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1 LITERATURA PIAUIENSE ________________________________________________ Wellington de Jesus Soares 2 APRESENTAÇÃO Comparada às outras, a nossa literatura, de expressão local, é ainda muito jovem, criança que mal começou a dar os primeiros passos. E literatura para se firmar, como se sabe, demanda tempo e trabalho contínuo dos apaixonados pela arte da palavra. A Literatura Portuguesa data do século XII, com o lançamento da Cantiga da Ribeirinha (1189/1198), de Paio Soares de Taveirós, tendo, portanto, mais de oito séculos de existência. Nela despontam as genialidades de Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e José Saramago. Iniciada em 1500 com a Carta de Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Cabral, a Literatura Nacional tem uns 500 e tantos anos. Entre os nomes conhecidos dentro e fora do país, sobressaem Alencar, Machado, Clarice, Graciliano, Vinícius, Guimarães Rosa e Drummond. Quanto à “Literatura Piauiense”, considerando Poemas, de Ovídio Saraiva, como marco introdutório, texto lançado em 1808, ela tem apenas 207 anos de vida, um reduzido número de leitores e raros autores com projeção fora do Estado. Entenda-se esse termo em relação, como recurso didático, aos livros produzidos por escritores nascidos ou não aqui, que, de uma forma ou outra, mantêm laços sanguíneos e afetivos com o Piauí, quer abordando temas regionais (Fontes Ibiapina) ou universais (Mário Faustino). A falta de uma cronologia oficial da literatura local, definida e aprovada pelos críticos, além da APL e dos cursos de Letras, tem gerado muita controvérsias nas diversas esferas de ensino, dificultando o aprendizado de todos, sobretudo, dos maiores interessados na matéria: alunos e professores. Daí o presente estudo, neste curso de 60 horas, priorizar nomes já consagrados de nossa literatura. Num primeiro momento, serão vistos quatro autores: Da Costa e Silva, O. G. Rego de Carvalho, Assis Brasil e Torquato Neto. No segundo, mais três: H. Dobal, Mário Faustino e Fontes Ibiapina. Com eles, e sem desmerecer os demais, a Literatura de Expressão Piauiense está devidamente representada. Em certa ocasião, o crítico Antônio Cândido, um dos mais respeitados no país, escreveu algo sobre a literatura brasileira que, provavelmente, diz respeito à nossa também. Ou não? “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão.” 3 Sumário Texto para reflexão 1 ...................................................................................................................................... 5 Da Costa e Silva .............................................................................................................................................. 7 Autor ............................................................................................................................................................ 7 Obra ............................................................................................................................................................. 7 Características .............................................................................................................................................. 8 Temas ........................................................................................................................................................... 8 Influências .................................................................................................................................................... 9 Comentários ................................................................................................................................................. 9 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 10 Poemas selecionados ................................................................................................................................. 12 Texto complementar .................................................................................................................................. 15 O. G. Rego de Carvalho ................................................................................................................................ 18 Autor .......................................................................................................................................................... 18 Obra ........................................................................................................................................................... 18 Características ............................................................................................................................................ 19 Temas ......................................................................................................................................................... 19 Influências .................................................................................................................................................. 19 Comentários ............................................................................................................................................... 20 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 21 Textos selecionados ................................................................................................................................... 22 Torquato Neto ............................................................................................................................................... 24 Autor .......................................................................................................................................................... 24 Obra ........................................................................................................................................................... 24 Características ............................................................................................................................................ 26 Temas ......................................................................................................................................................... 26 Influências .................................................................................................................................................. 26 Comentários ............................................................................................................................................... 26 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 27 Textos selecionados ................................................................................................................................... 31 Assis Brasil ..................................................................................................................................................... 37 Autor .......................................................................................................................................................... 37 Obra ........................................................................................................................................................... 37 Características ............................................................................................................................................38 Temas ......................................................................................................................................................... 39 4 Influências .................................................................................................................................................. 39 Comentários ............................................................................................................................................... 39 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 42 Textos selecionados .................................................................................................................................. 43 Fontes Ibiapina .............................................................................................................................................. 45 Autor .......................................................................................................................................................... 45 Obra ........................................................................................................................................................... 45 Características ............................................................................................................................................ 