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1 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LITERATURA PIAUIENSE 
________________________________________________ 
Wellington de Jesus Soares 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2 
 
 
APRESENTAÇÃO 
 
 
 
Comparada às outras, a nossa literatura, de expressão local, é ainda muito jovem, 
criança que mal começou a dar os primeiros passos. E literatura para se firmar, como se 
sabe, demanda tempo e trabalho contínuo dos apaixonados pela arte da palavra. 
A Literatura Portuguesa data do século XII, com o lançamento da Cantiga da 
Ribeirinha (1189/1198), de Paio Soares de Taveirós, tendo, portanto, mais de oito séculos 
de existência. Nela despontam as genialidades de Camões, Eça de Queiroz, Fernando 
Pessoa e José Saramago. 
Iniciada em 1500 com a Carta de Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, 
escrivão da frota de Cabral, a Literatura Nacional tem uns 500 e tantos anos. Entre os 
nomes conhecidos dentro e fora do país, sobressaem Alencar, Machado, Clarice, 
Graciliano, Vinícius, Guimarães Rosa e Drummond. 
Quanto à “Literatura Piauiense”, considerando Poemas, de Ovídio Saraiva, como 
marco introdutório, texto lançado em 1808, ela tem apenas 207 anos de vida, um reduzido 
número de leitores e raros autores com projeção fora do Estado. 
Entenda-se esse termo em relação, como recurso didático, aos livros produzidos 
por escritores nascidos ou não aqui, que, de uma forma ou outra, mantêm laços 
sanguíneos e afetivos com o Piauí, quer abordando temas regionais (Fontes Ibiapina) ou 
universais (Mário Faustino). 
A falta de uma cronologia oficial da literatura local, definida e aprovada pelos 
críticos, além da APL e dos cursos de Letras, tem gerado muita controvérsias nas diversas 
esferas de ensino, dificultando o aprendizado de todos, sobretudo, dos maiores 
interessados na matéria: alunos e professores. 
Daí o presente estudo, neste curso de 60 horas, priorizar nomes já consagrados 
de nossa literatura. Num primeiro momento, serão vistos quatro autores: Da Costa e Silva, 
O. G. Rego de Carvalho, Assis Brasil e Torquato Neto. No segundo, mais três: H. Dobal, 
Mário Faustino e Fontes Ibiapina. Com eles, e sem desmerecer os demais, a Literatura de 
Expressão Piauiense está devidamente representada. 
Em certa ocasião, o crítico Antônio Cândido, um dos mais respeitados no país, 
escreveu algo sobre a literatura brasileira que, provavelmente, diz respeito à nossa 
também. Ou não? 
 
“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há 
outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a 
amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as 
tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão.” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
Sumário 
Texto para reflexão 1 ...................................................................................................................................... 5 
Da Costa e Silva .............................................................................................................................................. 7 
Autor ............................................................................................................................................................ 7 
Obra ............................................................................................................................................................. 7 
Características .............................................................................................................................................. 8 
Temas ........................................................................................................................................................... 8 
Influências .................................................................................................................................................... 9 
Comentários ................................................................................................................................................. 9 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 10 
Poemas selecionados ................................................................................................................................. 12 
Texto complementar .................................................................................................................................. 15 
O. G. Rego de Carvalho ................................................................................................................................ 18 
Autor .......................................................................................................................................................... 18 
Obra ........................................................................................................................................................... 18 
Características ............................................................................................................................................ 19 
Temas ......................................................................................................................................................... 19 
Influências .................................................................................................................................................. 19 
Comentários ............................................................................................................................................... 20 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 21 
Textos selecionados ................................................................................................................................... 22 
Torquato Neto ............................................................................................................................................... 24 
Autor .......................................................................................................................................................... 24 
Obra ........................................................................................................................................................... 24 
Características ............................................................................................................................................ 26 
Temas ......................................................................................................................................................... 26 
Influências .................................................................................................................................................. 26 
Comentários ............................................................................................................................................... 26 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 27 
Textos selecionados ................................................................................................................................... 31 
Assis Brasil ..................................................................................................................................................... 37 
Autor .......................................................................................................................................................... 37 
Obra ........................................................................................................................................................... 37 
Características ............................................................................................................................................38 
Temas ......................................................................................................................................................... 39 
4 
 
Influências .................................................................................................................................................. 39 
Comentários ............................................................................................................................................... 39 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 42 
 Textos selecionados .................................................................................................................................. 43 
Fontes Ibiapina .............................................................................................................................................. 45 
Autor .......................................................................................................................................................... 45 
Obra ........................................................................................................................................................... 45 
Características ............................................................................................................................................ 46 
Temas ......................................................................................................................................................... 47 
Influências .................................................................................................................................................. 47 
Comentários ............................................................................................................................................... 47 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 48 
 Textos selecionados .................................................................................................................................. 50 
H. Dobal ......................................................................................................................................................... 54 
Autor .......................................................................................................................................................... 54 
Obra ........................................................................................................................................................... 55 
Características ............................................................................................................................................ 55 
Temas ......................................................................................................................................................... 56 
Influências .................................................................................................................................................. 56 
Comentários ............................................................................................................................................... 56 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 58 
 Textos selecionados .................................................................................................................................. 59 
Mário Faustino .............................................................................................................................................. 64 
Autor .......................................................................................................................................................... 64 
Obra ........................................................................................................................................................... 64 
Características ............................................................................................................................................ 65 
Temas ......................................................................................................................................................... 65 
Influências .................................................................................................................................................. 65 
Comentários ............................................................................................................................................... 65 
Texto para reflexão .................................................................................................................................... 66 
 Poemas selecionados ................................................................................................................................ 67 
Bibliografia .................................................................................................................................................... 71 
 
 
5 
 
 Texto para reflexão 
 
 
LITERATURA PIAUIENSE: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO 
 
Ao falar de “Literatura Piauiense”, sentimos a necessidade de delimitar o que 
consideramos como tal. O que significa, afinal, essa denominação? 
Primeiro, é bom lembrar que a produção literária a que nos referimos é, ao mesmo 
tempo, parte e todo. Pertence àquele conjunto maior que chamamos literatura nacional ou 
literatura brasileira, sem, entretanto, deixar de possuir uma certa individualidade, ou seja, 
uma singularidade, que a distingue da literatura nacional e das demais literaturas 
regionais. 
Historicamente, a literatura piauiense tem enfrentado o desafio de tornar-se parte 
significativa da literatura brasileira, legitimada pela crítica nacional e, ao mesmo tempo, 
apresentar-se como uma literatura de expressão “piauiense”, contribuindo, de forma 
decisiva, para a construção da identidade cultural do Estado. 
O movimento de construção da identidade da literatura piauiense teve origem no 
início do século XX, quando emergiram os primeiros trabalhos da crítica literária local 
estimulados pelo desenvolvimento da imprensa e pelo incremento da publicação de obras 
literárias do Estado. Na visão de nossos intelectuais daquele período, a construção do 
conceito de literatura piauiense dependia de um reconhecimento nacional, que desse 
legitimidade àquela produção, afirmando o talento literário dos autores piauienses. 
O critério de legitimação da literatura piauiense por meio da crítica nacional 
restringe-se, no entanto, ao substantivo “literatura”, primeiro termo da denominação em 
análise, remetendo-nos, assim, à questão específica: a produção escrita pelos piauienses 
tem mesmo valor literário? É de fato um objetivo estético criado através da palavra? 
O outro termo, no caso, o adjetivo "piauiense” tem a função de recortar dentro 
daquele conjunto maior da literatura brasileira a parte correspondente ao Estado do Piauí, 
ou seja, a expressão genuinamente piauiense que se distingue de todas as outras 
expressões literárias produzidas no País. 
Os critérios para delimitar o significado desse adjetivo “piauiense” são vários. Um 
deles é decorrente da biografia dos autores. Nesse caso, considera-se literatura piauiense 
toda obra produzida por autores nascidos no Piauí. Privilegiando a biografia dos autores, 
podemos, ainda, considerar “piauiense” a obra de autores radicados em outros Estados. 
A vantagem desse critério é a sua abrangência, que permite a incorporação de autores 
como Ovídio Saraiva e Mário Faustino, que nasceram no Piauí e se radicaram em outros 
centros, ou, então, caso contrário, autoresque nasceram em outros Estados e que se 
radicaram, permanentemente ou temporariamente, no Piauí, como Higino Cunha, 
Adalberto Peregrino, Odilo Costa Filho, para citar apenas os mais antigos. 
Por outro lado, esse mesmo critério aplicado a outras literaturas poderia nos 
subtrair alguns dos nossos autores, por exemplo, Taumaturgo Vaz, Jonas da Silva, Félix 
Pacheco, Da Costa e Silva e Amélia de Freitas Bevilacqua, os quais não só tiveram seus 
livros editados em outros Estados, como também viveram a maior parte do tempo fora do 
Piauí. Nessa situação, ainda poderia ser citado Lucídio Freitas, que, durante algum tempo, 
viveu em Belém do Pará, exercendo a docência na Faculdade de Direito daquele Estado 
e participando do movimento cultural de Belém, onde publicou sua primeira obra 
independente Vida obscura, de 1917. 
Um critério menos abrangente recortaria aquelas obras literárias que dão conta 
de uma realidade humana e social reconhecível como essencialmente piauiense. Esse 
critério englobaria os poemas sertanejos de Hermínio Castelo Branco, grande parte da 
poesia de Da Costa e Silva e de H. Dobal, a narrativa ficcional de Francisco Gil Castelo 
Valéria
Realce
Valéria
Realce
Valéria
Realce
Valéria
Realce
Valéria
Realce
Valéria
Realce
Valéria
Realce
6 
 
Branco, Abdias Neves, João Pinheiro, Fontes Ibiapina, O.G. Rego de Carvalho, parte da 
obra de Assis Brasil e muitos outros autores, mas deixaria de contemplar as obras de 
autores, tais como: Jonas da Silva, Félix Pacheco, Celso Pinheiro, Mário Faustino, para 
não citar uma extensa lista. 
Ainda se poderia estabelecer outros parâmetros para definir o que é “literatura 
piauiense”. Um bastante interessante é o de incluir o público original da obra, ou seja, 
aquele a quem o autor destinou sua obra e com o qual pretende manter um diálogo. Seria 
o caso de perguntar-se: qual o leitor visado pelo autor no momento da publicação de sua 
obra? O leitor local? Existe um público de leitores piauienses com os quais os autores 
mantêm uma relação dialógica? É claro que uma obra que não tenha sido destinada 
originariamente ao leitor piauiense pode posteriormente entrar em sintonia com este 
público e com ele estabelecer um diálogo significativo. É talvez o caso de Ataliba, o 
vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, que passou mais de cem anos totalmente 
desconhecido do público local e que, atualmente, vem sendo lido e discutido por um 
considerável número de leitores piauienses. 
Sem querer estender a discussão, que comporta ainda muitos outros argumentos, 
queremos apenas afirmar que nenhum critério definidor da literatura piauiense deve ser 
utilizado de maneira excludente. Tratando-se de uma literatura emergente, não devemos 
recusar nem descartar autores e obras; pelo contrário, precisamos engrossar o caldo da 
literatura piauiense, absorvendo o maior número possível de componentes. Acreditamos 
que o papel da crítica literária é fazer um recorte mais abrangente possível e depois 
classificar, colocando em ordem no conjunto, organizando autores e obras de acordo com 
critérios claros e coerentes, sem, entretanto, abrir mão de nada; ao contrário, apropriando-
se do maior número possível de autores e obras. 
 
Profª. Dra. Maria do Socorro Rios Magalhães. In: Correio Corisco 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DA COSTA E SILVA 
Valéria
Realce
7 
 
 
Fez-me Poeta o Destino 
 
Quando nasci, o Destino 
Fez-me poeta, ainda no berço; 
Tanto assim que, pequenino, 
Minha mãe, rezando o terço, 
Pensava no meu destino, 
Entre os vaivéns do meu berço.. 
 
 (Da Costa e Silva. In: Verônica) 
 
 O AUTOR 
 
Seu nome completo é Antônio Francisco da Costa e Silva, mas responde pelo 
nome literário de Da Costa e Silva. Nasceu em Amarante, na rua das Flores, em 23 de 
novembro de 1885. 
Ainda na terra natal, teve alguns poemas publicados na Revista do Grêmio 
Amarantino. Já em Teresina, concluiu os preparatórios no Liceu Piauiense, transferindo-
se depois para Recife, onde cursou Direito. 
Como Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, órgão do Ministério da Fazenda, 
emprego conquistado por concurso, morou em vários estados no exercício da função: 
Minas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Amazonas e Maranhão. 
Casou-se duas vezes: com a primeira mulher, Alice Salles Salomon, teve três 
filhos - Márcio, Mário e Benedito; com a segunda, Creusa Fontenele, outros três – Alice, 
Alberto e Elisabete. 
Ainda hoje é o poeta mais popular do Estado, eleito “Príncipe dos Poetas 
Piauienses”, autor da letra do Hino do Piauí e membro da Academia Piauiense de Letras 
(APL). 
Vítima de um infarto, faleceu em 29 de junho de 1950, no Rio de Janeiro, depois 
de viver um longo tempo mergulhado em profundo silêncio (“exílio de si mesmo”) e 
afastado da escrita. 
 
 
 A OBRA 
 
Da Costa e Silva representou um papel poético da 
maior relevância em sua época, mesmo sendo autor de uma 
meia dúzia de livros, escritos e publicados ao longo de 19 
anos, entre 1908 e 1927. 
Alguns críticos o apontam tão bom quanto os poetas 
Augusto dos Anjos, paraibano, e o poeta José Albano, 
cearense. Pena não ter ainda merecido o reconhecimento 
nacional. 
Não fosse o trabalho empreendido pelo filho Alberto 
da Costa e Silva, ex-presidente da ABL e poeta da melhor 
qualidade também, provavelmente sua obra já estivesse 
esquecida. 
 
 
 
 
Livro Ano Dados 
8 
 
Sangue 1908 Estreia simbolista e de invulgar 
domínio formal. 
Zodíaco 1917 Considerado seu melhor livro. 
Pandora 1919 Preocupação formal e mitologia 
clássica 
Verônica 1927 Subjetivismo e saudade da esposa 
morta. 
Alhambra 1928/1933 Obra inconclusa. 
Poesias completas 1950 Todos os livros num único volume. 
 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
 
Como todos os autores do começo do século XX, Da Costa e Silva fundiu em sua 
poética traços parnasianos (rigor formal, soneto e objetivismo) e simbolistas (linguagem 
musical, sugestão e individualismo), num jogo sincrético de estilos típicos desse período. 
Embora tenha usado a destreza técnica, que conhecia a fundo, não deixou que 
sua poesia se tornasse particularmente difícil, árdua e, menos ainda, hermética a ponto 
de ser incompreensível aos leitores. 
Quanto à linguagem utilizada nos textos, embora culta e trabalhada, foi dotada, 
segundo José Guilherme Merquior, de uma dimensão de oralidade como que incorporada 
à sua própria natureza íntima. Além, de uma inserção social, destaca o crítico 
Mas o traço marcante de sua poética é, de forma inequívoca, o caráter lírico que 
perpassa o conjunto da obra, como se pode constatar nos versos abaixo: 
 
“Mas foi tamanha a minha desventura, 
Que pendurei, muda e quebrada, a lira 
No salgueiro da tua sepultura.” 
 
 
 TEMAS ABORDADOS 
 
Os críticos são unânimes em destacar a saudade como o eixo temático mais 
importante de sua obra, notadamente em relação a Amarante, ao rio Parnaíba e à sua 
mãe. 
Outro assunto muito presente em seus textos é a chamada poesia da natureza, 
sobre a qual dedica um livro completo, Zodíaco, evocando elementos diversos da flora e 
fauna. 
Impossível esquecer ainda os poemas dedicados à “musa uxória”, nos quais 
cantou a esposa morta, reunidos na segunda parte de Verônica, seu último livro completo. 
Da Costa e Silva soube também, a exemplo dos grandes poetas, refletir sobre a 
própria condição humana, tão bem retratada filosoficamente na seguinte estrofe: 
 
“Feliz daquele que os seus atos pauta 
Dentro dos dons da vida que o rodeia, 
E acha o leito macio e a mesa lauta 
Na indiferença da fortuna alheia.” 
 
 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
 
9 
 
Suas influências literárias foram muitas e distintas, inspirando-se sempre em 
grandes autores, nas suas obras e estilos, nunca perdendo a oportunidade de reverenciá-
los. 
Entre os franceses, destacam-se Verlaine, Baudelaire e Mallarmé. Quanto aos 
portugueses, bebeu em Antero de Quental, Antônio Nobre e Cesário Verde. Na literatura 
norte-americana, a fontefoi Edgar Allan Poe. Já da produção nacional, despontam Cruz 
e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, nutrindo por este último especial devoção. 
Mas foi ao poeta belga Émile Verhaeren, a quem se referia como “mestre”, que 
dedicou um belo poema de caráter elegíaco, quando este faleceu num acidente de trem 
em 1916. 
 
“Mestre, tu que exaltaste a vertigem da vida 
Nas forças tumultuosas do progresso, 
Ampliando o mundo à ação da humanidade forte, 
Morres, sentindo-a sob as rodas de um expresso 
Com seus cavalos de vapor a toda a brida, 
Na fogosa pressão da máquina, seguida 
Da longa procissão dos vagões de transporte, 
Na indiferente e célere corrida, 
Ao ruidoso rumor dos seus carros de morte!” 
 
 
 COMENTÁRIO DOS LIVROS 
 
Sangue 
Lançado quando o poeta, aos 23 anos, cursava Direito em Recife. 
Livro de caráter simbolista. Escorrem pelos textos o sentimento de amor 
materno, o apego à terra natal e a identificação com o rio Parnaíba, 
batizado de “Velho Monge”. Entre os poemas consagrados da obra de 
estreia, destacam-se “Cântigo do sangue”, “Deusa pagã”, “Rio das garças”, 
“Mater”, “Madrigal de um louco”, “Ironia eterna” e, o mais consagrado de 
todos, “Saudade”, soneto tido, sob a visão dos críticos, como “um dos mais 
belos momentos da poesia de língua portuguesa”. 
 
Zodíaco 
Um verdadeiro cântico de louvor à Natureza, em toda sua beleza e amplitude. 
Como afirma Osório Borba, “mais parece trechos de música, na sua missão sutilíssima de 
produzir os diversos ruídos do mundo”. Aqui o poeta amantino presta homenagem à flora, 
à fauna, às estações do ano e, de forma telúrica, à terra natal. O livro ostenta, como 
epígrafe, um quarteto de Verhaeren e uma dedicatória – “Ao meu longínquo Piauí – na 
divina evocação de sua natureza maravilhosa”. Entre os textos, constam dois poemas de 
defesa ecológica: “A Queimada” e a “A Derrubada”. 
 
Verhaeren 
Na verdade, é apenas um poema lamentando a morte e celebrando, em versos 
polimétricos, a liberdade e a grandeza da poesia de Émile Verhaeren, simbolista belga 
falecido num acidente de trem. Texto de caráter elegíaco. 
 
Pandora 
Considerada sua obra mais parnasiana, tanto pelo rigor técnico como pela 
retomada da cultura greco-latina. Essa ortodoxia dos chamados impassíveis é observada 
logo em “Canto Espiritual”, poema de abertura do livro: “Ânsia de perfeição! Glória 
10 
 
legítima, / Por quem o meu espírito se eleva / Para o infinito, na atração da luz”. Observa-
se nos textos, do ponto de vista temático, uma bela combinação entre lirismo e 
sensualismo, harmonizados pela sensibilidade e o talento do poeta, como ilustra o soneto 
II do “Canto do Fauno”, na 4ª edição de Poesias Completas, de 2000. 
 
Verônica 
Em seu último livro publicado em vida, de espírito elegíaco e traços simbolistas, 
Da Costa e Silva lamenta a partida de Alice e expressa o amor que sentia pela esposa 
morta, sobretudo, na segunda parte da obra – “Imagens do Amor e da Morte”. De acordo 
com a crítica, a linguagem de Verônica é límpida, concisa e fluida; há menos contemplação 
realista do que em Zodíaco, ou sonhadora e lembrada do que em Pandora. 
 
