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A Imperfeicao em Charles Bukowski

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Universidade de São Paulo 
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas 
 
 
 
 
 
A Imperfeição em Charles Bukowski 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Orientador: Prof. Dr. Antonio Vicente Seraphim Pietroforte 
Orientando: Fabiano Garcia Baltazar da Silva Alonso 
 
 
 
 
 
2006 
 
Relatório Final de Iniciação 
Científica do Departamento de 
Lingüística 
2 
 
Índice 
 
I. Introdução..........................................................................................................................3 
 
II. Capítulo Um: Semiótica, Literatura e Estética...................................................................6 
 Uma breve análise da teoria semiótica.........................................................................7 
 Função Poética............................................................................................................15 
 Semi-Simbolismo.......................................................................................................26 
 Imperfeição e Apreensão Estética..............................................................................33 
 
III. Capítulo Dois: A obra de Charles Bukowski...................................................................40 
 Vida e Obra.................................................................................................................41 
Bukowski e o Cânone.................................................................................................45 
 
IV. Capítulo Três: A Imperfeição em Charles Bukowski......................................................51 
 
 
Bibliografia.............................................................................................................................66 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
Introdução 
 
Esta pesquisa ocupa-se da verificação do conceito greimasiano de imperfeição
1
, 
investigando se a recorrência da sistematização do modelo ocorre, na medida em que é 
aplicado à obra poética do escritor Charles Bukowski. O que significa não apenas observá-lo 
pontualmente, mas, antes, numa perspectiva que tenta situar o seu alcance junto à teoria 
semiótica. 
Nesse sentido, nossa proposta tem o intuito de tentar delimitar a contribuição da 
experiência estética em sua integração ao projeto semiótico. Para tanto, escolhemos como 
ponto de partida, compreender os fatores literários a partir do ponto de vista da ciência 
lingüística. Dessa maneira acreditamos que é possível legitimar a investigação, esboçando 
pensamentos e reflexões críticas com base em fundamentações teóricas e não de modo 
empírico ou fenomenológico. 
Com isso, trataremos de não desvincular a literatura do estudo lingüístico, uma vez 
que esta é a arte da linguagem, ou seja, aquela que se expressa pela palavra. Em última 
instância, é a Literatura a responsável por esgotar a língua em todas as suas possibilidades, 
permitindo criarmos novas construções de sentido tanto na maneira de pensar e sentir, como 
no modo de compreender a formação histórico-social de uma determinada época. 
Portanto, este trabalho é resultado de uma escolha metodológica pautada na teoria 
semiótica. Sobretudo, pelo reconhecimento do seu caráter científico, a partir das pesquisas e 
análises de A. J. Greimas, fundador do modelo que procura sistematizar a construção do 
sentido. 
 Assim, apoiado na obra de Saussure e Hjmeslev, e mais tarde em V. Propp, Greimas 
escreve Sèmantique Structurale
2
, onde descreve a teoria narrativa por meio de uma 
abordagem sintáxica que organiza e ao mesmo tempo constrói o sentido do texto. Em outras 
palavras, o objeto de estudo da semiótica greimasiana é fundamentalmente a significação e o 
texto. Devendo-se tomar este último não somente em seu aspecto escrito ou falado, mas 
também, por exemplo, na forma visual (fotografia), auditiva (música), plástica (escultura) e 
outros. 
 
 
1
 GREIMAS, A. J. Da imperfeição. São Paulo, Hacker, 2002 
2
 ________. Sémantique structurale. Paris: Larousse, 1966. 
4 
 
Desse modo, no primeiro capítulo apresentaremos nossas reflexões sobre semiótica, 
literatura e estética; inicialmente nos ocuparemos de uma breve introdução à teoria 
semiótica, em seguida, discutiremos, baseado nos estudos desenvolvidos por Roman 
Jakobson, a função poética da linguagem. 
Mais adiante, trataremos da noção de semi-simbolismo aplicado à literatura, 
procurando demonstrar os efeitos de sentidos gerados, quando estabelecemos e projetamos 
relações entre o plano de expressão e conteúdo. Por fim, examinaremos os arranjos 
narrativos e tensivos que compõem o evento estético, ou seja, o momento da apreensão 
como uma ruptura da conjunção do sujeito com o mundo, em decorrência de uma expansão 
do sentido que desloca o indivíduo de seus parâmetros, de suas convicções, para um 
rompimento com a situação vigente. 
No segundo capítulo, analisaremos o estatuto de Charles Bukowski enquanto 
escritor, discutindo o seu fazer poético a partir da relação /vida/ versus /obra/, e a 
problematização da tendência estético-romântica, de acordo com Maingueneau
3
. Com isso, 
nosso principal objetivo neste momento passa a ser investigar o “campo literário” onde 
Bukowski está inserido, dimensionando sua singularidade e pertinência em relação ao 
“lugar” que ocupa. 
No terceiro e último capítulo, de importância central em nossa pesquisa, levando em 
conta que o acontecimento extraordinário sempre acontece de forma arrebatadora e 
apresenta-se para o sujeito de modo imprevisível, procuraremos avançar na compreensão da 
noção de “fratura”, discutindo o rompimento da continuidade do discurso, figurativizado 
“na” e “pela” quebra da relação do sujeito com o estado presente (cotidiano), ou seja, na 
transformação do curso da narratividade. 
Investigaremos se de fato o estado de desesperança, de desencantamento disfórico do 
sujeito ao qual Greimas se refere, é o resultado de uma dissemantização da experiência de 
uma relação desgastada pelo dia a dia que acaba se esvaziando de sentido, na medida em 
que o sujeito percebe-se abalado pela apreensão do “novo estado de coisas” 4, ou se esta 
noção de fratura, que permite entrever uma nova “realidade”, não é um tipo de manipulação 
que estabelece uma mudança de referência (calcada no objeto-mundo) opondo-se à idéia de 
que haja um véu recobrindo a realidade. 
 
3
 MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 
4
 GREIMAS, op. cit., p. 27. 
5 
 
Assim, com esta breve introdução acreditamos revelar as devidas articulações e 
nexos argumentativos da estrutura geral do trabalho. Contudo, seria impossível responder 
todas as questões aqui levantadas; tal atitude exigiria outra pesquisa. Desse modo, 
precisamos saber escolher, dentre as dificuldades, qual a que podemos nos impor, se de 
alguma maneira pretendemos demonstrar uma coesão argumentativa capaz de formular as 
perguntas corretas e fecundas. 
Entretanto, se as análises realizadas neste trabalho, em certo sentido, podem parecer 
muito abrangentes, certamente, é com o intuito de proporcionar novos recursos para uma 
produtiva e enriquecedora discussão sobre a abordagem da apreensão estética, por meio do 
estudo semiótico. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
6 
 
CAPÍTULO UM 
SEMIÓTICA, LITERATURA E ESTÉTICA 
 
O essencial é que o signo verbal e a 
representação visual não são 
jamais dados de uma vez só. 
Sempre uma ordem os hierarquiza,indo da forma ao discurso ou do 
discurso à forma. 
Michel Foucault 
 
Antes de começar a tratar, isoladamente, os principais tópicos que compõem o 
capítulo, façamos um breve comentário acerca de cada um deles, a fim de poder definir, com 
maior eficácia, o nosso objeto teórico. Em primeiro lugar é preciso esclarecer que o modelo 
semiótico adotado nesta pesquisa é o de linha francesa, desenvolvido por A. J. Greimas. O 
que já nos afasta, por exemplo, do modelo peirciano, do formalismo russo e da semiologia. 
O segundo passo, é entendermos a teoria greimasiana, vinculando-lhe o estudo literário e 
estético. 
É importante enfatizar que, embora a semiótica possa ser aplicada com o intuito de 
interpretar e compreender os textos literários, ela não se encaixa propriamente como uma 
teoria da literatura. Por outro lado, vemos a teoria literária tomar para si a criação e a 
elaboração do texto verbal, de modo a desenvolver modelos que utilizam mecanismos 
lingüísticos não-verbais, em favor da poeticidade. Dessa forma, julgamos legítima a 
aproximação das duas teorias, no sentido de observarmos por exemplo que, quando a 
palavra é escrita, ela não só assume relações de significação no plano de conteúdo, como 
também uma dimensão plástica e sonora no plano expressivo; uma vez que a letra também é 
uma imagem vinculada ao som
5
. 
Essa relação sincrética entre plano de expressão e plano de conteúdo, 
complexificada, legitima o chamado estudo semi-simbólico
6
. Para nossa abordagem 
literária, tomamos como base o estudo de Roman Jakobson
7
 sobre a função poética da 
linguagem, onde o autor diz ser ela a responsável por criar o efeito de novidade e ruptura do 
 
5
 Essa questão pode ser vista detalhadamente em: PIETROFORTE, A. V. S. “Os enigmas da imagem” e “O tao 
da escrita”. In: Semiótica Visual os percursos do olhar. São Paulo: Editora Contexto, 2004. 
6
 Voltaremos a abordar este assunto, mais adiante, no item reservado ao estudo do semi-simbolismo. 
7
 JAKOBSON, R. “Lingüística e Poética” . In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975. 
7 
 
emprego “normal” da língua, graças à superposição do princípio de equivalência do eixo de 
seleção sobre o eixo de combinação (Jakobson, 1969: 130). 
Por último, terminamos o capítulo verificando como se dá a incorporação do estudo 
estético à teoria semiótica. Entretanto, não é nosso objetivo aqui, dedicar-se a analisar o belo 
e nem o sublime, indo-se mais além, na tentativa de querer compreender como os objetos, 
artísticos ou naturais, sensibilizam os sentidos, despertando a percepção de seu significado 
essencial e incitando no sujeito sensações muitas vezes imprevistas. 
 
