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DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA II Conteudistas: Luiz Fernando Medeiros de Carvalho e Marcélia Guimarães Paiva Aula 5 - MÁRIO DE ANDRADE E O JORRO IMPETUOSO DA LITERATURA Meta Apresentar a poesia de Mário de Andrade, um dos poetas mais significativos do Modernismo. Objetivos: Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1. Reconhecer algumas características da poesia modernista. 2. Identificar a influência do Modernismo na poesia contemporânea. 1. INTRODUÇÃO Nas duas primeiras décadas do século XX, no Brasil, surgiram escritores de formação realista-naturalista com uma obra preocupada com as questões sociais e uma proposta de intervenção maior na sociedade. Com uma linguagem que se aproximava da usada pelos excluídos pelo país oficial, esses escritores criticaram e elite e denunciaram a sociedade desigual. Propuseram uma redescoberta do país existente longe dos centros de poder, nos subúrbios metropolitanos e nas regiões afastadas do litoral. Esse chamado Pré-Modernismo brasileiro teve como destaque Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Augusto dos Anjos, entre outros precursores que influenciaram o movimento modernista na década de 1920. O Modernismo no Brasil foi um movimento de ampla difusão geográfica, que se estendeu até o final da década de 1978, reinventando a produção nas áreas de literatura e artes plásticas. Os modernistas foram influenciados pelos movimentos vanguardistas europeus de antes da Primeira Guerra. No entanto, não houve cópia e aqui está a grande novidade brasileira. O movimento distinguiu-se pela liberdade de estilo e aproximação com a língua falada. A primeira fase do Modernismo brasileiro é radical e irreverente, com seus adeptos dispostos a serem diferentes do que existia, especialmente do romantismo. O movimento espalhou-se pelo país com a criação de manifestos e revistas. 2 Começou uma busca por tudo que fosse autenticamente nacional e pudesse representar o verdadeiro Brasil. Em 1922, vivia-se uma efervescência cultural e política. Na cidade de São Paulo aconteceu a Semana de Arte Moderna, houve eleições presidenciais e a fundação do Partido Comunista em Niterói. O objetivo da Semana de Arte Moderna era comemorar o centenário da independência. Os participantes e organizadores tinham a preocupação de mostrar uma arte que fosse imanente à cultura popular brasileira. Um dos participantes foi Oswald de Andrade, autor do Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago, e seu amigo Mário de Andrade. INÍCIO DO BOXE DE ATENÇÃO É interessante que você pesquise a respeito desses manifestos modernistas citados e também sobre: “Revista Klaxon”: Mensário de Arte Moderna (1922-1923); Verde-Amarelismo ou Escola da Anta (1926-1929); Manifesto Regionalista (1926); “Revista de Antropofagia” (1928-1929); “Revista Verde” (1927-1928); Manifesto do Grupo Verde de Cataguases (1927). FIM DO BOXE DE ATENÇÃO A partir de 1930, surge a segunda geração modernista com os poetas Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Emílio Moura, Jorge de Lima, Vinícus de Moraes, e os romancistas Érico Veríssimo, Cornélio Penha, Lúcio Cardoso, José Américo de Almeida, Marques Rebelo, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, augusto Frederico Schmidt, entre outros. A chamada Geração 45 (1945-1978, terceira fase modernista) tem expoentes como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Antônio Olinto, Ariano Suassuna, Lygia Fagundes Telles, Domingos Carvalho da Silva, Ferreira Gullar, Geraldo Vidigal, Nélson Rodrigues, entre outros. Nesta aula, veremos três poemas de Mário de Andrade, o modernista que produziu uma obra variada, tanto agressiva e galhofeira como comprometida com as questões sociais. Mário de Andrade tem uma obra extensa publicada em jornais, 3 revistas e livros. Foi ensaísta, poeta, romancista, crítico e teórico nas áreas de literatura, música, cinema, folclore e artes plásticas. INÍCIO DO BOXE DE CURIOSIDADE Veja uma foto de Mário de Andrade no Palace Hotel, Rio de Janeiro, 1936: Da esquerda para a direita Cândido Portinari, Antônio Bento, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cândido_Portinari,_Antônio_Bento,_Mário_de_An drade_e_Rodrigo_Melo_Franco_1936.jpg FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE 2. “DOIS POEMAS ACREANOS” O conjunto chamado “Dois poemas acreanos”, publicado no livro Clã do Jabuti, em 1927, foi dedicado por Mário de Andrade a Ronald de Carvalho. Ronald de Carvalho participou da Semana de Arte Moderna lendo o poema “Os sapos” - uma sátira mordaz de Manuel Bandeira à poesia remanescente parnasiana - no Teatro Municipal de São Paulo. Ronald de Carvalho foi poeta e diplomata. Dirigiu com Luís de Montalvor o primeiro número da polêmica revista literária “Orpheu”, publicado em Lisboa em março de 1915. Embora tenham sido publicados apenas 4 dois números, a revista foi uma das responsáveis pela introdução do Modernismo em Portugal. Vítima de acidente automobilístico, no Rio de Janeiro, Ronald de Carvalho morreu em 15 de fevereiro de 1935. O primeiro poema de “Dois poemas acreanos” de Mário de Andrade chama-se “Descobrimento”: Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu... (ANDRADE, M., 2013, p. 287) O título sugere uma paródia da carta de Pero Vaz de Caminha quando os portugueses “descobriram” o Brasil. Afinal, os modernistas também pretendiam descobrir o país, deglutindo as culturas europeias para recriá-las aqui. Esse descobrimento provoca a necessidade de acalentar o seringueiro em um segundo poema do conjunto. INÍCIO DO BOXE DE ATENÇÃO Mário de Andrade viajou para conhecer o Brasil. Em 1927, conheceu a Amazônia. Ele foi um grande estudioso preocupado em registrar as manifestações da cultura nacional. Oswald de Andrade também tem um poema intitulado “A descoberta” dentro de um conjunto intitulado “Pero Vaz de Caminha”, que parodia a carta de Caminha a respeito do descobrimento do Brasil: a descoberta Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra os selvagens Mostraram-lhes uma galinha 5 Quase haviam medo dela E não queriam por a mão E depois a tomaram como espantados primeiro chá Depois de dançarem Diogo Dias Fez o salto real as meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha (ANDRADE, O., 1974, p. 80) FIM DO BOXE DE ATENÇÃO O poema “Descobrimento” de Mário de Andrade faz uma descoberta: o livro é “palerma”. Ora, o que acontece é que o eu lírico transfere sua estupefação ao objeto ao descobrir um ser humano diferente que a erudição do poeta não explica. Ainda descobre que se trata de um brasileiro, que mora em um lugar remoto. O eu lírico solidariza-se com o seringueiro, tem sentimentos nobres, não é um invasor violento. Pelo contrário, ele está sujeito a uma noite ativa que “cai”.INÍCIO DO BOXE DE ATENÇÃO O poema “Descobrimento” possui apenas uma estrofe de 11 versos livres (de métrica variável) e brancos (ou soltos, sem rima). Sem rimas, os poemas modernistas foram dessonorizados, a poesia “[...] se aproximou sob este aspecto da sonoridade normal e mais discreta da prosa” (CANDIDO, 2006, p. 42). FIM DO BOXE DE ATENÇÃO O poema “Descobrimento” termina com o seringueiro dormindo. No poema seguinte, “Acalanto do seringueiro”, em “Dois poemas acreanos” de Mário de 6 Andrade, o eu lírico está conversando com o seringueiro. Essa sequência – seringueiro dormindo e seringueiro desperto – é surpreendente e pode indicar que o acalanto é destinado a fazer dormir o poeta. A palavra acalanto designa uma canção de ninar para fazer adormecer uma criança. O poema introduz uma dúvida na sintaxe do título, pois não fica claro quem é o ser frágil que está sendo embalado. A assonância entre seringueiro e brasileiro contribui para aproximar o eu lírico ao seringueiro, pois, como está no poema anterior – “Descobrimento” –, ambos são brasileiros: Seringueiro brasileiro, Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. Ponteando o amor eu forcejo Pra cantar uma cantiga Que faça você dormir. Que dificuldade enorme! Quero cantar e não posso, Quero sentir e não sinto A palavra brasileira Que faça você dormir... Seringueiro, dorme... (ANDRADE, M., 2013, p. 288) O poema é construído por versos heptassílabos que obedecem ao ritmo natural do português coloquial. O verso “Seringueiro, dorme.”, que será repetido com algumas variações, tem um número menor de sílabas. Essa quebra sugere uma pausa no acalanto para uma admoestação ou reflexão de quem canta. INÍCIO DO BOXE EXPLICATIVO Mário de Andrade foi músico e musicólogo e um pioneiro no estudo da etnomusicologia. Observe, no poema “Acalanto do seringueiro”, as várias alusões ao mundo da música. A palavra “ponteio” sugere que o poema é uma canção de ninar cantada acompanhada de um violão. FIM DO BOXE EXPLICATIVO Tanto no poema “Descobrimento” como em “Acalanto do seringueiro”, observa-se um tom coloquial e o uso do vocabulário popular, características do Modernismo, com o intuito de aproximar o poeta do povo brasileiro. 