Alhambra 
Não chegou a ser lançado como livro autônomo. O que aparece sob esse título, 
na edição de 1950 de Poesias Completas, são textos publicados pela imprensa entre 1928 
e 1933. Para Alberto da Costa e Silva, “melhor seria julgá-los como poemas inacabados”. 
Em experimentos modernistas, merecem destaque “O carrossel fantasma” e “Refrão do 
trem noturno”. 
 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
 
 
A Lição Perene 
 ( Fausto Cunha ) 
 
A nova edição das Poesias Completas de Da Costa e Silva (Nova Fronteira, 
1985), comemorativa do centenário de nascimento do poeta, nos põe mais uma vez em 
contato com uma das expressões mais altas da poesia brasileira deste século. Organizado 
com o maior carinho por seu filho, e também poeta, Alberto da Costa e Silva, esse belo 
volume sai num momento em que a poesia parece estar recuperando um pouco de seu 
antigo prestígio entre nós. Há uma sede de boa poesia entre os leitores mais jovens — e 
os concursos mostram que nunca se escreveu tanta poesia como agora. À parte alguns 
equívocos inevitáveis, os que têm alguma coisa a dizer já descobriram que sem os 
instrumentos de uma arte poética o melhor da inspiração, e mesmo do talento, se perderá. 
Só os ingênuos se permitem acreditar que nada existiu antes deles, e que podem 
prescindir dos liames imemoriais que fazem de cada poeta o continuador do mesmo e 
infinito poema. Em poucos poetas brasileiros essa lição é tão nítida e profunda quanto em 
Da Costa e Silva. 
Foi ele um dos poucos poetas realmente populares ao longo de várias décadas, 
presença em toda sorte de publicações e antologias, recitado e imitado. Essa 
popularidade não pode ser subestimada, porque ele a repartiu com dois outros grandes 
poetas do mesmo período, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos. O que chama a atenção 
é que nenhum dos três escrevia na clave do popularesco e do fácil: um deles cultivava 
uma linguagem difícil, os dois outros primavam pelo requinte formal. E são exatamente 
esses três que mantêm nosso interesse crítico por todo um grupo de poetas de transição, 
situados entre as últimas manifestações do parnasianismo e do simbolismo e os primeiros 
vagidos do modernismo. 
Recapitulando alguns poemas de Da Costa e Silva que se tornaram mais 
conhecidos — e que eram literalmente antológicos — , vemos que nenhum deles 
envelheceu. Pelo contrário. Depois do modernismo, temos o distanciamento e a visão 
11 
 
armada para avaliá-los melhor, e penetrar, sem emoções de fundo temático, no que 
trazem de essencial como poesia pura. Páginas como "Saudade", "A moenda", "Minha 
terra", "Vale de lágrimas", "Visões da morte", "Rosa Mística", "Rio das Garças", "A balsa", 
"Natureza sofredora" — e, mais tarde, esse "Adeus à vida", digno de um Antero de Quental 
— revelam o delicado trabalho de elaboração da obra-prima, a que não faltam lampejos 
de genialidade. As pequenas alterações que ele introduziu nos versos — e das quais 
Alberto da Costa e Silva nos dá expressiva relação no final do volume — mostram sua 
ânsia de perfeição e uma aguçada sensibilidade para com os detalhes mínimos, a exemplo 
de Alberto de Oliveira, que o antecipa, mas não o supera, no extraordinário domínio 
técnico do verso. Basta mencionar as sutis modificações em três versos do soneto 
"Saudade", que o tornaram perfeito: "E, ao vento, as folhas lívidas cantando/ A saudade 
imortal de um sol de estio", em vez de : E à noite as folhas lívidas cantando/ A saudade 
infeliz de um sol de estio", e sobretudo "As mortalhas de névoa sobre a serra" em vez de 
"Ai ! mortalhas de névoa sobre a serra", onde a substituição do lamento interjetivo não só 
eliminou um ruído anômalo na cadência dos versos como propiciou uma imagem de forte 
sugestividade. 
Pode-se observar que muitos dos poemas antologizados de Da Costa e Silva 
pertencem ao seu primeiro livro, Sangue, de 1908, publicado no Recife; não é, pois, de 
surpreender que com ele se tenha consagrado nacionalmente. Essa consagração teria 
bastado. Mas em 1917 o poeta desponta com outro grande livro, Zodíaco. Dois anos 
depois sai Pandora. Houve outra longa pausa, até Verônica , de 1927. Ainda jovem, Da 
Costa e Silva está no auge de sua forma. A recepção crítica foi boa, um dos sonetos do 
livro, "Adeus à vida", incorporou-se àquele grupo de eleição que se aloja, misteriosamente, 
na memória do público. Penso, no entanto, que somente agora podemos vislumbrar 
alguns dos aspectos mais significativos de Verônica, e que apontam para a sua 
excepcionalidade. 
Em Pandora, a epígrafe de Rubén Darío — um poeta de larga ressonância no 
Brasil — já fazia supor que se estabelecera o contato entre Da Costa e Silva e o 
modernismo espanhol (o qual, não custa advertir, nada tem a ver com o nosso, bastante 
posterior). Em Verônica se revela a síntese formal, o pensamento criador adquire a sua 
plena maturidade. O poetadesde muito que havia aprendido o verso livre de Verhaeren e 
Maeterlinck. Darío foi a chama que incendiou e renovou a poesia espanhola. O que em 
Verônica nos chama hoje particularmente a atenção, além do impressionante domínio 
formal, e talvez mais do que este, são alguns pequenos poemas que nos lembram de 
imediato (e daí a referência a Darío) a maneira de Juan Ramón Jiménez. "Subia a lua, 
leve", "Vivo como um sonâmbulo", "Na tarde azul e triste", "Sou como um rio misterioso", 
"A última ilusão", "A escada de sonho", são pequeninas obras-primas, como aquelas 
distribuídas com aparente negligência (mas obtidas à custa de angustiada procura) pelo 
poeta de Eternidades. Exemplar dessa rara maestria é "A escada de sonho", com seu jogo 
de assonâncias que parecem fluir com naturalidade. 
As peças recolhidas em Alhambra comprovam que Da Costa e Silva estava pronto 
para o "salto modernista", numa linha semelhante à de Felipe d'Oliveira, Manuel Bandeira, 
Jorge de Lima, algo até de Mário de Andrade. Numa antologia do nosso modernismo, ele 
já tem o seu lugar com "O Refrão do trem noturno" e o "Carrossel fantasma". A página 
sonora e luminosa que é "O despertar no Amazonas", de 1928, espelha mais uma vez a 
paixão telúrica que está no sangue de toda a poesia de Da Costa e Silva. Importa notar 
aqui, mais que a facilidade com que o poeta transitava entre uma e outra estética, sua 
admirável sensibilidade à forma como o poema devia revestir-se. Sua inexaurível riqueza 
formal pode ofuscar-nos, mas não impedir-nos de descer mais fundo. Eis que o grande 
poeta é o nosso guia, ou captando e transfigurando a paisagem, ou pulsando a angústia 
12 
 
secreta e o frêmito lírico da sofredora alma humana. Se é, e por que é um poeta perene, 
a razão está aí. 
 
 
 POEMAS SELECIONADOS 
 
Texto 1: 
 
A moenda 
Na remansosa paz da rústica fazenda, 
À luz quente do sol e à fria luz do luar, 
Vive, como a expiar uma culpa tremenda, 
O engenho de madeira a gemer e a chorar. 
 
Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda; 
E, ringindo e rangendo, a cana a triturar, 
Parece que tem alma, adivinha e desvenda 
A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar... 
 
Movida pelos bois tardos e sonolentos, 
Geme, como a exprimir, em doridos lamentos, 
Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor. 
 
Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda arrependida! 
– Álcool! Para esquecer os tormentos da vida 
E cavar, sabe Deus, um tormento maior! 
 
(Da Costa e Silva. In: Zodíaco) 
 
 
Texto 2: 
 
Rio das garças 
Na verde catedral da floresta, num coro 
Triste de cantochão, pelas naves da mata, 
Desce um rio a chorar o seu perpétuo choro... 
E o amplo e fluido lençol das lágrimas desata... 
 
Caudaloso a rolar, desde o seu nascedouro, 
Num rumor de orações no silêncio da oblata, 
 Ao sol – lembra um rocal todo irisado de ouro, 
Ao luar – rendas de luz com vidrilhos de prata. 
 
 Alvas garças a piar, arrepiadas de frio, 
Seguem de absorto olhar a vítrea correnteza. 
Pendem ramos em flor sobre o espelho do rio... 
 
É o Parnaíba, assim carpindo as suas mágoas, 
 – Rio da minha terra, ungido de tristeza, 
refletindo o meu ser à flor móvel das águas. 
 
13 
 
(Da Costa e Silva. In: Sangue) 
 
 
 
Texto 3: 
 
O ÚNICO BEM 
Lutei, sonhei, sofri, desde criança, 
Nesta inquietude, nesta vã tortura 
De quem jamais consegue o que procura 
E, se consegue, perde quanto alcança. 
 
Já nem me resta ao menos a esperança, 
Para a ilusão da glória e da ventura; 
Nem a fé, ante a dúvida, perdura, 
Desde que o amor, num túmulo descansa. 
 
Tanto alcancei, quanto perdi, de sorte 
Que, em suprema renúncia, a alma vencida 
Não devera aspirar senão à morte. 
 
Mas, como a sorte me foi tão funesta, 
Aprendi muito mais a amar a vida, 
Porque é o único bem que ainda me resta. 
 
(Da Costa e Silva. In: Verônica) 
 
 
 
 
Texto 4: 
 
Saudade 
Saudade! Olhar de minha mãe rezando, 
E o pranto lento deslizando em fio... 
Saudade! Amor da minha terra... O rio 
Cantigas de águas claras soluçando. 
 
Noites de junho... O caburé com frio, 
Ao luar, sobre o arvoredo... piando, piando... 
E, ao vento, as folhas lívidas cantando 
A saudade mortal de um sol de estio. 
 
Saudade! Asa de dor do pensamento! 
Gemidos vãos de canaviais ao vento... 
As mortalhas de névoa sobre a serra. 
 
Saudade! O Parnaíba – velho monge 
As barbas brancas alongando... E, ao longe, 
O mugido dos bois da minha terra... 
 
14 
 
(Da Costa e Silva. In: Sangue) 
 
 
 
Texto 5: 
 
 
REFRÃO DO TREM NOTURNO 
 
Corre o trem dentro do túnel estrelado da noite 
tonto de velocidade 
ávido de espaço 
a arrastar uma rua ruidosa de carros 
e lá vai 
acelerando mais e mais as rodas rápidas 
da máquina que marcha 
— Muita força pouca terra 
muita força pouca terra 
 
Andam, resfolegam, sopram, bufam 
os cavalos-vapor a galopar invisíveis 
nitrindo aflitos 
silva a locomotiva 
a pupila alucinada reverberando na treva 
— compasso de relâmpago 
tomando a distância 
perdida na noite 
 — Muita força pouca terra 
 muita força pouca terra 
 
 
Em disparada o comboio foge trepidando 
ao vaivém dos vagões entrechocados na carreira 
como elefantes perseguidos no deserto 
 
É um pesadelo sob o silêncio o trem que passa 
o trem que desfila como um sonho rumoroso 
o trem que leva oscilando na perspectiva fugidia 
 
montes 
o trem que se lança no espaço como a vida no tempo 
 
 — Muita força pouca terra 
muita força pouca terra 
 
(Da Costa e Silva. In: Alhambra) 
 
Texto 6: 
 
Amarante 
A minha terra é um céu, se há céu sobre a terra: 
15 
 
É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando, 
Que eterno sonho azul parece estar sonhando 
Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra... 
 
Que encanto natural o seu aspecto encerra! 
Junto à paisagem verde, a igreja branca, o bando 
Das casas, que se vão, pouco a pouco, apagando 
Com o nevoento perfil nostálgico da serra... 
 
Com seu povo feliz, que ri das próprias mágoas, 
Entre os três rios, lembra uma ilha, alegra e linda, 
A cidade sorrindo aos ósculos das águas. 
 
Terra para se amar com o grande amor que eu tenho! 
Terra onde tive o berço e de onde espero ainda 
Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho! 
 
(Da Costa e Silva. In: Zodíaco) 
 
 
 
 
 
TEXTO COMPLEMENTAR 
 
 
 AUTOBIOGRAFIA PÓSTUMA 
 
 
 
"Eu sou tal Parnaíba: existe 
Dentro em meu ser uma tristeza inata” 
 
 
 
”No dia em que nasci, fadou-me Apolo / a uma vida de júbilos e penas". Foi em 23 
de novembro de 1885. Amarante, uma cidade "debruçada sobre as águas / lentas e 
sonolentas do Parnaíba", acolheu-me em seu solo. 
“Fui o mais feliz dos meninos do meu tempo”. Tive uma "infância ruidosa". Passei-
a em contato com a natureza, "entre os rios, as árvores e a serra”. Na ponte sobre o riacho 
Mulato, um "manso riacho”, brinquei quando menino, "curvado sobre a gruta, a ouvir a 
fonte...” Pelos lajedos do morro, corri muito. Tudo isso viria, mais tarde, marcar 
profundamente a minha poesia. 
“Quando nasci, o Destino / fez-me poeta, ainda no berço". "Fui pelas musas 
embalado ao colo". Os meus primeiros versos foram publicados na Revista do 
Grêmio Amarantino, por volta de 1901. Mas não só me interessei pela poesia, dediquei-
me também à escultura em madeira, fazia imagens: "já tinha o dom divino de um criador 
de imagens". 
" Saudade! Amor da minha terra...” 
" Saudade! Olhar de minha mãe” 
16 
 
Muito cedo tive que deixar a minha terra natal, porém jamais se apagou da minha 
memória o seu "encanto natural". ”A paisagem verde, a igreja branca, o bando / das 
casas", "o povo feliz que ri das próprias mágoas” são imagens que sempre acompanharam 
os meus passos. "Vejo e sinto, / quais se fossem imagens verdadeiras,/ tudo sem mesmo 
ver, num vago instinto...” 
Em Teresina, onde concluí os preparatórios, colaborei para alguns jornais. Neles 
se encontram alguns poemas que mais tarde seriam incluídos em Sangue, livro que 
publiquei em Recife, em dezembro de 1908. 
1906 marca o meu ingresso na Faculdade de Direito, em Pernambuco.Dessa 
época é o meu soneto "Saudade”. Saudade da minha terra. Saudade de minha mãe, de 
quem nunca consegui desvencilhar-me por completo. Presença marcante em minha vida 
e em meu mundo poético, dela guardo uma "imagem de piedade", "velando pelo meu 
destino" e rogando "por mim, piedosa e triste,/ em lágrimas de afeto e de bondade". “Corpo 
humano de espírito celeste,/ ” ela "surge ante mim”, "em horas de incerteza, de amargura’, 
com suas bênçãos de amor e preces de conforto”. “Em sua imagem vemos / os 
transportes sublimes e supremos / do Amor, que se transmite, mas não finda”. 
“Lutei, sonhei, sofri” 
"E contigo, serei tudo que sonhei ser,/ redivivo e imortal no esplendor do teu ser!” 
Sim, mais tarde, o meu filho, Alberto, realizaria o sonho que eu não atingi - ser diplomata. 
Dizem que ”o estranho aspecto, feio e rude / desta figura hostil de homem selvagem" tirou-
me a oportunidade de concretizar este ideal. Mas "a natureza, que os seus dons reparte/, 
porque feio me fez, deu-me a vertigem / de lutar e vencer em toda parte”. 
Trabalhei no Ministério da Fazenda. Como funcionário da Delegacia Fiscal estive 
em vários Estados: Minas, Rio de Janeiro, São Paulo , Rio Grande do Sul, Amazonas e 
Maranhão. 
 
Em 1910 cheguei a Belo Horizonte. Nos cafés, tão famosos na época, reunia-me 
com os literatos. Cheguei a liderar um grupo de jovens acadêmicos. Fundei uma folha 
humorística Zaz-traz, que teve grande repercussão no meio literário, e colaborei para o 
Diário de Minas e para as revistas: A Vida Mineira, Vida de Minas, Vita e Tank. Dias de 
Glória, de Ventura! "Nunca julgara, nem jamais previra / o transe cruel” que me torturaria 
alguns anos mais tarde. 
Perdi a minha Alice, ”meu amor, minha vida, minha glória", com quem me casei 
em 1914. ”Tive-a a encarnar minha felicidade,/ quis detê-la, mas não pude". ”Foi tamanha 
a minha desventura", que cheguei a exclamar: "Por que me trouxe aqui o meu destino? / 
Por que de tão longe vim me prender por encarto / a Essa a quem tanto quis, a Essa que 
me quis tanto, / que, unidos pela fé, vivemos para o amor?"A desolação inspirou-me os 
poemas de Verônica, ”imagens da vida e do sonho; imagens do amor e da morte". 
Três foram os filhos domeu primeiro casamento: "Márcio, flor do meu ser, fruto do 
meu amor"; Mário,que herdou o encanto de Alice, "para mais me enlevar, para mais me 
prender"e Benedito que, ao nascer, "foi logo enfaixado de luto” - A mãe morreu porque"lhe 
deu o ser". 
Em 1921 fui para São Luís, onde permaneci até setembro de 1926, quando segui 
para o Rio de Janeiro. 
Como Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, no Amazonas e no Acre, parti para 
Manaus em 1927. E lá o "meu coração desperta". "Dentro em meu ser, num frêmito de 
aleluia", ecoa "o canto dionisíaco do meu sangue: ama de novo! ama de novo!" 
Casei-me outra vez em 1928. Creusa foi minha segunda mulher. Em Julho de 
1929 nasce Alice, "o meu maior enlevo", em quem vi "minha mãe em miniatura”. 
17 
 
Para Porto Alegre segui em setembro de 1929. Lá convivi com vários escritores, 
chegando a dirigir, juntamente com Alberto de Andrade Queiroz, o suplemento literário do 
Diário de Notícias. 
Estive em São Paulo, onde fui incompreendido, insultado, hostilizado, por querer 
moralizar os serviços fiscais. A minha alma de poeta não poderia suportar as injustiças, 
comecei a desmoronar. O meu filho Alberto, que nasceu em 1931, foi o "meu lírio entre 
espinhos". 
 
“Alheado do mundo e de mim mesmo" 
Em 1932 nasce a minha caçula, Elisabeth. Nessa época submeti-me a uma 
intervenção cirúrgica. O que me veio depois? Somente depressão, neurastenia, tristeza e 
uma grande necessidade de isolar-me, de mergulhar-me em mim mesmo. 
" Eu já não escrevo, já não faço versos. Morreu em mim o sabiá que cantava... ” 
Foi o que declarei, em 1940, a uns rapazes piauienses que me entrevistaram em 
Fortaleza, onde vivia mergulhado em profundo silêncio. Realmente deixara de 
escrever. Um dos meus últimos poemas – O carrossel Fantasma - revela o meu vínculo à 
terra natal, de quem sempre estive perto, embora distante. 
 
“Adeus à Vida " 
 
“A morte não me assombra, nem me assusta“. “O que perturba e intimida / o meu 
espírito forte / não é a certeza da morte, mas a incerteza da vida”. "E aonde vou? " " Aonde 
vou? ” 
“Morte! Vida a buscar liberdade'."No dia 29 de junho de 1950 um enfarte, levou-
me a "atingir a perfeição que eu auguro / em resignado e místico transporte” e a "levantar 
os olhos / para o que exista em luz além do espaço”. 
 
“Passa a vida ? Continua... 
Com o tempo quem passa é a gente ”. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Da Costa e Silva – Antologia e Estudo/seleção de textos, notas, estudos biográficos e histórico e exercícios por Fabiano 
de Cristo Rios Nogueira, Maria Gomes Figueiredo Reis, Maria do Socorro Rios Magalhães, Maria do Perpétuo Socorro Neiva Nunes 
do Rego – Teresina: Centro de Ciências, Humanas e Letras / Departamento de Letras – PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO, 
UFPI,1985. 
 
 
 
 
 
 
 
O. G. REGO DE CARVALHO 
 
18 
 
 
 “O autor não pode ter piedade de si mesmo, 
tem que se expor a nu, nem que seja para o 
ridículo, mas tem que se expor. E isto é o que 
falta fundamentalmente na maioria dos 
escritores piauienses. É exatamente essa 
sinceridade absoluta de escrever como se 
estivesse rasgando o coração. Eu não estou 
querendo falar com isso em obras piegas, 
pelo amor de Deus. Vocês não vão encontrar 
o pieguismo em minha obra, nem 
sentimentalismo também.” 
 
