamotear as 34 Ibid., pp. 154-155. 35 Ibid., p. 158. 36 John Ruggie. Multilateralism: The Anatomy of an Institution. In:__ Multilateralism Matters: The Theory and Praxis of an Institutional Form. Columbia University Press, 1993, p. 03. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 107 violações internacionalmente detectadas com argumentos de que as denúncias, originadas do lado adversário, buscavam na verdade a desmoralização do país na comunidade internacional. Hoje, livres das rixas ideológicas, há uma maior transparência para se verificar a gravidade da situação dos direitos humanos no mundo, com reflexos não somente para a paz social interna dos países, mas também, muitas vezes, para a própria estabilidade internacional. Nesse novo ambiente, fica latente a maior abertura e participação dos Estados na proteção aos direitos humanos. Os Estados Unidos, por exemplo, que sempre se mostraram reticentes na adesão a tratados internacionais que pudessem limitar sua liberdade de ação, decidiram, em 1992, finalmente ratificar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966). Em 1994, passaram a fazer parte das Convenções Sobre a Tortura (1984) e Direitos da Mulher (1979). As violações maciças de direitos humanos passaram a ter reconhecidas repercussões transfronteiriças, na forma, por exemplo, de migrações em massa capazes de conturbar a estabilidade econômica e social nos países de acolhida. Paralelamente, aprofundaram-se as crenças numa relação estreita entre violações de direitos humanos e guerra. A violação aberta e reiterada dos direitos individuais contra os próprios cidadãos configuraria uma predisposição para a agressão contra outras sociedades. A contrariu sensu, segundo o conceito de paz democrática, duas nações democráticas não lutariam entre si (“libertarian states have no violence between themselves”).37 Vale esclarecer que para R.J. Rummel, a democracia pressupõe não apenas a realização de eleições, com vários partidos em disputa e mediante sufrágio secreto e universal, mas também o respeito aos direitos humanos (liberdades civis e direitos políticos).38 Especificamente no tocante aos direitos humanos, afirma Rummel: “There is also a struggle for human rights. It helps the struggle not only to justify human rights fortheir own sake, but to point out their importance for global peace and security”.39 37 R. J. Rummel. War, Power and Peace v.4. In:__Understanding Conflict and War. Beverly Hills, California : Sage Publications, 1979. ___. Libertarianism and International Violence. The Journal of Conflict Resolution, v.27, March 1983, p. 27-71. 38 Disponível em: <http://www.peacemagazine.org/9905/rummel.htm> Acesso em Janeiro de 2004. 39 Ibid. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 108 Nesse mesmo sentido, são palavras de J. A. Lindgren Alves: “A afirmação dos direitos humanos como tema internacional prioritário fundamenta-se, do ponto de vista estratégico, pela percepção de que violações maciças podem levar à guerra”.40 Além desses fatores transnacionais, consolida-se entre cidadãos, ativistas e minorias a convicção de que somente a proteção efetiva dos direitos humanos confere real legitimidade aos governantes. Na falta do clima de insegurança permanente forjado durante a Guerra Fria, as populações não estavam mais dispostas a tolerar abusos em nome da segurança nacional, ainda que praticados fora de seu território. Nesse novo contexto, a ONU decide realizar duas conferências mundiais para tratar justamente dos temas que passaram a ter uma grande projeção internacional no pós-Guerra Fria, o meio ambiente e os direitos humanos. Assim, do dia 14 a 25 de junho de 1993, realiza-se em Viena a 2ª Conferência Mundial Sobre Direitos Humanos. A questão da universalidade foi objeto de grande debate no âmbito da conferência, sendo finalmente consagrada no seu artigo 1º: “A natureza universal de tais direitos e liberdades não admite dúvidas”.41 As peculiaridades de cada cultura foram tratadas adequadamente no artigo 5º, onde se afirma que as particularidades históricas, culturais e religiosas devem ser levadas em consideração, sem que isso, contudo, isente os Estados de promover e proteger ‘todos’ os direitos humanos. Desta forma, o relativismo cultural foi definitivamente colocado em xeque como meio legítimo para se escapar à observância dos direitos humanos. Outro grande avanço conceitual no plano da conferência foi o reconhecimento do caráter indivisível e interdependente dos direitos humanos (artigo 5º). Não seria mais aceitável, então, limitar os direitos civis e políticos em nome de um suposto desenvolvimento econômico, prática adotada durante a Guerra Fria. A própria divisão dos direitos humanos em gerações passa a ser questionada por certas autoridades no assunto, como a ex-Alta Comissária Mary Robinson, por fomentar uma visão atomizada do tema, distante da realidade. (ver capítulo 2). 