46 Temas ......................................................................................................................................................... 47 Influências .................................................................................................................................................. 47 Comentários ............................................................................................................................................... 47 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 48 Textos selecionados .................................................................................................................................. 50 H. Dobal ......................................................................................................................................................... 54 Autor .......................................................................................................................................................... 54 Obra ........................................................................................................................................................... 55 Características ............................................................................................................................................ 55 Temas ......................................................................................................................................................... 56 Influências .................................................................................................................................................. 56 Comentários ............................................................................................................................................... 56 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 58 Textos selecionados .................................................................................................................................. 59 Mário Faustino .............................................................................................................................................. 64 Autor .......................................................................................................................................................... 64 Obra ........................................................................................................................................................... 64 Características ............................................................................................................................................ 65 Temas ......................................................................................................................................................... 65 Influências .................................................................................................................................................. 65 Comentários ............................................................................................................................................... 65 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 66 Poemas selecionados ................................................................................................................................ 67 Bibliografia .................................................................................................................................................... 71 5 Texto para reflexão LITERATURA PIAUIENSE: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO Ao falar de “Literatura Piauiense”, sentimos a necessidade de delimitar o que consideramos como tal. O que significa, afinal, essa denominação? Primeiro, é bom lembrar que a produção literária a que nos referimos é, ao mesmo tempo, parte e todo. Pertence àquele conjunto maior que chamamos literatura nacional ou literatura brasileira, sem, entretanto, deixar de possuir uma certa individualidade, ou seja, uma singularidade, que a distingue da literatura nacional e das demais literaturas regionais. Historicamente, a literatura piauiense tem enfrentado o desafio de tornar-se parte significativa da literatura brasileira, legitimada pela crítica nacional e, ao mesmo tempo, apresentar-se como uma literatura de expressão “piauiense”, contribuindo, de forma decisiva, para a construção da identidade cultural do Estado. O movimento de construção da identidade da literatura piauiense teve origem no início do século XX, quando emergiram os primeiros trabalhos da crítica literária local estimulados pelo desenvolvimento da imprensa e pelo incremento da publicação de obras literárias do Estado. Na visão de nossos intelectuais daquele período, a construção do conceito de literatura piauiense dependia de um reconhecimento nacional, que desse legitimidade àquela produção, afirmando o talento literário dos autores piauienses. O critério de legitimação da literatura piauiense por meio da crítica nacional restringe-se, no entanto, ao substantivo “literatura”, primeiro termo da denominação em análise, remetendo-nos, assim, à questão específica: a produção escrita pelos piauienses tem mesmo valor literário? É de fato um objetivo estético criado através da palavra? O outro termo, no caso, o adjetivo "piauiense” tem a função de recortar dentro daquele conjunto maior da literatura brasileira a parte correspondente ao Estado do Piauí, ou seja, a expressão genuinamente piauiense que se distingue de todas as outras expressões literárias produzidas no País. Os critérios para delimitar o significado desse adjetivo “piauiense” são vários. Um deles é decorrente da biografia dos autores. Nesse caso, considera-se literatura piauiense toda obra produzida por autores nascidos no Piauí. Privilegiando a biografia dos autores, podemos, ainda, considerar “piauiense” a obra de autores radicados em outros Estados. A vantagem desse critério é a sua abrangência, que permite a incorporação de autores como Ovídio Saraiva e Mário Faustino, que nasceram no Piauí e se radicaram em outros centros, ou, então, caso contrário, autoresque nasceram em outros Estados e que se radicaram, permanentemente ou temporariamente, no Piauí, como Higino Cunha, Adalberto Peregrino, Odilo Costa Filho, para citar apenas os mais antigos. Por outro lado, esse mesmo critério aplicado a outras literaturas poderia nos subtrair alguns dos nossos autores, por exemplo, Taumaturgo Vaz, Jonas da Silva, Félix Pacheco, Da Costa e Silva e Amélia de Freitas Bevilacqua, os quais não só tiveram seus livros editados em outros Estados, como também viveram a maior parte do tempo fora do Piauí. Nessa situação, ainda poderia ser citado Lucídio Freitas, que, durante algum tempo, viveu em Belém do Pará, exercendo a docência na Faculdade de Direito daquele Estado e participando do movimento cultural de Belém, onde publicou sua primeira obra independente Vida obscura, de 1917. Um critério menos abrangente recortaria aquelas obras literárias que dão conta de uma realidade humana e social reconhecível como essencialmente piauiense. Esse critério englobaria os poemas sertanejos de Hermínio Castelo Branco, grande parte da poesia de Da Costa e Silva e de H. Dobal, a narrativa ficcional de Francisco Gil Castelo Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce 6 Branco, Abdias Neves, João Pinheiro, Fontes Ibiapina, O.G. Rego de Carvalho, parte da obra de Assis Brasil e muitos outros autores, mas deixaria de contemplar as obras de autores, tais como: Jonas da Silva, Félix Pacheco, Celso Pinheiro, Mário Faustino, para não citar uma extensa lista. Ainda se poderia estabelecer outros parâmetros para definir o que é “literatura piauiense”. Um bastante interessante é o de incluir o público original da obra, ou seja, aquele a quem o autor destinou sua obra e com o qual pretende manter um diálogo. Seria o caso de perguntar-se: qual o leitor visado pelo autor no momento da publicação de sua obra? O leitor local? Existe um público de leitores piauienses com os quais os autores mantêm uma relação dialógica? É claro que uma obra que não tenha sido destinada originariamente ao leitor piauiense pode posteriormente entrar em sintonia com este público e com ele estabelecer um diálogo significativo. É talvez o caso de Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, que passou mais de cem anos totalmente desconhecido do público local e que, atualmente, vem sendo lido e discutido por um considerável número de leitores piauienses. Sem querer estender a discussão, que comporta ainda muitos outros argumentos, queremos apenas afirmar que nenhum critério definidor