Uma breve análise da teoria semiótica 
 
Em Sèmantique Structurale, Greimas inaugura os fundamentos da teoria semiótica, 
propondo como modelo o percurso gerativo do sentido. Nele são determinadas três etapas, 
aonde se vai dos valores mais simples e abstratos: nível fundamental e narrativo, para o 
mais complexo e concreto: nível discursivo. Em nível fundamental temos a teoria pautada 
numa categoria semântica baseada na oposição de valores gerais e abstratos, por exemplo: 
/vida/ versus /morte/ ou /natureza/ versus /cultura/ etc. 
No trecho abaixo extraído do livro A Metamorfose
8
, de Franz Kafka, podemos 
identificar as categorias semânticas /opressão/ versus /liberdade/. 
 
 “– Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada, pensou. – O 
ser humano precisa ter o seu sono. Outros caixeiros viajantes vivem como mulher 
de harém. Por exemplo, quando voltou no meio da tarde ao hotel para transcrever 
as encomendas obtidas, esses senhores ainda estão sentados para o café da manhã. 
Tentasse eu fazer isso com o chefe que tenho: voaria no ato para a rua. (...) E 
mesmo que pegasse o trem não podia evitar a explosão do chefe. (...) E se 
anunciasse que estava doente? Mas isso seria extremamente penoso e suspeito, 
pois durante os cinco anos de serviço Gregor ainda não tinha ficado doente uma 
única vez. Certamente o chefe viria com o médico do seguro de saúde, censuraria 
os pais por causa do filho preguiçoso e cercearia todas as objeções apoiado no 
médico, para quem só existem pessoas inteiramente sadias refratárias ao 
trabalho”d9 
 
8
 KAFKA, Franz. A Metamorfose. Trad. Modesto Carone, 15ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1994. 
9
 KAFKA, op. cit., p. 9-10. 
8 
 
Em nível fundamental, a oposição dos valores que circulam no texto, dá-se pela 
categoria mínima: /opressão / versus / liberdade/. O sujeito Gregor Samsa vive oprimido 
pela família e pelo patrão, pois precisa trabalhar muito para pagar a dívida que seus pais 
mantém junto ao empregador. Com isso, a partir desse trecho, percebe-se que Gregor 
considera o chefe um tirano e um explorador. Contudo, ele se sujeita a essa tirania a fim de 
livrar a família da dívida; que, por sua vez, também o oprime e o explora, pois deixa a 
responsabilidade do pagamento do débito, somente para Gregor: 
 
 “Ah, meu Deus! pensou. – Que profissão cansativa escolhi. (...) Me é imposta 
esta canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares 
e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna 
caloroso. (...) Se não me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedido 
demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do 
fundo do coração” 10 
 
 (...) “Ora, o pai era na verdade um homem saudável, porém velho, que não 
trabalhava há cinco anos (...). É a velha mãe, que sofria de asma, a quem uma 
caminhada pelo apartamento já era um esforço (...) – deveria ela agora, por acaso 
ganhar dinheiro? E deveria a irmã ganhar dinheiro, que com dezessete anos era 
ainda uma criança e cujo estilo de vida até agora dava gosto de ver, consistindo 
em vestir roupas bonitas, dormir bastante, ajudar na casa, participar de algumas 
diversões modestas e acima de tudo tocar violino?”11 
 
Com relação à semântica fundamental, é possível dizer que no texto os valores 
partem da opressão, determinada como negativa, e vão em busca da liberdade, que é 
positiva. Entretanto, a busca da liberdade não é alcançada, fica apenas no nível do desejo, 
uma vez que ela não se concretiza. A seqüência opressão → não opressão → liberdade 
apresenta-se da seguinte maneira: Gregor passa toda sua existência oprimido; enquanto 
trabalha sente-se desiludido e sonha com a liberdade. Depois da metamorfose, fica 
literalmente preso em seu quarto, olhando a janela e vendo a liberdade do mundo, passar 
pelo lado de fora: 
 
10
 KAFKA, op. cit., p. 8-9. 
11
 Idem, p. 44. 
9 
 
 “(...) Freqüentemente passava noites inteiras deitado ali; sem dormir um 
instante, apenas arranhando o couro durante duas horas. Ou então não refugava o 
grande esforço de empurrar uma cadeira até a janela, para depois rastejar rumo ao 
peitoril e, escorado na cadeira inclinar-se sobre a janela – evidentemente em 
nome de alguma lembrança do sentimento de liberdade que outrora lhe dava olhar 
pela janela.” 12 
 
É somente após a metamorfose que Gregor liberta-se do patrão e da responsabilidade 
familiar, mas, ainda assim, torna-se prisioneiro dentro de seu próprio mundo. 
Destarte, vemos que ao aplicar a negação sobre cada um dos termos citados acima, 
geramos os termos contraditórios e contrários entre si, prevendo também as relações de 
implicação (ex: /não-liberdade/ e /não-opressão/ → /não-liberdade/ implica /opressão/). Tais 
termos e suas relações resultam em um importante ponto da teoria, o quadrado semiótico.No caso de A Metamorfose, teríamos, então, o desenho do seguinte quadrado 
semiótico: 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Sobrepostos a esses valores há uma categoria tímica denominada /euforia/ versus 
/disforia/, em que se determinam quais os valores que serão considerados positivos ou 
negativos. No caso do romance kafkiano, a liberdade é uma categoria eufórica, e a opressão 
disfórica. Porém, em outros textos, tais categorias tensivas podem vir invertidas como 
 
12
 Idem, p. 44. 
 
10 
 
acontece no poema Do Desejo, de Hilda Hilst, em que a opressão é eufórica, enquanto a 
liberdade é disfórica: 
 
Do Desejo 
 
E por que haverias de querer minha alma 
Na tua cama? 
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas 
Obscenas, porque era assim que gostávamos. 
Mas não menti gozo prazer lascívia 
Nem omiti que a alma está além, buscando 
Aquele Outro. E te repito: por que haverias 
De querer minha alma na tua cama? 
Jubila-te da memória de coitos e de acertos. 
Ou tenta-me de novo. Obriga-me. 
(Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.) 
 
É, portanto, no nível narrativo que se evidenciam as relações transitivas e reflexivas. 
Ao transformar os valores fundamentais em narrativos, dá-se origem aos papéis actanciais 
de sujeito e objeto, podendo estar eles em relação conjuntiva ou disjuntiva, assumindo assim 
papéis contratuais ou polêmicos. Ou seja, uma narrativa organiza-se em torno da circulação 
de um objeto, ao qual é dado um determinado tipo de valor (destinador-manipulador), e 
este, por sua vez, passa a circular entre os sujeitos narrativos. O efeito de narratividade está 
justamente nessas transformações juntivas, tanto do objeto em relação aos sujeitos, como 
desses em relação a si próprios (destinador e destinatário). Seguindo o percurso: 
manipulação → ação → julgamento, explica-se, portanto, a circulação que descreve a 
narratividade. 
Em nosso exemplo, a semântica narrativa ocupa-se de dois tipos de objetos: os 
modais e os de valor. Isto é, para o sujeito Gregor Samsa, o objeto modal trata-se do 
11 
 
emprego necessário para ele conseguir o objeto de valor dinheiro. É por meio do objeto 
modal que Gregor entra em conjunção com o objeto de valor. Contudo, a opressão e a falta 
de consideração provocam em Gregor uma metamorfose, a partir da qual ele entra em 
disjunção com a vida humana e seus valores, perdendo, neste caso, o objeto modal 
(emprego) e conseqüentemente o objeto de valor (dinheiro). 
 
 “A mãe concluiu: – Não é como se nós mostrássemos, retirando os móveis, que 
renunciamos a qualquer esperança de melhora e o abandonamos a própria sorte, sem 
nenhuma consideração?(...) Elas lhe esvaziavam o quarto; privavam-no de tudo que 
lhe era caro” 13 
 
Nesse sentido, vemos que a ação baseia-se na relação de competência e performance 
dos sujeitos narrativos, modalizados pelo /saber/ ou /poder/, ao passo que a manipulação, 
descreve o porquê de ter entrado em ação, por meio da modalização do /dever/ ou /querer/. 
O julgamento, todavia, é o reconhecimento ou não do cumprimento do papel contratual 
entre destinador e destinatário, que aponta para um veredicto positivo (retribuição) ou 
negativo (punição). De modo que, é o destinador-manipulador quem instaura o objeto e o 
sujeito, transmitindo a esse os valores modais necessários para sua junção com o objeto. 
Assim, na fase de competência, observa-se que o sujeito Gregor deve-fazer, pode-
fazer e sabe-fazer o trabalho para pagar a dívida dos pais; com relação à performance, temos 
que ele realiza o trabalho e, com isso, sustenta toda a família. Porém, no veredicto final, o 
sujeito é sancionado negativamente, pois se anulou por completo, perdeu sua liberdade, sua 
identidade e não obteve o menor reconhecimento. 
No entanto, para que a ação seja realizada, o sujeito deve antes de tudo crer nos 
valores representados pelo destinador. Se o destinador exerce um fazer persuasivo sobre o 
sujeito, este também exerce um fazer interpretativo sobre aquele. Deste fazer decorre a 
aceitação (relação contratual) ou o rompimento (relação polêmica) do contrato proposto. 
Para realizar o seu fazer interpretativo, o sujeito lança mão das modalidades veridictórias: 
/ser/ (imanência) e /parecer/ (manifestação), que se articulam em verdade, falsidade, 
segredo e mentira. 
 