(Como e por que me fiz escritor / 
O. G. Rego de Carvalho) 
 
 O AUTOR 
 
Orlando Geraldo Rego de Carvalho nasceu em Oeiras, antiga capital do Piauí, no 
dia 25 de janeiro de 1930. Desde cedo, tomou gosto pelas letras, mas foi em 1942, ao ler 
O Guarani, romance de José de Alencar, que decidiu ser escritor. 
Foi professor de literatura no colégio Estadual Zacarias de Góis, bacharelou-se 
em direito pela antiga Faculdade de Direito do Piauí, funcionário graduado do Banco do 
Brasil e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). 
O sonho na meninice era ser compositor, e não escritor. Ter uma mãe musicista, 
professora de vários instrumentos (piano, bandolim, violão e harmônica), o influenciava 
nessa preferência inicial. 
Aos 10 anos, teve sua primeira manifestação escrita, um trabalho escolar sobre o 
descobrimento da América e, para sua grata surpresa, publicado no jornal Fanal, que 
significa farol. 
O conto “Um filho” marca sua estreia literária em 1949, quando tinha apenas 19 
anos. Depois de umas 30 recusas, o autor oeirense finalmente tem um texto publicado 
numa revista de circulação nacional. 
Em Teresina, fez parte do Grupo Meridiano, ao lado de dois grandes nomes de 
nossa cultura: H. Dobal (poesia) e Manoel Paulo Nunes (crítica). Através de suas obras e 
do Caderno de Letras Meridiano, eles provocaram mudanças significativas na literatura 
brasileira de expressão local. 
Encantou-se em Teresina aos 83 anos, no dia 9 novembro de 2013, deixando 
esposa (Divaneide Carvalho) e filho (Orlando Victor). 
 
 
 A OBRA 
Autor de uma obra relativamente pequena, mas que o coloca ao lado dos grandes 
nomes da literatura em língua portuguesa. Com apenas três livros publicados, deixa claro 
que, em termos artísticos, importa mesmo é qualidade estética, e não quantidade. Os 
críticos piauienses o apontam como o melhor de nossos ficcionistas. 
 
 
 
 
 
Livro Ano Dados 
19 
 
Ulisses entre o amor e 
a morte 
1953 
 
Escrito pelo autor dos 19 aos 23 anos. 
Romance de caráter melancólico. 
 
 
Rio subterrâneo 
1967 
 
Escrito a partir do conto “Passeio a 
Timon”. Narrativa mais psicológica do 
autor e da qual ele mais gostava. 
Considerado sua obra-prima. Romance 
de caráter trágico. 
 
Somos todos 
inocentes 
1971 
Tributo que o autor presta a Oeiras. 
Romance de caráter dramático. 
 
 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
 
Enquadra-se a obra ogerreguiana na mesma linha dos autores que privilegiam o 
“coser para dentro”, uma literatura centrípeta,que busca analisar e explicar a alma 
humana, no que esta tem de mais profundo e misterioso. 
Fugindo aos velhos clichês da produção nordestina, focada em temas regionais, 
a exemplo da seca e da miséria, O. G. Rego se volta aos eternos dilemas universais, como 
o amor e a morte, sentimentos indeléveis na vida das pessoas. 
Quanto à técnica, sua ficção deve ser considerada modernista, pois não só 
abandona a linearidade narrativa (começo, meio e fim) como deixa o final sempre em 
aberto, transformando o leitor num coautor da obra. 
No tocante ao emprego da língua, opta por uma linguagem trabalhada e poética, 
mesclando termos eruditos com regionais, valorizando, sobretudo, a musicalidade das 
palavras. 
 
 
 TEMAS ABORDADOS 
 
Fugindo do tradicional regionalismo nordestino, particularmente do romance de 
30, O. G. Rego privilegiou temas universais em suas histórias: amor, morte, solidão, 
loucura, família, angústia existencial, sexualidade, preconceitos, aborto, frustração 
amorosa e religiosidade. Outro que mereceu destaque também, até pelo fato das 
personagens serem jovens, foi o da adolescência. Não à toa ele próprio fazer questão de 
se apresentar, nas palestras que ministrava, como o “romancista da juventude”. 
 
 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
 
Como ninguém se torna um escritor sem ter sido um grande leitor, O. G. Rego não 
poderia ser diferente. E acabou bebendo em várias fontes, tanto da nossa quanto da 
literatura estrangeira. 
Entre os autores nacionais, recebeu influências de dois ficcionistas 
extraordinários: José de Alencar, cearense e mentor do romance impressionista; e 
Machado de Assis, carioca e criador do romance psicológico. 
 
20 
 
 “O que tenho procurado fazer na minha história é fundir Alencar e Machado – O 
Romantismo de Alencar, sua linguagem poética, com o Realismo e o estilo um tanto sóbrio 
de Machado.” 
 
 (Como e por que me fiz escritor / O. G. Rego de Carvalho) 
 
 
De fora do Brasil, foi Gustave Flaubert, escritor francês, a grande paixão literária, 
a ponto de ter lido toda sua obra. No caso de A educação sentimental, inclusive, leu 
repetida vezes. 
 
“O único autor de quem li quatro livros, li todos os livros que escreveu, foi Gustave 
Flaubert – Madame Bovary, Salambô, Tentação de Santo Antão e Educação Sentimental. 
A nenhum outro autor dei esse privilégio de ler a obra inteira, pois costumo ler apenas as 
obras fundamentais, aquelas que o passado peneira e diz: ‘Esta fica’.” 
 
(Como e por que me fiz escritor/ O. G. Rego de Carvalho) 
 
 
 
 
 COMENTÁRIO DOS LIVROS 
 
Ulisses entre o amor e a morte 
 
Narrativa feita em 1ª pessoa por Ulisses, protagonista da 
história, que tem sua vida marcada tanto pela morte do pai quanto 
pela descoberta do amor em Conceição. 
No primeiro caso, ele a descreve de maneira sucinta e 
poética, tornando-se uma das mais belas metáforas de morte já 
escrita na literatura universal: “Quente era a manhã, em julho, 
quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando. E puro, e 
distante, e feliz, encarou o céu e o tempo.” 
No segundo, o amor surge de repente, quando Ulisses vem morar com a família 
na capital, sentimento que o leva a sentir “dores” à noite. 
A história se desenrola em Oeiras e Teresina, mostrando Ulisses entre os oito e 
15 anos de idade – da meninice à adolescência. O final acaba em aberto, sem o leitor 
saber o que será do futuro desse jovem após o fim do namoro com Conceição. 
Além do par romântico, outros personagens que aparecem na trama são: pai, 
mãe, José, Anália – a família de Ulisses; Norberto e Arnaldo, primo e amigo de Ulisses, 
respectivamente. 
Em estado de graça após a leitura, Cecília Meireles, grande poeta de nosso 
modernismo, assim se manifestou a respeito do livro: “Ulisses deixou-me uma sensação 
de poesia misteriosa e comovente”. 
 
21 
 
Rio Subterrâneo 
 
Romance mais importante não só de O. G. Rego de Carvalho, 
segundo os críticos, mas de toda a literatura piauiense. Livro de um escritor 
maduro e consequente, que cria um mundo misterioso habitado por 
criaturas dilaceradas pelos sentimentos de solidão, medo, loucura, 
angústia, desespero e neurose. 
Narrativa introspectiva de 3ª pessoa que, alterando a ordem 
cronológica dos fatos, mergulha no mundo inconsciente e sofrido de 
Lucínio, Joana, Helena, Afonsina, Benoni e Neusa. História ambientada em Timon, 
Teresina e Oeiras. 
Sobre a obra, Carlos Drummond de Andrade, nome maior da poesia nacional, 
teceu o seguinte elogio: “De Rio Subterrâneo tirei forte sensação de obra calcada no que 
o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada com aguda consciência artística. 
É desses livros que a gente não esquece.” 
 
 
 
 
Somos todos inocentes 
 
Sua obra mais convencional no tocante aos aspectos temático e 
técnico. As velhas brigas entre duas grandes famílias de Oeiras (Ribeiros 
versus Barbosas) relatadas dentro de uma linearidade narrativa. No meio 
desse fogo cruzado, a frustrada história de amor entre Raul e Dulce, 
proibidos de serem felizes por causa da disputa política dos pais. 
Tributo que O. G. Rego de Carvalho paga à terra natal, primeira 
capital do Piauí, de onde o autor saiu ainda menino. A história se passa na 
Oeiras de 1929, de ares provincianos e horizontes limitados, com sobrados e primeiros 
carros simbolizando as famílias ricas. 
O livro foi agraciado com o Prêmio Coelho Neto, em 1972, pela Academia 
Brasileira de Letras (ABL). Além dos personagens citados, destacam-se também 
Amparinho e Pedrina, esta última abortando um filho de Raul. 
 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Embora tenham sido escritos em situações diferenciadas, esses três textos 
ficcionais possuem vários elementos em comum que, de modo particular, ajudam 
igualmente a tecer um panorama dos principais dilemas enfrentados pelo autor naquela 
época, sobretudo com relação ao tipo de experiência intelectual que pretendia realizar, 
além de demonstrarem uma insistente preocupação do autor com as cidades piauienses 
onde viveu, Oeiras e Teresina, escolhidas por ele enquanto pretexto para falar das 
experiências e vivencias de seus personagens. Em uma entrevista concedida a Pompílio 
Santos (KRUEL, 2007), O. G. Rego de Carvalho ressalta que tanto Ulisses entre o amor 
e a morte como Somos todos inocentes e RioSubterrâneo, constituem sua “autobiografia 
espiritual”, ou seja, “refletem” seus sentimentos e ideias de quando os escreveu. Em todos 
eles, afirma o literato, “paira uma sombra de melancolia, em grau maior ou menor” 
(CARVALHO, 2003, p. 315). Mas essa sombra melancólica não apontaria apenas em 
22 
 
direção a um estado patológico. Conforme ressaltou o próprio escritor, ela diz respeito a 
uma condição espiritual, uma angústia em relação ao tempo, a uma dada época, na qual 
não se depositam mais esperanças, enfim, à condição humana de um individuo dividido 
entre o passado e o futuro6 . Aquilo que O. G. Rego classifica como uma “sombra 
melancólica”, ao longo das suas narrativas ficcionais constitui a configuração de um olhar 
alegórico por meio do qual o escritor pensa o seu mundo, utilizando como principal 
argamassa desse pensamento o seu próprio fazer literário. Esse olhar se traduz numa 
mistura de “luto e jogo”, na tentativa de desvelar a dialética imanente de um período 
dividido “entre nostalgias de certezas desaparecidas e a leveza trágica do herói 
nietzschiano” (GAGNEBIN, 1999, p.38), que teria de enfrentar a dura missão de ser, a um 
só e mesmo tempo, destrutivamente criativo e criativamente destrutivo (HARVEY, 1992). 
 
(ENTRE FRAGMENTOS E RUÍNAS: O. G. Rego de Carvalho e os dilemas intelectuais de uma geração / José Maria Vieira 
de Andrade / InterEspaço – Revista de Geografia e Interdisciplinaridade) 
 
 
 
 TEXTOS SELECIONADOS 
 
Texto 1 
 
AMAVA-A SIM 
Não demorou muito, notei que o tempo havia serenado: 
a chuva se foralogo, mas já não me atraía a praça: esta perdera 
toda a poesia – Conceição. 
Ao voltar para a casa, indaguei de mim, enquanto metia o pé, 
insensivelmente, numa poça d’água, por que resistia à sedução 
essa garota. Que havia nela de extraordinário, além da beleza? 
Nada descobrindo, cheguei à conclusão de que amava e tudo 
so era passageiro. 
Depois, estando prestes a dormir, tornei a pensar em 
Conceição. Vi-a agora sorrindo, tão recatada, tão doce! Seus 
menores gestos me passavam pela mente, levando-me a uma 
ansiedade nunca sentida. 
Até altas horas fiquei desperto, e apenas consegui adormecer 
quando, desistindo de enganar meu próprio coração, disse-lhe 
baixinho: 
 - Amo-a sim, meu velho. 
E repeti diversas vezes que a amava com loucura. 
 
CARVALHO, O. G. Rego de.Ulisses entre o amor e a morte, 13ª ed., 2003, pág. 95 
 
 
Texto 2 
 
 O táxi livrou-se de um engarrafamento e veio por uma rua sombreada de 
oitizeiros Adiante o Parnaíba - uma torrente obscura, agitada ao depor do sol. Ela mal 
percebeu Timon, devido à névoa que caía, empalidecendo o arvoredo do bosque e as 
luzes do porto. Embaixo, o vulto do trem na ponte. 
- Chegamos; só nos resta a travessia - gritou Lucínio, em luta com a tosse. Eis o 
rio de minha angústia. Parece que fala, dentro dos remansos: “Ser bem-vinda. É doce a 
morte”. 
23 
 
Helena empalideceu e abaixou a vista. "Não convém que me iluda. Sinto-me 
desfalecer agora". E recusou a mão que o primo lhe oferecia, para ajudá-la a desce. O 
vento fazia ondas por toda a parte, agitando o bote levemente. 
Ela hesitou a princípio, entrando nervosa, pelo braço do vareiro. 
 - Ande, que está chovendo. 
O mestre encaminhou o barco rio acima, até que adiante largou o remo e se dirigiu 
ao motor. Pingos a engrossar, nuvens a todo céu. Mas ainda dava tempo para a travessia, 
e para chegarem à quinta em sossego. Sentados no banco da popa, juntos do saco e do 
baú. Lucínio e Helena miravam a vastidão das águas, confusa dentro da neblina. Iam 
silenciosos: ele, a evocar a insônia da noite precedente, cheia de mistério e duvida, ela 
absorta na contemplação das espumas, como se visse os buraquinhos de Joana na 
parede - uma corrente secreta, viscosa, assim um rio subterrâneo: álgido escuro e 
aterrador. 
 
 CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo, 1967 
 
 
Texto 3 
 
Entre as ruínas da cadeia, Dulce lembrava-se da manhã em que, protegida pelas 
rótulas da janela, entrevira a chegada de Raul. Seu porte baixo, porém garboso, era 
inconfundível. Quem não o conhecesse, logo imaginaria, ser descendente do velho 
Joaquim Ribeiro, tal a semelhança física. Como o avô, não dispensava o chapéu de 
palhinha, nos dias de muito sol. 
Viera num sedã azul, que ele próprio guiava, antes de transpor a ponte, já os 
meninos corriam à sua frente, cheios de alegria. À porta, velhas e mocinhas acenavam-
lhe a sorrir. Com exceção de alguns rapazes, que se distraíam no jogo de damas, todos 
se esforçavam para ver o automóvel e o chofer. 
Raul, um pouco envaidecido, andara sem pressa, buzinando nas esquinas, nas 
ruas estreitas por onde os burricos carregavam lenha e até mesmo na Praça da Vitória, 
onde sobressaía o Sobrado. O prazer, sendo inédito, não tinha limites, e a cada instante 
exibia as luvas, ao saudar os parentes e amigos. Dulce não pudera vê-lo bem, e 
continuava em seu posto quando a mãe entrou no quarto. 
- Não tem vergonha, menina? 
Ela corara e não conseguira responder. D. Odete, percebendo-lhe o vexame, 
abanara a cabeça em negativa. 
- Não se iluda, minha filha. Você sabe o que a esperaria, se viesse a apaixonar-
se por ele. 
Dulce olhara-a com resignação, caindo em seus braços. 
- Mamãe - dissera-lhe, enquanto a apertava com torça - por que não acabam essa 
história? Os filhos não têm culpa. 
A senhora afastara-se de leve, fitando-a carinhosamente. 
Não torne a falar nesse assunto. Eu... Eu nada posso fazer. No passado, quando 
Raul veio passar férias... - Calara-se de súbito, esmorecida. 
Ninguém consegue demover seu pai. 
Depois que ela saíra, Dulce atirara-se à rede, pensando com amargura no próprio 
destino. A mãe conhecia-lhe o segredo. E agora? O pai não lhe bateria? Não; talvez nem 
viesse a saber. "Oh, como é triste amar assim. Se ao menos pudéssemos falar- nos." 
Domingo haveria uma festa no sobrado. Lá estariam as primas de Raul com as 
colegas, dispostas a conquistá-lo: até Pedrina compareceria. Dulce não se conformava. 
Era imperioso ir, ainda que tivesse que enfrentar a zanga do pai. 
24 
 
À noite, de tanto imaginar cenas em que lhe pedia licença, sem a obter, terminara 
sentindo a cabeça tonta. Quase de manhã, a brisa dos morros, cheia de perfume silvestre, 
restituíra-lhe a calma e ela adormecera. Ao despertar com o movimento do pai que seguia 
para a “Varjota”, ocorrera-lhe uma ideia. “E se eu pedir a ajuda de Amparinho?" 
 
 
 CARVALHO, O. G. Rego de.Somos todos inocentes, 5ª ed., revista, 1955 
TORQUATO NETO 
 
 
 “um poeta desfolha a bandeira 
e a manhã tropical se inicia 
resplandente cadente fagueira 
num calor girassol com alegria 
na geleia geral brasileira 
 que o jornal do brasil anuncia” 
 
(GELEIA GERAL / TORQUATO NETO) 
 
 O AUTOR 
 
Torquato Neto nasceu à fórceps no Hospital Getúlio Vargas, em Teresina, no dia 
nove de novembro de 1944. Era filho de Heli da Rocha Nunes (Promotor Público) e Maria 
Salomé da Cunha Araújo (Professora primária). Desde cedo gostou de ler e escrever. O 
primeiro rascunho poético, com temática voltada para o universo familiar, foi produzido 
aos nove anos: “o meu nome é Torquato / o de meu pai é Heli / o da minha mãe Salomé / 
o resto ainda vem por aí”. 
Seu itinerário escolar começa em Teresina, onde fez o primário e o ginásio; passa 
por Salvador, cidade na qual fez o antigo científico e conheceu os baianos Caetano Veloso 
e Gilberto Gil; e deságua no Rio de Janeiro a fim de cursar Jornalismo e Filosofia, 
iniciando mas não concluindo nenhum. Torquato queria ser mesmo era diplomata, mas, 
infelizmente, não realizou tal sonho. A passagem por Londres ocorreu para fugir do sufoco 
que era o Brasil na época da ditadura militar. 
Projetou-se em nível nacional por ter sido um dos principais teóricos da Tropicália, 
movimento artístico que revolucionou a arte brasileira no final da década de 60. "Geleia 
Geral”, composição de sua autoria, tida como manifesto-síntese desse movimento. Além 
de poeta, Torquato foi também jornalista, cineasta, ator e letrista, tendo várias 
composições suas musicadas e interpretadas por grandes nomes da nossa MPB. 
No Rio de Janeiro, Torquato Neto se casou com Ana Duarte, com quem teve um 
único filho – Thiago Silva de Araújo Nunes, que adulto, ao invés da carreira artística, 
preferiu ser piloto de avião em companhia aérea privada. Um dos padrinhos de casamento 
foi o cantor Gilberto Gil. 
A exemplo de tantos outros artistas geniais e talentosos, tanto dentro como fora do Brasil, 
Torquato Pereira de Araújo, neto, se encantou ainda muito jovem, aos 28 anos, ao ligar o 
gás no banheiro e morrer asfixiado, no Rio de Janeiro. A data fatídica era 10 de novembro 
de 1972, depois de ter passado a noite anterior, junto com alguns amigos, comemorando 
o seu aniversário.Nosso “Anjo Torto”, como ficou conhecido no meio cultural, foi enterrado 
no cemitério São José, em Teresina. Antes do desfecho trágico, ele escreveu um bilhete 
de amor e despedida. 
“FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou 
uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher 
na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo 
em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e 
25 
 
enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo q FICO sossegado 
por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço 
empacotado ao lado. Não acreditoem amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou 
ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem 
demais o Thiago. Ele pode acordar.” 
 
Seus escritos só vieram à tona postumamente, com a publicação de três livros: 
Os Últimos Dias de Paupéria, O Fato e a Coisa e Juvenílias. Sem falar também da revista 
cultural Navilouca, lançada em 1973, da qual foi um dos idealizadores. 
 