40 J. A Lindgren Alves, op. cit., p. 3. 41 Ibid., p. 27. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 109 Também merece destaque o reconhecimento da legitimidade da preocupação internacional com a promoção e a proteção aos direitos humanos, consagrada no artigo 4º. Confirmava-se, assim, o entendimento de que os direitos humanos extrapolam o domínio reservado dos Estados, limitando sobremaneira o recurso ao princípio da soberania como forma de encobrir violações. A Declaração de Viena registrou, outrossim, que a observância dos direitos humanos contribui para a estabilidade e para o bem-estar necessários às relações pacíficas e amistosas entre as nações, concorrendo para a paz e segurança internacionais (artigo 6º). Em suma, percebe-se que o fim da Guerra Fria abriu caminho para a consagração de certos conceitos, até então alvos de críticas e contestações, extremamente necessários para a definitiva afirmação dos direitos humanos no plano internacional. A tão cara legitimidade dos governos, por exemplo, passou a englobar, nesse novo período, uma postura mais respeitosa para com os direitos humanos, e uma colaboração mais intensa com os órgãos encarregados de sua promoção. Atitudes de desprezo pelos instrumentos legais internacionais de direitos humanos, bem como o boicote ostensivo a grupos de trabalho e relatores destinados a investigar violações e promover o respeito aos mesmos, comprometeriam a legitimação dos Estados não apenas perante a comunidade internacional, mas também em face de sua própria população. Ademais, o reconhecimento da importância do tema para a governabilidade do sistema mundial, e o conseqüente tratamento global do mesmo, reafirmaram a disposição dos Estados em abandonar a “cidadela da soberania” e cooperar mais ativamente com órgãos e mecanismos de proteção. Esta tendência pode ser observada pela multiplicação no número de procedimentos temáticos ocorridos no período. “No Mundo pós-Guerra Fria, com a crescente afirmação dos direitos humanos como tema global e, conseqüentemente, a multiplicação de iniciativas para o maior controle internacional de tais direitos, o número de relatores temáticos da CDH vem aumentando aceleradamente”42 Assim, considerando o contexto de criação do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias, pode-se dizer que ele foi beneficiado por certos avanços 42 Ibid., p. 97. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 110 conceituais advindos do fim da Guerra Fria e consagrados, em boa medida, pela Conferência Mundial de Viena em 1993. No âmbito da teoria cognitiva fraca exposta no capítulo anterior, é possível entender como os Estados, diante de novos conceitos e idéias, acabaram por modificar seu comportamento e mesmo seus interesses. Assim, se o respeito aos direitos humanos passou a ser uma precondição para a legitimação dos governos e se esses direitos passaram a ter reconhecida influência na estabilidade e paz internacionais, é natural que os Estados cooperem crescentemente com os mecanismos de direitos humanos. Se nos anos 70 era comum os Estados negarem-se a aceitar visitas dos relatores especiais (ver capítulo 3, item 3.4.2.1.), nos anos 90 é latente a maior disposição dos países em responder às solicitações dos grupos de trabalho temáticos.43 Nesse sentido, o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias representaria um importante avanço. Considerando o grande número de Estados que vem aceitando ações deste mecanismo, verifica-se um fortalecimento do instituto da “responsabilidade costumeira internacional” do Estado por violação de direitos humanos. “A Comissão de Direitos Humanos tem solicitado aos Estados que adotem as medidas urgentes e finais requeridas pelo Grupo de Detenção Arbitrária, com base em princípios gerais. Tudo isso é solicitado, mas como é obedecido, fortalece, por via costumeira, a teoria geral da responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos”44. Cumpre lembrar que as normas de proteção aos direitos humanos têm seu caráter cogente internacionalmente reconhecido quando oriundas das três fontes do Direito Internacional, quais sejam: os tratados internacionais, o costume e os princípios gerais de direito. 