da literatura piauiense deve ser utilizado de maneira excludente. Tratando-se de uma literatura emergente, não devemos recusar nem descartar autores e obras; pelo contrário, precisamos engrossar o caldo da literatura piauiense, absorvendo o maior número possível de componentes. Acreditamos que o papel da crítica literária é fazer um recorte mais abrangente possível e depois classificar, colocando em ordem no conjunto, organizando autores e obras de acordo com critérios claros e coerentes, sem, entretanto, abrir mão de nada; ao contrário, apropriando- se do maior número possível de autores e obras. Profª. Dra. Maria do Socorro Rios Magalhães. In: Correio Corisco DA COSTA E SILVA Valéria Realce 7 Fez-me Poeta o Destino Quando nasci, o Destino Fez-me poeta, ainda no berço; Tanto assim que, pequenino, Minha mãe, rezando o terço, Pensava no meu destino, Entre os vaivéns do meu berço.. (Da Costa e Silva. In: Verônica) O AUTOR Seu nome completo é Antônio Francisco da Costa e Silva, mas responde pelo nome literário de Da Costa e Silva. Nasceu em Amarante, na rua das Flores, em 23 de novembro de 1885. Ainda na terra natal, teve alguns poemas publicados na Revista do Grêmio Amarantino. Já em Teresina, concluiu os preparatórios no Liceu Piauiense, transferindo- se depois para Recife, onde cursou Direito. Como Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, órgão do Ministério da Fazenda, emprego conquistado por concurso, morou em vários estados no exercício da função: Minas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Amazonas e Maranhão. Casou-se duas vezes: com a primeira mulher, Alice Salles Salomon, teve três filhos - Márcio, Mário e Benedito; com a segunda, Creusa Fontenele, outros três – Alice, Alberto e Elisabete. Ainda hoje é o poeta mais popular do Estado, eleito “Príncipe dos Poetas Piauienses”, autor da letra do Hino do Piauí e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). Vítima de um infarto, faleceu em 29 de junho de 1950, no Rio de Janeiro, depois de viver um longo tempo mergulhado em profundo silêncio (“exílio de si mesmo”) e afastado da escrita. A OBRA Da Costa e Silva representou um papel poético da maior relevância em sua época, mesmo sendo autor de uma meia dúzia de livros, escritos e publicados ao longo de 19 anos, entre 1908 e 1927. Alguns críticos o apontam tão bom quanto os poetas Augusto dos Anjos, paraibano, e o poeta José Albano, cearense. Pena não ter ainda merecido o reconhecimento nacional. Não fosse o trabalho empreendido pelo filho Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da ABL e poeta da melhor qualidade também, provavelmente sua obra já estivesse esquecida. Livro Ano Dados 8 Sangue 1908 Estreia simbolista e de invulgar domínio formal. Zodíaco 1917 Considerado seu melhor livro. Pandora 1919 Preocupação formal e mitologia clássica Verônica 1927 Subjetivismo e saudade da esposa morta. Alhambra 1928/1933 Obra inconclusa. Poesias completas 1950 Todos os livros num único volume. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Como todos os autores do começo do século XX, Da Costa e Silva fundiu em sua poética traços parnasianos (rigor formal, soneto e objetivismo) e simbolistas (linguagem musical, sugestão e individualismo), num jogo sincrético de estilos típicos desse período. Embora tenha usado a destreza técnica, que conhecia a fundo, não deixou que sua poesia se tornasse particularmente difícil, árdua e, menos ainda, hermética a ponto de ser incompreensível aos leitores. Quanto à linguagem utilizada nos textos, embora culta e trabalhada, foi dotada, segundo José Guilherme Merquior, de uma dimensão de oralidade como que incorporada à sua própria natureza íntima. Além, de uma inserção social, destaca o crítico Mas o traço marcante de sua poética é, de forma inequívoca, o caráter lírico que perpassa o conjunto da obra, como se pode constatar nos versos abaixo: “Mas foi tamanha a minha desventura, Que pendurei, muda e quebrada, a lira No salgueiro da tua sepultura.” TEMAS ABORDADOS Os críticos são unânimes em destacar a saudade como o eixo temático mais importante de sua obra, notadamente em relação a Amarante, ao rio Parnaíba e à sua mãe. Outro assunto muito presente em seus textos é a chamada poesia da natureza, sobre a qual dedica um livro completo, Zodíaco, evocando elementos diversos da flora e fauna. Impossível esquecer ainda os poemas dedicados à “musa uxória”, nos quais cantou a esposa morta, reunidos na segunda parte de Verônica, seu último livro completo. Da Costa e Silva soube também, a exemplo dos grandes poetas, refletir sobre a própria condição humana, tão bem retratada filosoficamente na seguinte estrofe: “Feliz daquele que os seus atos pauta Dentro dos dons da vida que o rodeia, E acha o leito macio e a mesa lauta Na indiferença da fortuna alheia.” INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 9 Suas influências literárias foram muitas e distintas, inspirando-se sempre em grandes autores, nas suas obras e estilos, nunca perdendo a oportunidade de reverenciá- los. Entre os franceses, destacam-se Verlaine, Baudelaire e Mallarmé. Quanto aos portugueses, bebeu em Antero de Quental, Antônio Nobre e Cesário Verde. Na literatura norte-americana, a fontefoi Edgar Allan Poe. Já da produção nacional, despontam Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, nutrindo por este último especial devoção. Mas foi ao poeta belga Émile Verhaeren, a quem se referia como “mestre”, que dedicou um belo poema de caráter elegíaco, quando este faleceu num acidente de trem em 1916. “Mestre, tu que exaltaste a vertigem da vida Nas forças tumultuosas do progresso, Ampliando o mundo à ação da humanidade forte, Morres, sentindo-a sob as rodas de um expresso Com seus cavalos de vapor a toda a brida, Na fogosa pressão da máquina, seguida Da longa procissão dos vagões de transporte, Na indiferente e célere corrida, Ao ruidoso rumor dos seus carros de morte!” COMENTÁRIO DOS LIVROS Sangue Lançado quando o poeta, aos 23 anos, cursava Direito em Recife. Livro de caráter simbolista. Escorrem pelos textos o sentimento de amor materno, o apego à terra natal e a identificação com o rio Parnaíba, batizado de “Velho Monge”. Entre os poemas consagrados da obra de estreia, destacam-se “Cântigo do sangue”, “Deusa pagã”, “Rio das garças”, “Mater”, “Madrigal de um louco”, “Ironia eterna” e, o mais consagrado de todos, “Saudade”, soneto tido, sob a visão dos críticos, como “um dos mais belos momentos da poesia de língua portuguesa”. Zodíaco Um verdadeiro cântico de louvor à Natureza, em toda sua beleza e amplitude. Como afirma Osório Borba, “mais parece trechos de música, na sua missão sutilíssima de produzir os diversos ruídos do mundo”. Aqui o poeta amantino presta homenagem à flora, à fauna, às estações do ano e, de forma telúrica, à terra natal. O livro ostenta, como epígrafe, um quarteto de Verhaeren e uma dedicatória – “Ao meu longínquo Piauí – na divina evocação de sua natureza maravilhosa”. Entre os textos, constam dois poemas de defesa ecológica: “A Queimada” e a “A Derrubada”. Verhaeren Na verdade, é apenas um poema lamentando a morte e celebrando, em versos polimétricos, a liberdade e a grandeza da poesia de Émile Verhaeren, simbolista belga falecido num acidente de trem. Texto de caráter elegíaco. Pandora Considerada sua obra mais parnasiana, tanto pelo rigor técnico como pela retomada da cultura greco-latina. Essa ortodoxia dos chamados impassíveis é observada logo em “Canto Espiritual”, poema de abertura do livro: “Ânsia de perfeição! Glória 10 legítima, / Por quem o meu espírito se eleva / Para o infinito, na atração da luz”. Observa- se nos textos, do ponto de vista temático, uma bela combinação entre lirismo e sensualismo, harmonizados pela sensibilidade e o talento do poeta, como ilustra o soneto II do “Canto do Fauno”, na 4ª edição de Poesias Completas, de 2000. Verônica Em seu último livro publicado em vida, de espírito elegíaco e traços simbolistas, Da Costa e Silva lamenta a partida de Alice e expressa o amor que sentia pela esposa morta, sobretudo, na segunda parte da obra – “Imagens do Amor e da Morte”. De acordo com a crítica, a linguagem de Verônica é límpida, concisa e fluida; há menos contemplação realista do que em Zodíaco, ou sonhadora e lembrada do que em Pandora. Alhambra Não chegou a ser lançado como livro autônomo. O que aparece sob esse título, na edição de 1950 de Poesias Completas, são textos publicados pela imprensa entre 1928 e 1933. Para Alberto da Costa e Silva, “melhor seria julgá-los como poemas inacabados”. Em experimentos modernistas, merecem destaque “O carrossel fantasma” e “Refrão do trem noturno”. TEXTO PARA REFLEXÃO A Lição Perene ( Fausto Cunha ) A nova edição das Poesias