7 O poema “Acalanto do seringueiro” de Mário de Andrade assinala que o eu lírico tem dificuldade para cantar e sentir. Não se espera que a menção a dificuldades seja objeto de uma cantiga de ninar. Esse detalhe reforça a ideia de que o acalanto não é feito para fazer o seringueiro dormir. A dificuldade do canto se estende ao espaço do seringueiro, feito de “escureza”. Na segunda estrofe, a assonância se dá entre escureza, macieza e aspereza que indica a reunião tensa, no mesmo espaço da floresta, de características diferentes: Como será a escureza Desse mato-virgem do Acre? Como serão os aromas A macieza ou a aspereza Desse chão que é também meu? Que miséria! Eu não escuto A nota do uirapuru!... Tenho de ver por tabela, Sentir pelo que me contam, Você, seringueiro do Acre, Brasileiro que nem eu. Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. (ANDRADE, M., 2013, p. 288-289) A ideia de dificuldade se completa com a “miséria” do eu lírico. Ele tem necessidade de “enxergar” não apenas “ver” por meio dos sentidos de outro, necessidade de sentir o seringueiro mais proximamente, de tocá-lo para tentar diminuir a distância: Seringueiro, seringueiro, Queria enxergar você... Apalpar você dormindo, Mansamente, não se assuste, Afastando esse cabelo Que escorreu na sua testa. Algumas coisas eu sei... Troncudo você não é. Baixinho, desmerecido, Pálido, Nossa Senhora! Parece que nem tem sangue. Porém cabra resistente Está ali. Sei que não é Bonito nem elegante... Macambúzio, pouca fala, Não boxa, não veste roupa De palm-beach... Enfim não faz Um desperdício de coisas Que dão conforto e alegria. (ANDRADE, M., 2013, p. 289) INÍCIO DO BOXE EXPLICATIVO 8 Durante a Segunda Guerra Mundial, um exército de 55 mil nordestinos foi mobilizado com pulso firme, propaganda forte e promessas delirantes para deslocar- se rumo à Amazônia e cumprir uma agenda do Estado Novo: produzir borracha. Ao fim do conflito, em 1945, os sobreviventes foram abandonados a sua própria sorte. Getúlio Vargas resolveu três problemas com essa migração: “[...] a produção de borracha, o povoamento da Amazônia e a crise do campesinato provocada por uma seca devastadora no Nordeste. [...] Estima-se que 31 mil homens tenham morrido na Batalha da Borracha - de malária, febre amarela, hepatite e onça” (MAGESTE, 2014). FIM DO BOXE EXPLICATIVO Nessa terceira estrofe, o poema faz uma descrição estereotipada do “exótico” seringueiro estabelecendo a distância entre ele e o eu lírico. Apesar de ter um conhecimento superficial do outro, o eu lírico ainda tenta, por meio da ironia, ressaltar sua semelhança no trato das dificuldades relativas à política brasileira, referindo-se ao pagamento da dívida externa resultante da proclamação da República ou ao pagamento das benesses dos políticos. Outra tentativa é chamar o outro de “companheiro”: Mas porém é brasileiro, Brasileiro que nem eu... Fomos nós dois que botamos Pra fora Pedro II... Somos nós dois que devemos Até os olhos da cara Pra esses banqueiros de Londres... Trabalhar nós trabalhamos Porém pra comprar as pérolas Do pescocinho da moça Do deputado Fulano. Companheiro, dorme! Porém nunca nos olhamos Nem ouvimos e nem nunca Nos ouviremos jamais... Não sabemos nada um do outro, Não nos veremos jamais! (ANDRADE, M., 2013, p. 289-290) Nesse trecho, percebe-se a importância dos sentidos para estabelecer a comunicação direta, sem depender dos sentidos de terceiros. Os sentidos do seringueiro são relevantes, embora ele devesse estar dormindo. Paradoxalmente, 9 essa proximidade não se concretiza no mundo do eu lírico que nota que não sabe nada, ao contrário do que afirmou na terceira estrofe: Seringueiro, eu não sei nada! E no entanto estou rodeado Dum despotismo de livros, Estes mumbavas que vivem Chupitando vagarentos O meu dinheiro o meu sangue E não dão gosto de amor... Me sinto bem solitário No mutirão de sabença Da minha casa, amolado Por tantos livros geniais, "Sagrados" como se diz... E não sinto os meus patrícios! E não sinto os meus gaúchos! Seringueiro dorme ... E não sinto os seringueiros Que amo de amor infeliz... (ANDRADE, M., 2013, p. 290) Há uma diferença grande entre essa e a quarta estrofe. Na quarta estrofe, existe um “nós” explorado pelos políticos. Nessa última estrofe citada, é o “eu” que tem o sangue chupado pelos livros impedindo-o de sentir. A imagem dos livros é muito negativa. Rafael Climent-Espino (2012) afirma que “[...] os modernistas conotam negativamente tudo o que é ligado ao textual, aparecendo sempre como prejudicial nos poemas”. O livro “palerma” do poema “Descobrimento” é um exemplo. Um contra-exemplo é a “palavra brasileira”, em “Acalanto do seringueiro”, “[...] que tem conotações positivas, refere-se à palavra falada, não à escrita” (CLIMENT-ESPINO, 2012). Em “Acalanto do seringueiro”, há uma tensão nas tentativas de aproximação entre o poeta letrado e o povo analfabeto. Essa impossibilidade de aproximação gera o que Climent-Espino (2012) chama de “textualidade negativa” nos textos modernistas. A oralidade tem prioridade e conotações positivas. Daí a preferência do Modernismo pelo verso livre que se aproxima mais da oralidade: “Se para os parnasianos o poema deve se converter num objeto,para os modernistas essa materialidade do poema é considerada negativa porque tira do texto a liberdade que tem a palavra falada” (CLIMENT-ESPINO, 2012). O verso “Seringueiro dorme...” do poema “Acalanto do seringueiro” de Mário de Andrade, tem um tom suave de quem fala baixinho, constatando que o trabalhador já dormiu. O seringueiro não escuta o lamento do sábio nem se comove com os sentimentos nobres do eu lírico ou suas tentativas de aproximação: 10 Nem você pode pensar Que algum outro brasileiro Que seja poeta no sul Ande se preocupando Com o seringueiro dormindo, Desejando pro que dorme O bem da felicidade... Essas coisas pra você Devem ser indiferentes, Duma indiferença enorme... Porém eu sou seu amigo E quero ver se consigo Não passar na sua vida Numa indiferença enorme. Meu desejo e pensamento (...numa indiferença enorme...) Ronda sob as seringueiras (...numa indiferença enorme...) Num amor-de-amigo enorme... (ANDRADE, M., 2013, p. 290-291) INÍCIO DO BOXE DE CURIOSIDADE Na época em que foi criado o poema “Acalanto do seringueiro”, e até o ano de 1969, o Estado de São Paulo se encontrava na região Sul do Brasil. FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE O eu lírico está adormecendo e mergulha, ao final da estrofe, no sono em meio a uma “indiferença enorme”. Em seguida, parece despertar e lembrar-se de ninar o seringueiro: Seringueiro, dorme! Num amor-de-amigo enorme Brasileiro, dorme! Brasileiro, dorme. Num amor-de-amigo enorme Brasileiro, dorme. Brasileiro, dorme, Brasileiro... dorme... Brasileiro... dorme... (ANDRADE, M., 2013, p. 291) Nessas estrofes finais, aposto e verbo se sucedem suavemente como se tratasse de uma única frase. São versos suaves, para adormecer o brasileiro vencido pela indiferança ou constatar que ele já dorme. Esses versos encerram o 11 acalanto não assertivo, feito de muitas reticências e dúvidas. O eu lírico sente-se impedido de cantar, de sentir, de escutar. Afinal, não consegue vencer a indiferença nem a distância física e socioeconômica que o separam do seringueiro. O diálogo não aconteceu entre o Norte e o Sul, entre a sofisticação e a rusticidade. 3. O POEMA “A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ” Poema publicado em 1945 no livro Lira paulistana, tem como subtítulo a indicação de seu tempo de criação “(30 de novembro de 1944 a 12 de fevereiro de 1945)”. O poema possui 22 estrofes, algumas com mais de uma dezena de versos. Pode-se pensar que é tão longo para acompanhar a passagem do rio pela metrópole e cortando a área rural existente na época em que foi escrito. No entanto, o poema se fixa nos acontecimentos e aspectos do rio na região da cidade de São Paulo. O leitor também é levado a acreditar que a palavra “meditação” do título refere-se a uma reflexão profunda a respeito do Tietê, mas a primeira estrofe o surpreende, pois se trata de uma evocação que sinaliza que o rio terá papel ativo e transformará a meditação em um diálogo com o eu lírico (ou um monólogo em que o eu lírico tanto assume sua posição quanto a do interlocutor): Água do meu Tietê, Onde me queres levar? - Rio que entras pela terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa. É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta O peito do rio, que é como se a noite fosse água, Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres do meu coração exausto. De repente O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, É um susto. E num momento o rio Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam Agora, arranha-céus valentes donde saltam Os bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas, Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e se aplaude. E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra. Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo, Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam 12 Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte. É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana. (ANDRADE, M., 2013, p. 531-532) O poema recria um Tietê lento, asfixiado pelas margens, que por sua vez cria uma imagem da metrópole agitada e cheia de contradições. O rio é humanizado, tem sentimentos, e ora se aproxima da figura do eu lírico, ora da figura dos homens. O eu lírico transfere ao rio as suas angústias de morador dessa cidade, desconfortável e tenso entre sua arte e que ele chama de “a dor humana” (ANDRADE, M., 2013, p. 98). Depois de começar o poema com uma estrofe de sete sílabas – o tipo mais popular de métrica – e com dois versos rimados, o autor muda de forma e desenvolve versos de métrica variada e sem rima. Além dessa, as duas estrofes iniciais mostram outras características modernistas que acompanharam o criador do Modernismo, Mário de Andrade: a primeira estrofe posicionada à direita para destacar o diálogo, o uso de palavras e expressões populares, a temática cotidiana. A segunda estrofe tem três movimentos em que noite, luz e novamente noite se sucedem. Essa estrofe também dá o tom geral do poema ao descrever o espaço submetido à opressão de um tempo, a noite. A troca de adjetivos em “Água noturna, noite líquida” sugere uma aproximação entre a noite e o rio. A noite também está envolta em tristeza. Assim como a palavra “soturnas”, que tanto pode se referir ao que é escuro ou é melancólico, o “banzeiro” do rio parece se referir à melancolia do eu lírico, de coração apreensivo, devastado e sem firmeza. Existe um ar de opressão realçado pela presença de sombras que rondam o rio ou o eu lírico. O eu lírico se posiciona no espaço, “Debaixo do arco admirável”, bem próximo ao rio. Sua imagem também se confunde à da ponte quando evoca “As altas torres do meu coração exausto” que são, na verdade, as torres da ponte das Bandeiras. O espaço é uma confusão de sons: a vida que “muge” é aquela que berra, faz barulho; as águas apenas gemem; e o eu lírico, o menos importante entre a cidade e o rio, tem dentro do peito um ínfimo “rumor de germes”. Do mesmo modo, chama a atenção a presença de um elemento solitário, perdido nesse espaço: “Flor”. Essa pequena palavra, margeada por dois pontos finais, dá uma pista do real objeto dessa “meditação” do poema de Mário de Andrade. 13 INÍCIO DO BOXE DE CURIOSIDADE Veja a ilustração de um anúncio de um empreendimento imobiliário de 1942, que mostra as duas torres da ponte das Bandeiras, em: http://blogs.estadao.com.br/reclames-do-estadao/2011/01/15/ponte-das-bandeiras/. A imobiliária responsável informava que os terrenos foram valorizados pela construção da ponte. FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE O rio flui e recolhe, em um momento fugaz, as imagens da cidade com estranhos seres humanizados e uma vida humana reificada, que muge. O poema “A meditação sobre o Tietê” de Mário de Andrade trata com ironia a cidade em antíteses que misturam a nobreza dos palácios, os bichos blau (que têm a cor azul dos brasões) e os dinossauros mancos. Isso contribui para afastar a ideia de que essa meditação é um processo de desligamento de preocupações do mundo real. Se o poema não é apenas uma meditação, se a figura do eu lírico se aproxima a do rio, se a imagem de objetos materiais e a vida humana têm um tratamento invertido, se o espaço é noturno – “tudo énoite” – e à noite são atribuídos sentimentos que são do eu lírico, pode-se pensar que o poema usa o simbolismo do rio como a imagem da transformação das formas, das águas que trazem renovação, fertilidade e morte. Seu fluxo é o fluxo da existência humana e da existência do poeta. A terceira estrofe retoma o diálogo com o rio: Meu rio, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde me queres levar?... Por que me proíbes assim praias e mar, por que Me impedes a fama das tempestades do Atlântico E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar? Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra, Me induzindo com a tua insistência turrona paulista Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!... (ANDRADE, M., 2013, p. 532) O rio, como símbolo da vida humana, desafia o eu lírico ao levá-lo não para o mar, o lugar em que submergiria em meio ao nada, mas para dentro da “terra dos 14 homens”, o lugar de “tempestades humanas”. Aqui está mais uma característica dos modernistas, o comprometimento social. A questão da escrita, engajada e longe dos “lindos versos” românticos, vai aparecer mais vezes no poema. INÍCIO DO BOXE DE CURIOSIDADE Mário de Andrade também foi político e fundador do Partido Democrático em 1926. Ele tinha uma preocupação pedagógica, provocando outros poetas a se engajarem em uma poesia participante. Veja o que ele disse a Carlos Drummond de Andrade em carta datada de 10 de novembro de 1924: Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja bobo, mas acredite que é um sacrifício lindo. O natural da mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: ele creem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade. Eu me sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em mim nas horas de consciência, eu mal posso respirar, quase gemo na pletora da minha felicidade. O texto inteiro da carta você encontra em: http://www.revistabula.com/1466-uma-carta-de-mario-de-andrade-para-carlos- drummond/ FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE Percebe-se que o eu lírico está em uma situação que manifesta a origem bíblica do homem criado do barro, um “bicho da terra”. Em função dessa origem, ele está inserido em uma maldição da qual não pode escapar, pois está sob um fluxo de águas teimosas como seriam os paulistas. Essa referência à origem bíblica continua na próxima estrofe quando o eu lírico pondera que sua salvação será feita pelo “barro” do qual se constituem os “sofrimentos dos homens”: Já nada me amarga mais a recusa da vitória Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim. Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante, E fui por tuas águas levado, A me reconciliar com a dor humana pertinaz, 15 E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens. Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por Estas minhas próprias mãos que me traem, Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos, Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada Se perdeu em cisco e pólen, cadáveres e verdades e ilusões. (ANDRADE, M., 2013, p. 532) O eu lírico rejeita a individualidade e a felicidade individual devido ao seu compromisso social por meio da escrita. A meditação sobre si é também sobre o ato de escrever. Nessa estrofe, ainda reflete que, em alguns momentos, perdeu de vista seu objetivo e tornou-se uma “aranha insaciada”. Aqui a aranha não é dona de seu destino, não teve autonomia para tecer sua teia, ou seu texto. Nota-se que a dor humana “pertinaz” tem algo em comum com o rio: a teimosia. Enquanto na última citada o barro purifica o eu lírico, na estrofe seguinte as “infâmias, egoísmo e traições” o sujam. Para completar, nas estrofes seguintes, o eu lírico enfatiza que no rio está sua salvação, afastando-se do mito bíblico da criação do homem, pois ele vence a “serpente”. Sua poesia mergulha no rio ou na vida humana: Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando As cordas oscilantes da serpente, rio. Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou. Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu. Contágios, tradições, brancuras e notícias, Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo, Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora. Destino, predestinações... meu destino. Estas águas Do meu Tietê são abjetas e barrentas, Dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses. Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas, Silvos de tocaias e lamurientos jacarés. Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás, Depois morrem. Sobra não. Nem sequer o Boi Paciência Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal. (ANDRADE, M., 2013, p. 533-534) INÍCIO DO BOXE MULTIMÍDIA 16 Veja um texto sobre a história do rio Tietê (e outros rios de São Paulo) neste endereço: http://vivendocidade.com/boi-paciencia-os-rios-de-nossa-sao-paulo. Compare essa foto de 1905 do rio Tietê com a imagem das “águas oliosas” de que fala o poema de Mário de Andrade: Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d6/Rio_tiete.jpg FIM DO BOXE MULTIMÍDIA Em “A meditação sobre o Tietê”, o eu lírico percebe que o rio afoga sua paciência. Junto com essa passividade do eu lírico, o rio faz sumir os valores burgueses: “Contágios, tradições, brancuras e notícias”. O rio é capaz de engolir todos os elementos da história da cidade como mais uma evocação de que o rio representa o destino comum de todos os homens. A ironia se volta especialmente contra a Escola da Anta – as “antas” – e os bandeirantes As transformações históricas podem não ser grandes, mas é movimento, avisa o irônico eu lírico imitando a fala popular. As águas do rio são a origem de seu sofrimento e de sua poesia quando dão “antíteses”. Esse poder de destruição e criação do rio (ou do eu lírico) é reforçado na nona e décima estrofes: Me sinto o Pai Tietê! ôh força dos meus sovacos! Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda! Nordeste de impaciente amor sem metáforas, Que se horroriza e enraivece de sentir-se 17 Demagogicamente tão sozinho! Ôh força! Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda, Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me Demagogicamente tão só! A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua Se as tuas águas estão podres de fel E majestade falsa? A culpa é tua Onde estão os amigos? onde estão os inimigos? Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e Os iletrados? Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga! E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas Do Instituto Histórico e Geográfico, e os mu- seus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos, Celso nihil estate varíolas gide memoriam, Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as Novas ruas abertas e a falta de habitações e Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!... (ANDRADE, M., 2013, p. 534-535) Se o rio é o símbolo da existênciahumana, suas águas são o símbolo da literatura. Essas águas estão contaminadas (“Isto não são águas que se beba, conhecido”), apodrecidas pelas lutas de egos. O poema “A meditação sobre o Tietê” foi terminado em 1945, quando o Modernismo já estava maduro. Assim, o texto medita sobre sua história ao citar as famílias e pessoas que foram importantes para o movimento modernista, como a família que patrocinou seu início, a do poeta modernista Paulo Prado, e a revista Clima de artes e ciências humanas, criada por estudantes paulistas e editada de 1941 a 1944. Outra crítica presente na estrofe é à história de São Paulo: ao fixar um ponto específico do rio Tietê, a ponte das Bandeiras, o eu lírico torna-se um anti-bandeirante que já não entra pelo mato conquistando como Borba Gato - ou “os barbas e os gatos” – e se mistura à metrópole. Ao separar a sílaba “mu” da palavra museu, cria uma onamatopeia que, no poema, é um dos exemplos “da vida que muge” evocada na segunda estrofe. O poema abusa das imagens inusitadas: “Calípedes flogísticos” seriam bichos preguiça capazes de provocar combustão; “trustkistas” junta a palavra símbolo do capitalismo, trust, ao trotskismo contrarrevolucionário da União Soviética; “tiradeira divina de Cristo” transforma o Cristo em um animal de carga levando a cruz. A ironia do eu lírico se volta contra si e as instituições: Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha De ti em tua ambição fumarenta. És demagogia em teu coração insubmisso. 18 És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico E antiuniversitário. És demagogia. Pura demagogia. Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas. Mesmo irrespirável de furor na fala reles: Demagogia. Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia: Demagogia. Tu és em meio à (crase) gente pia: Demagogia. És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia: Demagogia. És demagogia, ninguém chegue perto! Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto Esperto Ciumento Peripatético e Ceci E Tancredo e Afrodísio e também Armida E o próprio Pedro e também Alcibíades, Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor, O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas, E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno, Porque és demagogia e tudo é demagogia. (ANDRADE, M., 2013, p. 535- 536) O eu lírico está mais enraivecido, perdeu a paciência com ele próprio e os outros. Essa raiva o faz repetir várias vezes a palavra demagogia e considerar, no final da estrofe, que o eu lírico é “demagogia e tudo é demagogia”. É interessante notar que, no início do poema “A meditação sobre o Tietê”, é enfatizado que “tudo é noite”. Existe uma aproximação entre essa situação de “noite” e a “demagogia”. É como se o eu lírico representasse todos os setores da sociedade que manipulam as necessidades do povo. A sua poesia também é demagógica, uma literatura de fachada: “Demagogia / Tu és em meio à (crase) gente pia: / Demagogia”. Além dessa alusão à escrita, o poema cita uma demagogia sem metáforas, o que pretensamente a diferencia da tradição literária. Observam-se nesse trecho um uso especial de palavras para criar uma atmosfera falsa, inútil, de fachada, como “ambição fumarenta”; a homofonia de “anticéptico”, que lembra “antisséptico”; e a brincadeira da rima “erto” nos nomes próprios. Nota-se que o único ser não demagógico no poema é o Tietê. Por outro lado, as mãos emaranhadas e lerdas são uma alusão às complicações e aos embaraços do ato de escrever. Em oposição à delicadeza e à serenidade educada do rio, o poema cita a grosseria do eu lírico que é um vestígio da demagogia generalizada dos políticos: Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes! 19 São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro, Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito, Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene, Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro. Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes, Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas Em zás-trás dos guapos Pêdêcê e Guaporés. Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares, E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses; Mas é asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem, Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada. Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando De dirigir a corrente, com ares de salva-vidas. E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca, E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar No bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas, As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão. (ANDRADE, M., 2013, p. 536-537) INÍCIO DO BOXE EXPLICATIVO Palavra-valise ou palavra entrecruzada “[...] designa o vocábulo resultante de partes de outros vocábulos, não raro a primeira e a última. [...] Empregada notadamente por escritores experimentalistas ou de vanguarda” (MOISÉS, 2004, p. 333). No poema “A meditação sobre o Tietê”, são exemplos desse tipo as palavras “brincabrincando” e “murmulho”. FIM DO BOXE EXPLICATIVO Para falar dos políticos, o eu lírico usa uma linguagem bem popular como a expressão “Ei-vem” e os adjetivos que personificam os peixes. Reforça o sentido pejorativo quando faz uma quase homofonia ao usar “imprudente” e “asnático” em vez de “impudente” e “asiático”. A falta de respeito aos partidos e políticos que exploram o povo – inclusive aquele que seria criado em 1945, o Partido Democrata Cristão (PDC), e o Partido de Representação Popular (PRP), proprietário do Correio 20 Paulistano, que apoiou a vanguarda da Semana de Arte Moderna (BOSI, 2006, p. 339) – continua nos seguintes versos: Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe! Berra de amor humano impenitente, Cega, sem lágrimas, ignara, colérica, investe! Um dia hás-de ter razão contra a ciência e a realidade, E contra os fariseus e as lontras luzidias. E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes. E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e Pundhonor. Pum d'honor. (ANDRADE, M., 2013, p. 537) ATIVIDADE 1 (Atende ao objetivo 1. Reconhecer algumas características da poesia modernista) O estudo do vocabulário do poema “A meditação sobre o Tietê” é uma fonte para se conhecer as opções estéticas e ideológicas do grupo modernista. As figuras de linguagem também. Uma delas é a prosopopeia “[...] que consiste em atribuir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais, ausentes, mortos ou abstratos. Espécie de humanização ou animismo, pode dar-se de vários modos” (MOISÉS, 2004, p. 374). Identifique e comente as ocorrências de prosopopeia no poema. DEIXAR 10 LINHAS Resposta comentada: Espera-se que o aluno destaque que a prosopopeia modifica o sentido das palavras rio e águas, contribuindo para aproximá-las da imagem dos seres humanos, como nos casos em que se observa essa figura de linguagem: na segunda estrofe: “peito do rio”; águas” que “se aplacam / Num gemido”; na terceira estrofe: “Sarcástico rio”; e outros exemplos. Também outras palavras têm seu sentido modificado pela prosopopeia como “mãos que me traem” na quarta estrofe; ondas que “cantam”na sétima estrofe; “cauda de pavão, tão pesada e ilusória” na décima sexta estrofe. Na décima terceira estrofe, os peixes têm características humanas em um recurso à prosopopeia. FIM DA ATIVIDADE 21 Mesmo sendo uma literatura de fachada, o eu lírico a desafia. Posteriormente, retoma o tom soturno da primeira estrofe e volta-se para a observação do rio: É noite... Rio! meu rio! meu Tietê! É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens. É noite e tudo é noite. O rio tristemente Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa. Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam As altas torres do meu exausto coração. Me sinto esvair no apagado murmulho das águas. Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito Quereria sofrer, talvez (sem metáforas) uma dor irritada... Mas tudo se desfaz num choro de agonia Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge, E me larga desarmado nos transes da enorme cidade. (ANDRADE, M., 2013, p. 538) Essa estrofe é uma meditação sobre a escrita do poeta também recolhida pelo rio. Mas não é um processo sossegado: as imagens da água e da noite se misturam. O eu lírico alude às metáforas e usa o vocativo “flor”, imagem tradicional de poesia. A escrita é um processo contraditório feito de “choro de agonia / Plácida”. No entanto, o eu lírico deseja que rio ilumine-se ao refletir seu poema. Mas o peso da tradição arquitetônica, familiar, legislativa, religiosa e de toda a civilização esmagam o eu lírico. Se os homens se comprometessem com suas ideias, o rio se tornaria uma cauda de pavão “orgulhosa e reflorescente”. Enquanto isso não acontece, o rio é como um escravo melancólico, segundo o eu lírico. Os dois – rio e eu lírico – não podem fluir em linha reta, sem amarras, e sofrem presos pelas curvas: Vem de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo, E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros, E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio. Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios Nesse rolo torvo das águas. Meu Deus! meu Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens! Quem pode compreender o escravo macho E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre Entre injustiça e impiedade, estreitado Nas margens e nas areias das praias sequiosas? Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero Que o resto do galé aquoso ultrapasse esse dia, Pra ser represado e bebido pelas outras areias Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam 22 A trágica sina do rolo das águas, e dirigem O leito impassível da injustiça e da impiedade. Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas, Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens, Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala, Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo, E rola mansa, amansada imensa eterna, mas No eterno imenso rígido canal da estulta dor. (ANDRADE, M., 2013, p. 539- 540) O poema apresenta uma posição inversa aos donos do poder da época que, em nome do progresso, controlava as inundações do rio e inaugurava a ponte das Bandeiras. Nessa estrofe, em oposição ao rio de “suspiro educado e sereno”, existem a baixeza da “torpeza da enchente dos homens” e “a massa líquida / da multidão”. Pode-se observar que a representação do eu lírico por meio da figura do rio transforma-se em representação da imagem dos homens nos últimos cinco versos da estrofe. Fiel aos valores modernistas, Mário de Andrade quer, no poema, estabelecer diferenças entre o poeta e pessoas e instituições, mas, ao mesmo tempo, preocupa-se em apresentá-los muito próximos, sem o poeta posicionar-se em uma torre de marfim. O poema também critica a inauguração da ponte quando reflete que os homens não escutam o rio ou o eu lírico e preferem os discursos cheios de asneiras, as “béstias”, e a falsidade generalizada: Porque os homens não me escutam! Por que os governadores Não me escutam? Por que não me escutam Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes? Todos os donos da vida? [...] porque preferem O retrato a ólio das inaugurações espontâneas, Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior, E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção, (ANDRADE, M., 2013, p. 540) Nesse trecho, o eu lírico é irônico e agressivo, ao citar as “fezes” e “chefes” tão próximos graficamente e ao citar a realidade e as inaugurações pretensamente “espontâneas” tanto quanto as demonstrações de agrado no último verso citado. “Fezes” parece também uma provocação àqueles que consideram a poesia uma “flor”. Por outro lado, o eu lírico é realmente espontâneo, já se entregou ao amor apaixonado e romântico: 23 Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva, E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas, E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor... Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado Ao fogo irrefletido do amor. ...eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também O amor do amor, Maria! E a carne plena da amante, e o susto vário Da amiga, e a inconfidência do amigo... Eu já amei Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal. E também, ôh também! na mais impávida glória Descobridora da minha inconstância e aventura, Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz! E eu não sabia! Eu bailo de ignorâncias inventivas, E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei! Quem move meu braço? Quem beija por minha boca? Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração? Quem? senão o incêndio nascituro do amor?... Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras, Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece Úmido nas espumas da água do meu rio, E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor. (ANDRADE, M., 2013, p. 541) Ao evocar “Maria”, uma entidade poética, o eu lírico considera que sua poesia demonstrou esse amor quando era “trezentos” – uma alusão ao poema “Eu sou trezentos...” de Mário de Andrade publicado em 1943. Trata-se de um poema irônico que evoca o desprezo do eu lírico pelo mundo (ANDRADE, M., 2013, p. 307). Mudando de tom, em “A meditação sobre o Tietê”, o eu lírico faz questão de acentuar que seu amor é de um “bardo mestiço”, de um modernista atento à cultura brasileira. Ele se sente como uma voz que tem uma missão, que é sinal de alerta, que se orgulha de pertencer a esse rio e estar próximo às suas águas, “grimpado no arco da Ponte das Bandeiras”. No entanto, o eu lírico lembra-se da atmosfera sufocante e retoma o verso “E tudo é noite” de outras estrofes. Dentro dessa noite, a vigésima estrofe mostra o eu lírico em uma conversa delirante com a poesia: É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite! Eu não enxergo sequer as barcaças na noite. Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza, E me disfarça numa queixa flébil e comedida, Onde irei encontrar a malícia do Boi Paciência Redivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra, Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa, Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintar 24 Nos ares, nas luzes longe, no peito das águas, No reflexo baixo das nuvens. (ANDRADE, M., 2013, p. 542) O poema quer resgatar a paciência, masaquela que tem a malícia do verso. O eu lírico é um ser pequeno diante da cidade, mas ainda a reflete como um espelho enquanto declara sua insignificância: São formas... Formas que fogem, formas Indivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidias Que mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes inacessíveis, Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!... Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza Outra vida melhor do outro lado de lá Da serra! E hei-de guardar silêncio Deste amor mais perfeito do que os homens?... Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado. (ANDRADE, M., 2013, p. 542-543) Em uma reviravolta, depois de evocar o rio como fez na primeira estrofe, o eu lírico sente-se importante devido a sua humanidade: No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável! Eu sou maior que os vermes e todos os animais. E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos, Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado, Maior que a estrela, maior que os adjetivos, Sou homem! vencedor das mortes, bem-nascido além dos dias, Transfigurado além das profecias! Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança. Eu me acho tão cansado em meu furor. As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas Para o peito dos sofrimentos dos homens. ... e tudo é noite. Sob o arco admirável Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca, Uma lágrima apenas, uma lágrima, Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê. (ANDRADE, M., 2013, p. 543) Como homem, o eu lírico pode ser maior que os outros homens, a natureza e até que sua poesia. Vence a “noite” que o assombrou por todo o poema. É senhor de seu destino e pode prescindir da esperança e da paciência. Mas esse furor é fugaz, pois ele descobre ser apenas uma parcela mínima de água escondida nas águas do rio. Esse balanço do eu lírico entre a “grandeza infatigável” e a derrota, que encerra o poema, parece prenunciar a morte física do poeta. Mário de Andrade morreu em 25 de fevereiro de 1945. 