4.9. Análise empírica da atuação do Grupo de Trabalho 43 André de Carvalho Ramos, op. cit., p. 166. J. A. Lindgren Alves, op. cit., p. 20. 44 André de Carvalho Ramos, loc. cit. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 111 Neste item foram selecionados alguns exemplos de modo a ilustrar o comportamento do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Num primeiro momento, foram escolhidos casos considerados no primeiro ano de atuação, sob o tópico as “primeiras opiniões”, permitindo observar, por um lado, que desdeo início o Grupo se preocupou em observar as distintas orientações relativas aos limites de seu mandato e ao método de trabalho (apresentados respectivamente nos itens 4.3. e 4.4. acima) e, por outro, que houve desde então uma evolução em alguns entendimentos do Grupo, como fica explícito na primeira opinião apresentada. Num segundo momento, sob o tópico “o caráter não seletivo das opiniões”, buscou-se apresentar, também a título de ilustração, algumas opiniões tomadas em face de países que normalmente passam incólumes pelos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos, onde se opinou tanto pela arbitrariedade quanto pela não-arbitrariedade, dependendo das informações colhidas em cada caso e considerando basicamente critérios técnicos. 4.9.1. As primeiras opiniões Tendo sido criado em 1991, o Grupo de Trabalho teve suas primeiras opiniões (decisões) apresentadas no relatório 1993/24 enviado à Comissão de Direitos Humanos. No período de setembro de 1991 a dezembro de 1992, o Grupo de Trabalho analisou um total de 382 casos, opinando pela arbitrariedade da detenção em 91 deles. Em um caso o Grupo não vislumbrou qualquer ilegalidade ou arbitrariedade, em 126 decidiu pelo arquivamento, seja por falta de informações ou por terem sido postas em liberdade as pessoas envolvidas, e em 162 decidiu manter os casos sob pendência. 45 Segundo reconhecido pelo próprio Grupo em seu relatório, a cooperação dos Estados envolvidos, na forma de resposta às comunicações feitas prestando informações e esclarecimentos, em pouco superou a faixa dos 50%.46 Vale esclarecer 45 Anexo III do relatório 1993/24. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 46 Parágrafo 37 do relatório 1993/24. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 112 a este respeito, que conforme afirmado pelo próprio grupo no relatório 1994/27 (parágrafo 55 (b))47, a não-cooperação do Estado não leva a qualquer presunção de veracidade das informações alegadas na comunicação, sendo a recíproca igualmente verdadeira. 4.9.1.1. Decisão 7/1992 (Peru) Um primeiro caso diz respeito à detenção de Wilfredo Estanislao Saavedra Marrero, ativista de direitos humanos, preso em 19 de setembro de 1989 em Catamarca, Peru. Segundo a comunicação, Wilfredo fora preso e sentenciado a 10 anos de prisão por uma corte militar, após ter confessado, sob tortura, seu envolvimento com o Movimento Revolucionário Tupac Amaru.48 Ainda nos termos da comunicação, o interessado não teria tido acesso a defesa até decorridos 30 dias de sua detenção. Foi alegada a violação dos artigos 9, 10, 11 e 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos e 9, 14 e 19 do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, do qual o Peru é parte. No caso em tela, foi reconhecida a cooperação do governo do Peru com o Grupo, embora a resposta à comunicação tenha sido feita após o prazo de 90 dias. Nesta resposta o governo indica que a Suprema Corte do país negou o recurso do interessado quanto à incompetência do juízo militar que o sentenciou. O Grupo considerou que muito embora a prisão efetuada pela polícia tenha ocorrido sem um mandado inicial que a justificasse, ela foi confirmada e legitimada pela corte assim que o interessado foi levado a julgamento, não havendo, portanto, indicativos de arbitrariedade na detenção. No tocante à alegação de tortura, o grupo declinou de sua competência, por já ter sido o caso analisado pelo relator especial sobre tortura da CDH (ver item 4.6. acima). 47 Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 48 Decisão 7/1992. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 113 Em relação à competência, o Grupo observa que na lei doméstica está prevista a atuação de um tribunal militar para julgar os crimes pelos quais o interessado é acusado, além de ter sido a legitimidade do mesmo apreciada e confirmada pela Suprema Corte do País. Vale enfatizar a esse respeito, que em resposta à opinião emitida sobre o caso Wilfredo Saavedra, a American Association of Jurists, gozando de caráter consultivo na 50ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, fez circular documento em que criticava o Grupo por ater-se meramente a critérios de legalidade doméstica para legitimar sentença proferida por corte militar em relação a pessoa civil. “It fails to consider whether Saavedra Marreros was tried by an independent, impartial court in the absence of any arbitrariness, and whether Peruvian anti-terrorist legislation, in empowering the military courts to try civil offences, does not constitute a dangerous source of arbitrariness.” 49 A citada ONG chega a afirmar que as cortes militares seriam próprias para julgar exclusivamente crimes e ofensas contra a disciplina militar. Em todos os demais casos, em nome da imparcialidade e independência exigidas para uma boa administração da justiça, prevaleceria a competência dos tribunais ordinários. Confirmando a grande utilidade das ONG’s na definição dos métodos de trabalho do Grupo (ver item 4.7. acima), opiniões como a da American Association of Jurists foram determinantes para ensejar uma sensível mudança, ocorrida nos últimos anos, no entendimento do Grupo sobre a legitimidade das cortes militares. De fato, no relatório do Grupo de Trabalho sobre a visita ao próprio Peru em 1998, ficou consagrado, no item I do parágrafo 178, a impossibilidade de civis serem julgados por cortes militares (ver item 4.3. acima). Este novo entendimento seria suficiente para ensejar uma mudança na apreciação do caso pelo Grupo, que, diante de sentença proferida por Corte Militar contra civil, certamente opinaria pela arbitrariedade da detenção. Por fim, o Grupo diz não ter ficado esclarecido na comunicação em que medida teriam sido violadas as garantias de liberdade de opinião e expressão consagradas na Declaração Universal e no Pacto Internacional. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 114 Assim, o Grupo de Trabalho decidiu-se finalmente pela não-arbitrariedade da detenção imposta ao senhor Wilfredo Saavedra. 4.9.1.2. Decisão 14/1992 (Cuba) Outro caso incluído no relatório de 1993 do Grupo diz respeito à prisão de Agustín Figueredo, em Cuba.50 A comunicação encaminhada ao Grupo limitou-se a informar que o interessado estava detido na prisão Las Mangas, Bayamo. Foi alegada a violação das garantias previstas nos artigos 9.10,11 e 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos e 9,14 e 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O Grupo reconheceu a cooperação do governo cubano, que respondeu dentro do prazo de 90 dias. Houve também menção às informações fornecidas pela Missão Permanente de Cuba junto ao escritório das Nações Unidas em Genebra. O governo esclareceu que o interessado está preso, cumprindo sentença emanada da Corte Provincial Popular de Santiago de Cuba, em resposta à prática de diversas ofensas de “propaganda inimiga”, sem, no entanto, indicar o teor das mesmas. Sem poder contar com provas convincentes que confirmem a alegação de arbitrariedade e sem conhecer os atos sobre os quais pesam as acusações que levaram à condenação, o Grupo reconhece não poder emitir opiniões conclusivas. Assim, em conformidadecom suas próprias diretrizes de trabalho, o Grupo decidiu-se pelo arquivamento do caso em tela. “if it does not have enough information to take a decision, the case remains pending for further investigation and, if the Working Group considers that it does not have enough information to warrant keeping the case pending, the case is filed without further action”.51 Este caso demonstra a afinidade da atuação do Grupo com suas diretrizes (ver item 4.4. acima), pois, uma vez confrontado com uma comunicação pouco 49 Parágrafo 6º do documento E/CN.4/1994/NGO/18 da American Association of Jurists. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. 50 Decisão 14/1992. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 115 esclarecedora e diante da falta de informações e dados concretos, optou-se pelo arquivamento, evitando-se a produção de uma opinião injusta. 