Completas de Da Costa e Silva (Nova Fronteira, 1985), comemorativa do centenário de nascimento do poeta, nos põe mais uma vez em contato com uma das expressões mais altas da poesia brasileira deste século. Organizado com o maior carinho por seu filho, e também poeta, Alberto da Costa e Silva, esse belo volume sai num momento em que a poesia parece estar recuperando um pouco de seu antigo prestígio entre nós. Há uma sede de boa poesia entre os leitores mais jovens — e os concursos mostram que nunca se escreveu tanta poesia como agora. À parte alguns equívocos inevitáveis, os que têm alguma coisa a dizer já descobriram que sem os instrumentos de uma arte poética o melhor da inspiração, e mesmo do talento, se perderá. Só os ingênuos se permitem acreditar que nada existiu antes deles, e que podem prescindir dos liames imemoriais que fazem de cada poeta o continuador do mesmo e infinito poema. Em poucos poetas brasileiros essa lição é tão nítida e profunda quanto em Da Costa e Silva. Foi ele um dos poucos poetas realmente populares ao longo de várias décadas, presença em toda sorte de publicações e antologias, recitado e imitado. Essa popularidade não pode ser subestimada, porque ele a repartiu com dois outros grandes poetas do mesmo período, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos. O que chama a atenção é que nenhum dos três escrevia na clave do popularesco e do fácil: um deles cultivava uma linguagem difícil, os dois outros primavam pelo requinte formal. E são exatamente esses três que mantêm nosso interesse crítico por todo um grupo de poetas de transição, situados entre as últimas manifestações do parnasianismo e do simbolismo e os primeiros vagidos do modernismo. Recapitulando alguns poemas de Da Costa e Silva que se tornaram mais conhecidos — e que eram literalmente antológicos — , vemos que nenhum deles envelheceu. Pelo contrário. Depois do modernismo, temos o distanciamento e a visão 11 armada para avaliá-los melhor, e penetrar, sem emoções de fundo temático, no que trazem de essencial como poesia pura. Páginas como "Saudade", "A moenda", "Minha terra", "Vale de lágrimas", "Visões da morte", "Rosa Mística", "Rio das Garças", "A balsa", "Natureza sofredora" — e, mais tarde, esse "Adeus à vida", digno de um Antero de Quental — revelam o delicado trabalho de elaboração da obra-prima, a que não faltam lampejos de genialidade. As pequenas alterações que ele introduziu nos versos — e das quais Alberto da Costa e Silva nos dá expressiva relação no final do volume — mostram sua ânsia de perfeição e uma aguçada sensibilidade para com os detalhes mínimos, a exemplo de Alberto de Oliveira, que o antecipa, mas não o supera, no extraordinário domínio técnico do verso. Basta mencionar as sutis modificações em três versos do soneto "Saudade", que o tornaram perfeito: "E, ao vento, as folhas lívidas cantando/ A saudade imortal de um sol de estio", em vez de : E à noite as folhas lívidas cantando/ A saudade infeliz de um sol de estio", e sobretudo "As mortalhas de névoa sobre a serra" em vez de "Ai ! mortalhas de névoa sobre a serra", onde a substituição do lamento interjetivo não só eliminou um ruído anômalo na cadência dos versos como propiciou uma imagem de forte sugestividade. Pode-se observar que muitos dos poemas antologizados de Da Costa e Silva pertencem ao seu primeiro livro, Sangue, de 1908, publicado no Recife; não é, pois, de surpreender que com ele se tenha consagrado nacionalmente. Essa consagração teria bastado. Mas em 1917 o poeta desponta com outro grande livro, Zodíaco. Dois anos depois sai Pandora. Houve outra longa pausa, até Verônica , de 1927. Ainda jovem, Da Costa e Silva está no auge de sua forma. A recepção crítica foi boa, um dos sonetos do livro, "Adeus à vida", incorporou-se àquele grupo de eleição que se aloja, misteriosamente, na memória do público. Penso, no entanto, que somente agora podemos vislumbrar alguns dos aspectos mais significativos de Verônica, e que apontam para a sua excepcionalidade. Em Pandora, a epígrafe de Rubén Darío — um poeta de larga ressonância no Brasil — já fazia supor que se estabelecera o contato entre Da Costa e Silva e o modernismo espanhol (o qual, não custa advertir, nada tem a ver com o nosso, bastante posterior). Em Verônica se revela a síntese formal, o pensamento criador adquire a sua plena maturidade. O poetadesde muito que havia aprendido o verso livre de Verhaeren e Maeterlinck. Darío foi a chama que incendiou e renovou a poesia espanhola. O que em Verônica nos chama hoje particularmente a atenção, além do impressionante domínio formal, e talvez mais do que este, são alguns pequenos poemas que nos lembram de imediato (e daí a referência a Darío) a maneira de Juan Ramón Jiménez. "Subia a lua, leve", "Vivo como um sonâmbulo", "Na tarde azul e triste", "Sou como um rio misterioso", "A última ilusão", "A escada de sonho", são pequeninas obras-primas, como aquelas distribuídas com aparente negligência (mas obtidas à custa de angustiada procura) pelo poeta de Eternidades. Exemplar dessa rara maestria é "A escada de sonho", com seu jogo de assonâncias que parecem fluir com naturalidade. As peças recolhidas em Alhambra comprovam que Da Costa e Silva estava pronto para o "salto modernista", numa linha semelhante à de Felipe d'Oliveira, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, algo até de Mário de Andrade. Numa antologia do nosso modernismo, ele já tem o seu lugar com "O Refrão do trem noturno" e o "Carrossel fantasma". A página sonora e luminosa que é "O despertar no Amazonas", de 1928, espelha mais uma vez a paixão telúrica que está no sangue de toda a poesia de Da Costa e Silva. Importa notar aqui, mais que a facilidade com que o poeta transitava entre uma e outra estética, sua admirável sensibilidade à forma como o poema devia revestir-se. Sua inexaurível riqueza formal pode ofuscar-nos, mas não impedir-nos de descer mais fundo. Eis que o grande poeta é o nosso guia, ou captando e transfigurando a paisagem, ou pulsando a angústia 12 secreta e o frêmito lírico da sofredora alma humana. Se é, e por que é um poeta perene, a razão está aí. POEMAS SELECIONADOS Texto 1: A moenda Na remansosa paz da rústica fazenda, À luz quente do sol e à fria luz do luar, Vive, como a expiar uma culpa tremenda, O engenho de madeira a gemer e a chorar. Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda; E, ringindo e rangendo, a cana a triturar, Parece que tem alma, adivinha e desvenda A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar... Movida pelos bois tardos e sonolentos, Geme, como a exprimir, em doridos lamentos, Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor. Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda arrependida! – Álcool! Para esquecer os tormentos da vida E cavar, sabe Deus, um tormento maior! (Da Costa e Silva. In: Zodíaco) Texto 2: Rio das garças Na verde catedral da floresta, num coro Triste de cantochão, pelas naves da mata, Desce um rio a chorar o seu perpétuo choro... E o amplo e fluido lençol das lágrimas desata... Caudaloso a rolar, desde o seu nascedouro, Num rumor de orações no silêncio da oblata, Ao sol – lembra um rocal todo irisado de ouro, Ao luar – rendas de luz com vidrilhos de prata. Alvas garças a piar, arrepiadas de frio, Seguem de absorto olhar a vítrea correnteza. Pendem ramos em flor sobre o espelho do rio... É o Parnaíba, assim carpindo as suas mágoas, – Rio da minha terra, ungido de tristeza, refletindo o meu ser à flor móvel das águas. 13 (Da Costa e Silva. In: Sangue) Texto 3: O ÚNICO BEM Lutei, sonhei, sofri, desde criança, Nesta inquietude, nesta vã tortura De quem jamais consegue o que procura E, se consegue, perde quanto alcança. Já nem me resta ao menos a esperança, Para a ilusão da glória e da ventura; Nem a fé, ante a dúvida, perdura, Desde que o amor, num túmulo descansa. Tanto alcancei, quanto perdi, de sorte Que, em suprema renúncia, a alma vencida Não devera aspirar senão à morte. Mas, como a sorte me foi tão funesta, Aprendi muito mais a amar a vida, Porque é o único bem que ainda me resta. (Da Costa e Silva. In: Verônica) Texto 4: Saudade Saudade! Olhar de minha mãe rezando, E o pranto lento deslizando em fio... Saudade! Amor da minha terra... O rio Cantigas de águas claras soluçando. Noites de junho... O caburé com frio, Ao luar, sobre o arvoredo... piando, piando... E, ao vento, as folhas lívidas cantando A saudade mortal de um sol de estio. Saudade! Asa de dor do pensamento! Gemidos vãos de canaviais ao vento... As mortalhas de névoa sobre a serra. Saudade! O Parnaíba – velho monge As barbas brancas alongando... E, ao longe, O mugido dos bois da minha terra... 