25 CONCLUSÃO Os poemas vistos aqui trazem, em dois momentos diferentes de produção, a novidade e o engajamento da escrita modernista. Revelam, especialmente, uma poesia social e de circunstância, como definiu o próprio Mário de Andrade em carta a Henriqueta Lisboa: Pra esclarecer, eu acho que não se deve chamar de poesia ‘social’ a que tem preocupações com a coletividade . Porque toda poesia, toda obra-de- arte é ‘social’, porque, mesmo se preocupando exclusivamente com as reações pessoais do artista, interessa à coletividade. Muito embora não cante, não se preocupe com a coletividade. O que em geral andamos por aí chamando de poesia social, é poema de circunstância, é arte de combate (ANDRADE, M., 2013, p. 42). Essa preocupação social diferenciou a obra de Mário de Andrade e influenciou seus contemporâneos e outros escritores. Especialmente, em “A meditação sobre o Tietê”, há uma reflexão sobre o ato de escrever que escancara as tensões entre o poeta, seus temas e sua arte que pertencem à coletividade citada. ATIVIDADE FINAL (Atende aos objetivos: 1. Reconhecer algumas características da poesia modernista; 2. Identificar a influência do Modernismo na poesia contemporânea) Torre de marfim: "Expressão bíblica (Cântico dos cânticos, 7, 4), posta em uso literariamente por Sainte-Beuve, em 1835, para designar a atitude quimérica, aristocrática, idealista, egocêntrica e melancólica de certos poetas, como, por exemplo, Vigny. Difundida largamente pelo século XIX, a expressão acabou por avizinhar-se da ‘arte pela arte’, sinalizando a recusa do escritor em participar das controvérsias de vária ordem que agitam o ambiente social à sua volta. Virado totalmente para a sua obra, num egotismo marcado de sofisticação e requinte estético, não se compromete com as lutas sociais, em especial de feição política: concentra-se exclusivamente na sua arte, apurando-a ao extremo da sutileza estética. Encerrado na sua torre de marfim, vislumbra a produção do seu artefato literário como o destino máximo que a vida lhe reservou. A expressão ‘torre de marfim’ acabou adquirindo sentido pejorativo: aponta a indiferença do artista e do escritor em relação às pugnas socioeconômicas e o desdém por todas as formas estéticas de ação sobre o meio circulante” (MOISÉS, 2004, p. 448). Observe que no poema “A meditação sobre o Tietê”, há várias passagens que demonstram que seu autor não se isolava em uma torre de marfim. Inclusive, há a 26 alusão às torres da ponte das Bandeiras. Analise a posição do eu lírico em relação a essas duas torres. Ele é protegido por elas? Elas são um elemento que o envolvem ou que fazem parte dele? Quais são os versos dos poemas vistos – “Dois poemas acreanos” e “A meditação sobre o Tietê” – que atestam que Mário de Andrade não se refugiava em uma torre de marfim? DEIXAR 20 LINHAS Resposta comentada: Espera-se que o aluno perceba que Mário de Andrade tem uma posição crítica em relação ao motivo da torre de marfim. O poema “A meditação sobre o Tietê” expressa as tensões de um indivíduo burguês, de um poeta “humano”, impedido de ter a “fama das tempestades do Atlântico”, “melancólico e frágil”, “engruvinhado” (encarquilhado) e outros exemplos. O mesmo pode ser observado no conjunto de poemas “Dois poemas acreanos”, que mostra o poeta como um ser que tem dúvidas ou se sente miserável por não conhecer o outro, como uma pessoa comum que joga boxa e tem dívidas financeiras, ou que deseja se aproximar do outro embora não consiga. FIM DA ATIVIDADE FINAL RESUMO Nesta aula vimos três poemas de duas fases diferentes de Mário de Andrade. Embora separados no tempo, os dois primeiros escritos no auge do movimento modernista e o terceiro, após o poeta já ter realizado uma avaliação do Modernismo, esses poemas trazem igualmente preocupações sociais do autor com críticas à exclusão social e a abordagem de temas brasileiros, não só paulistas. Nos poemas, há uma necessidade do eu lírico aproximar-se do objeto criado no texto: a imagem do seringueiro ou a do rio. Neles se percebem as inovações que marcaram o movimento modernista. Podem-se ressaltar as características do movimento como a liberdade em relação à métrica e à rima, o uso de vocabulário e sintaxe populares, a sintaxe e a sonoridade próximas da prosa, a preocupação com temas do cotidiano, a ironia, as onamatopeias, o uso de reticências. 27 O poema “A meditação sobre o Tietê” não foi inteiramente transcrito neste texto. É interessante que você o leia por inteiro, chegando às suas próprias conclusões, meditando sobre a literatura e fazendo a atividade final proposta. REFERÊNCIAS ANCONA LOPEZ, Telê Porto. Mário de Andrade leitor e escritor: uma abordagem de sua biblioteca e de sua marginália. Revista da Casa de Rui Barbosa, p. 53-75. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/revistas/Escritos_5/FCRB_Escritos_5 _4_Tele_Ancona_Lopez.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2014. ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. v. 1. ANDRADE, Oswald. Obras completas: poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v. 7. BELÉM, Euler de França. Uma carta de Mário de Andrade para Carlos Drummond. Disponível em: <http://www.revistabula.com/1466-uma-carta-de-mario-de-andrade- para-carlos-drummond/>. Acesso em: 31 mar. 2014. BOSI, Alfredo. História concisa da literaturabrasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. CORREIA, Marlene de Castro. Poesia de dois Andrades (e outros temas). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. CLIMENT-ESPINO, Rafael. Textualidades negativas: um novo traço de coesão na poesia modernista brasileira. LLJournal, v. 7, n. 1, maio 2012. Disponível em: <http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1105/1279>. Acesso em: 31 mar. 2014. MAGESTE, Paula. Exército da borracha. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT703947-1664,00.html>. Acesso em: 31 mar. 2014. MATOSINHO, Eduardo. Boi Paciência: os rios de nossa São Paulo. 2012. Disponível em: <http://vivendocidade.com/boi-paciencia-os-rios-de-nossa-sao- paulo>. Acesso em: 31 mar. 2014. 28 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cultrix, 2004. SCHOLZ, Cley. Ponte das Bandeiras. São Paulo, O Estado de S. Paulo, 15 jan. 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/reclames-do- estadao/2011/01/15/ponte-das-bandeiras/>. Acesso em: 31 mar. 2014. SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do Modernismo. Rio de janeiro: 7Letras, 2009. A partir de 1930, surge a segunda geração modernista com os poetas Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Emílio Moura, Jorge de Lima, Vinícus de Moraes, e os romancistas Érico Veríssimo, Cornélio Penha, Lúcio Cardoso, José Américo de Almeida, Marques Rebelo, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, augusto Frederico Schmidt, entre outros. A chamada Geração 45 (1945-1978, terceira fase modernista) tem expoentes como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Antônio Olinto, Ariano Suassuna, Lygia Fagundes Telles, Domingos Carvalho da Silva, Ferreira Gullar, Geraldo Vidigal, Nélson Rodrigues, entre outros. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cândido_Portinari,_Antônio_Bento,_Mário_de_Andrade_e_Rodrigo_Melo_Franco_1936.jpg 2. “DOIS POEMAS ACREANOS” O título sugere uma paródia da carta de Pero Vaz de Caminha quando os portugueses “descobriram” o Brasil. Afinal, os modernistas também pretendiam descobrir o país, deglutindo as culturas europeias para recriá-las aqui. Esse descobrimento provoca a necessidade de acalentar o seringueiro em um segundo poema do conjunto. O poema “Descobrimento” de Mário de Andrade faz uma descoberta: o livro é “palerma”. Ora, o que acontece é que o eu lírico transfere sua estupefação ao objeto ao descobrir um ser humano diferente que a erudição do poeta não explica. Ainda descobre que se trata de um brasileiro, que mora em um lugar remoto. O eu lírico solidariza-se com o seringueiro, tem sentimentos nobres, não é um invasor violento. Pelo contrário, ele está sujeito a uma noite ativa que “cai”. O poema “Descobrimento” possui apenas uma estrofe de 11 versos livres (de métrica variável) e brancos (ou soltos, sem rima). Sem rimas, os poemas modernistas foram dessonorizados, a poesia “[...] se aproximou sob este aspecto da sonoridade normal e mais discreta da prosa” (CANDIDO, 2006, p. 42). O poema “Descobrimento” termina com o seringueiro dormindo. No poema seguinte, “Acalanto do seringueiro”, em “Dois poemas acreanos” de Mário de Andrade, o eu lírico está conversando com o seringueiro. Essa sequência – seringueiro dormindo e seringueiro desperto – é surpreendente e pode indicar que o acalanto é destinado a fazer dormir o poeta. A palavra acalanto designa uma canção de ninar para fazer adormecer uma criança. O poema introduz uma dúvida na sintaxe do título, pois não fica claro quem é o ser frágil que está sendo embalado. A assonância entre seringueiro e brasileiro contribui para aproximar o eu lírico ao seringueiro, pois, como está no poema anterior – “Descobrimento” –, ambos são brasileiros: Como será a escureza Desse mato-virgem do Acre? Como serão os aromas A macieza ou a aspereza Desse chão que é também meu? Que miséria! Eu não escuto A nota do uirapuru!... Tenho de ver por tabela, Sentir pelo que me contam, Você, seringueiro do Acre, Brasileiro que nem eu. Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. (ANDRADE, M., 2013, p. 288-289) A ideia de dificuldade se completa com a “miséria” do eu lírico. Ele tem necessidade de “enxergar” não apenas “ver” por meio dos sentidos de outro, necessidade de sentir o seringueiro mais proximamente, de tocá-lo para tentar diminuir a distância: Seringueiro, seringueiro, Queria enxergar você... Apalpar você dormindo, Mansamente, não se assuste, Afastando esse cabelo Que escorreu na sua testa. Algumas coisas eu sei... Troncudo você não é. Baixinho, desmerecido, Pálido, Nossa Senhora! Parece que nem tem sangue. Porém cabra resistente Está ali. Sei que não é Bonito nem elegante... Macambúzio, pouca fala, Não boxa, não veste roupa De palm-beach... Enfim não faz Um desperdício de coisas Que dão conforto e alegria. (ANDRADE, M., 2013, p. 289) Nessa terceira estrofe, o poema faz uma descrição estereotipada do “exótico” seringueiro estabelecendo a distância entre ele e o eu lírico. Apesar de ter um conhecimento superficial do outro, o eu lírico ainda tenta, por meio da ironia, ressaltar sua semelhança no trato das dificuldades relativas à política brasileira, referindo-se ao pagamento da dívida externa resultante da proclamação da República ou ao pagamento das benesses dos políticos. Outra tentativa é chamar o outro de “companheiro”: Mas porém é brasileiro, Brasileiro que nem eu... Fomos nós dois que botamos Pra fora Pedro II... Somos nós dois que devemos Até os olhos da cara Pra esses banqueiros de Londres... Trabalhar nós trabalhamos Porém pra comprar as pérolas Do pescocinho da moça Do deputado Fulano. Companheiro, dorme! Porém nunca nos olhamos Nem ouvimos e nem nunca Nos ouviremos jamais... Não sabemos nada um do outro, Não nos veremos jamais! (ANDRADE, M., 2013, p. 289-290) Nesse trecho, percebe-se a importância dos sentidos para estabelecer a comunicação direta, sem depender dos sentidos de terceiros. Os sentidos do seringueiro são relevantes, embora ele devesse estar dormindo. Paradoxalmente, essa proximidade não se concretiza no mundo do eu lírico que nota que não sabe nada, ao contrário do que afirmou na terceira estrofe: Seringueiro, eu não sei nada! E no entanto estou rodeado Dum despotismo de livros, Estes mumbavas que vivem Chupitando vagarentos O meu dinheiro o meu sangue E não dão gosto de amor... Me sinto bem solitário No mutirão de sabença Da minha casa, amolado Por tantos livros geniais, "Sagrados" como se diz... E não sinto os meus patrícios! E não sinto os meus gaúchos! Seringueiro dorme ... E não sinto os seringueiros Que amo de amor infeliz... (ANDRADE, M., 2013, p. 290) Há uma diferença grande entre essa e a quarta estrofe. Na quarta estrofe, existe um “nós” explorado pelos políticos. Nessa última estrofe citada, é o “eu” que tem o sangue chupado pelos livros impedindo-o de sentir. A imagem dos livros é muito negativa. Rafael Climent-Espino (2012) afirma que “[...] os modernistas conotam negativamente tudo o que é ligado ao textual, aparecendo sempre como prejudicial nos poemas”. O livro “palerma” do poema “Descobrimento” é um exemplo. Um contra-exemplo é a “palavra brasileira”, em “Acalanto do seringueiro”, “[...] que tem conotações positivas, refere-se à palavra falada, não à escrita” (CLIMENT-ESPINO, 2012). Em “Acalanto do seringueiro”, há uma tensão nas tentativas de aproximação entre o poeta letrado e o povo analfabeto. Essa impossibilidade de aproximação gera o que Climent-Espino (2012) chama de “textualidade negativa” nos textos modernistas. A oralidade tem prioridade e conotações positivas. Daí a preferência do Modernismo pelo verso livre que se aproxima mais da oralidade: “Se para os parnasianos o poema deve se converter num objeto, para os modernistas essa materialidade do poema éconsiderada negativa porque tira do texto a liberdade que tem a palavra falada” (CLIMENT-ESPINO, 2012). O verso “Seringueiro dorme...” do poema “Acalanto do seringueiro” de Mário de Andrade, tem um tom suave de quem fala baixinho, constatando que o trabalhador já dormiu. O seringueiro não escuta o lamento do sábio nem se comove com os sentimentos nobres do eu lírico ou suas tentativas de aproximação: Nem você pode pensar Que algum outro brasileiro Que seja poeta no sul Ande se preocupando Com o seringueiro dormindo, Desejando pro que dorme O bem da felicidade... Essas coisas pra você Devem ser indiferentes, Duma indiferença enorme... Porém eu sou seu amigo E quero ver se consigo Não passar na sua vida Numa indiferença enorme. Meu desejo e pensamento (...numa indiferença enorme...) Ronda sob as seringueiras (...numa indiferença enorme...) Num amor-de-amigo enorme... (ANDRADE, M., 2013, p. 290-291) Na época em que foi criado o poema “Acalanto do seringueiro”, e até o ano de 1969, o Estado de São Paulo se encontrava na região Sul do Brasil. O eu lírico está adormecendo e mergulha, ao final da estrofe, no sono em meio a uma “indiferença enorme”. Em seguida, parece despertar e lembrar-se de ninar o seringueiro: Seringueiro, dorme! Num amor-de-amigo enorme Brasileiro, dorme! Brasileiro, dorme. Num amor-de-amigo enorme Brasileiro, dorme. Brasileiro, dorme, Brasileiro... dorme... Brasileiro... dorme... (ANDRADE, M., 2013, p. 291) Nessas estrofes finais, aposto e verbo se sucedem suavemente como se tratasse de uma única frase. São versos suaves, para adormecer o brasileiro vencido pela indiferança ou constatar que ele já dorme. Esses versos encerram o acalanto não assertivo, feito de muitas reticências e dúvidas. O eu lírico sente-se impedido de cantar, de sentir, de escutar. Afinal, não consegue vencer a indiferença nem a distância física e socioeconômica que o separam do seringueiro. O diálogo não aconteceu entre o Norte e o Sul, entre a sofisticação e a rusticidade. Água do meu Tietê, Onde me queres levar? - Rio que entras pela terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa. É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta O peito do rio, que é como se a noite fosse água, Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres do meu coração exausto. De repente O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, É um susto. E num momento o rio Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam Agora, arranha-céus valentes donde saltam Os bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas, Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e se aplaude. E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra. Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo, Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte. É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana. (ANDRADE, M., 2013, p. 531-532) Meu rio, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde me queres levar?... Por que me proíbes assim praias e mar, por que Me impedes a fama das tempestades do Atlântico E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar? Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra, Me induzindo com a tua insistência turrona paulista Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!... (ANDRADE, M., 2013, p. 532) Mário de Andrade também foi político e fundador do Partido Democrático em 1926. Ele tinha uma preocupação pedagógica, provocando outros poetas a se engajarem em uma poesia participante. Veja o que ele disse a Carlos Drummond de Andrade em carta datada de 10 de novembro de 1924: Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja bobo, mas acredite que é um sacrifício lindo. O natural da mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: ele creem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade. Eu me sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em mim nas horas de consciência, eu mal posso respirar, quase gemo na pletora da minha felicidade. O texto inteiro da carta você encontra em: http://www.revistabula.com/1466-uma-carta-de-mario-de-andrade-para-carlos-drummond/ FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE Percebe-se que o eu lírico está em uma situação que manifesta a origem bíblica do homem criado do barro, um “bicho da terra”. Em função dessa origem, ele está inserido em uma maldição da qual não pode escapar, pois está sob um fluxo de águas teimosas como seriam os paulistas. Já nada me amarga mais a recusa da vitória Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim. Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante, E fui por tuas águas levado, A me reconciliar com a dor humana pertinaz, E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens. Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por Estas minhas próprias mãos que me traem, Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos, Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada Se perdeu em cisco e pólen, cadáveres e verdades e ilusões. (ANDRADE, M., 2013, p. 532) O eu lírico rejeita a individualidade e a felicidade individual devido ao seu compromisso social por meio da escrita. A meditação sobre si é também sobre o ato de escrever. Nessa estrofe, ainda reflete que, em alguns momentos, perdeu de vista seu objetivo e tornou-se uma “aranha insaciada”. Aqui a aranha não é dona de seu destino, não teve autonomia para tecer sua teia, ou seu texto. Nota-se que a dor humana “pertinaz” tem algo em comum com o rio: a teimosia. Enquanto na última citada o barro purifica o eu lírico, na estrofe seguinte as “infâmias, egoísmo e traições” o sujam. Para completar, nas estrofes seguintes, o eu lírico enfatiza que no rio está sua salvação, afastando-se do mito bíblico da criação do homem, pois ele vence a “serpente”. Sua poesia mergulha no rio ou na vida humana: Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando As cordas oscilantes da serpente, rio. Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou. Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu. Contágios, tradições, brancuras e notícias, Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo, Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora. Destino, predestinações... meu destino. Estas águas Do meu Tietê são abjetas e barrentas, Dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses. Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas, Silvos de tocaias e lamurientos jacarés. Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás, Depois morrem. Sobra não. Nem sequer o Boi Paciência Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal. (ANDRADE, M., 2013, p. 533-534) Veja um texto sobre a história do rio Tietê (e outros rios de São Paulo) neste endereço: http://vivendocidade.com/boi-paciencia-os-rios-de-nossa-sao-paulo. Compare essa foto de 1905 do rio Tietê com a imagem das “águas oliosas”de que fala o poema de Mário de Andrade: Em “A meditação sobre o Tietê”, o eu lírico percebe que o rio afoga sua paciência. Junto com essa passividade do eu lírico, o rio faz sumir os valores burgueses: “Contágios, tradições, brancuras e notícias”. O rio é capaz de engolir todos os elementos da história da cidade como mais uma evocação de que o rio representa o destino comum de todos os homens. A ironia se volta especialmente contra a Escola da Anta – as “antas” – e os bandeirantes As transformações históricas podem não ser grandes, mas é movimento, avisa o irônico eu lírico imitando a fala popular. As águas do rio são a origem de seu sofrimento e de sua poesia quando dão “antíteses”. Esse poder de destruição e criação do rio (ou do eu lírico) é reforçado na nona e décima estrofes: Me sinto o Pai Tietê! ôh força dos meus sovacos! Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda! Nordeste de impaciente amor sem metáforas, Que se horroriza e enraivece de sentir-se Demagogicamente tão sozinho! Ôh força! Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda, Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me Demagogicamente tão só! A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua Se as tuas águas estão podres de fel E majestade falsa? A culpa é tua Onde estão os amigos? onde estão os inimigos? Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e Os iletrados? Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga! E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas Do Instituto Histórico e Geográfico, e os mu- seus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos, Celso nihil estate varíolas gide memoriam, Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as Novas ruas abertas e a falta de habitações e Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!... (ANDRADE, M., 2013, p. 534-535) Se o rio é o símbolo da existência humana, suas águas são o símbolo da literatura. Essas águas estão contaminadas (“Isto não são águas que se beba, conhecido”), apodrecidas pelas lutas de egos. O poema “A meditação sobre o Tietê” foi terminado em 1945, quando o Modernismo já estava maduro. Assim, o texto medita sobre sua história ao citar as famílias e pessoas que foram importantes para o movimento modernista, como a família que patrocinou seu início, a do poeta modernista Paulo Prado, e a revista Clima de artes e ciências humanas, criada por estudantes paulistas e editada de 1941 a 1944. Outra crítica presente na estrofe é à história de São Paulo: ao fixar um ponto específico do rio Tietê, a ponte das Bandeiras, o eu lírico torna-se um anti-bandeirante que já não entra pelo mato conquistando como Borba Gato - ou “os barbas e os gatos” – e se mistura à metrópole. Ao separar a sílaba “mu” da palavra museu, cria uma onamatopeia que, no poema, é um dos exemplos “da vida que muge” evocada na segunda estrofe. O poema abusa das imagens inusitadas: “Calípedes flogísticos” seriam bichos preguiça capazes de provocar combustão; “trustkistas” junta a palavra símbolo do capitalismo, trust, ao trotskismo contrarrevolucionário da União Soviética; “tiradeira divina de Cristo” transforma o Cristo em um animal de carga levando a cruz. A ironia do eu lírico se volta contra si e as instituições: Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha De ti em tua ambição fumarenta. És demagogia em teu coração insubmisso. És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico E antiuniversitário. És demagogia. Pura demagogia. Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas. Mesmo irrespirável de furor na fala reles: Demagogia. Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia: Demagogia. Tu és em meio à (crase) gente pia: Demagogia. És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia: Demagogia. És demagogia, ninguém chegue perto! Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto Esperto Ciumento Peripatético e Ceci E Tancredo e Afrodísio e também Armida E o próprio Pedro e também Alcibíades, Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor, O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas, E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno, Porque és demagogia e tudo é demagogia. (ANDRADE, M., 2013, p. 535-536) O eu lírico está mais enraivecido, perdeu a paciência com ele próprio e os outros. Essa raiva o faz repetir várias vezes a palavra demagogia e considerar, no final da estrofe, que o eu lírico é “demagogia e tudo é demagogia”. É interessante notar que, no início do poema “A meditação sobre o Tietê”, é enfatizado que “tudo é noite”. Existe uma aproximação entre essa situação de “noite” e a “demagogia”. É como se o eu lírico representasse todos os setores da sociedade que manipulam as necessidades do povo. A sua poesia também é demagógica, uma literatura de fachada: “Demagogia / Tu és em meio à (crase) gente pia: / Demagogia”. Além dessa alusão à escrita, o poema cita uma demagogia sem metáforas, o que pretensamente a diferencia da tradição literária. Observam-se nesse trecho um uso especial de palavras para criar uma atmosfera falsa, inútil, de fachada, como “ambição fumarenta”; a homofonia de “anticéptico”, que lembra “antisséptico”; e a brincadeira da rima “erto” nos nomes próprios. Nota-se que o único ser não demagógico no poema é o Tietê. Por outro lado, as mãos emaranhadas e lerdas são uma alusão às complicações e aos embaraços do ato de escrever. Em oposição à delicadeza e à serenidade educada do rio, o poema cita a grosseria do eu lírico que é um vestígio da demagogia generalizada dos políticos: Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes! São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro, Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito, Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene, Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro. Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes, Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas Em zás-trás dos guapos Pêdêcê e Guaporés. Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares, E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses; Mas é asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem, Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada. Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando De dirigir a corrente, com ares de salva-vidas. E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca, E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar No bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas, As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão. (ANDRADE, M., 2013, p. 536-537) Palavra-valise ou palavra entrecruzada “[...] designa o vocábulo resultante de partes de outros vocábulos, não raro a primeira e a última. [...] Empregada notadamente por escritores experimentalistas ou de vanguarda” (MOISÉS, 2004, p. 333). No poema “A meditação sobre o Tietê”, são exemplos desse tipo as palavras “brincabrincando” e “murmulho”. Para falar dos políticos, o eu lírico usa uma linguagem bem popular como a expressão “Ei-vem” e os adjetivos que personificam os peixes. Reforça o sentido pejorativo quando faz uma quase homofonia ao usar “imprudente” e “asnático” em vez de “impudente” e “asiático”. A falta de respeito aos partidos e políticos que exploram o povo – inclusive aquele que seria criado em 1945, o Partido Democrata Cristão (PDC), e o Partido de Representação Popular (PRP), proprietário do Correio Paulistano, que apoiou a vanguarda da Semana de Arte Moderna (BOSI, 2006, p. 339) – continua nos seguintes versos: Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o
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