 
 A OBRA 
 
Destacou-se Torquato Neto como um artista multifacetado, 
atuando em várias frentes simultaneamente, desde a escrita de poesia 
à produção de filme. Ele deixou uma obra relativamente pequena, mas 
importante do ponto de vista estético, que influência a cultura nacional 
até hoje. 
Em termos literários, não publicou nenhum livro em vida, tendo 
vindo à tona postumamente três volumes: “Os Últimos Dias de 
Paupéria”, lançado em 1973 e organizado pelo amigo Waly Salomon e 
a viúva Ana Duarte; “O Fato e a Coisa” e “Juvelílias”, ambos de 2012, 
organizados pelo primo George Mendes e o amigo Durvalino Couto. 
No que diz respeito à cinematografia, nosso “Anjo Torto” optou pelos filmes 
marginais, chamados também de “undergrounds”, produzidos com poucos recursos e de 
forma independente, nos quais ele atuava como ator e diretor. Passados tantos anos, 
esses filmes, produzidos em bitola Super-8, são tidos hoje como “cults”. 
Foi como letrista, e dos bons, que Torquato se projetou nacionalmente, embora 
não cantasse nem tocasse instrumento algum. No fundo, foi um poeta da palavra escrita 
que se converteu à palavra falada. Ele teve suas letras musicadas e cantadas por grandes 
artistas da nossa Música Popular Brasileira: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu 
Lobo, Elis Regina, Jards Macalé, Luís Melodia, Carlos Pinto e a banda de rock Titãs 
(Sérgio Brito). 
 
 
 
 
Livros 
 
Os Últimos Dias de Paupéria (1973) 
O Fato e a Coisa (2012) 
Juvenílias (2012) 
 
 
Filmes 
O Terror da Vermelha ou o Forasteiro daCidade Verde 
Só matando 
Adão e Eva do Paraíso ao Consumo 
Nosferatu no Brasil 
 
 
 
 
 
Principais 
Composições 
Geleia Geral 
Lua Nova 
Louvação 
Pra Dizer Adeus 
Mamãe, Coragem 
Go back 
Let’s Play that 
Deus vos Salve a Casa Santa 
26 
 
A Rua 
Zabelê 
Veleiro 
Marginália II 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
 
Quanto aos principais traços de sua produção, Torquato Neto deixou uma obra 
marcada pelo sentimento de liberdade e compromissada com o ideário da contracultura. 
Daí ter sido batizado como o “poeta da ruptura” pelos críticos. 
No aspecto formal, destacam-se: - 1. fragmentação do discurso; 2. linguagem 
sintética, apoiada em elipses e subentendidos; 3. Sintaxe descontínua, utilizando-se de 
técnicas de corte, como no cinema; 4. elaboração de metáfora; 5. uso reiterado de 
antíteses; 6. uso de gradação; 
No aspecto do estilo e da temática, sobressaem: - 1. estilo em forma de colagem, 
onde são confrontados os elementos mais díspares; 2. atitudes de carnavalização diante 
da vida e da arte: redescoberta do efeito parodístico e do teatro de Oswald de Andrade. 
 
 
 TEMAS ABORDADOS 
 
Embora tenha deixado uma obra fragmentada, que veio à tona postumamente, 
é possível observar alguns temas muito recorrentes em seus textos, com destaque para 
a morte e os conflitos existenciais. Além desses, aparecem ainda o apego à terra natal, 
questões políticas e sociais, a solidão na cidade grande, infância, a procura constante pela 
fé e o lirismo amoroso. 
 
 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
 
As influências recebidas foram muitas e variadas, até pelo fato de ter sido, ao 
longo da vida, um leitor contumaz, daqueles de andar sempre com livro debaixo do braço. 
Há quem afirme que ao completar 14 anos pediu de presente para o pai as obras 
completas de Machado de Assis, melhor ficcionista da literatura nacional. 
Entre os brasileiros, teve preferência inicial por Castro Alves, Gonçalves Dias e 
Sousândrade, poetas românticos, trocando-os depois pela leitura dos modernos Carlos 
Drummond, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, João Cabral, Mário de Andrade, 
Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rubem Braga, Décio Pignatari e 
os irmãos Campos (Augusto e Haroldo). 
Da literatura estrangeira, sorveu as lições de Ezra Pound, Andre Gide, Rainer 
Maria Rilke e Maiakovski 
 
 
 COMENTÁRIO DOS LIVROS 
 
Os Últimos Dias de Paupéria 
 
A primeira edição do livro foi lançada em 1973, no ano seguinte à 
morte de Torquato Neto, por iniciativa de Waly Salomon (amigo baiano) e Ana 
Duarte (viúva do poeta), reunindo o conjunto de seus escritos: alguns poemas, 
letras de música, o diário do sanatório de Engenho de Dentro, cartas, estudos, 
27 
 
frases soltas, pensamentos, roteiros de filme e, sobretudo, os textos da coluna Geleia 
Geral publicados no Última Hora, jornal carioca. 
 
O Fato e a Coisa 
 
Embora tenha sido o único livro concebido em vida por Torquato, ele só foi 
publicado 40 anos após a morte do poeta, em 2012, uma iniciativa que partiu do primo 
George Mendes e do amigo Durvalino Couto. O volume reúne textos escritos entre 1962 
e 1964, trazendo poemas de inegável beleza que prenunciavam o talentoso letrista que 
viria a se tornar no futuro. 
 
 
Juvenílias 
 
Também lançado em 2012, o livro reúne poemas esparsos que Torquato deixou 
datilografados e organizados em pasta. Esse espólio inédito foi enviado a George Mendes, 
curador de sua obra, pela viúva do poeta, a artista gráfica Ana Duarte. “Qualquer rabisco 
de um grande artista é documento que informa, se não pela estética, ao menos pelo lado 
histórico”, explica o primo. 
 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
 
Os últimos dias de um romântico 
 
Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato Neto perfez o fadário de 
todo vampiro que se preza, percorrendo a sina dos “não mortos”. 
 
COROAS PARA TORQUATO 
um dia as fórmulas fracassam 
a atração dos corpos cessou 
as almas não combinam 
esferas se rebelam contra a lei da 
superfícies 
quadrados se abrem 
dos eixos 
sai a perfeição das coisas feitas nas coxas 
abaixo o senso das proporções 
pertenço ao número 
dos que viveram uma época excessiva 
 
Paulo Leminski 
 
 
Torquato Neto é, talvez, o único mito poético dessa geração que aí 
está, “mito”, aqui, no sentido originário de figura-síntese de uma idéia com força e valor 
coletivos. Arquétipo. Modelo. Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá-
la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros da nossa gente: o mito do poeta morto 
jovem. Esse mito, de extração romântica, tem uma linhagem que começa no Werther de 
Goeth, passa por Musset, Nerval, entre nós, por Álvares de Azevedo, Casimiro deAbreu, 
28 
 
Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, os “prematuros desaparecidos”, em 
contraposição às prósperas longevidades de um Drummond, por exemplo. 
Esse mito, certamente, é um pálido reflexo do mais profundo mito do mundo 
mediterrâneo e, por extensão, do ocidente: o de um deus jovem, que dá a vida pelos que 
nela crêem: Adônia, Osíris, Jesus. Essa ideia para um chinês, um japonês, um oriental, 
um budista, é perfeitamente absurda. 
 
“Credo quia absurdum”. 
Nós todos acreditamos em Torquato. 
Afinal, a autoimolação não é gesto ao alcance de qualquer um. 
 
A vida de Torquato Neto não interessa. Não interessa a vida de ninguém. Eu não 
aceito esse ponto de vista. Acho até que, em certos poetas, o desenho da vida pode ser 
um poema. Não se escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude, o 
comportamento, sartreanamente, com as escolhas globais. 
Tem poetas nos quais importa, também, a peripécia contextual que cerca seu 
fazer e seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro. 
O que se sabe de Torquato: um poeta de província (Piauí? Goiás? Santa 
Catarina?), um dos letristas da Tropicália, suicidou-se, parece. Pouco se sabe 
de Torquato. Felizmente. Mito que se preza não tem biografia. As biografias têm a irritante 
mania de reconduzir os mitos das suas rarefeitas altitudes para as platitudes da humana 
condição. Vai ver,no fundo, Torquato era pessoa como qualquer um de nós, 
esse Qualquer Um de Nós que pena atrás da grana, engole cara feia de patrão e exulta, 
como os escravos, no dia da distribuição dos pães; Conhece “aquela pessoa”. Deixa 
traços de sua passagem. E passa. 
Ainda brilha o dia tropicalista, que raiou na poesia brasileira, nos idos de 68. Foi a 
época em que nós todos começamos a nos tratar de loucos. Até ali, loucura era insulto. 
Nós desfraldamos a loucura como o fervor de quem empunha uma bandeira. 
Freudianos, a loucura foi igual para todos. Mais alguns foram mais loucos que os outros. 
Não há democracia no reino da loucura. Torquato foi um príncipe da loucura, um Ludwig 
da Baviera no Posto Seis. E lá estava Torquato nos alvores do dia tropicáustico, 
tropicalmo, as mãos cheias de versos, frases claras, frases raras, armas, 
araras. Torquato marca uma mudança radical, um salto qualitativo, na história disso que 
se chama, na falta de termo melhor, poesia brasileira. 
Poesia que, hoje, não apenas se lê nos livros, mas se escuta nas canções, nos 
discos, nos rádios, na TV, na vida, enfim. 
Torquato tem muito que ver com isso. 
O sequestro da poesia pela literatura foi longo como o seqüestro dos diplomatas 
norte-amercianos pelos iranianos do Aiatolá Khomeini. No Brasil, foi o tropicalismo quem 
a libertou. 
Com esse des-movimento (que cuidou do próprio enterro, encenado na TV, pelas 
suas principais estrelas), irrompem na cena brasileira, como é de conhecimento de todos 
os leitores do “Folhetim”, poetas de primeiríssima ordem, se expressando, não em livros 
mas em discos. Bota Chico Buarque nisso. Absolutamente, Caetano, e seus 
companheiros, Gil, a seguir, Capinan, Tom Zé, o que a gente tem vontade de acrescentar, 
tudo de melhor que, em letra veio algo depois: Galvão, dos Novos Baianos, Waly 
Sailormoon, Duda Machado, todos letristas do período imediatamente pós-tropicália. 
Porque, com Torquato, começa a existir essa estranha estirpe de poetas: os 
letristas. Patrulhas dos mandarins das Belas Letras gostariam de lhes negar até o 
prestigioso título de poetas. E relegar a poesia da letra de música ao sub-solo da 
subliteratura. 
29 
 
A poesia da letra de música seria fácil, carregada de redundância e banalidade, 
laborando sobre sentimentos elementares, girando em torno de meia dúzia de situações 
prototípicas: boy meets girl, que bom, ela me ama, azar, ela não me ama mais, como era 
bom quando ela me amava, quem me dera uma paisagem assim e assado para transar 
com meu amor, as venturas e desventuras daquele amor romântico, inventado pelos 
trovadores provençais, os antepassados diante dos músicos-poetas do mundo pop. 
Só que a arte desses trovadores provençais (Arnaut Daniel, por exemplo) em nível 
de palavra é de teor tal, que coloca alguns deles entre os mais altos criadores da lírica de 
todas as épocas. Com ou sem música. 
Dias atrás, li, numa das principais revistas brasileiras a resenha de um disco 
de Chico Buarque, na qual o comentarista falava da poesia de Caetano, botando a 
palavra “poesia” entre aspas, acrescentando ainda 
um “digamos”, a “poesia” de Caetano. A questão é saber: mantemos ou tiramos as aspas, 
quando falarmos da poesia (ou da “poesia”) dos letristas e poetas-músicos? 
A geração à qual Torquato pertence, Caetano à proa, respondeu, criativamente, 
inundando o País com letras e canções de tamanha estatura poética que fica difícil achar 
paralelos na poesia escrita do mesmo período. Os mandarins vão ter que dormir com 
essa. 
Mas a hostilidade dos mandarins, guardiães da coroa de louros 
de Apolo, provocou o excesso contrário: o menosprezo pela poesia escrita que, 
de Guttemberg à poesia de vanguarda, tem quinhentos anos de evolução autônoma 
especialidade, diante da poesia da letra de música. 
A poesia escrita é uma criação da imprensa Guttenberguiana. Afinal, até o soneto 
foi feito, no início, para ser cantado. “Soneto” é, em italiano, um “sonzinho”. 
Mas a métrica, na poesia escrita, não se explica, se esquecermos que a poesia, 
nas origens, era “words set to music”, palavras para cantar. A ponto de Ezra Pound, poeta 
e músico, advertir que a poesia decai, quando passa muito tempo afastado da música, 
sua matriz e destino. 
No Brasil, dos anos 60 para cá, a poesia cantada e a escrita tem dialogando de 
modo fecundo, em inúmeros momentos. Basta invocar os conhecidos contactos, por 
exemplo, entre Caetano & Gil e a poesia concreta paulista (Caetano, em 
“Sampa”, introduz, na música popular, a própria expressão “poesia concreta”). Ou entre a 
poesia de Chico Buarque e as de Drummond e João Cabral. A essas influências da 
poesia escrita, acrescentou-se, nos anos 60, a da poesia de Oswald de Andrade & 
Antropofagia, ressuscitada por reedições e encenações de peças. 
A mais conhecida das letras de Torquato, “Geleia Geral” (o nome foi emprestado 
por Torquato de Décio Pignatari, que cunhou a expressão no editorial de uma 
revista “Invenção”) é oswaldiana até a medula. No ufanismo irônico. Na 
enumeração Kitsch-caótica das “relíquias do Brasil”. A mesma dança, ano que vem, mês 
que foi. A marca oswaldantropofágica, porém, está na própria linguagem de “Geleia 
Geral”: na técnica de cortes, de flashes, de montagens cinematográficas, de rimas 
trocadilho (inicia / anuncia), de malandragens verbais. 
 “Geléia Geral” traz estes dois versos: “resplandente cadente fagueira num 
calor girassol com alegria”. Percebe-se que a cafona palavra “fagueira” vira “fogueira”, 
quando você ouve / lê o ígneo verso seguinte. E esse cadente se transforma num 
incandescente candente. Alta era a arte de Torquato, poeta das elipses desconcertantes, 
dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a 
modernidade. 
 Jovens poetas do Brasil, quem não fez um poema em homenagem a 
Torquato, atire a primeira estrofe. A morte de Torquato foi um grande poema, suicídio, a 
performance máxima. A destruição da vida para a transformação em mito, com 
30 
 
nas “Metamorfoses” de Ovídio, onde os personagens morrem só para se transmutar em 
constelações, em estrelas. 
A garotada pegou o recanto. Torquato é meio-deus para vários poetas jovens que 
eu conheço. O modelo de sua vida integralmente dada à experiência poética, no fundo, 
a “trip” do barco bêbado do Rei Arthur, Arthur Rimbaud. Um grande sábio um dia disse 
que o signo é a morte da vida. Mas, sem signo, vida degradada, a vida não dura. A vida é 
curta, o signo é longo 
Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros. O Livro de 
Torquato é esse “Os Últimos Dias de Paupéria”, muito bem editado por Waly 
Sailormoon, vitrina dos vários possíveis de Torquato: em letra, poesia escrita, ensaios 
jornalísticos, fragmentos de diário, retrato estilhaço de um poeta por outro poeta. 
Essa – digamos – precariedade do “corpus torquatiano” “para falar como os 
mandarins é um fato de mistério: a incompletude, a obra aberta, o poder ser. Talvez, por 
isso, Torquato tenha influenciado tanto. 
Isso que se chama, imprecisamente, de “poesia marginal” o invoca entre os 
santos do seu panteão, quando não como “heros ktistes”, deus fundador. Morto aos 28 
anos, Torquato deixou fragmentos, “rari nantes in gurgite vasto”, “disjecta membra”, cacos 
de uma explosão nuclear existencial. Mas a realidade, aí, foi de uma grande elegância e 
precisão. Atingido em cheio pela bomba da modernidade, Torquato dispersou-se em 
microepifanias, letras, poemas, textos de jornal. O que só aumenta seu pretígio numinal 
diante de uma geração televisiva, marshal-mclunaniana, descontínua, paratática. 
A flor que foi cortada antes do tempo é emblema de todas as 
virtualidades. Torquato é a divindade que, na poesia brasileira, preside o poder-ser. 
Se Torquato é o mártir auto-imolado da poesia cantada brasileira, Mário 
Faustino é seu desastrado (“hecatombado”) equivalente, na área escrita. Desaparecido 
em desastre aéreo, Faustino deixou atrás de si o perfume de uma militância poética, que 
teve seu auge noCaderno B do “Jornal do Brasil”, na época de Reynaldo 
Jardim, quando Mário, diretor, abriu espaços e tempos para o que de mais radical se fez 
e fazia. Aberto tanto para o melhor passado quanto para o mais agudo presente, o 
suplemento de Faustino foi um momento histórico. 
Poundiano, Mário Faustino imprimiu ao Caderno B do JB uma diretriz clara, 
seletiva, paideumática, a única que tem “virtú” para atuar como agente de transformação 
da cultura: escolhas radicais, a partir de critérios precisos. Como poeta, “último verse-
maker”, como o chamou um companheiro de geração, Faustino deixou uma produção 
incompleta e fragmentária, sílabas para uma palavra que se ia chamar “O Homem e Sua 
Hora”, macropoema, ao molde dos “Cantos” de Pound, que deveria sintetizar a 
experiência vital do poeta num todo significante. 
Contemporâneos, em alguns aspectos, Faustino é o oposto de Torquato. 
Torquato é popular, “reles”, pop, para tocar no rádio, sermos plebeus. Faustino é “sermo 
nobilis”, aristocratizante, altamente letrado, cheio de laivos da geração de 45 (helenismos, 
palavras raras, preciosismos da expressão, anticoloquialismo). 
 Na poesia Provença medieval, distinguia-se entre um “trobar léu” um “trobar 
ric” e um “trobar clus”, o poetar leve, o poetar rico e o poeta escuro. 
 O “trobar léu”, o poeta leve, era o mais parecido com isso que, hoje, é normal 
na letra da música popular: o verso fluente, fácil de entender, pop. (ver os trovadores 
Marcabru, Guilhaum de Peitau, Peire Vidal). Palavras solenes e sintaxe elevada, o “trobar 
ric”. “Clus” era o “trobar” difícil, não acessível à primeira audição, seja pela complexidade 
da “metaphysical” idéia ou pelo abstruso da imagem, da alusão, pela raridade da palavra 
ou pela extrema arquitetura musical do edifício verbal da letra (Arnaut Daniel). Nessa 
lógica “trovençal”, Faustino pratica um “trobar ric”, com ocasiões de “clus”. 
31 
 
 Torquato é “léu” e, às vezes, “clus”. A coexistência dessas diferenças entre 
dois grandes poetas contemporâneos deve ser altamente didática para todos aqueles que 
querem reduzir a poesia a um só momento, a um só “trobar”. 
 Em passado “Folhetim”, num ensaio “Forma é Poder”, denunciei a 
suposta “objetividade” da linguagem jornalística, mostrando como esse efeito é 
precipitado de uma codificação de linguagem, uma cristalização canônicas de recursos 
que, estabilizando o discurso, transmita a sensação de “realidade”. Jornalismo não tem 
“estilo”. Ora, o que há no mundo da inteligência são as especificidades de cada 
consciência. Todas as cabeças são “estilos”. 
 A linguagem jornalística é imposta por uma autoridade: um Poder. Mas pode-
se dinamitar essa tirania: por dentro, na linguagem. De pronto, lembro três momentos: os 
jornalismos de Oswald de Andrade, de seu herdeiro, Paulo Francis, e de Torquato. Na 
coluna que, longo tempo, manteve no jornal. “Última Hora”, Torquato praticou, em nível 
de massas, a mais ágil das linguagens: esplendidamente “subjetiva”, descontínua, 
ideogrâmica, blocos carregados de eletricidade, movida a elipses, elipse, a figura-mestra 
de Torquato, conduzida até a elíptica apoteose de auto-eliminação final, o efeito da Falta. 
 Não exagero ao dizer que Torquato criou um padrão de jornalismo cultural. 
Um padrão baseado na extrema criatividade de linguagem. Na hibridização dos discursos: 
poética, factual, materiais nobres x pobres. Esse jornalismo torquatiano estava a serviço 
de uma causa, a promoção do super-oito e do cinema marginal, periférico às glórias e 
consagrações do Cinema Novo, em vias de academização, comercialização e caretice. 
Breve nas telas deste cinema. Torquato Neto. 
 Não diz pouco da grandeza do poeta Torquato dizer que sua última grande 
preocupação foi o cinema, essa arte não-verbal, mas síntese de todas as artes, destino 
das artes, conforme Eisenstein: destinação do verbal, do gestual, do visual, num só ponto-
ômega. 
 Poesia é ação entre códigos: todo poeta é intersemiótico. É Pound, músico 
e poeta. Maiakovski: poeta e artísta plástico. 
 Em termos de Brasil século 20, são conhecidas as relações entre Oswald, 
Murilo e Cabral e as artes plásticas. Ou as tangências e secâncias 
entre Bandeira e Vinícius e a música. E “concreta” era a pintura, antes da poesia. O poeta 
não é um escritor: é um artista. 
 Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato perfez o fadário de 
todo vampiro que se preza, a sina dos “un dead”. 
Mais conciso que o bilhete final de Maiakovski, o de Torquato diz tudo. Diz quando 
a vida pode ficar pesada nas mãos de uma criança. 
 