14 (Da Costa e Silva. In: Sangue) Texto 5: REFRÃO DO TREM NOTURNO Corre o trem dentro do túnel estrelado da noite tonto de velocidade ávido de espaço a arrastar uma rua ruidosa de carros e lá vai acelerando mais e mais as rodas rápidas da máquina que marcha — Muita força pouca terra muita força pouca terra Andam, resfolegam, sopram, bufam os cavalos-vapor a galopar invisíveis nitrindo aflitos silva a locomotiva a pupila alucinada reverberando na treva — compasso de relâmpago tomando a distância perdida na noite — Muita força pouca terra muita força pouca terra Em disparada o comboio foge trepidando ao vaivém dos vagões entrechocados na carreira como elefantes perseguidos no deserto É um pesadelo sob o silêncio o trem que passa o trem que desfila como um sonho rumoroso o trem que leva oscilando na perspectiva fugidia montes o trem que se lança no espaço como a vida no tempo — Muita força pouca terra muita força pouca terra (Da Costa e Silva. In: Alhambra) Texto 6: Amarante A minha terra é um céu, se há céu sobre a terra: 15 É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando, Que eterno sonho azul parece estar sonhando Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra... Que encanto natural o seu aspecto encerra! Junto à paisagem verde, a igreja branca, o bando Das casas, que se vão, pouco a pouco, apagando Com o nevoento perfil nostálgico da serra... Com seu povo feliz, que ri das próprias mágoas, Entre os três rios, lembra uma ilha, alegra e linda, A cidade sorrindo aos ósculos das águas. Terra para se amar com o grande amor que eu tenho! Terra onde tive o berço e de onde espero ainda Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho! (Da Costa e Silva. In: Zodíaco) TEXTO COMPLEMENTAR AUTOBIOGRAFIA PÓSTUMA "Eu sou tal Parnaíba: existe Dentro em meu ser uma tristeza inata” ”No dia em que nasci, fadou-me Apolo / a uma vida de júbilos e penas". Foi em 23 de novembro de 1885. Amarante, uma cidade "debruçada sobre as águas / lentas e sonolentas do Parnaíba", acolheu-me em seu solo. “Fui o mais feliz dos meninos do meu tempo”. Tive uma "infância ruidosa". Passei- a em contato com a natureza, "entre os rios, as árvores e a serra”. Na ponte sobre o riacho Mulato, um "manso riacho”, brinquei quando menino, "curvado sobre a gruta, a ouvir a fonte...” Pelos lajedos do morro, corri muito. Tudo isso viria, mais tarde, marcar profundamente a minha poesia. “Quando nasci, o Destino / fez-me poeta, ainda no berço". "Fui pelas musas embalado ao colo". Os meus primeiros versos foram publicados na Revista do Grêmio Amarantino, por volta de 1901. Mas não só me interessei pela poesia, dediquei- me também à escultura em madeira, fazia imagens: "já tinha o dom divino de um criador de imagens". " Saudade! Amor da minha terra...” " Saudade! Olhar de minha mãe” 16 Muito cedo tive que deixar a minha terra natal, porém jamais se apagou da minha memória o seu "encanto natural". ”A paisagem verde, a igreja branca, o bando / das casas", "o povo feliz que ri das próprias mágoas” são imagens que sempre acompanharam os meus passos. "Vejo e sinto, / quais se fossem imagens verdadeiras,/ tudo sem mesmo ver, num vago instinto...” Em Teresina, onde concluí os preparatórios, colaborei para alguns jornais. Neles se encontram alguns poemas que mais tarde seriam incluídos em Sangue, livro que publiquei em Recife, em dezembro de 1908. 1906 marca o meu ingresso na Faculdade de Direito, em Pernambuco.Dessa época é o meu soneto "Saudade”. Saudade da minha terra. Saudade de minha mãe, de quem nunca consegui desvencilhar-me por completo. Presença marcante em minha vida e em meu mundo poético, dela guardo uma "imagem de piedade", "velando pelo meu destino" e rogando "por mim, piedosa e triste,/ em lágrimas de afeto e de bondade". “Corpo humano de espírito celeste,/ ” ela "surge ante mim”, "em horas de incerteza, de amargura’, com suas bênçãos de amor e preces de conforto”. “Em sua imagem vemos / os transportes sublimes e supremos / do Amor, que se transmite, mas não finda”. “Lutei, sonhei, sofri” "E contigo, serei tudo que sonhei ser,/ redivivo e imortal no esplendor do teu ser!” Sim, mais tarde, o meu filho, Alberto, realizaria o sonho que eu não atingi - ser diplomata. Dizem que ”o estranho aspecto, feio e rude / desta figura hostil de homem selvagem" tirou- me a oportunidade de concretizar este ideal. Mas "a natureza, que os seus dons reparte/, porque feio me fez, deu-me a vertigem / de lutar e vencer em toda parte”. Trabalhei no Ministério da Fazenda. Como funcionário da Delegacia Fiscal estive em vários Estados: Minas, Rio de Janeiro, São Paulo , Rio Grande do Sul, Amazonas e Maranhão. Em 1910 cheguei a Belo Horizonte. Nos cafés, tão famosos na época, reunia-me com os literatos. Cheguei a liderar um grupo de jovens acadêmicos. Fundei uma folha humorística Zaz-traz, que teve grande repercussão no meio literário, e colaborei para o Diário de Minas e para as revistas: A Vida Mineira, Vida de Minas, Vita e Tank. Dias de Glória, de Ventura! "Nunca julgara, nem jamais previra / o transe cruel” que me torturaria alguns anos mais tarde. Perdi a minha Alice, ”meu amor, minha vida, minha glória", com quem me casei em 1914. ”Tive-a a encarnar minha felicidade,/ quis detê-la, mas não pude". ”Foi tamanha a minha desventura", que cheguei a exclamar: "Por que me trouxe aqui o meu destino? / Por que de tão longe vim me prender por encarto / a Essa a quem tanto quis, a Essa que me quis tanto, / que, unidos pela fé, vivemos para o amor?"A desolação inspirou-me os poemas de Verônica, ”imagens da vida e do sonho; imagens do amor e da morte". Três foram os filhos domeu primeiro casamento: "Márcio, flor do meu ser, fruto do meu amor"; Mário,que herdou o encanto de Alice, "para mais me enlevar, para mais me prender"e Benedito que, ao nascer, "foi logo enfaixado de luto” - A mãe morreu porque"lhe deu o ser". Em 1921 fui para São Luís, onde permaneci até setembro de 1926, quando segui para o Rio de Janeiro. Como Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, no Amazonas e no Acre, parti para Manaus em 1927. E lá o "meu coração desperta". "Dentro em meu ser, num frêmito de aleluia", ecoa "o canto dionisíaco do meu sangue: ama de novo! ama de novo!" Casei-me outra vez em 1928. Creusa foi minha segunda mulher. Em Julho de 1929 nasce Alice, "o meu maior enlevo", em quem vi "minha mãe em miniatura”. 17 Para Porto Alegre segui em setembro de 1929. Lá convivi com vários escritores, chegando a dirigir, juntamente com Alberto de Andrade Queiroz, o suplemento literário do Diário de Notícias. Estive em São Paulo, onde fui incompreendido, insultado, hostilizado, por querer moralizar os serviços fiscais. A minha alma de poeta não poderia suportar as injustiças, comecei a desmoronar. O meu filho Alberto, que nasceu em 1931, foi o "meu lírio entre espinhos". “Alheado do mundo e de mim mesmo" Em 1932 nasce a minha caçula, Elisabeth. Nessa época submeti-me a uma intervenção cirúrgica. O que me veio depois? Somente depressão, neurastenia, tristeza e uma grande necessidade de isolar-me, de mergulhar-me em mim mesmo. " Eu já não escrevo, já não faço versos. Morreu em mim o sabiá que cantava... ” Foi o que declarei, em 1940, a uns rapazes piauienses que me entrevistaram em Fortaleza, onde vivia mergulhado em profundo silêncio. Realmente deixara de escrever. Um dos meus últimos poemas – O carrossel Fantasma - revela o meu vínculo à terra natal, de quem sempre estive perto, embora distante. “Adeus à Vida " “A morte não me assombra, nem me assusta“. “O que perturba e intimida / o meu espírito forte / não é a certeza da morte, mas a incerteza da vida”. "E aonde vou? " " Aonde vou? ” “Morte! Vida a buscar liberdade'."No dia 29 de junho de 1950 um enfarte, levou- me a "atingir a perfeição que eu auguro / em resignado e místico transporte” e a "levantar os olhos / para o que exista em luz além do espaço”. “Passa a vida ? Continua... Com o tempo quem passa é a gente ”. Da Costa e Silva – Antologia e Estudo/seleção de textos, notas, estudos biográficos e histórico e exercícios por Fabiano de Cristo Rios Nogueira, Maria Gomes Figueiredo Reis, Maria do Socorro Rios Magalhães, Maria do Perpétuo Socorro Neiva Nunes do Rego – Teresina: Centro de Ciências, Humanas e Letras / Departamento de Letras – PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO, UFPI,1985. O. G. REGO DE CARVALHO 18 “O autor não pode ter piedade de si mesmo, tem que se expor a nu, nem que seja para o ridículo, mas tem que se expor. E isto é o que falta fundamentalmente na maioria dos escritores piauienses. É exatamente essa sinceridade absoluta de escrever como se estivesse rasgando o coração. Eu não estou querendo falar com isso em obras piegas, pelo amor de Deus. Vocês não vão encontrar o pieguismo em minha obra, nem sentimentalismo