 
13
 Idem, p. 50-52. 
 
12 
 
 
 
Com isso, a manipulação pode assumir quatro formas principais: a tentação, a 
intimidação, a provocação e a sedução, definidas tanto pela competência do destinador 
(dotado do /poder/ ou do /saber/ sobre o sujeito) quanto pela modalidade transmitida ao 
sujeito (/querer/ ou /dever/).
14
 É interessante notar que vários destinadores podem concorrer 
na manipulação do sujeito. Desta forma, podem-se estruturar complexas configurações 
modais: /querer/ e /dever/, /não-querer/ e /dever/, /não-dever/ e /querer/, etc. 
Desse modo, vemos que num primeiro momento, o destinador-manipulador (a 
família e o patrão) manipula Gregor por intimidação, pois ele deve realizar o trabalho a fim 
de pagar a dívida e prover a família. A manipulação de Gregor começa com a sanção 
negativa de sua família, que estava falida. Num segundo momento, quem passa a ser o 
destinador-manipulador é a própria vida, que manipula também por intimidação a família 
de Gregor, devendo esta trabalhar para ganhar dinheiro e sobreviver. 
 
 “(...) Entretanto esse dinheiro não bastava de maneira alguma para permitir que 
a família vivesse de renda; talvez fosse suficiente para sustentá-la um, no máximo 
dois anos, não mais que isso. (...) Mas o dinheiro para viver tinha de ser ganho.” 15 
 
Contudo, após a publicação de Semiótica das paixões, foi possível verificar a 
existência de um campo passional exercendo um efeito manipulativo sobre o sujeito. De 
modo que, sem a paixão do ciúme, por exemplo, Iago jamais manipularia Otelo, e Iago, por 
sua vez, sem a paixão da inveja, não faria as intrigas que fez. (Pietroforte, 2002). Temos, 
deste modo, em nível narrativo dois estados: um de ação e outro de paixão. Todavia, não é 
 
14
 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1997. p. 45. 
15
 Idem, p. 43-44. 
13 
 
nosso objetivo esgotar este item à exaustão; por isso não abordaremos as possíveis questões 
passionais envolvidas neste exemplo. 
 Por fim, em nível discursivo, coloca-se na forma de discurso, por meio do par 
enunciação / enunciado, tudo o que vimos acima. É no enunciado, portanto, que se define a 
relação entre enunciador e enunciatário, projetada nas categorias de pessoa, tempo e 
espaço. O percurso narrativo é recoberto por um tempo e em um espaço, e os actantes 
ganham o estatuto de atores, investidos na categoria de pessoa. Os valores vistos em nível 
semio-narrativo, aqui, dão origem aos percursos temáticos e/ou aos investimentos 
figurativos, segundo explica Fiorin em seu livro Elementos de análise do discurso: 
 
 “Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um 
discurso não figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativos 
com temas, concretizá-los ainda mais, revestindo-os com figuras. Assim, 
tematização e figurativização são dois níveis de concretização do sentido. Todos 
os textos tematizam o nível narrativo e depois esse nível temático poderá ou não 
ser figurativizado.” 16 
 
 
Devido às marcas que a enunciação deixa no discurso, aquela pode estabelecer com 
este, relações de aproximação ou de afastamento, que correspondem aos efeitos de sentidode subjetividade e objetividade, respectivamente. São várias as estratégias à disposição do 
enunciador para a realização deste simulacro. Ao instaurar uma primeira pessoa no discurso 
(debreagem enunciativa), o enunciador cria a ilusão da presença de alguém que fala. Por 
outro lado, a instauração de uma terceira pessoa (debreagem enunciva) afasta a enunciação 
do discurso, criando uma ilusão de neutralidade, promovendo assim o efeito de sentido de 
verdade objetiva. 
N‟A Metamorfose de Kafka, a debreagem temporal é considerada a partir de um 
tempo anterior e posterior à metamorfose. Basicamente o que predomina no texto é o 
pretérito imperfeito. Existe um passado e um passado em relação a esse passado (que é 
anterior à metamorfose). Esses tempos são marcados em duas instâncias, um antes e depois 
da metamorfose. 
 
16 FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo, Contexto, 2002, p.64. 
 
14 
 
Antes da metamorfose: 
 
 “(...) Ele achava que daquele negócio não havia sobrado absolutamente nada 
para o pai - pelo menos o pai não lhe dissera nada em sentido contrário e, seja 
como for, Gregor também não havia interrogado a esse respeito” 17 (p.41) 
 
 Depois da metamorfose: 
 
 “(...) Que vida tranqüila a família levava! Disse Gregor a si mesmo e sentiu, 
enquanto fitava o escuro diante dele, um grande orgulho por ter podido 
proporcionar aos seus pais e sua irmã uma vida assim, num apartamento tão 
bonito” 18 
 
Os valores manifestados no nível narrativo se organizam no nível discursivo em 
percursos temáticos, que podem ou não ser recobertos por percursos figurativos. Esses 
percursos não só garantem a coerência do texto, como também manifestam mais claramente 
suas intenções e propósitos. Com isso, percebemos que o texto de A metamorfose é 
totalmente construído a partir da decomposição do sujeito Gregor frente à sociedade, à 
família, ao patrão, à própria vida, perdendo, diante de tanta opressão, as condições mínimas 
de ser humano transformando-se literalmente num bicho nojento. 
 
 “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, 
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso (...) No 
começo ela também o chamava ao seu encontro, com palavras que provavelmente 
considerava amistosas, como „venha um pouco aqui, velho bicho sujo!‟ ou „vejam 
só o velho bicho sujo!‟” 19 
 
As figuras do “inseto monstruoso” e “bicho sujo”, denunciam a podridão da 
sociedade humana, o papel desprezível e nojento que o explorador submete o explorado, que 
se vê obrigado, a rastejar para sobreviver. 
 
 
17
 Idem, p. 41. 
18
 Idem, p. 34-35. 
19
 Idem, p. 68. 
15 
 
Função Poética 
 
Entre todas as propostas que serviram para ampliar o modelo da teoria da 
comunicação, sem dúvida, foram as de Jakobson que mais contribuíram para o 
desenvolvimento desse estudo. Segundo o autor, a linguagem precisava ser estudada, não 
somente a partir da função informativa (referencial), mas sim, em toda a sua variedade. Para 
nos mostrar isso, o lingüista traçou um esquema dos fatores presentes no ato de 
comunicação: 
 
 contexto 
mensagem 
Remetente................................Destinatário 
 contato 
 código 
 
Desse modo, cada um dos seis fatores determinam uma função, segundo a qual, ele 
organiza de acordo com os seus aspectos predominantes: 
 
 
 Referencial 
Poética 
Emotiva....................................Conativa 
Fática 
 Metalingüística 
 
De fato, não abordaremos nesse estudo todas as funções, não é nosso objetivo 
examiná-las em profundidade. O que nos interessa, é verificar somente a função poética da 
linguagem. Sendo assim, partiremos da justificativa do próprio autor, acerca do processo 
lingüístico, em relação ao estudo poético: 
 
 “O pendor (Einsfellung) para a mensagem como tal, o enfoque da mensagem por 
ela própria, eis a função poética da linguagem. Essa função não pode ser estudada 
de maneira proveitosa desvinculada dos problemas gerais da linguagem, e, por outro 
lado, o escrutínio da linguagem exige consideração minuciosa da sua função 
16 
 
poética. Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de 
confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora. 
A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função 
dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais, ela 
funciona como um constituinte acessório, subsidiário.” 20 
 
Não há dúvida de que o efeito “poético” surge quando ligado a certos procedimentos 
que ajustam a função poética à língua. Mas, por outro lado, também é verdade que essa 
função é capaz de intervir em comportamentos verbais cuja finalidade não é estética
21
. Diz o 
lingüista: 
 
 “(...) a noção de poesia é instável e varia com o tempo, mas a função poética, a 
poeticidade, como assinalavam os formalistas, é um elemento sui generis, um 
elemento que não pode reduzir-se mecanicamente a outros elementos. (A 
poeticidade) é „um componente que transforma necessariamente os demais 
elementos e determina o comportamento do conjunto‟.” 22 
 
Resultado, portanto, de dois arranjos básicos, utilizados no comportamento verbal, 
Jakobson diz: 
 
 “A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o 
eixo de combinação. A equivalência é promovida à condição de recurso constitutivo 
da seqüência.” 23 
 
Retomando a dicotomia saussuriana: paradigma versus sintagma
24
, o autor percebe 
que nas mensagens, cujo aspecto preponderante é o referente, os eixos lingüísticos mantêm 
 