Paulo Leminski é poeta e compositor, autor de “Catatau” e “Verdura”. Jornal Folha de São Paulo, Folhetim, 7.11.1982. 
 
 
 TEXTOS SELECIONADOS 
 
 
COGITO 
 
Eu sou como eu sou 
pronome 
pessoal intransferível 
do homem que iniciei 
na medida do impossível 
 
Eu sou como eu sou 
32 
 
agora 
sem grandes segredos dantes 
sem novos secretos dentes 
nesta hora 
 
Eu sou como eu sou 
presente 
desferrolhado indecente 
feito um pedaço de mim 
 
Eu sou como eu sou 
vidente 
e vivo tranquilamente 
todas as horas do fim. 
 
 
(O poema acima foi publicado no livro "Os Últimos Dias de Paupéria", Max Limonad - Rio de Janeiro, 1973, 
e selecionado por Ítalo Moriconi para figurar no livro "Os cem melhores poemas brasileiros do século", Objetiva - Rio de Janeiro, 
2001, pág. 269.) 
 
 
 
GO BACK 
 
Você me chama 
Eu quero ir pro cinema 
Você reclama 
Meu coração não contenta 
Você me ama 
Mas de repente a madrugada mudou 
E certamente 
Aquele trem já passou 
E se passou passou daqui pra melhor, foi! 
 
Só quero saber do que pode dar certo 
Não tenho tempo a perder 
 
(Letra musicada e interpretada por Sérgio Brito / Titãs) 
 
 
 
LET’S PLAY THAT 
 
quando eu nasci 
um anjo louco muito louco 
veio ler a minha mão 
não era um anjo barroco 
era um anjo muito louco, torto 
com asas de avião 
 
eis que esse anjo me disse 
apertando minha mão 
com um sorriso entre dentes 
33 
 
vai bicho desafinar 
o coro dos contentes 
vai bicho desafinar 
o coro dos contentes 
let's play that 
 
(Letra musicada e interpretada por Jards Macalé) 
 
 
GELEIA GERAL 
 
Um poeta desfolha a bandeira 
E a manhã tropical se inicia 
Resplendente, cadente, fagueira 
Num calor girassol com alegria 
Na geleia geral brasileira 
Que o jornal do Brasil anuncia 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
"A alegria é a prova dos nove" 
E a tristeza é teu Porto Seguro 
Minha terra é onde o Sol é mais limpo 
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro 
Tumbadora na selva-selvagem 
Pindorama, país do futuro 
 
Ê bunba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bunba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
É a mesma dança na sala 
No Canecão, na TV 
E quem não dança não fala 
Assiste a tudo e se cala 
Não vê no meio da sala 
As relíquias do Brasil 
Doce mulata malvada 
Um LP de Sinatra 
Maracujá, mês de abril 
Santo barroco baiano 
Super poder de paisano 
Formiplac e céu de anil 
34 
 
Três destaques da Portela 
Carne seca na janela 
Alguém que chora por mim 
Um carnaval de verdade 
Hospitaleira amizade 
Brutalidade, jardim 
 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
Plurialva, contente e brejeira 
Miss linda Brasil diz: "Bom Dia" 
E outra moça também, Carolina 
Da janela examina a folia 
Salve o lindo pendão dos seus olhos 
E a saúde que o olhar irradia 
 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
Um poeta desfolha a bandeira 
E eu me sinto melhor colorido 
Pego um jato, viajo, arrebento 
Com o roteiro do sexto sentido 
Faz do morro, pilão de concreto 
Tropicália, bananas ao vento 
 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumbaiê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
Ê bumba iê iê boi 
Ano que vem, mês que foi 
Ê bumba iê iê iê 
É a mesma dança, meu boi 
 
É a mesma dança, meu boi 
É a mesma dança, meu boi 
 
(Letra musicada e interpretada por Gilberto Gil / Manifesto-síntese da 
Tropicália) 
35 
 
 
 
 
POEMA DO AVISO FINAL 
 
É preciso que haja alguma coisa 
alimentando o meu povo: 
uma vontade 
um certeza 
uma qualquer esperança. 
É preciso que alguma coisa atraia 
a vida ou a morte: 
ou tudo será posto de lado 
e na procura da vida 
a morte virá na frente 
e abrirá caminhos. 
É preciso que haja algum respeito 
ao menos um esboço: 
ou a dignidade humana se afirmará a machadadas. 
 
(Letra musicada por Gomes Brasil, James Brito e Mike Soares / Interpretada por Cláudia 
Simone) 
 
 
 
 
MARGINÁLIA II 
 
Eu, brasileiro, confesso 
Minha culpa, meu pecado 
Meu sonho desesperado 
Meu bem guardado segredo 
Minha aflição 
 
Eu, brasileiro, confesso 
Minha culpa, meu degredo 
Pão seco de cada dia 
Tropical melancolia 
Negra solidão 
 
Aqui é o fim do mundo 
Aqui é o fim do mundo 
Aqui é o fim do mundo 
 
Aqui, o Terceiro Mundo 
Pede a bênção e vai dormir 
Entre cascatas, palmeiras 
Araçás e bananeiras 
Ao canto da juriti 
 
Aqui, meu pânico e glória 
Aqui, meu laço e cadeia 
36 
 
Conheço bem minha história 
Começa na lua cheia 
E termina antes do fim 
 
Aqui é o fim do mundo 
Aqui é o fim do mundo 
Aqui é o fim do mundo 
 
Minha terra tem palmeiras 
Onde sopra o vento forte 
Da fome, do medo e muito 
Principalmente da morte 
Olelê, lalá 
 
A bomba explode lá fora 
E agora, o que vou temer? 
Oh, yes, nós temos banana 
Até pra dar e vender 
Olelê, lalá 
 
Aqui é o fim do mundo 
Aqui é o fim do mundo 
Aqui é o fim do mundo 
 
(Letra musicada e interpretada por Gilberto Gil) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ASSIS BRASIL 
37 
 
 
 
 
 “Depois de muitos anos cheguei a 
compreender, já escritor tarimbado, que 
a arte nasce quando viver não é suficiente 
para exprimir a vida’, como disse André 
Gide.” 
 
(Memória e aprendizado / Assis Brasil) 
 
 
 
 O AUTOR 
 
Assis Brasil é o escritor piauiense mais premiado em nível nacional e um dos 
poucos (se não o único) a viver profissionalmente de sua arte. Autor de uma obra vasta e 
diversificada, que inclui romance, conto, ensaio e textos infanto-juvenis. Destaca-se ainda 
como crítico literário e organizador de antologias poéticas. 
Filho da cidade de Parnaíba, seu nome completo é Francisco de Assis Almeida 
Brasil, nascido a 18 de fevereiro de 1932. Lá viveu sua infância, tendo estudado no 
Instituto São Luís Gonzaga, partindo em seguida para Fortaleza, onde concluiu os antigos 
ginásio e científico. No Rio de Janeiro, cidade na qual passa a residir a partir da década 
de 50, trabalha nas Casas Pernambucanas, durante o dia, e cursa jornalismo à noite, na 
Pontifícia Universidade Católica (PUC). 
A estreia literária aconteceu em 1953, com a publicação de Verdes Mares Bravios, 
livro infanto-juvenil marcado pela influência do escritor cearense José de Alencar, 
perceptível no título da obra. Ao longo da carreira dedicada às letras, que já ultrapassou 
os 60 anos, ele já lançou uns 130 títulos. Os mais de um milhão de exemplares vendidos 
o tornam um best seller nacional. 
Em termos de prêmios literários, Assis Brasil já ganhador quase todos, com 
destaque para o Walmap (duas vezes, com Beira Rio Beira Vida/1965 e Os que bebem 
como os cães/1975) e o Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (pelo 
conjunto da obra, em 2004). 
Atualmente o autor reside em Teresina, participa das atividades culturais do 
Estado e continua produzindo bastante. Em 2006, foi o autor homenageado pelo Salão do 
Livro do Piauí – Salipi. 
 
 
 A OBRA 
 
Duas são as marcas principais da obra de Assis Brasil: quantidade em termos de 
títulos lançados e variedade de gêneros cultivados, abrangendo desde o romance à 
crítica, do conto ao ensaio, da literatura infantil à tradução. Tudo escrito sem abrir mão, 
entretanto, da qualidade estética e da alquimia verbal. 
 
 
 
 
 
 
38 
 
 
Romance 
Tetralogia 
Piauiense 
Beira Rio Beira Vida 
A Filha do Meio Quilo 
O Salto do Cavalo Cobridor 
Pacamão 
 
Ciclo do 
Terror 
Os Que Bebem Como os Cães 
O Aprendizado da Morte 
Deus, o Sol, Shakespeare 
Os Crocodilos 
 
Quarteto 
de 
Copacaba
na 
O Destino da Carne 
Sodoma Está Velha 
O Prestígio do Diabo 
 
 
Históricos 
Nassau, Sangue e Amor nos Trópicos 
Villegagnon, Paixão e Guerra na Guanabara 
Tiradentes, Poder Oculto o Livrou da Forca 
Jovita, Missão Trágica no Paraguai 
 
 
Novela 
O Livro de Judas 
Ulisses, o Sacrífico dos Mortos 
A Volta do Herói 
A Rebelião dos Órfãos 
Tiúbe, a Mestiça 
 
 
Conto 
Contos do Cotidiano Triste 
A Vida Não é Real 
História do Rio Encantado 
 
 
 
 
Infanto-
Juvenis 
Verdes Mares Bravios (Aventura no Mar) 
Aventuras de Gavião Vaqueiro 
O Primeiro Amor 
O Velho Feiticeiro 
A Viagem Proibida 
O Destino é Cego 
A Primeira Morte 
 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
 
A obra de Assis Brasil ainda não está classificada dentro de um estilo literário por 
razões da plena produtividade do autor e das possíveis modificações a que está sujeita. 
No entanto, como autor contemporâneo é possível notar em sua obra marcas de 
estilos transatos e influências de grandes autores brasileiros, que vão de Machado de 
Assis a Guimarães Rosa. 
Entre outras, são marcas comuns ao estilo de Assis Brasil: 
Visão pessimista da vida,do mundo e das pessoas; 
Análise da sociedade ressaltando as relações humanas por meio da hipocrisia e 
das contradições; 
Densidade psicológica das personagens; 
39 
 
Regionalismo crítico; 
Reflexão sobre a mesquinhez e a precariedade da sorte humana; 
Linguagem: estilo conciso, sentenças curtas, equilíbrio entre a linguagem e o 
conteúdo. 
Não se preocupa em descrever fisicamente os ambientes e os personagens. 
No que se refere à construção narrativa, observa-se o predomínio da 
introspecção, o rompimento com a linearidade episódica, que se fragmenta em sua 
estrutura, opção pelo fluxo de consciência como elemento norteador do processo 
narrativo. 
 
 
 TEMAS ABORDADOS 
 
A obra de Assis Brasil, seja regional ou não regional, explora uma linearidade 
temática que vai ao encontro da filosofia existencialista, cara aos neorrealistas franceses, 
centrada principalmente em aspectos como a solidão, a dor, o absurdo, a 
incomunicabilidade, a angústia, a náusea, o destino e a morte. 
 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
 
Diferentemente de outros que negam as influências literárias sofridas, Assis Brasil 
é dos poucos autores que fazem questão de citá-los com orgulho. Dentre outros, merecem 
destaque três: José de Alencar, escritor cearense; Machado de Assis, escritor carioca e 
William Faulkne, escritor estadunidense. 
 
 
 COMENTÁRIO DE LIVROS 
 
Devido à extensão de sua obra, o presente estudo se concentrará em apenas dois 
de seus romances: Beira Rio Beira Vida e Os que Bebem Como os Cães, ambos bastante 
lidos e premiados nacionalmente. 
 
 
 BEIRA RIO BEIRA VIDA 
 
É o livro que abre a Tetralogia Piauiense, de caráter telúrico e 
preocupação social. Em 1965, ganhou o prêmio Walmap de melhor 
romance. O espaço físico é a cidade de Parnaíba, onde marinheiros e 
prostitutas habitam o cais do rio num jogo de desejos e frustrações. 
 Luíza é filha de Cremilda e mãe de Mundoca. No presente da 
narrativa, ela já está velha, mais de 70 anos, vive sozinha com a filha e 
sobrevive das lembranças do cais. 
Passa os dias a ‘resmungar’ sua história e tem a filha como sua 
única interlocutora. 
No passado, Luíza teve uma infância marcada pelo desprezo da 
mãe, prostituiu-se aos 15 anos com Nuno e quase casou com Jessé, o único 
que poderia ter mudado a sua vida e oseu destino. 
 
 
 Personagens 
 
40 
 
 Nome Dados 
Luíza 
Prostituta, filha de Cremilda, era constantemente 
humilhada pela mãe. 
Cremilda 
Misto de prostituta e empresária, mãe de Luíza, mostra-
se amargurada, oportunista e sem perspectivas. 
Mundoca 
Feia, desprezada pela sociedade, é filha de Luíza, 
rompe o ciclo da prostituição, mas também não ama, 
não casa, não tem filhos. 
Jessé 
Criado por Cremilda, tem anseio de ascender 
economicamente. Gosta de Luíza. Vira marinheiro e 
morre no incêndio do navio-gaiola. 
Nuno 
Marinheiro, boa-pinta, pai de Mundoca, grande amor de 
Luíza. 
 
 
 Estrutura e características do romance 
 
Capítulos curtos; 
Narrado em 1ª pessoa, a narrativa flui do inconsciente da personagem; 
Há um narrador em 3ª pessoa que pouco aparece na história; 
Predomina o discurso indireto e indireto livre. Quando o discurso direto se faz 
presente, são falas curtas, incisivas, secas, ríspidas ou nostálgicas, ampliando a carga de 
comoção do texto. 
Não há linearidade do enredo, nem do tempo nem das ações das personagens; 
Linguagem marcada pela economia linguística, sintaxe simples, períodos curtos, 
vocabulário seco e reduzido ao mundo das personagens. 
 
 
 Principais temas 
 
A prostituição como um ciclo e única opção de vida; 
Marginalização das mulheres do cais; 
Preconceito à população ribeirinha; 
Denúncia dos horizontes estreitos da província; 
Hipocrisia da igreja católica; 
Impossibilidade de ascensão social. 
 
 
OS QUE BEBEM COMO OS CÃES 
 
Livro que abre o Ciclo do Terror, de caráter ecumênico e 
denúncia contra a ditadura militar. É o romance mais político de 
Assis Brasil. Nele o autor denuncia, implicitamente, a violência e a 
opressão que assolaram o Brasil após o golpe de 1964. O enredo 
está centrado na figura de Jeremias, professor de literatura, que é 
preso sob a acusação de fazer a “cabeça” de seus alunos. 
A narrativa, em tempo psicológico, já começa com Jeremias 
preso e tendo sofrido lavagem cerebral, a ponto de perder todas as 
suas referências: nome, profissão, estado civil, se tem filho ou não. 
E o mais grave, até a capacidade de expressão. 
41 
 
 
A ação se desenrola em três espaços: a cela, o pátio e o grito. O primeiro 
representa o confinamento e a solidão; o segundo, o banho e a certeza de não estar 
sozinho. Quanto ao grito, espaço da interioridade, manifestam-se a liberdade e o gesto de 
solidariedade. 
 
Os únicos alentos que ele encontra no presídio, aos quais se apega como um 
náufrago, são a descoberta de Deus e a companhia de um casal de ratinhos, batizados 
de César e Julieta. 
Indagação pertinente é a que faz Jeremias no final, antes de cortar os pulsos no 
muro, válida até os nossos dias: “O Homem é uma paixão inútil?”. Ficção e realidade se 
entrecruzam nesta instigante narrativa do romancista parnaibano. 
 
 
 Personagens 
 
Nome Dados 
Jeremias 
Professor de literatura, 42 anos, casado, opositor do regime 
militar, preso político, torturado físico e psicologicamente na 
cadeia, suicida-se cortando os pulsos no muro da prisão. 
Protagonista da história e personagem — símbolo de todos 
aqueles que morreram (na cadeia ou fora dela) combatendo 
o regime autoritário implantado no Brasil a partir de 1964. 
Dulce 
Esposa de Jeremias, vivia criticando o marido por se 
envolver com política. Dizia: "Para que se importar com os 
outros se já vivemos com tanta dificuldade?" 
Matilde 
Mãe de Jeremias, "de olhos ternos e rosto sereno". É 
chamada pelo filho e amigos de Tide. 
Cacilda 
Filha de Jeremias e Dulce, apelidada pelo pai de Tudinha. 
Tinha tranças longas. Seu grande desejo era que o pai lhe 
desse a boneca da avó. 
Soldados e 
carcereiros 
Representantes da repressão militar, aparecem sem nomes e 
por meio de recursos metonímicos: fivelas de cintos, fardas e 
botas. 
Prisioneiros 
Vítimas do regime militar, presos por suas convicções 
políticas e ideológicas. 
 
 
Estrutura e características do romance 
- Narrativa estruturada em 41 capítulos cíclicos: a cela, o pátio e o grito; 
- Ruptura da linearidade cronológica; 
- Capítulos curtos; 
- Linguagem simples; 
- Emprego do discurso indireto livre 
- Fato histórico apresentado sob a ótica da ficção; 
- Resgate de flashes da vida de Jeremias através da memória; 
- Repetição de situações como expressão da monotonia carcerária. 
 
 
 Principais temas 
 
42 
 
A opressão política e militar; 
A perda da liberdade; 
O rebaixamento do homem à condição de animal; 
A tortura física e psicológica; 
A incomunicabilidade; 
O reaprendizado da linguagem; 
A morte como espaço de liberdade frente ao absurdo da tortura. 
 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
 
Da gênese de Beira rio beira vida 
 
(Halan Silva) 
 
 
à memória do professor Benedito Nunes (1929-2011) 
 
Tenho diante dos olhos uma brochura datada de 1965. É a primeira edição 
de Beira rio beira vida (Edições o Cruzeiro), do romancista piauiense Assis Brasil que, no 
dia 18 de fevereiro de 2012, irá completar oitenta anos de vida. A capa traz a imagem de 
um porto com um círculo amarelo que me lembra o sol de Parnaíba. O tempo cronológico 
possibilita-me viajar em direção ao passado e especular a gênese desse romance singular 
na literatura brasileira. A tiragem de dez mil exemplares aponta para o sucesso de Assis 
Brasil que, em 1964, arrebatou com Beira rio beira vida o prêmio literário mais importante 
do país - o Prêmio Nacional Walmap (Waldomiro Magalhães Pinto). 
Olho fixamente para a brochura de Beira rio beira vida. Súbito, ela me transporta 
ao universo do Nouveau Roman, movimento literário francês dos anos 1953-1970, que 
muitos ainda confundem com um movimento de vanguarda. Em suma, o que o Nouveau 
Roman propõe é a desconstrução dos elementos estruturais do romance tradicional: a 
trama, o personagem e o lugar do narrador. Na linha de frente do Nouveau Roman, 
atuaram Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Claude Simon, Michel Butor e Marguerite 
Duras, que se enquadram no que se pode chamar de autor-crítico e de crítico-autor. Ao 
escrever um romance, esses escritores punham em prática concepções individuais acerca 
da estética do romance. Assis Brasil, que é um autor-crítico e crítico-autor, ao 
escrever Beira rio beira vida, sem negar as conquistas do romance moderno, encontradas, 
por exemplo, em autores como James Joyce, William Faulkner e Franz Kafka, incorporou 
elementos estéticos peculiares ao Nouveau Roman. A leitura do romance La 
modificacion (Éditions de Minuit, 1957) de Michel Butor (1926), filosófico que migrou para 
a literatura (poesia/crítica/romance), foi determinante durante o processo de feitura 
de Beira rio beira vida. La modificacion é um romance desprovido de trama, escrito na 
segunda pessoa do plural Vous. Ação resume-se na viagem de Léon Delmon, que toma 
um trem em Paris e segue para Roma, onde pretende se encontrar com sua amante. Na 
viagem, que dura 21h, ele dialoga com passageiros, pensa na família e muda de plano. 
Nesse romance realista, há somente um personagem, dado que a esposa, os filhos e a 
amante só existem no pensamento de Léon 
Delmon. Em La modificacion, o autor torna o leitor participativo. Deliberadamente, 
Michel Butor faz com que o leitor assuma o lugar do autor no ato da leitura. 
Essa brochura amarelada pela pátina do tempo suscita-me uma pergunta 
inevitável: há uma trama em Beira rio beira vida? Observo o narrador e os dois 
personagens-narradores, Luíza e Mundoca, eles mantêm um diálogo permanente (só 
interrompido pelo narrador) e me põem diante de uma ação que afasta para longe a 
43 
 
possibilidade de uma trama (na acepção tradicional do termo). Luíza e Mundoca recuam 
no tempo, deparam-se com o passado marcado pela prostituição e pela marginalização. 
Na palavra dos narradores não se percebe onisciência. À sua maneira, cada um dos três 
narradores conta parte da ação (é ponto de vista na narração). No que tange ao tempo, 
penso estar diante de um romance anacrônico; pois não há início, apenas o começo daação, que se desenvolve num ponto avançado da narrativa. O romance não termina, 
retorna ao começo da ação (a narrativa é circular). Em Beira rio beira vida, contrastam 
duas modalidades de tempo: o tempo cósmico, perceptível no movimento exterior da 
natureza (o subir e o baixar das águas do Parnaíba) e o tempo psicológico, configurado 
na experiência da sucessão dos estados internos dos personagens-narradores Luíza e 
Mundoca. O tempo cósmico é prospectivo e irreversível, não permite movimento de recuo 
em direção ao passado. Por sua vez, o tempo psicológico é sempre reversível, permite 
recuos em direção ao passado ou avanços em direção ao futuro. Em Beira rio beira vida, 
há uma unidade de lugar. O cenário ou o teatro do mundo é a cidade de Parnaíba dos 
anos quarenta, que os narradores, como se fossem demiurgos, reconstroem na memória. 
Como em La modificacion, Beira rio beira vida dispõe de poucos personagens, 
basicamente dois: Luíza e Mundoca. Os personagens Cremilda, Jessé, Nuno e Darcy 
Mavinier, por exemplo, só existem na memória de Luíza e de Mundoca. O personagem 
Darcy Mavinier, que fora levado do mundo real para ficção, insere Beira rio beira 
vida no Roman à Clef. Ao escolher o tema da rejeição social, ao romper com a onisciência 
e a centralidade do narrador, ao optar pela ação em prejuízo da trama, ao abolir o traço 
psicológico dos personagens, ao assumir o tempo anacrônico e a unidade do lugar, Assis 
Brasil renuncia aos cânones do romance tradicional e assume um lugar de destaque no 
realismo da contemporaneidade, que muitos pensadores preferem chamar de Pós-
Modernidade. 
 