4.9.1.3. Decisão 1/1992 (Irã) Um último exemplo diz respeito à atuação do Grupo em face das alegações de arbitrariedade nas detenções de Ali Ardalan, Mohammed Tavassoli Hojati, Hashem Sabbaghian, Mezameddin Mohaved, Abdol Fazl Mir Shams Shahshahani, Dr. Habidollah Davaran, Abdoladi Bazargan, Khosrow Mansourian, Akbar Zaninehbaf.52 No presente caso, o Grupo mostrou sua preocupação diante da falta de cooperação do governo iraniano, que não apresentou qualquer resposta dentro do prazo de 90 dias. Segundo alegado na comunicação, os interessados teriam ficado presos, sem condenação, por aproximadamente um ano e, uma vez julgados, a condenação teria se embasado exclusivamente nas opiniões e críticas apresentadas numa carta aberta contra o governo. Diante dos fatos, o Grupo não entende como a opinião dos interessados pode ter ameaçado a segurança nacional ou a ordem pública. Afirma, então, que a detenção e a manutenção da mesma, em face da simples manifestação de opiniões, contrariam o teor dos artigos 19 (liberdade de opinião e expressão) da Declaração Universal e do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, de que o Irã é parte. Vale lembrar posição do Grupo, já apresentada anteriormente, no sentido de que a livre manifestação de opiniões constitui a maior causa de privações de liberdade de caráter arbitrário. Por fim, o fato de terem permanecido presos por um ano, sem conhecimento das acusações e sem julgamento, a falta de acesso a defesa e a condenação por uma Corte Revolucionária, fugindo às determinações de um julgamento público e imparcial, 51 Parágrafo 6(i) da decisão 14/1992 (Cuba) do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Ibid. 52 Decisão 1/1992 (Irã). Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 116 configuram, igualmente, clara violação das garantias previstas nos artigos 9, 10 e 11 da Declaração Universal e 9 e 14 do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos. Assim, o Grupo não teve dúvidas em declarar arbitrária a detenção dos interessados e convocar o governo do Irã “to take the necessary steps to remedy the situation in order to bring it into conformity with the norms and principles incorporated in the Universal Declaration of Human Rights and in the International Covenant on Civil and Political Rights”53 Este exemplo serve para ilustrar a preocupação do Grupo tanto com os fatos que ensejam a detenção, quanto com o modo como a mesma é feita. Em sabendo ser a manifestação de opiniões contrárias ao governo a causa da detenção, o Grupo prontamente inclui a mesma na categoria II (apresentada no item 4.3. acima), considerando-a arbitrária. Em seguida, atendo-se a questões procedimentais de como foi feita, o Grupo reconhece a violação de diversas garantias como o direito a defesa e a um julgamento justo e imparcial, reforçando o caráter arbitrário da detenção (incidindo agora sobre a categoria III, já apresentada). Nesse primeiro ano de trabalho, vale notar que não foi registrada qualquer visita do Grupo a países com o fim de investigar os casos submetidos a apreciação, mas enfatizou-se no relatório 1993/24 a intenção de fazê-lo futuramente. Justificou-se tal intenção como forma de se aprofundar a cooperação dos governos interessados, que deveriam enxergar as visitas como uma oportunidade para apresentar seus pontos de vista em face da realidade existente e não como uma agressão à sua soberania. A própria Comissão de Direitos Humanos, na resolução 1993/36, expressamente convoca os governos a estenderem convites ao Grupo de Trabalho para a realização de missões in situ: “Encourages Governments to consider inviting the Working Group to their countries so as to enable the Group to discharge its protection mandate even more effectively and also to make concrete recommendations concerning the promotion of human rights, in the spirit of the advisory or technical assistance services, that may be of help to the countries concerned”54 53 Parágrafo 12 da decisão 1/1992 (Irã) do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias. Ibid. 54 Parágrafo 11 da resolução 1993/36 da Comissão de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 117 4.9.2. O caráter não-seletivo das opiniões Uma das grandes contribuições do Grupo de Trabalho Sobre Detenções Arbitrárias diz respeito ao fato de alcançar países influentes na comunidade internacional, convocando-os a prestar informações acerca de alegações, invariavelmente constrangedoras, de violação de direitos humanos. Assim, fica caracterizado um notável avanço nos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos, freqüentemente acusados de seletividade. De modo a ilustrar esse caráter não seletivo, cumpre analisar algumas opiniões adotadas pelo Grupo em relação a Estados Unidos, Rússia, Espanha e Reino Unido, onde pode se perceber o emprego de critérios técnicos de análise, optando-se tanto pela arbitrariedade quanto pela não arbitrariedade, com base simplesmente nas informações recebidas e colhidas e não em pressões eventualmente sofridas. 