20
 JAKOBSON, R. “Lingüística e Poética” . In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 127-
128. 
21
 Conforme afirma Jakobson: “os numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, 
mas a toda teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica Geral”. 
22
 JAKOBSON, R. “O que é a poesia?” In: CLP – Estruturalismo e Semiologia. p. 27. 
23
 ________. “Lingüística e Poética” . In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 130. 
24
 No Curso de lingüística geral (Saussure, 1969), o autor afirma que todo signo implica em dois modos de 
arranjo. O primeiro modo, diz respeito às relações sintagmáticas, baseadas na combinação. O segundo modo, 
diz respeito às relações baseadas na seleção dos elementos combinados. Dessa forma, o lingüista mostra que o 
signo, uma vez associado a outros signos, apresenta pelo menos três maneiras de ligar-se entre si. Uma é por 
17 
 
seus estatutos próprios, ou seja, baseiam-se, respectivamente, nos princípios de equivalência 
e contigüidade. Porém, quando a mensagem apresenta a função poética como a dominante, 
o princípio de equivalência, próprio do eixo que faz a seleção das similaridades 
(paradigma), projeta-se sobre o da combinação (sintagma), resultando que cada elemento da 
cadeia sintagmática se construa, não somente a partir da regularidade paradigmática, mas 
também atendendo à reiteração das suas unidades equivalentes, seja no plano fonético (rima, 
aliteração, paranomásia, etc.), sintático (simetria, etc.) ou semântico (comparação, metáfora, 
antítese, etc.). 
Com isso, Jakobson não se restringe à recorrência de unidades fônicas e gramaticais, 
dedicando-se também à reiteração de unidades semânticas, uma vez que a projeção do som 
sobre a seqüência como princípio constitutivo, implica inevitavelmente a equivalênciasemântica. Desse modo, segundo o lingüista, todo procedimento poético passa a ser definido 
como aquele que faz projetar sobre a seqüência o princípio da equivalência, ou seja, o que 
mantém a simultaneidade no lugar da contigüidade. 
Contudo, o que nos chama atenção neste ponto da discussão, é a relação que o autor 
afirma existir entre a função poética e a metalingüística. Por meio de uma distinção pautada, 
na Lógica moderna, ele define dois níveis de linguagem: a “linguagem-objeto”, que fala de 
objetos e a “metalinguagem”, que fala da linguagem. Conforme diz no trecho abaixo: 
 
“Pode-se objetar que a metalinguagem também faz uso seqüencial de unidades 
equivalentes quando combina expressões sinônimas numa sentença equacional: A = A 
(“ A égua é a fêmea do cavalo”). Poesia e metalinguagem, todavia, estão em oposição 
diametral entre si; em metalinguagem, a seqüência é usada para construir uma 
equação, ao passo que em poesia é usada para construir uma seqüência.” 25 
 
Vimos que a função poética transpõe para a seqüência o que é próprio da equivalência, 
ou seja, ela traz à consciência um processo que na linguagem em função referencial, por 
exemplo, é algo já automatizado. Em função poética, portanto, a língua revela o seu 
processo de construção, criando um “novo” código, produzindo um efeito de sentido 
inusitado que exige novas interpretações. Contudo, se no texto de função metalingüística 
 
meio do significado, com seus antônimos e sinônimos; a outra por meio da similaridade entre os significantes, 
devido à semelhança sonora; e, por último, pelo aspecto morfológico em comum. 
25
 JAKOBSON, R. op. cit., p. 130. 
18 
 
dominante, a seqüência é usada para construir uma equação, com o intuito de explicar o 
código da língua, no texto de função poética, a seqüência seleciona a seqüência seguinte, 
codificando a próxima, de maneira a criar entre elas uma “auto-referencialização” que não 
encontra sentido senão ali mesmo, no próprio texto. Com isso, torna-se impossível separar 
os dois processos: há uma relação dialética que os implica e os define. É por meio da função 
metalingüística, então, que o texto “se olha no espelho”, provocando o efeito de sentido 
“poético”. Ou seja, tudo o que a função poética faz, é com o auxílio da função 
metalingüística. 
Até esse momento, o que fizemos foi então verificar do que Jakobson chamou 
“enfoque da mensagem dirigido a ela própria”. Contudo, outra questão se coloca: a 
classificação da arte verbal. Devido ao caráter linear do significante lingüístico, não 
podemos produzir dois tipos de sons ao mesmo tempo, ou seja, só é possível enunciar um de 
cada vez, obedecendo a um alinhamento temporal e espacial. No seu estudo, o autor cita a 
experiência de Saussure sobre os anagramas. Esta observação mostra que, contrariamente à 
linguagem habitual, as estruturas poéticas rompem com o princípio da consecutividade no 
tempo, de modo a distribuir-se com maior liberdade. 
 
 “(...) as oposições fônicas podem chegar a evocar relações com sensações 
musicais, cromáticas, olfativas, táteis, etc. A oposição dos fonemas agudos e graves, 
por exemplo, é capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro, do agudo e do 
arredondado, do fino e do grosso, do leve e do pesado, etc. Este „simbolismo 
fonético‟, como lhe chama o seu explorador Sapir, este valor intrínseco, ainda que 
latente, das qualidades distintivas, reanima-se assim que encontra uma 
correspondência no sentido de determinada palavra, na nossa atitude afetiva ou 
estética para com essa palavra e ainda mais para com palavras de significações 
polares. Na língua poética, em que o signo como tal assume um valor autônomo, 
este simbolismo fonético atinge a sua atualização e cria uma espécie de 
acompanhamento do significado.” 26 
 
Assim, verificamos que a relação fundamental estabelecida na arte verbal é entre o 
som e o sentido. Naturalmente, esta não é uma “descoberta” feita por Jakobson. Se 
consultarmos a tradição dos estudos literários que data desde a época de Aristóteles, nos 
 
26
 JAKOBSON, R. Seis Lições sobre o Som e o Sentido. Lisboa, p. 87-88. 
19 
 
depararemos, volta e meia, com essa questão. De fato, o mais importante a ser observado na 
proposta de Jakobson, é que esta é uma relação dialética entre som e sentido, mas com 
diferentes manifestações conforme sejam os textos, isto é, a dominância de um sobre o 
outro, dependerá do objetivo que se quer alcançar. É claro que, a relação entre som e sentido 
é comum a todos os textos, porém existem aqueles que os recursos sonoros aparecem em 
maior evidência, predominando sobre os sentidos que eles veiculam. Enquanto que, em 
outros, o arranjo sonoro é mais diluído, menos opaco, sobressaindo, então, o sentido. De 
modo que, a primeira questão que se coloca, diz respeito à tão explorada classificação da 
arte verbal em: prosa e poesia. Porém, não nos interessa, aqui, discutir a história destas 
definições, mas sim a posição defendida por Jakobson. 
Vejamos o que diz Paul Valéry: 
 
 “A poesia é uma arte da linguagem. A linguagem, contudo, é uma criação da 
prática. Observemos primeiramente que qualquer comunicação entre os homens só 
adquire alguma firmeza na prática e através da verificação que nos é dada pela 
prática. Eu peço fogo a vocês. Vocês me dão fogo: vocês me compreenderam.” 
 
Continua: 
 
 “Mas, ao pedir-me fogo, vocês puderam pronunciar essas poucas palavras sem 
importância com uma certa entonação e um certo timbre de voz – com uma certa 
inflexão e uma certa lentidão ou certa precipitação que pude observar. Compreendi a 
suas palavras, já que, sem mesmo pensar, estendi-lhes o que pediam, o fogo. E, 
contudo, eis que o assunto não acabou. Coisa estranha: o som e como que a imagem 
de sua pequena frase reaparecem em mim, repetem-se em mim, como se estivessem 
se divertindo em mim; e eu gosto de me escutar repetindo-a, repetindo essa pequena 
frase que quase perdeu o sentido, que deixou de servir e que, no entanto, quer viver 
ainda, mas uma vida totalmente diferente. Ela adquiriu um valor; e adquiriu-o em 
detrimento de seu significado finito. Criou a necessidade de ser ouvida ainda...Eis-
nos às próprias margens do estado de poesia.” 27 
 
O que há, portanto, são dois extremos: o máximo e o mínimo de poesia. Nesse sentido, 
encontraremos a figurativização do máximo representado pelo poema, e a do mínimo pela 
 
27
 VALÉRY, P. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 208. 
20 
 
linguagem prática. Assim, teremos o discurso, por um lado, dominado pela função poética e, 
do outro, pela função referencial. Só que entre eles há uma matização das variedades 
literárias. Para o próprio Jakobson, a classificação da prosa, por exemplo, como um 
fenômeno literário intermediário, não diminui a sua importância, uma vez que os extremos, 
como formas absolutas, não existem. O que existe, de fato, são dois pontos virtuais, criados 
de maneira a nos ajudar a pensar num máximo e num mínimo poético. Desse modo, pensada 
como ponto extremo, a poesia reflete o máximo de tensão, e a prosa, quanto mais literária 
ela parecer, mais próxima estará do extremo poético. 
No trecho abaixo extraído do primeiro capítulo de Lolita, podemos ver que Nabokov 
aproxima-se muito mais da prosa poética quando tenciona a linguagem, logo nas primeiras 
linhas do romance, do que no restante da obra: 
 
 “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. 
Lo-li-ta:a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de 
leve, no terceiro, contra os dentes. Lo.Li.Ta.” 28 
 
Todavia, para Jakobson, a classificação do texto literário entre prosa e poesia, é ainda 
uma postura frágil; sendo assim, o autor prefere pensar o texto como um todo que se orienta 
em duas direções: a metáfora e a metonímia. Durante muito tempo, consideradas como 
figuras poéticas, tropos, dentro de uma retórica que as via como uma simples substituição, 
num determinado contexto, de uma palavra por outra, é com Jakobson que essa questão 
ganha o estatuto de procedimento artístico. O lingüista deixa claro, portanto, desde o 
começo, que a sua preocupação inicial é com a arte verbal, isto é, com o procedimento 
lingüístico que a caracteriza. Desse modo, não se trata apenas de substituir uma 
classificação por outra. Em sua teoria, o autor mostra que há uma tendência do texto 
literário em se dirigir, seja para um lado ou para outro. Contudo, é claro que isso não exclui 
a possibilidade de encontrarmos tanto poesia com tendência metonímica, como também 
prosa com aspectos metafóricos. 
 Conforme dissemos acima, tanto a metáfora como a metonímia não são somente 
figuras discursivas, elas são diretrizes que organizam a linguagem, acionam o seu processo 
de funcionamento. Com isso, verifica-se que na poesia existe certa tendência à 
 