 
 TEXTOS SELECIONADOS 
 
I: 
 
“- Luíza. 
- Não diga nada, Jessé. 
- Desta vez não demoro muito. 
- Você nem imagina como demora toda vez. Um dia não volta mais. 
- Só vou apanhar um carregamento de algodão, coisa à-toa, o embarque é rápido. 
 - O rio já subiu? - Já. Espera por mim, Luíza? 
- O povo é falador, você andando com uma mulher que tem no bucho um filho de 
outro. 
- Não ligo. 
- Vai acabar ligando, de tanto ouvir a língua deles. Quem pode resistir? 
- Eu vou ser negociante em Parnaíba, Luíza. 
- Negociante, Jessé? 
- Você não sabe ainda? 
Esperou no cais. 
Com Ceci ou sem Ceci no colo, com os vestidinhos novos que fazia para a boneca, 
ou sem fazer coisa alguma, esperou no cais. 
O rio subia e baixava, a barriga crescia, aquela indisposição de manhã – às vezes 
se encontrava chorando, assoava o nariz nos panos de Ceci e olhava a curva dos 
igarapés, o horizonte do rio. 
- Luíza, já pra casa. 
44 
 
O tom era outro, a mãe queria simplesmente companhia, quando o cais começava 
a escurecer – companhia para as maquinações, para que a casa tivesse mais uma mulher 
para atrair os barqueiros. Como fez força para se livrar de quantos a queriam mesmo de 
barriga grande. 
- Que que tem, besta? 
A mãe apenas gargalhava com o ar de consentimento, pensando em mais dinheiro 
para aquela noite. 
- Seu filho nem vai saber nem nada. 
A mãe olhava para o seu estado e resolvia intervir: 
- Deixa ela de mão, Darcy. Você voltou degenerado do tal de Rio de Janeiro? 
O certo era que minha mãe não se sentia bem com aquelas preferências dos 
homens por mim, Mundoca. Mesmo quando eu ainda estava esperando você. Aquele tal 
de Darcy, não queira saber. Filho de gente rica lá da cidade, ela se vangloriava ao dizer 
que o tal do moço rico foi conhecer mulher de verdade em cima dela. Dizia assim mesmo, 
Mundoca: ‘em cima de mim, em cima de mim’, e soltava aquela gargalhada – ‘Era um 
fedelho cheirando ainda a leite, todo desajeitado’ – tinha orgulho em falar nisso. Parecia 
até uma lembrança que amenizava a velhice dela.” 
 
BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida. Ediouro: Rio de Janeiro, s/d. p.51. 
 
 
A Cela 
 
A escuridão é ampla e envolvente. 
O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus 
ouvidos. 
Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou em expectativa, o zumbido 
voltava, em duração enervante, direto como a fala direta do policial: 
- Deixa as mãos dele algemadas. 
 Aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do 
próprio corpo – estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra batida, úmida, mas 
não molhada ao ponto de ensopar sua roupa – os braços para trás das costas, os pulsos 
algemados. 
Aos poucos ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a 
areia: - sentia o cheiro da terra – uma terra velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro 
de urina – sentia as paredes, mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo 
estava em seu corpo, em seus poros. 
A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na 
areia fria. 
 - Deixa as mãos dele algemadas. 
 Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo próprio corpo? Horas, dias – 
lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar, mas na verdade não tinha 
vontade de fazer coisa alguma, queria apenas permanecer na posição incômoda, como 
se estivesse em maratona para provar que o corpo podia resistir a tudo. 
BRASIL, Assis. Os que bebem como os cães. 
FONTES IBIAPINA 
45 
 
 
 
"A melhor maneira de dizer a verdade é na ficção de 
mentira" 
 
 (Fontes Ibiapina. In: entrevista ao jornal O Dia, edição de 19 de 
janeiro de 1974) 
 
 
 
 
 
 O AUTOR 
 
Fontes Ibiapina nasceu em Picos, na Fazenda Lagoa Grande, em 1921. Foi 
jornalista, professor e magistrado, tendo sido juiz em várias comarcas do Piauí. 
Em 1942, mudou-se para Teresina, onde cursou o secundário e formou-se em 
Direito, na antiga Faculdade da Praça Demóstenes Avelino. As primeiras letras e o 
primário foramconcluídos ainda na sua terra natal. 
Pertenceu à Academia Piauiense de Letras (cadeira nº 9), foi membro do Conselho 
Estadual de Cultura do Piauí, além de um dos fundadores e primeiro presidente da 
Academia Parnaíba de Letras. 
Homem culto e pesquisador de nossas tradições populares e folclóricas. Um 
autêntico polígrafo, deixou uma obra vasta e diversificada, que engloba romance, conto, 
folclore, crônica, teatro e ensaio. 
A estreia literário ocorreu em 1958, com Chão de Meu Deus, livro de contos. A partir 
daí não parou mais de escrever e publicar, tendo lançado 38 livros ao todo, sem falar de 
20 ainda inéditos, dos quais cinco já foram editados. 
João Nonon de Moura Fontes Ibiapina faleceu no dia 10 de abril de 1986, na cidade 
litorânea de Parnaíba, onde morava na época e exercia as funções de Juiz de Direito. 
 
 A OBRA 
Há quem afirme que, entre títulos lançados e inéditos, Fontes Ibiapina escreveu 
quase 40 livros. Destaca-se como um grande contador de histórias, sobretudo, das 
relacionadas ao homem do interior, com quem conviveu de perto. Sua obra compreende 
as seguintes publicações: 
 
 
 
 
Romances 
46 
 
Sambaíba, 1963 
Palha de Arroz, 1968 
Tombador, 1971 
Nas Terras do Arabutã, 1984 
Curral de Assombrações, 1985 
Vida Gemida em Sambambaia, 1985 
Contos 
Chão de Meu Deus, 1958 
Brocotós, 1961 
Pedra Bruta, 1964 
Congresso de Duendes, 1969 
Destinos de Contratempos, 1974 
Quero, Posso e Mando, 1976 
Eleições de Sempre e Até Quando, 1985 
 
Crônicas 
Mentiras Grossas do Zé Rotinho, 1977 
Lorotas e Pabulagens de Zé Rotinho, s/d de publicação 
Folclore 
Paremiologia Nordestina, 1975 
Passarela de Marmotas, 1975 
Teatro 
O Casório da Pafunsa, 1982. 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
Fontes Ibiapina é apontado pela crítica como herdeiro do Romance de 30, que teve como 
introdutor o paraibano José Américo de Almeida, autor de A Bagaceira. Sua obra é 
permeada de "causos populares", fixando aspectos do homem comum e regional. Entre 
as várias espécies literárias cultivadas por ele, o conto se destaca como sua melhor forma 
de expressão. 
Autor de linguagem simples, coloquial e humorística, reproduzindo o linguajar espontâneo 
do interior, inclusive dizeres e ditados populares. 
Seus enredos organizam-se de forma tradicional.As personagens são simples e planas, 
sem grandes complexidades nem surpresas no transcorrer da narrativa, quer do ponto de 
vista comportamental ou psicológico. 
47 
 
Embora tenha se destacado como escritor regionalista, mesclando folclore e ficção, 
desenvolveu também o romance urbano, com destaque para Palha de Arroz, sua obra 
mais conhecida e adaptada para o cinema em 1979, com o título de A Solução Final. 
 
 TEMAS ABORDADOS 
Por ter focado sua obra no sertão piauiense, Fontes Ibiapina explorou os velhos temas do 
regionalismo nordestino: seca, miséria, êxodo rural, crendices, latifúndio, exploração, 
analfabetismo, marginalização social, desigualdades, fervor religioso e superstições. 
Todos esses assuntos ligados ao caboclo piauiense, vivendo num meio adverso e 
abandonado à própria sorte, retratado nos sofrimentos e virtudes de seu cotidiano. “Nada 
era inventado, tudo havia sido vivido com intensidade, tudo memorizado”, como fez 
questão de afirmar o escritor picoense. Uma das poucas exceções foi Palhade Arroz, 
romance ambientado em Teresina, ao explorar os problemas urbanos (energia, água, 
saneamento) e a violência policial da capital. 
 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
Por estar inserida na prosa regionalista de 30, marcada pelo “realismo bruto”, segundo 
termo usado pelo crítico Alfredo Bosi, Fontes Ibiapina tomou como referências literárias 
os romancistas nordestinos desse período: José Américo de Almeida (A Bagaceira), 
Raquel de Queiroz (O Quinze), José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Graciliano Ramos 
(Vidas Secas). Outras duas fontes inspiradoras foram Gilberto Freyre (Casa Grande & 
Senzala) e Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro). 
 
 COMENTÁRIO DE LIVROS 
Dentre os romances publicados, destacam-se Palha de Arroz (1968), livro no qual Fontes 
Ibiapina denuncia a marginalização das camadas pobres de Teresina, que moram em 
casas de palha na beira do Parnaíba, e a violência da polícia do interventor Leônidas Melo, 
em plena ditadura getulista; e Vida Gemida em Sambambaia (1985), retrato dramático da 
seca no interior do Piauí, ganhador do Prêmio Nacional do Clube do Livro. 
 É no conto que se encontra, de acordo com os críticos, o melhor de sua produção 
literária. A diversidade temática permeia esses textos, além de mostrar as faces telúrica e 
ecumênica do autor. Destaque para Chão de Meu Deus (1958) e Brocotós (1961), títulos 
que alcançaram repercussão tanto dentro como fora do Estado. 
 Como folclorista, mostra-se um grande conhecedor de nossas tradições, resgatando 
do esquecimento as crendices e superstições do sertanejo piauiense – lobisomem, mula-
sem-cabeça, cabeça de cuia. Sem falar também dos ditados populares, provérbios e 
citações. O fato de ter sido Juiz de Direito, servindo em vários municípios, e tendo a 
48 
 
oportunidade de ouvir “causos” dos próprios caboclos, o ajudou bastante no levantamento 
dessa cultura popular interiorana. 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
 
Fontes Ibiapina 
Por Abdenaldo Rodrigues e Adriano Lobão Aragão 
 
O homem é a expressão do meio cultural em que vive. Assim foi Fontes Ibiapina: a 
representação viva da cultura do Piauí, autor de obras que retratam com apuro a vida no 
sertão através de uma literatura cheia de graça, situada entre o real, o folclórico e o mítico. As 
pesquisas realizadas por Ibiapina são os mananciais da produção do autor, que busca, nas 
relações intrínsecas do homem com o meio, matéria-prima para sua literatura. 
A produção de Ibiapina está inserida na prosa regionalista contemporânea, 
contextualizada no Brasil a partir da década de 30, quando, segundo Alfredo Bosi, a ficção 
encaminhou-se para o chamado “realismo bruto”, identificado na linguagem oral, nos 
brasileirismos e regionalismos léxicos, onde destacamosJosé Américo de Almeida (A 
Bagaceira), Raquel de Queiroz (O Quinze),José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Graciliano 
Ramos (Vidas Secas). Ante toda tradição resgatada no romance de 30 e reinventada nos 
anos 50 porGuimarães Rosa, temos a estreia de Fontes Ibiapina com o livro de contosChão 
de Meu Deus, em 1958, tendo uma segunda edição em 1965. 
Em Fontes Ibiapina, não encontramos propriamente um regionalismo mágico, mas a 
própria pesquisa folclórica, tanto na Paremiologia Nordestina e Passarela de Marmotas, como 
no restante de sua obra. Para Câmara Cascudo, “o que caracteriza essencialmente uma 
cultura não é a existência de padrões equivalentes aos nossos no espaço e no tempo. Uma 
cultura vive pela sua existência”. Desse modo, a cultura nordestina se identifica na própria 
realidade social. Essa afirmação se estrutura na interpretação do pensamento social 
deGilberto Freyre, onde em Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933, consegue fazer 
rigorosa distinção entre raça e cultura. O nordestino, diz o sociólogo, nunca foi uma raça 
inferior, como queria a elite etnocêntrica que, na diferença, encontrava alicerce para o 
preconceito. Esse pensamento elitista foi tão enraizado em nossa História, que até mesmo 
intelectuais como M. Paulo Nunes, comentando Casa-Grande & Senzala, na primeira edição 
de seu livroModernismo & Vanguarda, embora critique o etnocentrismo, ainda vê a cultura 
regionalista nordestina de mulatos e cafuzos como equivalência de atraso: “Eram, isto sim, 
como em grande parte ainda o são hoje em dia, pessoas culturalmente atrasadas, doentes e 
desassistidas.” (M. Paulo Nunes, inModernismo & Vanguarda, p.241) 
É inconcebível a existência de uma cultura superior a outra, pois o termo cultura só 
pode ser concebido do ponto de vista antropológico, já que confundir cultura com erudição é 
deturpar seu significado. Daí a não existência de déficit cultural e a importância dos trabalhos 
de Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Noé Mendes,Pedro Silva, Fontes Ibiapina e outros não 
menos importantes. 
49 
 
O enfoque de Gilberto Freyre abriu um leque de possibilidades que confluíram para o 
estudo de aspectos essencialmente regionais que, aos poucos, foram incorporados à 
Literatura Brasileira. A linguagem oral, os costumes, as tradições e as crenças do Nordeste 
fizeram surgir, pela força de sua expressão, obras-primas como Grande Sertão: Veredas, de 
Guimarães Rosa, Vila dos Confins, deMário Palmério, Vida Gemida em Sambambaia, de 
Fontes Ibiapina, atingindo o quase “estado bruto” da realidade do sertão nordestino, almejado 
desde Franklin Távora, ainda no Romantismo, conforme podemos constatar no prefácio de O 
Cabeleira. 
A ficção regionalista se expressa principalmente no Nordeste. A paisagem decadente, 
os problemas da seca, os costumes e as crenças dão aos ficcionistas regionalistas base para 
a estruturação de um espaço de conflito expressivo. A psicologia do sertão e o pensamento 
mítico do sertanejo transcendem a miséria e o drama da seca. Poderíamos dizer que se trata 
do homem em estado bruto, enfrentando a natureza: a potência do homem diante da seca, 
sobrevivendo. Até mesmo sua linguagem há de ser bruta; daí a identificação com pedra 
em João Cabral de Melo Neto (ver os poemas O Sertanejo Falando e A Educação pela 
Pedra) e o magistral trabalho com a linguagem do sertanejo, notadamente no personagem 
Fabiano, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Se em Graciliano encontramos a deficiência 
da linguagem em Fabiano, e a recriação da linguagem em Guimarães Rosa, em Fontes 
Ibiapina a linguagem também perdeu suas amarras com a norma, buscando a partir de espaço 
próprio mostrar a significação da fala sertaneja, sem precisar de certa adjetivação excessiva, 
que encontramos em A Bagaceira, de José Américo de Almeida, por exemplo. Ibiapina 
fundamentou sua linguagem nas construções simples, sem levar em consideração a sintaxe 
e a regência. 
Almeida Garrett, na primeira metade do século XIX, é o precursor dos estudos das 
coisas populares e tradições do povo português. Seu interesse parte das influências recebidas 
das baladas de Walter Scott, as de Burger,e os irmãos Grimm. No Brasil, contudo, o estudo 
do folclore só vem à tona depois da revolução literária no Modernismo brasileiro, onde há um 
desprendimento da Literatura Portuguesa. Surgem, dessa forma, folcloristas como Sílvio 
Romero,Celso de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Batista Caetano, Couto 
Magalhães, Beaurepaire Rilhas e Araripe Júnior. Mas é no Nordeste, com Câmara 
Cascudo e Leonardo Mota que o folclore atinge o seu auge literário. No espaço piauiense, 
por sua vez, pode-se citar um seleto grupo de estudiosos que desenvolveram um trabalho de 
significativa relevância, como é o caso deLeônidas de Sá, no século passado e, mais 
recentemente, Artur Passos, Pedro Silva, Noé Mendes, João Alfredo de 
Freitas, Raimundo Rosa de Sá e Fontes Ibiapina. Quanto a Fontes Ibiapina, foi um exímio 
catalogador das lendas, fábulas e adágios do Nordeste. Embora o seu estudo temático tenha 
como geografia determinada o Piauí, sua produção se torna universalizada, devido à força 
significativa do folclore, definida pelas relações do homem no seu cotidiano natural, onde as 
crendices apresentam um incomparável valor como manifestação social. As fábulas e 
lendas,ensinava Fontes Ibiapina, “têm sua razão de ser, sua causa, origem, sua utilidade 
econômica, moral e social”. 
Ibiapina partia do princípio de que o folclore é uma manifestação espontânea, mas que 
se expressa em determinados segmentos sociais, onde é o povo simples das pequenas 
cidades, das fazendas, da periferia que desenvolve sua criatividade. Na sua obra, existe a 
consonância da tríade homem-terra-tradição. É através dessa mesclagem que surge um 
espaço folclórico próprio, capaz de mostrar o pensamento, a ação e a vivência integrados às 
expectativas e emoções do homem sertanejo, tornando-o sujeito de sua história. 
50 
 
(Texto publicado originalmente em amálgama #2, fevereiro de 2002) 
 