4.9.2.1. Opinião 6/1997 (Estados Unidos)55 Em face de comunicação relativa à detenção de Felix Gómez, Angel Benito e Cándido Rodriguez Sanchez, o Grupo lamentou, em primeiro lugar, a falta de resposta dos Estados Unidos dentro do prazo de 90 dias. Foi alegado pelos emitentes da notificação que os três interessados estavam presos há mais de dez anos, sem terem praticado qualquer crime, pelo simples fato de serem cidadãos cubanos. O Grupo, diante do silêncio do governo americano e baseado nas informações colhidas, entendeu que os interessados estavam sendo mantidos presos, sem terem sido julgados, nem mesmo notificados de suas acusações, contrariando-se claramente as disposições dos artigos 9 e 10 da Declaração Universal e 9 e 14 do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, do qual os Estados Unidos é parte. 55 Disponível em: <http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/Documents?OpenFrameset> Acesso em: Janeiro de 2004. DBD PUC-Rio -Certificação Digital Nº 0210271/CA 118 Assim, não restou outra opção ao Grupo a não ser opinar pela arbitrariedade da detenção dos interessados, convocando os Estados Unidos a tomarem as medidas necessárias de modo a remediar e reverter a situação. Neste exemplo, não podendo contar com esclarecimentos ou justificativas apresentados pelo governo americano, o Grupo analisou dados e informações contidos na comunicação, que, uma vez considerados válidos e suficientemente esclarecedores da violação de garantias relativas a um julgamento justo e imparcial, terminaram por ensejar opinião pela arbitrariedade da detenção. Perceba-se que o Grupo agiu conforme as orientações previstas no seu mandato, independentemente do peso do país que estava sendo analisado, o que nos permite identificar elementos de objetividade e imparcialidade tão caros a seu modo de agir. (ver item 4.2. acima). 4.9.2.2. Opinião 9/1999(Rússia)56 Neste caso, o Grupo foi informado da detenção de Grigorii Pasko, comandante da marinha russa e colaborador com meios de comunicação como o jornal da Frota Russa no Pacífico, o jornal japonês Asahi e a rede de televisão japonesa NHK. Segundo constante da comunicação, o interessado alertou, por diversos anos, acerca do péssimo estado de conservação de vários submarinos nucleares russos e do risco que isso representava para o meio-ambiente. Teria denunciado, outrossim, a prática comum de despejar-se o lixo nuclear em águas do pacífico. Diante desses fatos, o militar foi preso e acusado dos crimes de revelação de segredos de Estado e espionagem, com uma pena máxima prevista de 20 anos. O Grupo lamentou a ausência de resposta do governo russo no prazo legal de 90 dias. O julgamento, iniciado no dia 21 de janeiro de 1999, foi realizado numa corte militar da base naval de Vladivostok. Poucos dias após seu início, dois advogados do interessado foram proibidos de atuar, acusados de obstruir o trabalho dos juízes e de passar informações sigilosas à imprensa. Considerando os fatos e as informações recebidas, o Grupo observou que o interessado limitou-se a exercer sua liberdade de opinião, criticando ações danosas ao 56 Ibid. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 119 meio-ambiente, tema que não respeita fronteiras e afeta a toda a humanidade. Estaria, então, coberto pelas garantias dos artigos 19 da Declaração Universal e do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos, de que a Rússia é parte. Além disso, a própria legislação russa, no artigo 7º da Lei Federal Sobre Segredos de Estado, reconhece que informações acerca de condições ambientais, emergências ou desastres que representem risco para a humanidade escapam inexoravelmente à categoria de “segredo de Estado”. No tocante aos procedimentos judiciais aplicados, o Grupo questionou a imparcialidade do tribunal da base naval de Vladivostok, tendo sido esta o principal alvo das críticas feitas pelo interessado. Censurou-se, ademais, a utilização de meios ilícitos de prova (grampos telefônicos) e o impedimento imposto aos advogados do acusado. A partir desses