28
 NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p.11. 
21 
 
simultaneidade; ao contrário do que ocorre, por exemplo, na prosa, onde o que prevalece é a 
sucessividade. 
De acordo com Jakobson, o que existe na verdade, é um processo de metaforização e 
metonimização, na medida em que estes indicam uma tendência aos efeitos de sentido de 
simultaneidade e sucessividade, respectivamente. Assim, ambos os processos pressupõem 
um paradigma de substituições que ocorre, quer por similaridade (ou contraste) quer por 
contigüidade. Nesse sentido, o que aciona esses processos, os coloca em funcionamento, é o 
princípio do paralelismo, cuja função é projetar sobre a seqüência o princípio da 
equivalência, ou seja, manter a simultaneidade no lugar da contigüidade. 
Como princípio geral, é evidente que a projeção do eixo paradigmático (seleção) no 
sintagmático (combinação) está presente em todo o discurso, mas a construção “regida” por 
tal paralelismo, no qual este fica sendo o princípio estruturador fundamental, que subjaz a 
qualquer artifício ou procedimento, é o que legitima a construção do discurso literário. 
Desse modo, encontraremos textos com tendência à simultaneidade, onde o paralelismo se 
apresenta de forma contínua, e a dominância do som sobre o sentido surge como uma 
oposição acentuada, de maneira a construir composições versificadas. E, por outro lado, 
textos com tendência a sucessividade, cujo paralelismo se dilui, e a dominância passa a ser 
do sentido sobre o som, gerando, assim, composições não-versificadas. Entretanto, em 
ambos os casos, é a relação paralelística que irá estabelecer o processo de significação. 
Vejamos no poema Dança do Ventre, de Cruz e Souza, como essa equivalência 
orienta tanto o plano de expressão quanto o plano de conteúdo: 
 
 Dança do Ventre 
 
Torva, febril, torcicolamente 
numa espiral de elétricos volteios 
na cabeça, nos olhos e nos seios 
fluíam-lhe os venenos da serpente. 
 
Ah! Que agonia tenebrosa e ardente! 
que convulsões, que lúbricos anseios, 
quanta volúpia e quantos bamboleios, 
que brusco e horrível sensualismo quente. 
22 
 
O ventre, em pinchos, empinava todo 
como réptil abjeto, sobre o lodo, 
espolinhando e retorcido em fúria. 
 
Era a dança macabra e multiforme 
de um verme estranho, colossal, enorme, 
do demônio sangrento da luxúria! 
 
(Poesias Completas / Cruz e Souza. São Paulo, Biblioteca 
Folha, 1997, p.46.) 
 
No plano expressivo, trata-se de um soneto em que há repetições de consoantes 
oclusivas; isso confere ao texto, um efeito aliterativo. Além do mais, todos os versos são 
decassílabos, acentuados sempre na quarta, na sexta e nas últimas sílabas (vvv-v-vvv-), de 
modo que essa equivalência permite articular iterações que são usadas para organizar as 
seqüências dos versos. Por sua vez, o plano de conteúdo é formado por equivalências 
semânticas. Nesse sentido, há no mínimo duas leituras possíveis para o poema. Segundo a 
análise de Affonso Romano de Sant‟anna: 
 
 “No poema (...) a mulher se assemelha ao verme, quando surge numa „dança 
macabra e multiforme / de um verme estranho, colossal, enorme / do dêmonio 
sangrento da luxúria‟. Há um evidente sentido fálico nessa simbolização. O corpo 
feminino é esse „colossal‟ e „estranho‟ verme que exterioriza a sensualidade do 
macho de maneira complexa e invertida. O objeto do desejo é uma extensão fóbica, 
e o que seria a dança sedutora dos sete véus, é uma dança de morte.” 29 
 
Desse modo, o que vimos no exemplo acima, foram uma prosódia e uma significação 
próprias da poeticidade, que, embora seja o resultado de uma operação lingüística sobre a 
forma, esta não é estranha ao aparato do sistema semiótico verbal. Sendo assim, a projeção 
do eixo da seleção sobre o da combinação, permite que exploremos tais recursos 
lingüísticos, de maneira a produzir um efeito de sentido poético. 
 
 
29
 SANT‟ANNA. Affonso Romano de. O canibalismo Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 139. 
23 
 
Para finalizar, verifiquemos por meio da narrativa, um exemplo de composição não-
versificada. Tomando o primeiro parágrafo do livro Don Quijote de la Mancha, de Miguel 
de Cervantes, podemos observar uma evidente neutralização fonológica no plano 
expressivo: 
 
“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho 
tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín 
flaco y galgo corredor. Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las más 
noches, duelos y quebrantos los sábados, lantejas los viernes, algún palomino de 
añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda. El resto della 
concluían sayo de velarte, calzas de velludo para las fiestas, con sus pantuflos de 
lo mesmo, y los días de entresemana se honraba con su vellorí de lo más fino. 
Tenía en su casa una ama que pasaba de los cuarenta, y una sobrina que no llegaba 
a los veinte, y un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocín como tomaba 
la podadera. Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años; era de 
complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro, gran madrugador y amigo de la 
caza. Quieren decir que tenía el sobrenombre de Quijada, o Quesada, que en esto 
hay alguna diferencia en los autores que deste caso escriben; aunque, por 
conjeturas verosímiles, se deja entender que se llamaba Quejana. Pero esto 
importa poco a nuestro cuento; basta que en la narración dél no se salga un punto 
de la verdad.” 30 
 
 “Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há 
muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo 
corredor. Passadio, olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro, as mais da ceia 
restos de carne picados com sua cebola e vinagre, aos sábados outros sobejos 
ainda somenos, lentilha às sexta-feiras, algum pombito de descrença aos 
domingos, consumam três quartos do seu haver. O remanescente, levavam-no saio 
de velarte, calças de veludo para as festas, com seus pantufos do mesmo; e para os 
dias de semana o seu vellorí do mais fino. Tinha em casa uma ama que passava 
dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moçoda posada e de 
porta afora, tanto para o trato do rocim, como para o da fazenda. Orçava na idade 
o nosso fidalgo pelos cinqüenta anos. Era rijo de compleição, seco de carnes, 
 
30
 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El Ingenioso Hidalgo don Don Quijote de la Mancha. Madrid: 
Castalia, 1991, p.13. 
24 
 
enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caça. Querem dizer que tinha o 
sobrenome de Quijada ou Queseda, que nisto discrepam algum tanto os autores 
que tratam na matéria; ainda que por conjeturas verossímeis se deixava entender 
que se chamava Quijana. Isto, porém, pouco faz para a nossa história; basta que, 
no que tivermos de contar, não nos desviemos da verdade nem um til.” 31 
 
Se na poesia, há a dominância do som sobre o sentido, na narrativa o fenômeno 
inverso acontece. Ou seja, são as unidades semânticas que prevalecem. Desse modo, um dos 
efeitos de sentido da prosa é simular uma enunciação expressiva, onde o enfoque não seja a 
reiteração fonológica. Note que, habilmente, Miguel de Cervantes constrói seu texto com 
muito cuidado. É fácil perceber que sua prosa não é nem de longe, um tipo voltado à 
conversação; uma vez que seu valor literário não está resumido somente ao plano de 
conteúdo. Isso demonstra que a boa prosa é, portanto, aquela que consegue em certa 
medida, ofuscar o seu alto grau de elaboração. 
 Assim é, também, com as relações temáticas. No plano de conteúdo, em nível 
discursivo, as descrições semântico-figurativas, recobertas sobretudo pelo processo 
metonímico, são as responsáveis por estabelecer tanto a contigüidade dos significantes (o 
modo como certas palavras, expressões, construções sintáticas, enfim, até mesmo como a 
própria maneira de narrar os fatos é percebida a partir de uma determinada época e/ou 
escola literária) quanto à contigüidade dos significados. Com isso, as figuras emblemáticas 
transformam os signos lingüísticos que as veiculam, tornando-os menos transparentes; ou 
seja, deixam de encará-los apenas como simples instrumentos que servem para a circulação 
do sentido, passando então a valorizá-los em si mesmos. É o caso, por exemplo, de 
acrescentar outro significado às palavras; quando mencionamos leite para denotar brancura, 
ou leão para falar de coragem, etc. 
 Com isso, o leitor menos atento pode cair na armadilha de achar que a narrativa trata, 
simplesmente, do aspecto referencial da linguagem, uma vez que o trabalho paralelístico 
encontra-se, aqui, ocultado. Nesse sentido, o texto conserva o aspecto “denotativo” das 
palavras, mas, no entanto, o sistema simbólico formado por elas adquire um caráter 
autônomo, ou seja, não instrumental. De acordo com a interpretação de Bernardo Gustavo: 
 
 
31
 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p.29. 
25 
 
 “O personagem se apresenta, primeiro, como uma metonímia da Espanha e da 
decadência espanhola, para a seguir crescer como uma metáfora da dignidade e da 
ficção. O „sobrenome‟ Mancha designa determinada região da Espanha, 
reforçando o aspecto metonímico, mas também aponta para uma zona de sombra, 
de indefinição e de indeterminação, que ajudará a construir a metáfora do 
personagem.” 
 