TEXTOS SELECIONADOS 
Texto 1 
“Dizem os que entendem do riscado, que sabem onde têm as ventas, que a desculpa do 
amarelo é comer terra como a do papa-mel é o pau não ter oco. É o caso de nós aqui 
vivermos soletrando cancão em breves, alegando que não 
temos campo em assuntos literários. Na verdade, falando mesmo de oitiva, sem dadas 
nem tomadas ou arrodeios, escritor por estas bibocas de confins de sertão é coisa tão 
escassa que nem garupa de jumento. Difícil que só minhoca em terra seca. De se contar 
nos dedos de uma mão e não ocupar todos. De tão pobre a nossa literatura, chega a ponto 
de não ter de seu um couro para morrer em cima, apesar de tratar da terra onde se diz 
que o boi morreu. Além do mais, não se encontra de louça um caco em matéria de auxílio, 
ou mesmo sequer um tico de estímulo por parte dos Poderes Públicos dos homens que 
carregam o rei na barriga. Não há dúvida que o mundo é dos mais expertos e a sorte do 
pobre é como a do cambito – morrer lascado – haja vista que atrás dele corre um bicho e 
sua cuia sempre cai emborcada.” 
(In: Paremiologia Nordestina, pág. 9) 
Texto 2 
A fazenda 
Como muitas demais daqueles tempos. (A história começa lá pelos confins dos idos de 
mil setecentos e noventa e quê para o começo de mil e oitocentos). Como muitos demais 
daqueles tempos, casarão bonito. Bem na sentada dum morro de subida leve. À frente, 
uma verdura de carnaubal se perdendo mundo a fora. Uma beleza de encantar, o 
panorama. Uma vista que se perdia nas distâncias até ao longe onde se atravessava uma 
barra azul de serras. Assim ao lado, um riacho perene se escorregando em sussurros 
suaves por entre carnaubeiras, ladeado de pastagens verdes de seca e inverno. Já do 
lado da cozinha, a caatinga que esta não tinha fim de limite. 
Casarão talentoso e imponente. Paredes de pedras com quase um metro de diâmetro. 
Salões amplos, quartos espaçosos. Em cima, um sótão arrogante. Alpendre sombrio. Nas 
laterais, uma infinidade de portas e janelas num sorriso senhorial escancarado para o 
mundo. 
Assim perto, a senzala de negros-de-sujeição, o esteio daquela riquezona toda.” 
(In: Curral de Assombrações, pág. 11) 
 
51 
 
Texto 3 
“Trinta e um de dezembro bem que foi um dia 
triste para aquele povo. Era que Manoel Felício 
fechava os olhos para o mundo. Até que viveu 
muito. Mas era que todos queriam e esperavam 
que ele vivesse mais. Chegou a contar oitenta e 
cinco janeiros bem completos. Infelizmente, já de 
mãos estiradas e olhos 
puxados para os oitenta e seis, deu a alma ao 
Criador. Morreu com o século o único e 
verdadeiro dono das terras de Sambaíba – 31 de 
dezembro de 1900. 
Bem moço ainda chegara ao Brasil. E gostava 
mesmo de contar como havia vindo das terras de 
Portugal. Uma história bonita de fazer gosto! De 
navio. E não viera fugido nem enxotado da 
Justiça, como muitos safados que depois se 
tornaram importantes aqui. De livre e espontânea 
vontade. Ouvira por boca de gente que por aqui estivera e depois voltara para a Europa, 
narrativas bonitas sobre as terras do Brasil. Aí não pôde se conter. Narrativas 
interessantes! Falavam de florestas sem começo e sem fim. De rios e mais rios que, de 
tão grandes, ninguém sabia onde nasciam, nem tão pouco onde terminavam. Em homens 
brabos, e em pássaros de toda cor e que cantavam de todo jeito.” 
(In: Sambaíba, pág. 17) 
 
Texto 4 
"E mais sofreram outros. Muito mais sofreram outros. Deles que até morreram. 
Com aqueles dois olhos que a terra há de comer, viu a morte de Zeca Palito. 
Depois de uma grossa tunda, enterraram-no em pé, até ã altura dos peitos. Só 
dos ombros pra cima de fora. Aí chegou um oficial, farda da Polícia Militar, com 
um bocado de galões nos ombros. Só que ninguém podia saber quem era. 
Mascarado. Mas, de tenente para baixo, que estavam ali, fizeram continência a 
ele. E ficaram em posição de sentido até segundas ordens: 
-À vontade! 
A seguir, pergunta o que ele havia feito. Vai um feitor e responde que fora 
flagrado tentando fugir. 
52 
 
Então o desgraçado meteu o bico da botina 
nos queixos de Zeca palito, que foi só a 
conta. Só fez descangotar. Morreu na 
mesma da hora. 
E diz que do mesmo jeito morreu Feitosa. E 
muitos outros. Uns dessa, outros de outra 
natureza, de outra maneira. O certo é que 
muitos brasileiros estão sepultados ali nas 
Ilhotas - sem cemitério, sem cruz, sem nada. 
Custou muito suor, muito sangue, muitas 
vidas aquele prédio bonito das Ilhotas onde 
diz que hoje é uma Escola de Menores 
Abandonados. Estava lá agora até um filho 
de Zeca palito. Coitado! ... sofrendo naquele 
mesmo lugar onde seu pai sofrerá até a 
morte." 
(In: Palha de Arroz, pág. 112) 
 
Texto 5 
Peixe Grande 
- Bem. Esta não conto de vista. Mas afirmo ser verdadeira, porque ouvi a mesma 
da boca dum velho que nunca mentiu. Creio que vocês conheçam de perto o 
velho Passarinho lá do Angico Branco. E quem conhece o velho Passarinho não 
pode dizer que em relação a ele se trate dum homem mentiroso nem de longe. 
Naqueles tempos nos tempos da maniçoba como se diz, ele esteve durante uns 
anos pelas matas da Amazônia. Mais ou menos pelas eras de 1910 a 1912. Sei 
dum bocado de estórias interessantes daquelas regiões que ele sempre me 
contava numa temporada em que fomos vizinhos. Hoje eu passo é tempo sem 
me avistar com aquele amigo velho (que até nem sei se ainda vivo com as 
graças de Deus). Mas de todas as estórias suas a mais interessante que achei 
foi a seguinte: Ia ele descendo um tal de Rio Madeira, numa embarcação grande 
de nome batelão. Quando de repente, o barco começou a balançar pra lá e pra 
cá, vira-não-vira. Foi quando um marinheiro velho de tarimba deu pela coisa e 
gritou pros demais: “rezemos pra Nossa Senhora do Navegantes e Nossa 
Senhora da Guia, que é o peixe grande!” Nisto o tal peixe botou a cabeça fora. 
Diz que cada olho do tamanho dum tacho. O tal barco diz que até ia correndo 
em velocidade, mas foi logo que marcou a carreira. Carregado de porcos, cana 
e certas mercadorias outras de mantimentos. Mais que logo, começaram a jogar 
cana e outrascoisas dentro d’água, pra o peixe ir comendo tudo e dar alívio ao 
53 
 
barco. Naquele movimento todo de atrapalhações, um pobre velho tropeçou 
num porco e os dois caíram n’água. Deixem que naquela embrulhada do velho 
com o porco desceu também uma cadeira. Finalmente, conseguiram ancorar o 
batelão nas proximidades de uma aldeia de índios. Ainda bem que os tais índios 
já eram mansos, que foram até domesticados por um tal de Tenente Cândido 
Rondon. Os ditos índios vieram e se prontificaram para a matança do peixe. E 
mataram mesmo o danadão. Mais de cem homens arrastaram o monstro pra 
fora do rio. E o mais interessante de tudo: quando abriram a pança do danado, 
lá estava o velho sentado na cadeira, bem refestelado, chupando cana e 
jogando os bagaços para o porco. 
Digam se tem termo uma coisa destas! Mas é uma pura verdade, porque nós 
todos conhecemos o velho Passarinho e sabemos o mesmo não ser homem de 
mentira nem por brincadeira. 
(In: Mentiras Grossas de Zé Rotinho, pág. 65) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
H. DOBAL 
54 
 
 
 
"A vida é uma cantiga alegre: 
o primeiro sorriso de cada filho 
e todos os microamores 
que inutilizam 
a vitória da morte." 
 
 
(H. Dobal. In: Cantiga de viver, Ephemera, 1985) 
 
 
 O AUTOR 
 
Seu nome completo é Hindemburgo Dobal Teixeira, mas assina literariamente 
apenas H. Dobal, talvez por soar melhor ou, quem sabe, estabelecer uma relação afetiva 
com o leitor. Nasceu no dia 17 de outubro de 1927, em Teresina, tendo residido também 
em Brasília, Londres e Berlim. 
Desde cedo tomou gosto pela leitura e a escrita. Formou-se em Direito pela antiga 
Faculdade de Direito do Piauí. Por concurso, abraçou o serviço público federal, 
aposentando-se como auditor fiscal do Tesouro Nacional. 
Foi membro das Academias Piauiense e Brasiliense de letras. Com O. G. Rego de 
Carvalho e Manoel Paulo Nunes, lançou o Movimento Meridiano na década de 40, 
renovando as letras no Estado. Os três formam uma geração das mais fecundas da 
literatura de expressão piauiense. 
Além de poeta, destacou-se também como crônica e contista. A estreia literária 
ocorreu em 1966, com a publicação de O Tempo Consequente, obra poética elogiada pela 
crítica e leitores até hoje. Com o lançamento de O Dia Sem Presságios, em 1970, 
conquistou o Prêmio Jorge de Lima, do Instituto Nacional do Livro. Manuel Bandeira o 
incluiu em sua Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos. 
Embora não ligasse muito para os enquadramentos literários, sua obra insere-se 
no modernismo brasileiro, na geração que desponta a partir de 45, comprometida com 
uma linguagem substantiva e bastante crítica em relação aos problemas sociais, vertente 
representada por João Cabral de Melo Neto. 
Infelizmente, a “indesejada das gentes” veio buscá-lo em 2008, privando os piauienses do 
convívio diário com um de seus poetas mais queridos. Pena sua obra ainda ser 
desconhecida, mesmo sendo da melhor qualidade literária, do grande público leitor, tanto 
dentro como fora do Piauí. 
 
55 
 
 A OBRA 
Se quisesse, H. Dobal poderia ter escrito apenas os dois primeiros livros – O Tempo 
Consequente e O Dia Sem Presságios – que seu nome já estaria consagrado em nossa 
literatura. Insatisfeito com tamanha proeza, resolveu nos brindar com outros títulos, 
apresentando um distinto olhar sobre o mundo e o tempo, recortados por uma memória 
privilegiada. 
Manuel Bandeira foi quem melhor definiu sua obra: “Poeta ecumênico, chamou 
Odylo a Dobal no seu tão belo e compreensivo estudo apresentando o novo poeta. Mas 
eu prefiro dizer o poeta total, o poeta por excelência... Só mesmo um poeta ‘ecumênico’ 
como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca 
e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento profundo, 
visceral da terra.” 
Seguem abaixo seus livros mais importantes: 
 
Título Ano Dados 
O tempo consequente 1966 Estreia/poesia 
O dia sem presságios 1970 Poesia/Prêmio Jorge de 
Lima 
A província deserta 1974 Poesia/Apontado como o 
melhor de seus livros 
A cidade substituída 1978 Poesia/Tom crítico 
Os signos e as siglas 1986 Poesia/Retrato impiedoso 
de Brasília 
Um homem particular 1987 Conto/Incursão na prosa 
Ephemera 1995 Poesia/Último livro 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
Segundo Manoel Paulo Nunes, parceiro de geração, a poética dobaliana está 
centrada em três aspectos distintos, porém complementares: a lírica, que perpassa toda 
sua obra; a elegíaca, poemas que remetem a laços familiares, terras dos antepassados e 
momentos da infância; e a épica, que resgata fatos históricos de nosso passado, 
retratados nos poemas “Leonardo” e “El Matador”. 
O estilo sóbrio, a linguagem simples e direta, o lirismo contido, o telurismo e o 
ecumenismo, a denúncia social e o tom irônico são outras características marcantes de 
sua obra. 
 
56 
 
 TEMAS ABORDADOS 
Na obra de estreia, O Tempo Consequente, H. Dobal já enumera alguns temas que 
o angustiarão ao longo da vida, traduzidos em poesia de rara sensibilidade qualidade: a 
relação do homem com o espaço, o abandono, o esquecimento, a marginalização, o amor, 
o tempo, a solidão, o destino e a morte. Sem esquecer também a província, descrita sob 
um ponto de vista universal. 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
Quando um grande poeta sofre influência de outro, ele tende a camuflar esse 
caráter, daí ser muito difícil essa percepção. Ainda mais que as referências são mutáveis 
até o autor definir seu próprio estilo, além do desejo de superá-las do ponto de vista 
estético. Segundo Harold Bloom, “todo poeta é uma resposta a outro poeta, e que todo 
poema é uma desleitura (misreading) de outro. Um poema é o produto de uma angústia 
pela falta de primazia." 
Além dos clássicos, H. Dobal assimilou também as lições dos poetas de língua 
inglesa (T. S. Eliot e e.e. cummings), dos franceses (Baudelaire e Mallarmé), dos 
brasileiros (Manoel de Barros e João Cabral de Melo Neto) e do piauiense Mário Faustino. 
Entre os romancistas contemporâneos, identificou-se com a prosa de Kurt Vonnegut, Jr. 
(norte-americano), Jerzy Kosinski (polonês) e Calvin Tompinks (norte-americano). 
 
 COMENTÁRIO DE LIVROS 
 O TEMPO CONSEQUENTE 
Estreia literária de H. Dobal, tido como seu livro mais identificado com o Piauí. 
Dividido em duas partes: O Campo de Cinza, a província descrita nos aspectos natural, 
social e humano, com destaque para o texto épico “Leonardo”, a saga de um herói da terra 
pela independência do Estado; e As Formas Incompletas, de caráter ecumênico, o poeta 
transitando entre temas universais – a solidão, o amor, a morte... 
 O DIA SEM PRESSÁGIOS 
Este livro proporcionou ao poeta um dos prêmios literários mais importantes do 
país: o Jorge de Lima, concedido pelo Instituto Nacional do Livro. Obra que fotografa a 
conturbada e complexa sociedade mundial da década de 60, com suas mudanças e 
conflitos: a pílula, a bomba, os transplantes e o LSD. Destaque para o poema "El Matador”, 
corajosa denuncia contra o extermínio dos índios piauienses pelos colonizadores brancos. 
 
O PROVÍNCIA DESERTA 
57 
 
 É considerado pela crítica o melhor de seus livros. Nele, percebe-se H. Dobal 
como um grande campeador de lembranças, tanto às ligadas ao Piauí como as 
vivenciadas fora do Brasil. O livro esta dividido em quatro partes: As Informações da 
Natureza, A Serra das Confusões, Os Dias na Cidade e Londinium. 
A CIDADE SUBSTITUÍDA 
Vemos aqui H. Dobal denunciando a desfiguração arquitetônica de São Luís, sob o 
olhar silencioso dos maranhenses e dos que visitam essa cidade colonial. Sentindo-se um 
cidadão do mundo, por destino nascido no Piauí, não podia calar diante de tamanha 
barbaridade praticada contra o estado vizinho. 
 
 OS SIGNOS E AS SIGLAS 
Trata-se de uma contundente radiografia de Brasília, cidade onde viveu durante alguns 
anos e na qual, segundo destacano livro, existem apenas duas classes sociais: as 
autoridades e os desconhecidos. 
 UM HOMEM PARTICULAR 
Representa sua estreia na ficção. São contos curtos, densos e marcados por uma 
linguagem poética. O prosador aqui não fica nada a dever ao poeta. Ambos encantam e 
provocam, no leitor, o indescritível prazer da leitura. 
 EPHEMERA 
Última obra publicada pelo autor, em 1995. Uma 
coedição envolvendo a Academia Piauiense de Letras 
(APL) e a Universidade Federal do Piauí (Ufpi). Livro 
que retoma as principais marcas de sua poética: lirismo 
e elegia, numa perspectiva mais pessoal. 
 
 
 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
58 
 
A grandeza poética de H. Dobal 
Por Edmilson Caminha 
 O valor da poesia brasileira contemporânea se deve não só aos grandes poetas que 
todos aplaudem, mas, igualmente, aos outros que, tão bons quanto aqueles, a maioria 
desconhece. Quem já leu poemas de Francisco Carvalho e Loyola Rodrigues, do Ceará, 
João Carlos Teixeira Gomes, da Bahia, Cassiano Nunes, de Brasília? Os leitores da 
província, testemunhas do talento de quem se pode igualar aos eleitos pela fama. Junte-
se, a esses que não aparecem, o piauiense H. Dobal. No discurso com que 
recentemente o saudou em nome da Academia Brasileira de Letras, o poeta Ivan 
Junqueira desculpou-se pela demora em descobrir um escritor com a estatura do colega 
de Teresina, comparável, segundo ele, a Carlos Drummond de Andrade e a João Cabral 
de Melo Neto. 
O Tempo Consequente, livro com que estreou em 1966, já revela a grandeza e a força da 
poesia de H. Dobal. Tomem-se, para ilustração, os versos de “Fazenda”: São trinta 
cabeças / de gado cabrum. / Criação miúda / sem qualquer ciência. / (...) Mas vem da 
morte / sua serventia / o couro e a carne para o homem / mais pobre do que elas. Versos 
curtos, magros, incisivos, em que mal se percebe a adjetivação, tal a dureza com que é 
usada. E aí já se descobre, também, a vertente maior da poética dobaliana: o Piauí áspero 
e belo, a paisagem rude e sedutora, a seca e o rio, o homem e os bichos. É intensa e 
profunda a relação de H. Dobal com a terra piauiense, como um Anteu que arranca do 
chão as gotas da seiva que lhe dão a vida. Manuel Bandeira, oficial do mesmo ofício, 
estava certo: “Só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar a sua província 
com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer 
sentimentalidades, mas rica do sentimento profundo, visceral da terra.” 
Na consciência da morte e no apelo do amor, o piauiense encontra matéria para a boa 
poesia — mas consciência sem angústia, apelo sem aflição. A morte aparece / sem fazer 
ruído, lemos nas primeiras páginas de As Formas Incompletas. Se, em “Os Amantes”, o 
poeta volta à mocidade para se fazer ouvir (Eis-me de novo adolescente. Triste / vivo outra 
vez amor e solidão.), é a voz madura que entoa a “Oração para Invocar as que não 
Vieram”: Venham a mim todas as que não me quiseram, / todas as que deixaram de 
conhecer, no sentido bíblico, / um homem competente não só na palavra amor / mas 
também nos carinhos mais fundos. Outros poemas se constroem na terceira pessoa (Os 
namorados na estrada / vão preparados para o domingo.) — como se, discreto e 
reservado, assumisse o poeta a isenta condição de observador, para melhor falar dos 
sentimentos alheios e não do que lhe vai no próprio coração. Daí o à vontade com que 
compõe “Os Graffiti Amorosos”: Sexoral. Orgasmo. Liberdade / para as minorias eróticas. 
Nada, porém, que exceda a criação dobaliana de fundo épico, a exemplo do primoroso 
“Leonardo”: No campo raso vai galopando / Leonardo de Nossa Senhora / das Dores 
Castello Branco. “El Matador” denuncia a bárbarie de João do Rego Castello Branco, 
59 
 
piauiense feroz: Matador de índios. / A fama de seu nome / a fúria de seu nome. / Sua 
memória em sangue / se repete. “Memorial do Jenipapo” lembra a famosa batalha que se 
travou nos domínios piauienses de Campo Maior: Este monumento / se levanta agora / na 
paisagem nobre: / que as éguas da noite / jamais perturbem / o sono anônimo / dos 
enterrados / nesta terra pobre. 
Se há poetas que viram personalidades públicas, H. Dobal é um homem particular — como 
o compreende o cineasta Douglas Machado no filme que lhe dedicou. Segundo já 
disseram, sua obra deu dimensão universal à poesia piauiense. Pela força e pela grandeza 
com que nos emocionam, os versos de H. Dobal são daqueles que, sozinhos, valem por 
uma literatura. 
 
 TEXTOS SELECIONADOS 
 El Matador 
 De sangue e de fogo 
se faz um nome. 
no sangue e no fogo 
se desfaz a história 
de muitas vidas. 
 A sangue e fogo 
a ferro e fogo 
um homem liquida 
seus semelhantes. 
 
No sangue 
a crueldade desnecessária 
 No sangue 
a violência contra os desarmados. 
 
 
Ao preço de tantas vidas 
sua vida se perde 
do consumo do tempo. 
Não matador de touros 
toureador da morte 
vencedor dos verões. 
Matador de índios. 
Sua glória triste 
pesa sobre nós. 
Sobre a sua memória 
pesa a morte inglória 
das nações Tapuias. 
60 
 
 
Tenente-coronel dos auxiliares 
João do Rego Castello Branco 
chefe da tropa 
senhor dos trabalhos 
castigos e desgostosos, 
matador de índios. 
 
Sem firmeza 
nos ajustes de paz. 
Firme na guerra 
a todos os índios. 
Rápido na guerra 
lança os proclamas 
as derramas 
de gente 
farinha 
cavalos e bois. 
 
 
Índios e ouro 
Seu sonho execrando. 
A lagoa dourada 
o rio do Sono: 
se resolve em sangue 
a sede de ouro. 
 