fatos, conclui-se pela violação das garantias constantes dos artigos 9 e 10 da Declaração Universal e 9 e 14 do Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos. Em face do exposto, o Grupo opinou pela arbitrariedade da detenção do interessado e intimou o governo russo a remediar e reverter a situação. Mais uma vez, no caso em tela, o Grupo não pôde contar com as informações do governo, e ateve-se aos dados e indicações presentes na comunicação. No entanto, considerando-os suficientemente legítimos e esclarecedores o Grupo não viu necessidade de manter a questão pendente por mais informações, identificando tanto irregularidades procedimentais quanto violações de garantias relativas à liberdade de expressão e opinião. Assim como no caso anterior, a importância do país sob análise não teve maiores influências no comportamento e no resultado da deliberação do Grupo, servindo de mais um indicativo da objetividade e imparcialidade dos trabalhos do mesmo. 4.9.2.3. Opinião 26/1999 (Espanha)57 O Grupo de Trabalho recebeu comunicação acerca da detenção de Mikel Egibar Mitxelena, ocorrida no dia 10 de Março de 1999, em sua residência, e efetuada na 57 Ibid. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 120 presença de sua esposa e filho. Foi alegado o caráter arbitrário da detenção com base em cinco elementos, quais sejam: a) o interessado teria sido mantido detido por cinco dias em custódia policial e por mais três dias em custódia judicial, sem a assistência de um advogado livremente escolhido; b) a extensão da custódia policial teria sido feita por juiz competente, mas sem maiores justificativas; c) por longos oito dias o interessado teria sido mantido incomunicável; d) o interessado teria sido vítima de maus tratos enquanto detido; e) boa parte dos procedimentos teria se desenrolado em segredo. O Grupo reconheceu com satisfação a cooperação e as informações prestadas pelo governo espanhol, que se limitou a negar apenas a suposta prática de tortura. O Grupo observou que a detenção do interessado no dia 10 de Março realizada pela Guarda Civil Espanhola, sob acusação de associação com facção terrorista, foi efetuada sob os auspícios de ordem judicial. A extensão da custódia policial, legalmente de no máximo 72 horas, por um período adicional de 48 horas, também foi ordenada por autoridade judicial competente. Vale notar a esse respeito, que o artigo 9º parágrafo 3º do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos recomenda a rápida condução do detento perante autoridade judicial, o que parece ser atendido pelo prazo máximo de 72 horas consagrado na lei espanhola. Ao Grupo não pareceu que a extensão por mais 48 horas configure violação do referido dispositivo, sempre que necessário para o bom andamento e conclusão das investigações, e desde que seja garantido um acompanhamento médico ao detido (para evitar torturas, por exemplo), o que foi feito no caso em questão. No tocante ao caráter incomunicável do detento alegado na comunicação, o Grupo notou que o mesmo derivou também de ordem judicial e se justifica, mesmo à luz do ordenamento internacional, em casos de crimes sérios, como terrorismo. O Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sob Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, por exemplo, prevê nos princípios 15, 16 e 18 parágrafo 3º esse tipo de detenção desde que haja: “exceptional needs of the investigation”, “exceptional circumstances, to be specified by law or lawful regulations, when it is considered indispensable by a judicial or other authority in order to maintain security and good order”. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA 121 No que concerne a livre escolha de um advogado, o Grupo entendeu que o interessado não o requereu durante os interrogatórios policiais, tendo aceitado aquele designado de ofício. Posteriormente, tal direito não apenas lhe foi assegurado, como também foi exercido. Por fim, o Grupo não vislumbrou quaisquer irregularidades no caráter secreto dos procedimentos efetuados durante a fase inquisitória, entendendo ser isso uma forma de garantia presente em vários ordenamentos. Além do mais, como durante o julgamento a defesa teria acesso a todas a provas produzidas, mesmo durante as investigações e interrogatórios, podendo impugná-las sempre que necessário, não haveria a negação dos direitos e garantias de defesa existentes. Então, com base nos
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