Continua o autor: 
 
 
 “O nome „Quixote‟ designa, metonimicamente, uma parte da armadura de um 
cavaleiro, aquela que protege a coxa. A própria palavra „quixote‟ deriva, como se 
percebe sem esforço, de „coxa‟. A desimportância dessa parte da armadura reforça 
o caráter cômico do cavaleiro que, mais adiante, também aceitará ser chamado 
como o Cavaleiro da Triste Figura, vinculando o cômico ao trágico.” 32 
 
 Concluímos esse item, imaginado que foi possível satisfazer uma exigência 
necessária à generalização da teoria proposta, a fim de que possamos seguir adiante em 
nosso trabalho. Deste modo, nada melhor, para encerrarmos esta discussão, do que retomar 
as próprias palavras de Jakobson: 
 
 “Todos nós que aqui estamos (...) compreendemos definitivamente que um 
lingüista surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura 
indiferente aos problemas lingüísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos.” 33 
 
Semi-simbolismo 
 
No item destinado à compreensão da teoria semiótica, vimos que o percurso gerativo 
define a construção do sentido, desde os elementos mais gerais e abstratos, até a sua 
manifestação concreta e específica. Desse modo foi possível verificar como Greimas, 
apoiado inicialmente nas definições saussurianas sobre significante e significado, próprio do 
conceito lingüístico acerca do signo, pôde desenvolver uma teoria capaz de elaborar um 
modelo que buscasse na significação o seu objeto de análise. 
 
32
 TROUCHE, A. & REIS, L. (orgs). Dom Quixote: Utopias. Niterói: Ed.UFF, 2005. 
33
 JAKOBSON, R. “Lingüística e Poética”. In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 162. 
26 
 
Entretanto, não basta definir a semiótica como uma ciência que estuda o sistema dos 
signos lingüísticos. Isso implicaria dizer que este surgiu antes mesmo do processo de 
significação, o que estaria errado; pois se é justamente a geração dessa grandeza o nosso 
objeto de estudo. Sendo assim, podemos afirmar que a semiótica estuda a construção da 
existência do signo, em uma fase anterior à sua própria constituição. 
É, portanto, a partir das propostas de Hjelmslev em Prolegômenos a uma teoria da 
linguagem, que Greimas situa a semiótica nos domínios do plano de conteúdo. Com isso, 
estudos sobre o plano de expressão são deixados de lado, em um primeiro momento, 
passando a ser reconhecido como objeto de estudo pertinente, somente mais tarde, quando 
os semioticistas começam a questionar como é possível relacionar formas da expressão à 
formas do conteúdo. Assim, passa-se a investigar como os efeitos de sentido que são 
próprios da expressão, podem estar vinculados ao conteúdo; dessa forma o estudioso de 
semiótica começa procurar a estabelecer correlações entre os planos, no intuito de tentar 
compreender as novas relações de sentido que são estabelecidas, e as simbolizações dela 
provenientes. 
Essa relação, portanto, entre o plano de expressão e o plano de conteúdo, é realizado 
em semiótica, dentro da teoria dos sistemas semi-simbólicos. De acordo com o semi-
simbolismo, um texto pode ser construído em torno de relações entre categorias do plano de 
conteúdo e categorias do plano de expressão. Um nome bastante importante no âmbito dos 
estudos semi-simbólicos é o de Jean-Marie Floch
34
. Em suas pesquisas, ele investigou tais 
conceitos, trabalhando sobretudo com as artes plásticas e visuais, entre outras. 
Tomemos a capa do CD: As cidades, de Chico Buarque, como exemplo: 
 
 
 
 
34
 FLOCH, J. M. Petites mythologie de l’oiel et de l’espirit. Paris: Hadès-Benjamins, 1985. 
27 
 
No encarte que acompanha o disco As cidades, de Chico Buarque de Holanda, 
podemos observar a figura do artista dividida em quatro imagens diferentes
35
. O que nos 
permite verificar em seu plano de conteúdo uma categoria fundamental pautada 
semanticamente na relação: /identidade/ versus /alteridade/ estabelecida a partir da categoria 
topológica: /concentração/ versus /difusão/. Neste sentido, entendemos que o título “as 
cidades”, localizado na base inferior da capa, produz discursivamente pelas imagens e pela 
representação poética, o aspecto heterogêneo das populações citadinas e o espaço polifônico 
da cidade. 
Torna-se explícito, por meio destas quatro imagens, o caráter multiculturalda 
enunciação presente no texto. O discurso tem a marca evidente da topologia das cidades 
como espaço das diferenças e, ao mesmo tempo, do lugar de luta de grupos sociais 
minoritários; na medida em que as imagens simulam quatro representações étnicas 
diferentes: o europeu, o africano o japonês e o árabe. O que nos permite afirmar e garantir 
que a representação alterada pela computação gráfica se trata da identidade do compositor 
Chico Buarque, é o seu nome escrito no centro, na interseção das imagens, vazado em 
branco e em caixa baixa. 
Assim, é a partir da concentração do texto verbal, ancorado estrategicamente no meio 
do encarte, que estas imagens podem ser visualizadas tanto em conjunto, como 
separadamente. De modo que não podemos retirar uma ou outra, sem lhes alterar o sentido, 
pois estas são imagens construídas a partir de seus respectivos fundos semânticos: o Chico 
negro representa uma raça, não um negro determinado no mundo real. O Chico branco 
representa uma raça, não o próprio Chico Buarque ou outro branco qualquer, conhecido. E 
assim, o Japonês e o Árabe. Mas, o conjunto representa o Chico Buarque de Holanda, do 
modo como ele se descreve para nós neste trabalho. Com isso, temos representado o 
multiculturalismo, a miscigenação, o amálgama de culturas heterogêneas e antagônicas, 
simbolizadas pelo plurilingüismo com a qual as cidades são representas. 
Podemos dizer então, que este encarte assume um efeito de poeticidade, na medida 
em que há uma relação semi-simbólica entre as formas plásticas e as formas semânticas. 
Embora, nem todo semi-simbolismo possa implicar em uma semiótica plástica, a relação 
inversa é verdadeira. Ou seja, de acordo com Jean-Marie Floch, a semiótica plástica está 
 
35
 São quatro imagens de tipo posadas, como foto para documento. Destacam-se as expressões alegres do 
branco europeu e do nipônico. O negro africano é visivelmente melancólico e o árabe assume um sentido de 
desafio, mas muito dúbio. 
28 
 
vinculada ao semi-simbolismo, que, no entanto, está ligado à semiótica poética. Com isso, o 
semioticista delimita os domínios semi-simbólicos, a partir da semiótica poética. 
Vimos que Roman Jakobson ao definir a função poética da linguagem, por meio das 
projeções no eixo paradigmático e sintagmático, com base na dicotomia saussuriana de 
significante / significado, situa os efeitos da poeticidade no âmbito da lingüística. A 
semiótica, por sua vez, ao aplicar tais conceitos, define a poeticidade do mesmo modo 
(PIETROFORTE, 2004: 9). Nesse sentido, tomando o texto poético como exemplo, 
verificamos que o plano de expressão não serve apenas como um veículo de manifestação 
do plano de conteúdo, mas também é um novo modo de poder recriá-lo em sua organização. 
Assim, podemos visualizar como a expressão é colocada em função do conteúdo. 
 
O rondó dos cavalinhos 
 
Os cavalinhos correndo, 
E nós, cavalões, comendo... 
Tua beleza, Esmeralda, 
Acabou me enlouquecendo. 
 
Os cavalinhos correndo, 
E nós, cavalões, comendo... 
O sol tão claro lá fora, 
E em minh‟alma – anoitecendo! 
Os cavalinhos correndo, 
E nós, cavalões comendo... 
Alfonso Reyes partindo, 
E tanta gente ficando... 
 
Os cavalinhos correndo, 
E nós, cavalões, comendo... 
A Itália falando grosso, 
A Europa se avacalhando... 
 
Os cavalinhos correndo, 
E nós, cavalões, comendo... 
O Brasil politicando, 
29 
 
Nossa! A poesia morrendo... 
O sol tão claro lá fora, 
O sol tão claro Esmeralda. 
E em minh‟alma – anoitecendo! 
 
(Estrela da Manhã – Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2000.) 
 
 
Na conhecida análise d‟O rondó dos cavalinhos, de Antonio Candido (Candido, 
1985: 71-72), o teórico da literatura acompanha o movimento dos “cavalinhos”, mostrando- 
nos como o ritmo dos versos sugere a interpretação de um galope. Nesse sentido, segundo o 
autor, existe assim uma correlação entre a redondilha maior (7 sílabas) e o tema do 
movimento. Tomemos os dois primeiros versos como exemplo: 
 
 1 2 3 4 5 6 7 
Os / ca / va / li / nhos / co / rrendo / do 
E / nós / ca / va / lões / co / men / do. 
 
Se ao ler o poema, nós obedecermos rigorosamente à sua pontuação, a primeira coisa 
que nos saltará à vista é a conjunção do ritmo corredio com um ritmo entrecortado: 
 
Os cavalinhos correndo // 
E nós // cavalões // comendo. 
 