também.” (Como e por que me fiz escritor / O. G. Rego de Carvalho) O AUTOR Orlando Geraldo Rego de Carvalho nasceu em Oeiras, antiga capital do Piauí, no dia 25 de janeiro de 1930. Desde cedo, tomou gosto pelas letras, mas foi em 1942, ao ler O Guarani, romance de José de Alencar, que decidiu ser escritor. Foi professor de literatura no colégio Estadual Zacarias de Góis, bacharelou-se em direito pela antiga Faculdade de Direito do Piauí, funcionário graduado do Banco do Brasil e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). O sonho na meninice era ser compositor, e não escritor. Ter uma mãe musicista, professora de vários instrumentos (piano, bandolim, violão e harmônica), o influenciava nessa preferência inicial. Aos 10 anos, teve sua primeira manifestação escrita, um trabalho escolar sobre o descobrimento da América e, para sua grata surpresa, publicado no jornal Fanal, que significa farol. O conto “Um filho” marca sua estreia literária em 1949, quando tinha apenas 19 anos. Depois de umas 30 recusas, o autor oeirense finalmente tem um texto publicado numa revista de circulação nacional. Em Teresina, fez parte do Grupo Meridiano, ao lado de dois grandes nomes de nossa cultura: H. Dobal (poesia) e Manoel Paulo Nunes (crítica). Através de suas obras e do Caderno de Letras Meridiano, eles provocaram mudanças significativas na literatura brasileira de expressão local. Encantou-se em Teresina aos 83 anos, no dia 9 novembro de 2013, deixando esposa (Divaneide Carvalho) e filho (Orlando Victor). A OBRA Autor de uma obra relativamente pequena, mas que o coloca ao lado dos grandes nomes da literatura em língua portuguesa. Com apenas três livros publicados, deixa claro que, em termos artísticos, importa mesmo é qualidade estética, e não quantidade. Os críticos piauienses o apontam como o melhor de nossos ficcionistas. Livro Ano Dados 19 Ulisses entre o amor e a morte 1953 Escrito pelo autor dos 19 aos 23 anos. Romance de caráter melancólico. Rio subterrâneo 1967 Escrito a partir do conto “Passeio a Timon”. Narrativa mais psicológica do autor e da qual ele mais gostava. Considerado sua obra-prima. Romance de caráter trágico. Somos todos inocentes 1971 Tributo que o autor presta a Oeiras. Romance de caráter dramático. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Enquadra-se a obra ogerreguiana na mesma linha dos autores que privilegiam o “coser para dentro”, uma literatura centrípeta,que busca analisar e explicar a alma humana, no que esta tem de mais profundo e misterioso. Fugindo aos velhos clichês da produção nordestina, focada em temas regionais, a exemplo da seca e da miséria, O. G. Rego se volta aos eternos dilemas universais, como o amor e a morte, sentimentos indeléveis na vida das pessoas. Quanto à técnica, sua ficção deve ser considerada modernista, pois não só abandona a linearidade narrativa (começo, meio e fim) como deixa o final sempre em aberto, transformando o leitor num coautor da obra. No tocante ao emprego da língua, opta por uma linguagem trabalhada e poética, mesclando termos eruditos com regionais, valorizando, sobretudo, a musicalidade das palavras. TEMAS ABORDADOS Fugindo do tradicional regionalismo nordestino, particularmente do romance de 30, O. G. Rego privilegiou temas universais em suas histórias: amor, morte, solidão, loucura, família, angústia existencial, sexualidade, preconceitos, aborto, frustração amorosa e religiosidade. Outro que mereceu destaque também, até pelo fato das personagens serem jovens, foi o da adolescência. Não à toa ele próprio fazer questão de se apresentar, nas palestras que ministrava, como o “romancista da juventude”. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS Como ninguém se torna um escritor sem ter sido um grande leitor, O. G. Rego não poderia ser diferente. E acabou bebendo em várias fontes, tanto da nossa quanto da literatura estrangeira. Entre os autores nacionais, recebeu influências de dois ficcionistas extraordinários: José de Alencar, cearense e mentor do romance impressionista; e Machado de Assis, carioca e criador do romance psicológico. 20 “O que tenho procurado fazer na minha história é fundir Alencar e Machado – O Romantismo de Alencar, sua linguagem poética, com o Realismo e o estilo um tanto sóbrio de Machado.” (Como e por que me fiz escritor / O. G. Rego de Carvalho) De fora do Brasil, foi Gustave Flaubert, escritor francês, a grande paixão literária, a ponto de ter lido toda sua obra. No caso de A educação sentimental, inclusive, leu repetida vezes. “O único autor de quem li quatro livros, li todos os livros que escreveu, foi Gustave Flaubert – Madame Bovary, Salambô, Tentação de Santo Antão e Educação Sentimental. A nenhum outro autor dei esse privilégio de ler a obra inteira, pois costumo ler apenas as obras fundamentais, aquelas que o passado peneira e diz: ‘Esta fica’.” (Como e por que me fiz escritor/ O. G. Rego de Carvalho) COMENTÁRIO DOS LIVROS Ulisses entre o amor e a morte Narrativa feita em 1ª pessoa por Ulisses, protagonista da história, que tem sua vida marcada tanto pela morte do pai quanto pela descoberta do amor em Conceição. No primeiro caso, ele a descreve de maneira sucinta e poética, tornando-se uma das mais belas metáforas de morte já escrita na literatura universal: “Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando. E puro, e distante, e feliz, encarou o céu e o tempo.” No segundo, o amor surge de repente, quando Ulisses vem morar com a família na capital, sentimento que o leva a sentir “dores” à noite. A história se desenrola em Oeiras e Teresina, mostrando Ulisses entre os oito e 15 anos de idade – da meninice à adolescência. O final acaba em aberto, sem o leitor saber o que será do futuro desse jovem após o fim do namoro com Conceição. Além do par romântico, outros personagens que aparecem na trama são: pai, mãe, José, Anália – a família de Ulisses; Norberto e Arnaldo, primo e amigo de Ulisses, respectivamente. Em estado de graça após a leitura, Cecília Meireles, grande poeta de nosso modernismo, assim se manifestou a respeito do livro: “Ulisses deixou-me uma sensação de poesia misteriosa e comovente”. 21 Rio Subterrâneo Romance mais importante não só de O. G. Rego de Carvalho, segundo os críticos, mas de toda a literatura piauiense. Livro de um escritor maduro e consequente, que cria um mundo misterioso habitado por criaturas dilaceradas pelos sentimentos de solidão, medo, loucura, angústia, desespero e neurose. Narrativa introspectiva de 3ª pessoa que, alterando a ordem cronológica dos fatos, mergulha no mundo inconsciente e sofrido de Lucínio, Joana, Helena, Afonsina, Benoni e Neusa. História ambientada em Timon, Teresina e Oeiras. Sobre a obra, Carlos Drummond de Andrade, nome maior da poesia nacional, teceu o seguinte elogio: “De Rio Subterrâneo tirei forte sensação de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada com aguda consciência artística. É desses livros que a gente não esquece.” Somos todos inocentes Sua obra mais convencional no tocante aos aspectos temático e técnico. As velhas brigas entre duas grandes famílias de Oeiras (Ribeiros versus Barbosas) relatadas dentro de uma linearidade narrativa. No meio desse fogo cruzado, a frustrada história de amor entre Raul e Dulce, proibidos de serem felizes por causa da disputa política dos pais. Tributo que O. G. Rego de Carvalho paga à terra natal, primeira capital do Piauí, de onde o autor saiu ainda menino. A história se passa na Oeiras de 1929, de ares provincianos e horizontes limitados, com sobrados e primeiros carros simbolizando as famílias ricas. O livro foi agraciado com o Prêmio Coelho Neto, em 1972, pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Além dos personagens citados, destacam-se também Amparinho e Pedrina, esta última abortando um filho de Raul. TEXTO PARA REFLEXÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora tenham sido escritos em situações diferenciadas, esses três textos ficcionais possuem vários elementos em comum que, de modo particular, ajudam igualmente a tecer um panorama dos principais dilemas enfrentados pelo autor naquela época, sobretudo com relação ao tipo de experiência intelectual que pretendia realizar, além de demonstrarem uma insistente preocupação do autor com as cidades piauienses onde viveu, Oeiras e Teresina, escolhidas por ele enquanto pretexto para falar das experiências e vivencias de seus personagens. Em uma entrevista concedida a Pompílio Santos (KRUEL, 2007), O. G. Rego de Carvalho ressalta que tanto Ulisses entre o amor e a morte como Somos todos inocentes e RioSubterrâneo, constituem sua “autobiografia espiritual”, ou seja, “refletem” seus sentimentos e ideias de quando os escreveu. Em todos eles, afirma o