Os corpos no campo 
para os pastos das feras. 
Passados à espada 
 
 Acoroazes 
 Pimenteiras 
 Gueguezes 
 
raça extinta 
lembrança extinta 
nomes nações 
apagados 
no próprio sangue. 
 
61 
 
Matador de índios. 
A fama de seu nome 
A fúria de seu nome. 
Sua memória em sangue 
se repete. 
(In: O Dia Sem Presságios, 1970) 
 
CAMPO MAIOR 
Ai campos do verde plano 
Todo alagado de carnaúbas. 
Ai planos dos tabuleiros 
tão transformados tão de repente 
num vasto verde num plano 
campo de flores e de babugem. 
 
Ai rios breves preparados 
de noite e nuvem. Ai rios breves 
amanhecidos na várzea longa, 
cabeças d’água do Surubim 
no chão parado dos animais, 
no chão das vacas e das ovelhas. 
 
Ai campos de criar. Fazendas 
de minha avó onde outrora 
havia banhos de leite. Ai lendas 
tramadas pelo inverno. Ai latifúndios. 
(In: O Tempo Consequente, 1966) 
 
O RIO 
Meu rio Parnaíba feito lembrança 
não corre mais entre barrancos. 
É um fio na memória um rio esgotado 
no recreio de muitas manhãs, 
rio risco rio tatuado 
na deriva de um dia perene. 
Meu rio turvo se depositando 
num claro engano que não se renova, 
e descendo suas águas pelo nunca mais 
de outras infâncias ensolaradas. 
 Meu rio largo de água doce de brejo 
62 
 
jaz o seu curso entre coroas e canaranas, 
e de outros meninos consumidos 
no sol de suas águas 
num delta escuro dividido 
rola o dia perene. 
(In: O Tempo Consequente, 1966) 
 
FAZENDA 
São trinta cabeças 
de gado cabrum. 
Criação miúda 
sem qualquer ciência. 
Somente um chiqueiro 
defesa noturna 
que bem cedo aberto 
o dia Ihes dá. 
 
Rústicas a vida 
de qualquer maneira 
sabem extrair 
Mas vem da morte 
sua serventia 
o couro e a carne para o homem 
mais pobre do que elas. 
(In: O Tempo Consequente, 1966) 
 
CANTIGA DE VIVER 
Sozinho na cama 
um homem espera sua hora. 
A inesperada hora de tantos. 
 
A vida é uma cantiga triste 
mais triste e à-toa que a das andorinhas 
— Las oscuras golondrindas 
tão mal vivida 
tão mal ferida 
tão mal cumprida. 
 
A vida é uma cantiga alegre: 
63 
 
o primeiro sorriso de cada filho 
e todos os microamores 
que inutilizam 
a vitória da morte. 
 (In: Ephemera, 1995) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MÁRIO FAUSTINO 
64 
 
 
 
 
 
 
“Não morri de mala sorte, 
Morri de amor pela Morte”. 
 
 (Mário Faustino.In. Romance, O homem e sua hora, 1955) 
 
 
 
 
 
 
 O AUTOR 
 
Mário Faustino é piauiense de Teresina, nascido em 22 de outubro de 1930. Daqui 
seguiu para Belém, onde continuou seus estudos e trabalhou no jornalismo local – A 
Província do Pará e A Folha do Norte. Nessa época, ganha uma bolsa nos Estados Unidos 
para estudar teoria literária e literatura norte-americana, ficando por lá entre os anos de 
1951 a 1953. 
Em 1956, muda-se para o Rio de Janeiro, exercendo as atividades de professor 
na Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e editorialista do Jornal 
do Brasil. No Suplemento Dominical do jornal carioca, assina a página “Poesia-
Experiência”, uma reflexão sobre o fazer poético merecedora de reconhecimento nacional, 
cujo lema era Repetir para aprender, criar para renovar. 
Consagrou-se como poeta de rara sensibilidade, tradutor refinado e crítico dos 
melhores, merecendo o respeito e a admiração de autores e intelectuais de um modo 
geral. Sem falar também de um grande jornalista, transitando com competência nas 
diversas funções da área, desde mero colaborador até editor-chefe. Homem culto e 
poliglota. 
Faleceu num acidente aéreo nos arredores de Lima, em novembro de 1962, em 
viagem a Nova York como correspondente internacional do JB. Embora tenha se 
encantado ainda tão jovem, aos 32 anos, Mário Faustino dos Santos e Silva deixou um 
legado literário dos mais importantes em língua portuguesa. 
 
 
 A OBRA 
 
 Mário Faustino publicou um únicolivro em vida – O Homem e Sua Hora, em 1955, 
pela Editora Livros de Portugal, no qual “uniria a elaboração poética ao conhecimento 
teórico, reflexivo, da poesia.” 
Logo após a conclusão de “O Homem e Sua Hora”, Mário Faustino entrega-se à 
escrita de um longo poema, cósmico e biográfico, a que nunca chegaria a terminar (pela 
morte prematura que o arrebatou desta vida), embora o tivesse reformulado por várias 
vezes. 
Em 1985, veio à tona Poesia Completa/Poesia Traduzida, organizado por Benedito 
Nunes, reunindo toda a sua produção, desde o livro lançado até os primeiros e últimos 
65 
 
poemas. Sem falar dos textos traduzidos de poetas estrangeiros – Horácio, Dante, 
Shakespeare, Goethe, Pound, Eliot, Stock, entre outros. 
 
 CARACTERÍSTICAS DA OBRA 
 
 Em artigo datado de 1957, escrito a jovens poetas, Mário Faustino definiu as 
diretrizes de sua obra: “Que se procure fazer sempre o novo, o válido e que se considere 
a poesia como insubstituível forma de cultura, da qual depende, em boa parte, a vitalidade 
da língua, portanto do pensamento, portanto da nação”. 
 Fez questão de destacar também que, superada a dicotomia conteúdo/forma, “o 
poema deve equivaler, com forma específica de sentir e conceber o mundo, a um dos 
modos originais da experiência humana”, de que fazem parte inúmeros recursos 
linguísticos, a exemplo da unidade entre palavra e coisa, bem como o emprego de 
metáforas. 
 Tradição, experimentalismo, afinidade com o concretismo, novos padrões de 
linguagem, sentido lúdico do trabalho criativo, gosto por textos longos, didatismo e 
preferência pelos substantivos e verbos são traços fundamentais de sua poética. 
 
 TEMAS ABORDADOS 
 
Sua obra é uma reflexão exaustiva em torno dos seguintes temas: amor e morte, 
sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e impureza, Deus e o 
homem, tempo e eternidade. Embora antagônicos, esses temas levam o poeta, “antena 
da raça”, a equilibrar-se no dialético universo dos sentimentos humanos. 
Mas o assunto trabalhado obsessivamente por ele nos textos é, sem dúvida, o da 
morte, celebrando-a sem medo e de forma resignada, como podemos constatar em“Sinto 
que o mês presente me assassina” - um canto premonitório da morte. 
 
 
 INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 
 
 Foram muitas as influências literárias sorvidas por Mário Faustino, englobando desde 
autores brasileiros até estrangeiros, dos clássicos aos contemporâneos. Assimilou o 
melhor de cada um deles, mas produziu, de forma criativa e inovadora, uma obra de valor 
estético inquestionável. 
 Dentre as fontes inspiradoras, destacam-se Homero, Virgílio, Horácio, Camões, 
Garret, Fernando Pessoa, Gôngora, Machado, Lorca, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, 
Shakespeare, Dante, Keats, Drummond, Cecília, Eliot, Novalis, Yeats, Rilke e Cummings. 
 Foram as poesias de Ezra Pound e Jorge de Lima, entretanto, que mais o seduziram, 
lições que aplicou ao longo de seu itinerário poético. 
 
 
 COMENTÁRIO DE LIVRO 
 
O HOMEM E SUA HORA 
 
Obra que marca a poética em língua portuguesa e coloca seu autor entre um dos maiores 
nomes de nossa literatura.Segundo Ivo Barbiere, "toda a atividade de Mário Faustino com 
a linguagem, trabalhando a sua palavra sem esquecer a palavra do outro, foi sempre uma 
tentativa de salvar a poesia sem perder o mundo, de valorizar o poeta valorizando o 
homem. O seu projeto poético coincidiu rigorosamente com o seu projeto existencial". 
66 
 
 O livro é dividido em três partes: DisjectaMembra (Horácio/poeta latino), reunindo 13 
poemas; Sete sonetos de amor e morte, abordando os seus temas preferidos, em versos 
decassílabos e sem estrofação, à maneira inglesa; e, enfim, O homem e sua hora, um 
único e longo texto constituído por 236 versos. Como porta de entrada, temos ainda 
Prefácio, um belo poema metalinguístico explicitando o título e a essência da obra. 
 
 
 TEXTO PARA REFLEXÃO 
 
Mário Faustino – o lapidador de palavras 
(ElfiKürtenFenske) 
 
 
Auto-retrato 
 
Oh não passar somente sugerido! 
Desespero de nunca ver o anjo 
Não conhecer nem mesmo a rosa e o lírio 
Ter medo e ter vergonha ajoelhado 
Querer ser puro e sempre ver-se impuro 
A espera da morte a incerteza 
A secreta esperança de ficar 
A pétala da rosa sob a cota 
O endereço guardado sobre o peito 
Ver navios que chegam e vão sozinhos 
E depois de tanta dor e tanta angústia 
Pensar ter dado a luz a algo vivo 
E levantar-se apenas com o poema. 
- Mário Faustino (18 abr. 1948) 
 
 
O Homem e sua Hora (1955), uma das principais obras de Mário Faustino, se 
caracteriza pela complexidade de metros, ritmos, formas poéticas e símbolos empregados 
nos 22 poemas que o compõem, bem como pelo diálogo vivo com uma ampla tradição 
poética que remonta a Homero (IX-VII a.C.) e Horácio (65-8 a.C.), chegando até Ezra 
Pound (1885-1972) e Dylan Thomas (1914-1955). Na tradição brasileira, dialoga de perto 
com poetas como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Cecília Meireles (1901-
1964) e, sobretudo, Jorge de Lima (1895-1953), a quem Faustino dedica um dos mais 
aprofundados estudos críticos. 
Benedito Nunes (1929) fala do caráter politonal dessa poesia. Nela, a ode, o hino, 
a elegia e a canção se combinam com recursos dramáticos (apóstrofe, diálogo) e com 
formas narrativas como a parábola, o relato mítico e o heroico das epopeias. Os temas 
prediletos são universais, como o amor, o tempo e o senso da transitoriedade, a morte e 
a própria poesia. A arte poética que define a concepção do livro de 1955 é expressa nos 
versos de Vida Toda Linguagem. O título do poema já evidencia a função vital da palavra 
e, portanto, da poesia, como meio de apreensão, ordenação e conhecimento do mundo. 
Os poemas escritos de 1956 a 1959 e divulgados na imprensa carioca revelam uma 
nova concepção poética, marcada por grande experimentação linguística inspirada pelas 
propostas dos poetas concretistas de São Paulo, com os quais mantém intenso diálogo, 
http://1.bp.blogspot.com/-xxXhN3C6kPE/UhvyD3PO1EI/AAAAAAAALJk/zTlz0q0HZCU/s1600/M%C3%A1rio+Faustino+-+assinatura.PNG
67 
 
embora sem jamais integrar o grupo. Recorre, assim, à visualidade, à dimensão gráfica 
da página e à disposição espacial dos vocábulos, desmontando as palavras e explorando 
seu potencial sonoro-semântico, entre outros procedimentos marcantes do concretismo. 
É o que se verifica em poemas como Cavossonante Escudo Nosso e Ariazul. 
A partir de 1959, a poesia de Faustinoentra numa fase de pesquisa expressional, 
indicando a maturidade espiritual do poeta. Essa fase é representada pelo projeto não 
concluído de um poema longo, biográfico e ao mesmo tempo cósmico. Para esse poema 
total, planeja compor fragmentos altamente elaborados e integráveis, instantes lírico-
épicos de uma Obra-em-Progresso, que exprimiria o fluxo incessante de sua consciência 
mitopoética. 
Como exemplo de poeta-crítico, Faustino sempre alia intimamente a criação à 
intensa reflexão sobre a tradição e o fazer poéticos, chegando mesmo a cobrar de grandes 
nomes da poesia modernista que atuem do mesmo modo, no sentido de promover a 
atualização e o aprofundamento da pesquisa estética. É o que ele busca realizar como 
crítico de poesia do SDJB. 
A projeção alcançada por Faustino na cena literária dos anos 1950 talvez se deva 
mais a essa atuação como crítico do que como poeta, assinando a página "Poesia-
Experiência" nesse suplemento que marca época pelo seu projeto gráfico ousado e pela 
competência dos profissionais que arregimenta, sob a direção do poeta Reynaldo Jardim 
(1926- ) e com o apoio da proprietária do jornal, condessa Pereira Carneiro (1899-1983). 
Entre os principais nomes que colaboram no suplemento, destacam-se Mário Pedrosa 
(1900-1981), Ferreira Gullar (1930), Antônio Houaiss (1915-1999), Barbara Heliodora 
(1923- ), Assis Brasil (1945) e Judith Grossmann (1931). Graças a Faustino e Jardim, o 
SDJB dá ao movimento concretista um apoio fundamental, pela divulgação ampla que faz 
o grupo paulista alcançar no Rio uma ressonância não encontrada em São Paulo. É 
também na página-seção "Livro de Ensaios" que os concretistas Augusto de Campos 
(1931) e Haroldo de Campos (1929 - 2003), ao lado de José Lino Grünewald (1931 - 2000), 
são revelados como críticos literários. O compromisso do SDJB com a vanguarda 
concretista vai orientar até mesmo o projeto de reforma gráfica do jornal, de autoria do 
artista plástico Amilcarde Castro (1920-2002), que dá um tratamento novo à página, 
explorando os aspectos visuais da palavra e da colocação espacial do textona página. 
 
 POEMAS SELECIONADOS 
 
Prefácio 
 
Quem fez esta manhã, quem penetrou 
à noite os labirintos do tesouro, 
quem fez esta manhã predestinou 
seus temas a paráfrases do touro, 
a traduções do cisne: fê-la para 
abandonar-se a mitos essenciais, 
68 
 
desflorada por ímpetos de rara 
metamorfose alada, onde jamais 
se exaure o deus que muda, que transvive. 
quem fez esta manhã fê-la por ser 
um raio a fecundá-la, não por lívida 
ausência sem pecado e fê-la ter 
em si princípio e fim: ter entre aurora 
e meio-dia um homem e sua hora. 
 
- Mário Faustino, em "Poesia completa e traduzida". (Organização, introdução e 
notas de Benedito Nunes). São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. 
 
 
 
Legenda 
 
No princípio 
Houve treva bastante para o espírito 
Mover-se livremente à flor do sol 
Oculto em pleno dia. 
No princípio 
Houve silêncio até para escutar-se 
O germinar atroz de uma desgraça 
Maquinada no horror do meio-dia. 
E havia, no princípio, 
Tão vegetal quietude, tão severa 
Que se estendia a queda de uma lágrima 
Das frondes dos heróis de cada dia. 
 
Havia então mais sombra em nossa via. 
Menos fragor na farsa da agonia, 
Mais êxtase no mito da alegria. 
 
Agora o bandoleiro brada e atira 
Jorros de luz na fuga de meu dia — 
e mudo sou para contar-te, amigo, 
O reino, a lenda, a glória desse dia. 
 
- Mário Faustino, em "O homem e sua hora e outros poemas". 
(Organização Maria Eugenia da Gama Alves Boaventura Dias). 
1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 
 
 
Soneto antigo 
 
Esse estoque de amor que acumulei 
Ninguém veio comprar a preço justo. 
Preparei meu castelo para um rei 
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo. 
69 
 
Meu tesouro amoroso há muito as traças 
Comeram, secundadas por ladrões. 
A luz abandonou as ondas lassas 
De refletir um sol que só se põe 
Sozinho. Agora vou por meus infernos 
Sem fantasma buscar entre fantasmas. 
E marcho contra o vento, sobre eternos 
Desertos sem retorno, onde olharás 
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro 
Que até aqui deixei, seguindo um astro. 
 
- Mário Faustino, em "Poesia completa e traduzida". 
(Organização, introdução e notas de Benedito Nunes). 
 São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. 
 
 
Vida toda linguagem 
 
Vida toda linguagem, 
frase perfeita sempre, talvez verso, 
geralmente sem qualquer adjetivo, 
coluna sem ornamento, geralmente partida. 
Vida toda linguagem, 
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome 
aqui, ali, assegurando a perfeição 
eterna do período, talvez verso, 
talvez interjetivo, verso, verso. 
Vida toda linguagem, 
feto sugando em língua compassiva 
o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa! 
leite jorrado em fonte adolescente, 
sêmen de homens maduros, verbo, verbo. 
Vida toda linguagem, 
bem o conhecem velhos que repetem, 
contra negras janelas, cintilantes imagens 
que lhes estrelam turvas trajetórias 
Vida toda linguagem – 
 como todos sabemos 
conjugar esses verbos, nomear 
esses nomes: 
 amar, fazer, destruir, 
homem, mulher e besta, diabo e anjo 
e deus talvez, e nada. 
Vida toda linguagem, 
vida sempre perfeita, 
imperfeitos somente os vocábulos mortos 
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, 
 / contra a chuva, 
tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse 
70 
 
outra, imortal sintaxe 
à vida que é perfeita 
 língua 
 eterna. 
 
- Mário Faustino, em "Poesia completa e traduzida". 
(Organização, introdução e notas de Benedito Nunes). 
São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. 
 
 
Ego de Mona Kateudo 
 
Dor, dor de minha alma, é madrugada 
E aportam-me lembranças de quem amo. 
E dobram sonhos na mal-estrelada 
Memória arfante donde alguém que chamo 
Para outros braços cardiais me nega 
Restos de rosa entre lençóis de olvido. 
Ao longe ladra um coração na cega 
Noite ambulante. E escuto-te o mugido, 
Oh vento que meu cérebro aleitaste, 
Tempo que meu destino ruminaste. 
Amor, amor, enquanto luzes, puro, 
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro, 
Ouvindo as asas roucas de outro dia 
Cantar sem despertar minha alegria. 
 
- Mário Faustino, em "O homem e sua hora e outros poemas". 
(Organização Maria Eugenia da Gama Alves Boaventura Dias). 
1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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 BIBLIOGRAFIA 
 
 
 
COSTA E SILVA, Antônio Francisco da. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Nova 
Fronteira, 4ª edição, 2000. 
 
KRUEL, Kernard. (Organização e Apresentação) O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica. 
Teresina; Zodíaco, 2007. 
 
CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 
1994. 
 
VAZ, Toninho. Pra mim chega: biografia de Torquato Neto. São Paulo: Editora Casa 
Amarela, 2005. 
 
BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Memória e Aprendizado: entrevista concedida a 
Francigelda Ribeiro. Teresina: Edufpi, 2010. 
 
MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. Literatura Piauiense: Horizontes de Leitura & 
Crítica Literária (1900-1930). Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, 1998.DOBAL, 
H. Obra completa. Teresina: Corisco, 1997. 
 
BARROS, Eneas do Rêgo. O menino da Lagoa Grande. Teresina: Editora Nova Aliança, 
2012. 
 
NUNES, Benedito. Poesia completa / Poesia traduzida - Torquato Neto. São Paulo: 
Editora Max Limonad, 1985. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
72 
 
 
 
 
 
Wellington de Jesus 
Soares, piauiense de Teresina, 
nasceu em 1958. Licenciado em 
Letras pela Universidade Federal 
do Piauí (Ufpi) e com pós-
graduação na Pontifícia 
Universidade Católica de Minas 
Gerais (PUC). É professor de 
literatura desde 1983, 
ministrandoaulas em instituições 
de ensino médio e superior de 
Teresina. Durante 10 anos, foi um dos organizadores do Salão do Livro do 
Piauí (Salipi), estando à frente hoje de um novo e importante projeto cultural: 
a Revestrés. Além da revista, encampa também uma coluna no jornal Meio 
Norte aos domingos, Crônica da Cidade, no suplemento Vida. É um dos 
animadores do Café Literário, sarau poético realizado mensalmente na 
Livraria Anchieta. Como escritor, já publicou cinco livros, todos na área 
ficcional: Linguagem dos sentidos (conto, 1992), Maçã profanada (conto, 
2003), Por um triz (crônica, 2007), Um beijo na bunda (crônica, 2011) e O dia 
em que quase namorei a Xuxa (crônica, 2013).

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