Desse modo, torna-se fácil observar o movimento de galope. É como se o poeta 
estivesse num primeiro momento, a contemplar o cavalo a correr (continuidade), e mais 
tarde, depois que o ritmo é interrompido pelo surgimento das vírgulas (descontinuidade), 
voltasse a contemplar o animal, só que dessa vez a galopar. É evidente que no poema existe 
o intuito de negar o estatuto denotativo da linguagem em seu aspecto de unicidade, para 
afirmar a difusão de outros sentidos, sugerindo, assim, a noção da metáfora: “homens” = 
“cavalões”. 
Na análise de Antonio Candido, notamos o efeito de sentido de aproximação e 
distanciamento. Uma vez observados de longe, os cavalos a deslizar no prado, assemelham-
se àqueles do carrossel, próprio dos parques de diversão. Os homens, por sua vez, vistos de 
30 
 
perto, assumem a postura de “cavalões”, quando participam de um almoço em uma reunião 
social. Quer dizer, eles são diretamente comparados aos animais que estão lá longe, a 
passear no pasto. Mas, no entanto, diferente do modo dos cavalinhos se comportarem, a ação 
dos homens ao comerem é modalizada por um fazer caricato, ou seja, é sancionada 
negativamente pelo destinador-enunciador. 
Essa interpretação parece estar correta, se imaginarmos que na natureza é o cavalo 
quem galopa, e o homem não. Com isso, veremos que por meio da significação rítmica do 
poema, esta ordem é invertida. Evidencia-se, portanto, nesta contradição, uma troca de 
isotopia entre o plano semântico e o plano de enunciado. Pois, na medida em que 
complexificamos por meio do ritmo: /homem/ versus /cavalo/, necessariamente, estamos a 
pensar em /natureza/ versus /cultura/. De modo que pela aproximação sugerida, os 
cavalinhos assumem então um ritmo mais humano, enquanto que os homens apropriam-se 
de um ritmo cavalar. 
 Concluímos a análise d‟O rondó dos cavalinhos, verificando tratar-se de um poema 
que é pautado pelo ritmo; ou seja, se apóia num elemento próprio da expressão para 
desenvolver, por meio do plano de conteúdo, o tema da contradição. Assim, o efeito de 
sentido conseguido pelo poema, pode ser explicado como uma correlação semi-simbólica 
entre o plano da expressão e o plano do conteúdo lingüístico. 
Evidentemente que o exemplo acima, não tem o objetivo de enquadrar o poeta 
Manuel Bandeira entre os representantes da poesia concreta no Brasil. Neste movimento 
literário, a principal idéia era intensificar e carregar de poeticidade a relação entre palavra e 
imagem, de modo que fosse possível encarar o poema, inicialmente, a partir de dois pontos 
de vista. Ou seja, num primeiro momento é possível concebê-lo no âmbito literário, uma vez 
que trabalha com as palavras; por outro lado, também poderíamos situá-lo entre as artes 
plásticas, na medida em que utiliza o recurso da imagem. Contudo, reduzir a dimensão 
poética do poema concreto, tanto a uma como à outra estética, seria um equívoco; pois esse 
tipo de poesia não é uma síntese entre o literário e o plástico, mas sim uma complexificação 
entre estas duas semióticas. Segundo Pietroforte: 
 
 “Para fazer a análise de um poema concreto, portanto, não basta somar análise 
literária e análise plástica, mas deve-se analisar a complexificação quecombina 
literariedade e plasticidade na construção do texto. As relações semi-simbólicas (...) 
podem ser articuladas entre categorias semânticas e categorias lingüísticas e 
31 
 
plásticas, próprias do plano de expressão da poesia concreta, o que faz, da semiótica 
um bom instrumento de estudo para sua análise.” 36 
 
Quando verificamos no item anterior a função poética da linguagem, observamos 
que na prosa a elaboração fonética é deixada de lado, em detrimento da estruturação 
fonológica. Assim, tanto o leitor como o ouvinte, no instante que compreende a mensagem 
veiculada, acaba por fazer uma imediata transposição do plano da expressão ao plano do 
conteúdo. Por outro lado, vimos também no exemplo acima, que o material sonoro pode 
contribuir para produzir um efeito de significação. De modo que, em O rondó dos 
cavalinhos, os elementos do plano de expressão estão colocados em função do conteúdo. 
 Porém, quando na poesia concreta, o poeta rompe a dimensão fonológica do plano 
expressivo da linguagem, o que ele está buscando fazer, na verdade, é reorientar o 
significado e o significante da palavra. Assim, por meio do sincretismo gráfico presente na 
escrita, o seu principal intuito é justamente complexificar a relação entre expressão 
lingüística e imagem, de modo a deixar exposto, no próprio texto do poema, a manifestação 
da projeção categórica plástica (semiótica visual) e escrita (semiótica verbal). 
No poema extraído do livro Poetamenos, de Augusto de Campos, podemos 
visualizar como esses conceitos aplicam-se à poesia concreta: 
 
eis os amantes 
 
(Poetamenos – São Paulo, SP: Edições Invenção, 1973.) 
 
36
 PIETROFORTE, A. V. S. “Os enigmas da imagem”. In: Semiótica Visual os percursos do olhar. São Paulo: 
Editora Contexto, 2004, p.142. 
32 
 
É interessante observar que a própria disposição dos elementos na página, já inclui o 
espaço no qual o poema é construído como um signo; na medida em que as aberturas, as 
linhas, as distâncias, são também responsáveis pelo efeito de significação. Assim, ao 
valorizar o som e o timbre das palavras, sílabas e letras, Augusto de Campos retoma o 
modelo fonológico a partir das suas unidades distintivas, ou seja, os fonemas. Uma vez que 
estes, quando tomados sozinhos, são desprovidos de significado, mas, passam a tê-lo 
conforme são combinados e permutados com os outros. Como nossa finalidade não é 
discutir o percurso semi-simbólico da poesia de vanguarda brasileira, recomendamos a 
leitura do trabalho de Iniciação Científica: A angústia em Augusto, de Juliana Di Fiori 
Pondian. Neste, a autora analisa a proposta estética da poesia concreta brasileira, 
encontrando, a partir dos poemas de Augusto de Campos, uma aproximação entre as artes: 
poética, musical e visual. De modo que, em seu trabalho, verifica-se como a exploração do 
significante verbal é, totalmente, revestido de significado, a ponto da expressão e o conteúdo 
não poderem mais ser vistos de maneira dissociada; contribuindo para que o estudioso de 
semiótica possa, a partir daí, compreender melhor a construção do sentido no texto, graças a 
complexificação dessas duas categorias. 
 
Para finalizar, segundo as próprias palavras de Floch: 
 
 “Os sistemas simbólicos são as linguagens cujos dois planos estão em 
conformidade total: a cada elemento da expressão corresponde um – e somente 
um – elemento do conteúdo, a tal ponto que não é mais produtivo para a análise 
distinguir ainda o plano da expressão e o plano do conteúdo, visto que têm a 
mesma forma.” 37 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
37
 FLOCH, J. M. “Alguns conceitos fundamentais em semiótica geral”, In: Documentos de Estudo do Centro 
de Pesquisas Sociossemióticas. Vol. 1. São Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2001, p. 28. 
33 
 
Imperfeição e apreensão estética 
 
 
“(...) a própria apreensão é concebida como uma relação particular estabelecida, no quadro 
actancial, entre um sujeito e um objeto de valor. Essa relação é „natural‟; sua condição primeira é a 
parada do tempo, marcada figurativamente pelo silêncio que bruscamente sucede ao tempo 
cotidiano, representado como um ruído ritmado. A esse silêncio corresponde uma parada repentina 
de todo movimento no espaço, uma imobilização do objeto-mundo (...)” 
38
. É assim que Greimas 
define, logo nas primeiras páginas Da imperfeição, o que o texto de Michel Tournier lhe 
permitiu concluir sobre os elementos constitutivos da apreensão estética. 
Para analisar esses procedimentos, o semioticista pautou seu estudo sobre cinco 
textos literários. Contudo, abrimos mão de comentá-los aqui, para seguirmos diretamente às 
generalizações que os elementos dessas análises têm permitido. Com isso, mantemos nosso 
objetivo principal, conforme já havíamos dito no início do capítulo, que é compreender o 
momento de apreensão estética nos termos propostos pelo autor. Desse modo, iniciamos 
abordando a questão da estética do sujeito e do objeto e, por último, a fusão de ambos. 
 
 A estética do sujeito e do objeto 
 
 A partir de um olhar subjetivo sobre o modo de existência dos valores e da 
significação diante do mundo, o sujeito “descobre” o véu que oculta a realidade, mostrando 
que por trás dele existe uma tela com aspectos sensíveis do parecer, de onde podemos 
depreender novos valores e sentido. Ou seja, no contato direto entre o sujeito e sua “nova” 
realidade, então revelada, há uma apreensão cognitiva que o modifica. 
 Ao romper a isotopia da “significação inteligível”, passamos à da estética, e tal 
mudança, como afirma o autor, não só transforma a construção do sentido como a da própria 
vida. Verifica-se, portanto, a ocorrência de uma estética que concebe o momento de sua 
apreensão como uma ruptura da conjunção do sujeito com o mundo, em decorrência de uma 
expansão do sentido que desloca o indivíduo de seus parâmetros, de suas convicções, para 
um rompimento com a situação vigente. A apreensão de tal evento estético sempre acontece 
de forma arrebatadora e apresenta-se para o sujeito de modo imprevisível. 
 
38
 GREIMAS, A. J. Da imperfeição. São Paulo, Hacker, 2002, p.25. 
 
34 
 
 É por meio da noção de “fratura” que Greimas enuncia as bases dessa estética, 
conforme diz neste trecho: 
 
“Não se trata aqui, então, de uma simples troca de istopia textual, mas de uma 
verdadeira fratura entre a dimensão da cotidianidade e o „momento de inocência‟. A 
passagem a esse novo „estado de coisas‟ se manifesta como a ação de uma força que 
vem do exterior (...)” 39. 
 
No fragmento de Michel Tournier, por exemplo, o autor nos mostra como a figura de 
uma gota d‟água ao tentar cair de uma clepsidra apropria-se das funções do sujeito e 
transforma-se em um ator modalizado e patêmico, levando Robinson Crusoé a deslumbrar-
se e a visualizar outra realidade, ao vê-la em tal movimento. Esse duplo fazer: o do objeto 
que faz o sujeito senti-lo, e o fazer do sujeito sentindo o fazer do objeto, reforça a ação do 
evento estético; sob as condições de uma suspensão do tempo e de uma paralisação do 
espaço, indicadores que apontam o desconectar do sujeito em relação ao seu curso prévio, o 
que se experimenta é um outro ritmo em descompasso e dissimétrico ao ritmo anterior. 
É como se tivéssemos um plano cartesiano: o eixo das abscissas representando a 
espacialidade e o das coordenadas, a temporalidade. No eixo espacial, encontramos o 
movimento suprimido no instante de apreensão e no eixo da temporalidade, a estagnação do 
tempo. É nesse exato momento, em que o sujeitotomado por uma visão “extraordinária”, 
deixa entrever por alguns segundos, graças aos buracos, as brechas que existem nesta tela do 
parecer, uma nova “realidade”. 
A fratura surge, portanto, como uma espera antecedente ao evento estético, e, que 
mais tarde, torna-se estudo das mais diversas interpretações, obrigando o sujeito a lançar-se 
sobre seu objeto-mundo em uma completa fusão. E sendo esta uma fusão breve, na medida 
em que torna insustentável para o sujeito manter o êxtase envolvido na apreensão de tal 
sentido, ocorre um gradual desaparecimento do “evento extraordinário”, levando o indivíduo 
a guardar para si uma lembrança nostálgica que mais tarde vêm a produzir ressemantizações 
no próprio sentir-se, sentir o mundo, a vida diária, etc. 
Para concluir, devemos notar que o objeto estético diferentemente do objeto teórico, 
definido até este momento pela teoria semiótica, caracteriza-se por uma seqüência de papéis 
 
39
 GREIMAS, op. cit., p.26. 
35 
 
actanciais, na medida em que assume um estatuto próprio dentro da teoria. Num primeiro 
momento, apresenta-se como um destinador-manipulador, modalizando os afetos e as 
percepções do sujeito, que, por sua vez, passa a reconhecer neste, sua parte complementar. 
Daí que somente depois, já em uma segunda etapa, é que assumirá a função de objeto 
propriamente dito, ou seja, aquele que recebe as determinações do sujeito. 
Por sua vez, o sujeito da vivência estética, também apresenta características próprias. 
No início, demonstra características passivas, o que é típico da função de objeto. Ao passo 
que, somente irá reconhecer-se como um sujeito em si, quando o objeto estético entrar em 
cena, atuando como destinador. Desse modo, é o objeto que vem trazer ao sujeito o saber 
sobre a sua própria condição. 
Assim, nos resta deduzir que o “contrato” da fusão entre sujeito e objeto estéticos, 
não é produto da ação do sujeito. Muitas vezes ela é o resultado de uma ação bilateral entre 
os actantes; ou seja, um vai à direção do outro: o sujeito aparece sensibilizado pela presença 
do objeto e o objeto ressaltado pela percepção do sujeito. 
Analisemos o conto A Serpente
40
 do Marquês de Sade para compreender melhor tal 
processo: 
A Serpente 
 
 Todo o mundo conheceu no início deste século a sra. presidenta de C..., uma das 
mulheres mais amáveis e a mais bonita de Dijon, e todo o mundo a viu afagar e manter 
publicamente em sua cama a serpente branca, que é o tema desta anedota. 
- Este animal é o melhor amigo que possuo – dizia um dia a uma senhora estrangeira 
que veio visitá-la e se mostrou curiosa da razão dos cuidados que a bela presidenta tinha 
por sua serpente. – Outrora amei com paixão – prosseguiu – um jovem encantador, 
forçado a se afastar de mim por obrigações militares. Fora outros modos de nos 
comunicarmos, exigiu que fizesse como ele em determinadas horas, cada um por si, 
fosse para um lugar solitário para pensar exclusivamente em nosso afeto recíproco. Uma 
vez, às cinco da tarde, indo me fechar numa estufa de flores ao fundo do jardim, 
mantendo o nosso trato, percebi de repente a meus pés este animal, embora nenhuma 
espécie semelhante pudesse entrar na propriedade. Quis fugir, a serpente se estendeu 
diante de mim como a pedir misericórdia e me jurar que estava longe da idéia de me 
fazer mal. 
 
40
 SADE, Marquês de. O marido complacente. São Paulo: L&PM POCKET, 1997. 
36 
 
Parei, observei-a. vendo-me tranqüila, se aproximou, fez cem voltas muito ágeis a 
meus pés, não pude me impedir de tocá-la, passou delicadamente a cabeça na minha 
mão, peguei-a, pus sobre os joelhos, onde ela se enrolou e pareceu dormir. Uma 
preocupação me veio, lágrimas me subiram aos olhos sem que sentisse e molharam o 
belo animal. Despertado por minha dor, me observou, gemeu, ergueu a cabeça até meu 
seio, acariciando-o, e voltou a descer, desfeito. Ó céu sagrado, aconteceu, gritei, meu 
amante morreu! Deixei o funesto lugar, levando comigo a serpente a que um sentimento 
oculto parecia me ligar, a despeito de mim mesma. Fatais advertências de uma voz 
desconhecida de que interpretará como quiser os sinais, sra., mas oito dias depois soube 
que meu amigo tinha sido morto na hora em que a serpente me apareceu. Nunca quis me 
separar dela, e já não me deixará enquanto viver. Depois me casei, mas com a expressa 
condição de a não tirarem de mim. 
Terminando de falar, amável presidenta agarrou a serpente contra o peito e a fez dar 
cem belas voltas ante a dama que a interrogava. 
Como são inexplicáveis teus desígnios, Providência, se essa história é real como 
assegura toda a província de Borgonha! 
 
O sujeito da narrativa (figurativizado no texto como presidenta) faz do cotidiano, 
uma seqüência esperada de acontecimentos. Isto é, tem como hábito se masturbar todos os 
dias, em determinadas horas, pensando em seu amante que tivera de partir. De modo que, 
assim, ela cumpre o contrato de fidúcia estabelecido entre os dois: 
 
 “Fora outros modos de nos comunicarmos, exigiu que fizesse como ele em 
determinadas horas, cada um por si, fosse para um lugar solitário para pensar 
exclusivamente em nosso afeto recíproco. Uma vez, às cinco da tarde, indo me 
fechar numa estufa de flores ao fundo do jardim, mantendo o nosso trato, percebi de 
repente a meus pés este animal (...)” 
 
Contudo, o sujeito é surpreendido pela presença de um animal na cena, o que em 
termos semióticos, trata-se de um objeto actorializado na figura de uma serpente. Mas, 
antes, é importante observar que quando o sujeito tenta fugir, fica claro estar em jogo os 
valores da descontinuidade; pois tal valor é figurativizado no texto pela imagem da fuga. 
 
37 
 
 “Quis fugir, a serpente se estendeu diante de mim como a pedir misericórdia e me 
jurar que estava longe da idéia de me faze mal.” 
 
Ao repetir sempre a mesma ação, a presidenta se dispõe ao previsível. Entretanto, à 
continuidade dessa situação coloca-se uma outra, inesperada: a serpente que surge no campo 
visual do sujeito, atraindo-lhe a atenção de expectante. Desse modo, dizemos que há uma 
nova isotopia, na medida em que esta rompe com a antiga. Se quisermos aderir à categoria 
fórico/tensiva do quadrado semiótico
41
 a essa isotopia, no intuito de melhorar a 
compreensão, veremos que a cotidianidade assume o papel de continuação e a duração da 
vida do sujeito nesse estado à continuação da continuação, o que gera o seguinte quadrado 
semiótico: 
 
 
Do ponto da atividade / passividade estéticas, perceba que a serpente, a princípio, 
surge como sujeito e destinador-manipulador, e a presidenta como objeto; uma vez que é o 
animal que visa entrar em conjunção com o sujeito, manipulando-o por meio da paixão da 
misericórdia, para depois, quando a presidenta assumir a função ativa, tornar-se objeto. 
Assim, ela surge inicialmente apassivada; mais tarde, ao sofrer a manipulação, reconhece a 
serpente como objeto e passa a agir ativamente. 
Ainda assim, é importante perceber que a função de destinador, algo marcante no 
objeto estético, é muito mais presente na figura da serpente, embora a presidenta também 
figure nesse papel. Isso se deve ao fato de que a ação dela é decorrente da manipulação da 
serpente. Porque até então, a presidenta se caracteriza como um ser expectante e passivo. É 
 
41
 Para as relações temporais implicadas nessa versão do quadrado semiótico, ver TATIT, L. “Geração”. In: 
Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo, Escuta, 1994. 
continuação da parada continuação da continuação 
parada da

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