literato, “paira uma sombra de melancolia, em grau maior ou menor” (CARVALHO, 2003, p. 315). Mas essa sombra melancólica não apontaria apenas em 22 direção a um estado patológico. Conforme ressaltou o próprio escritor, ela diz respeito a uma condição espiritual, uma angústia em relação ao tempo, a uma dada época, na qual não se depositam mais esperanças, enfim, à condição humana de um individuo dividido entre o passado e o futuro6 . Aquilo que O. G. Rego classifica como uma “sombra melancólica”, ao longo das suas narrativas ficcionais constitui a configuração de um olhar alegórico por meio do qual o escritor pensa o seu mundo, utilizando como principal argamassa desse pensamento o seu próprio fazer literário. Esse olhar se traduz numa mistura de “luto e jogo”, na tentativa de desvelar a dialética imanente de um período dividido “entre nostalgias de certezas desaparecidas e a leveza trágica do herói nietzschiano” (GAGNEBIN, 1999, p.38), que teria de enfrentar a dura missão de ser, a um só e mesmo tempo, destrutivamente criativo e criativamente destrutivo (HARVEY, 1992). (ENTRE FRAGMENTOS E RUÍNAS: O. G. Rego de Carvalho e os dilemas intelectuais de uma geração / José Maria Vieira de Andrade / InterEspaço – Revista de Geografia e Interdisciplinaridade) TEXTOS SELECIONADOS Texto 1 AMAVA-A SIM Não demorou muito, notei que o tempo havia serenado: a chuva se foralogo, mas já não me atraía a praça: esta perdera toda a poesia – Conceição. Ao voltar para a casa, indaguei de mim, enquanto metia o pé, insensivelmente, numa poça d’água, por que resistia à sedução essa garota. Que havia nela de extraordinário, além da beleza? Nada descobrindo, cheguei à conclusão de que amava e tudo so era passageiro. Depois, estando prestes a dormir, tornei a pensar em Conceição. Vi-a agora sorrindo, tão recatada, tão doce! Seus menores gestos me passavam pela mente, levando-me a uma ansiedade nunca sentida. Até altas horas fiquei desperto, e apenas consegui adormecer quando, desistindo de enganar meu próprio coração, disse-lhe baixinho: - Amo-a sim, meu velho. E repeti diversas vezes que a amava com loucura. CARVALHO, O. G. Rego de.Ulisses entre o amor e a morte, 13ª ed., 2003, pág. 95 Texto 2 O táxi livrou-se de um engarrafamento e veio por uma rua sombreada de oitizeiros Adiante o Parnaíba - uma torrente obscura, agitada ao depor do sol. Ela mal percebeu Timon, devido à névoa que caía, empalidecendo o arvoredo do bosque e as luzes do porto. Embaixo, o vulto do trem na ponte. - Chegamos; só nos resta a travessia - gritou Lucínio, em luta com a tosse. Eis o rio de minha angústia. Parece que fala, dentro dos remansos: “Ser bem-vinda. É doce a morte”. 23 Helena empalideceu e abaixou a vista. "Não convém que me iluda. Sinto-me desfalecer agora". E recusou a mão que o primo lhe oferecia, para ajudá-la a desce. O vento fazia ondas por toda a parte, agitando o bote levemente. Ela hesitou a princípio, entrando nervosa, pelo braço do vareiro. - Ande, que está chovendo. O mestre encaminhou o barco rio acima, até que adiante largou o remo e se dirigiu ao motor. Pingos a engrossar, nuvens a todo céu. Mas ainda dava tempo para a travessia, e para chegarem à quinta em sossego. Sentados no banco da popa, juntos do saco e do baú. Lucínio e Helena miravam a vastidão das águas, confusa dentro da neblina. Iam silenciosos: ele, a evocar a insônia da noite precedente, cheia de mistério e duvida, ela absorta na contemplação das espumas, como se visse os buraquinhos de Joana na parede - uma corrente secreta, viscosa, assim um rio subterrâneo: álgido escuro e aterrador. CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo, 1967 Texto 3 Entre as ruínas da cadeia, Dulce lembrava-se da manhã em que, protegida pelas rótulas da janela, entrevira a chegada de Raul. Seu porte baixo, porém garboso, era inconfundível. Quem não o conhecesse, logo imaginaria, ser descendente do velho Joaquim Ribeiro, tal a semelhança física. Como o avô, não dispensava o chapéu de palhinha, nos dias de muito sol. Viera num sedã azul, que ele próprio guiava, antes de transpor a ponte, já os meninos corriam à sua frente, cheios de alegria. À porta, velhas e mocinhas acenavam- lhe a sorrir. Com exceção de alguns rapazes, que se distraíam no jogo de damas, todos se esforçavam para ver o automóvel e o chofer. Raul, um pouco envaidecido, andara sem pressa, buzinando nas esquinas, nas ruas estreitas por onde os burricos carregavam lenha e até mesmo na Praça da Vitória, onde sobressaía o Sobrado. O prazer, sendo inédito, não tinha limites, e a cada instante exibia as luvas, ao saudar os parentes e amigos. Dulce não pudera vê-lo bem, e continuava em seu posto quando a mãe entrou no quarto. - Não tem vergonha, menina? Ela corara e não conseguira responder. D. Odete, percebendo-lhe o vexame, abanara a cabeça em negativa. - Não se iluda, minha filha. Você sabe o que a esperaria, se viesse a apaixonar- se por ele. Dulce olhara-a com resignação, caindo em seus braços. - Mamãe - dissera-lhe, enquanto a apertava com torça - por que não acabam essa história? Os filhos não têm culpa. A senhora afastara-se de leve, fitando-a carinhosamente. Não torne a falar nesse assunto. Eu... Eu nada posso fazer. No passado, quando Raul veio passar férias... - Calara-se de súbito, esmorecida. Ninguém consegue demover seu pai. Depois que ela saíra, Dulce atirara-se à rede, pensando com amargura no próprio destino. A mãe conhecia-lhe o segredo. E agora? O pai não lhe bateria? Não; talvez nem viesse a saber. "Oh, como é triste amar assim. Se ao menos pudéssemos falar- nos." Domingo haveria uma festa no sobrado. Lá estariam as primas de Raul com as colegas, dispostas a conquistá-lo: até Pedrina compareceria. Dulce não se conformava. Era imperioso ir, ainda que tivesse que enfrentar a zanga do pai. 24 À noite, de tanto imaginar cenas em que lhe pedia licença, sem a obter, terminara sentindo a cabeça tonta. Quase de manhã, a brisa dos morros, cheia de perfume silvestre, restituíra-lhe a calma e ela adormecera. Ao despertar com o movimento do pai que seguia para a “Varjota”, ocorrera-lhe uma ideia. “E se eu pedir a ajuda de Amparinho?" CARVALHO, O. G. Rego de.Somos todos inocentes, 5ª ed., revista, 1955 TORQUATO NETO “um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia resplandente cadente fagueira num calor girassol com alegria na geleia geral brasileira que o jornal do brasil anuncia” (GELEIA GERAL / TORQUATO NETO) O AUTOR Torquato Neto nasceu à fórceps no Hospital Getúlio Vargas, em Teresina, no dia nove de novembro de 1944. Era filho de Heli da Rocha Nunes (Promotor Público) e Maria Salomé da Cunha Araújo (Professora primária). Desde cedo gostou de ler e escrever. O primeiro rascunho poético, com temática voltada para o universo familiar, foi produzido aos nove anos: “o meu nome é Torquato / o de meu pai é Heli / o da minha mãe Salomé / o resto ainda vem por aí”. Seu itinerário escolar começa em Teresina, onde fez o primário e o ginásio; passa por Salvador, cidade na qual fez o antigo científico e conheceu os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil; e deságua no Rio de Janeiro a fim de cursar Jornalismo e Filosofia, iniciando mas não concluindo nenhum. Torquato queria ser mesmo era diplomata, mas, infelizmente, não realizou tal sonho. A passagem por Londres ocorreu para fugir do sufoco que era o Brasil na época da ditadura militar. Projetou-se em nível nacional por ter sido um dos principais teóricos da Tropicália, movimento artístico que revolucionou a arte brasileira no final da década de 60. "Geleia Geral”, composição de sua autoria, tida como manifesto-síntese desse movimento. Além de poeta, Torquato foi também jornalista, cineasta, ator e letrista, tendo várias composições suas musicadas e interpretadas por grandes nomes da nossa MPB. No Rio de Janeiro, Torquato Neto se casou com Ana Duarte, com quem teve um único filho – Thiago Silva de Araújo Nunes, que adulto, ao invés da carreira artística, preferiu ser piloto de avião em companhia aérea privada. Um dos padrinhos de casamento foi o cantor Gilberto Gil. A exemplo de tantos outros artistas geniais e talentosos, tanto dentro como fora do Brasil, Torquato Pereira de Araújo, neto, se encantou ainda muito jovem, aos 28 anos, ao ligar o gás no banheiro e morrer asfixiado, no Rio de Janeiro. A data fatídica era 10 de novembro de 1972, depois de ter passado a noite anterior, junto com alguns amigos, comemorando o seu aniversário.Nosso “Anjo Torto”, como ficou conhecido no meio cultural, foi enterrado no cemitério São José, em Teresina. Antes do desfecho trágico, ele escreveu um bilhete de amor e despedida. “FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e 25 enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acreditoem amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar.” Seus escritos só vieram à tona postumamente, com a publicação de três livros: Os Últimos Dias de Paupéria, O Fato e a Coisa e Juvenílias. Sem falar também da revista cultural Navilouca, lançada em 1973, da qual foi um dos idealizadores. A OBRA Destacou-se Torquato Neto como um artista multifacetado, atuando em várias frentes simultaneamente, desde a escrita de poesia à produção de filme. Ele deixou uma obra relativamente pequena, mas importante do ponto de vista estético, que influência a cultura nacional até hoje. Em termos literários, não publicou nenhum livro em vida, tendo vindo à tona postumamente três volumes: “Os Últimos Dias de Paupéria”, lançado em 1973 e organizado pelo amigo Waly Salomon e a viúva Ana Duarte; “O Fato e a Coisa” e “Juvelílias”, ambos de 2012, organizados pelo primo George Mendes e o amigo Durvalino Couto. No que diz respeito à cinematografia, nosso “Anjo Torto” optou pelos filmes marginais, chamados também de “undergrounds”, produzidos com poucos recursos e de forma independente, nos quais ele atuava como ator e diretor. Passados tantos anos, esses filmes, produzidos em bitola Super-8, são tidos hoje como “cults”. Foi como letrista, e dos bons, que Torquato se projetou nacionalmente, embora não cantasse nem tocasse instrumento algum. No fundo, foi um poeta da palavra escrita que se converteu à palavra falada. Ele teve suas letras musicadas e cantadas por grandes artistas da nossa Música Popular Brasileira: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu Lobo, Elis Regina, Jards Macalé, Luís Melodia, Carlos Pinto e a banda de rock Titãs (Sérgio Brito). Livros Os Últimos Dias de Paupéria (1973) O Fato e a Coisa (2012) Juvenílias (2012) Filmes O Terror da Vermelha ou o Forasteiro daCidade Verde Só matando Adão e Eva do Paraíso ao Consumo Nosferatu no Brasil Principais Composições Geleia Geral Lua Nova Louvação Pra Dizer Adeus Mamãe, Coragem Go back Let’s Play that Deus vos Salve a Casa Santa 26 A Rua Zabelê Veleiro Marginália II CARACTERÍSTICAS DA OBRA Quanto aos principais traços de sua produção, Torquato Neto deixou uma obra marcada pelo sentimento de liberdade e compromissada com o ideário da contracultura. Daí ter sido batizado como o “poeta da ruptura” pelos críticos. No aspecto formal, destacam-se: - 1. fragmentação do discurso; 2. linguagem sintética, apoiada em elipses e subentendidos; 3. Sintaxe descontínua, utilizando-se de técnicas de corte, como no cinema; 4. elaboração de metáfora; 5. uso reiterado de antíteses; 6. uso de gradação; No aspecto do estilo e da temática, sobressaem: - 1. estilo em forma de colagem, onde são confrontados os elementos mais díspares; 2. atitudes de carnavalização diante da vida e da arte: redescoberta do efeito parodístico e do teatro de Oswald de Andrade. TEMAS ABORDADOS Embora tenha deixado uma obra fragmentada, que veio à tona postumamente, é possível observar alguns temas muito recorrentes em seus textos, com destaque para a morte e os conflitos existenciais. Além desses, aparecem ainda o apego à terra natal, questões políticas e sociais, a solidão na cidade grande, infância, a procura constante pela fé e o lirismo amoroso. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS As influências recebidas foram muitas e variadas, até pelo fato de ter sido, ao longo da vida, um leitor contumaz, daqueles de andar sempre com livro debaixo do braço. Há quem afirme que ao completar 14 anos pediu de presente para o pai as obras completas de Machado de Assis, melhor ficcionista da literatura nacional. Entre os brasileiros, teve preferência inicial por Castro Alves, Gonçalves Dias e Sousândrade, poetas românticos, trocando-os depois pela leitura dos modernos Carlos Drummond, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, João Cabral, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rubem Braga, Décio Pignatari e os irmãos Campos (Augusto e Haroldo). Da literatura estrangeira, sorveu as lições de Ezra Pound, Andre Gide, Rainer Maria Rilke e Maiakovski COMENTÁRIO DOS LIVROS Os Últimos Dias de Paupéria A primeira edição do livro foi lançada em 1973, no ano seguinte à morte de Torquato Neto, por iniciativa de Waly Salomon (amigo baiano) e Ana Duarte (viúva do poeta), reunindo o conjunto de seus escritos: alguns poemas, letras de música, o diário do sanatório de Engenho de Dentro, cartas, estudos, 27 frases soltas, pensamentos, roteiros de filme e, sobretudo, os textos da coluna Geleia Geral publicados no Última Hora, jornal carioca. O Fato e a Coisa Embora tenha sido o único livro concebido em vida por Torquato, ele só foi publicado 40 anos após a morte do poeta, em 2012, uma iniciativa que partiu do primo George Mendes e do amigo Durvalino Couto. O volume reúne textos escritos entre 1962 e 1964, trazendo poemas de inegável beleza que prenunciavam o talentoso letrista que viria a se tornar no futuro. Juvenílias Também lançado em 2012, o livro reúne poemas esparsos que Torquato deixou datilografados e organizados em pasta. Esse espólio inédito foi enviado a George Mendes, curador de sua obra, pela viúva do poeta, a artista gráfica Ana Duarte. “Qualquer rabisco de um grande artista é documento que informa, se não pela estética, ao menos pelo lado histórico”, explica o primo. TEXTO PARA REFLEXÃO Os últimos dias de um romântico Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato Neto perfez o fadário de todo vampiro que se preza, percorrendo a sina dos “não mortos”. COROAS PARA TORQUATO um dia as fórmulas fracassam a atração dos corpos cessou as almas não combinam esferas se rebelam contra a lei da superfícies quadrados se abrem dos eixos sai a perfeição das coisas feitas nas coxas abaixo o senso das proporções pertenço ao número dos que viveram uma época excessiva Paulo Leminski Torquato Neto é, talvez, o único mito poético dessa geração que aí está, “mito”, aqui, no sentido originário de figura-síntese de uma idéia com força e valor coletivos. Arquétipo. Modelo. Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá- la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros da nossa gente: o mito do poeta morto jovem. Esse mito, de extração romântica, tem uma linhagem que começa no Werther de Goeth, passa por Musset, Nerval, entre nós, por Álvares de Azevedo, Casimiro deAbreu, 28 Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, os “prematuros desaparecidos”, em contraposição às prósperas longevidades de um Drummond, por exemplo. Esse mito, certamente, é um pálido reflexo do mais profundo mito do mundo mediterrâneo e, por extensão, do ocidente: o de um deus jovem, que dá a vida pelos que nela crêem: Adônia, Osíris, Jesus. Essa ideia para um chinês, um japonês, um oriental, um budista, é perfeitamente absurda. “Credo quia absurdum”. Nós todos acreditamos em Torquato. Afinal, a autoimolação não é gesto ao alcance de qualquer um. A vida de Torquato Neto não interessa. Não interessa a vida de ninguém. Eu não aceito esse ponto de vista. Acho até que, em certos poetas, o desenho da vida pode ser um poema. Não se escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude, o comportamento, sartreanamente, com as escolhas globais. Tem poetas nos quais importa, também, a peripécia contextual que cerca seu fazer e seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro. O que se sabe de Torquato: um poeta de província (Piauí? Goiás? Santa Catarina?), um dos letristas da Tropicália, suicidou-se, parece. Pouco se sabe de Torquato. Felizmente. Mito que se preza não tem biografia. As biografias têm a irritante mania de reconduzir os mitos das suas rarefeitas altitudes para as platitudes da humana condição. Vai ver,no fundo, Torquato era pessoa como qualquer um de nós, esse Qualquer Um de Nós que pena atrás da grana, engole cara feia de patrão e exulta, como os escravos, no dia da distribuição dos pães; Conhece “aquela pessoa”. Deixa traços de sua passagem. E passa. Ainda brilha o dia tropicalista, que raiou na poesia brasileira, nos idos de 68. Foi a época em que nós todos começamos a nos tratar de loucos. Até ali, loucura era insulto. Nós desfraldamos a loucura como o fervor de quem empunha uma bandeira. Freudianos, a loucura foi igual para todos. Mais alguns foram mais loucos que os outros. Não há democracia no reino da loucura. Torquato foi um príncipe da loucura, um Ludwig da Baviera no Posto Seis. E lá estava Torquato nos alvores do dia tropicáustico, tropicalmo, as mãos cheias de versos, frases claras, frases raras, armas, araras. Torquato marca uma mudança radical, um salto qualitativo, na história disso que se chama, na falta de termo melhor, poesia brasileira. Poesia que, hoje, não apenas se lê nos livros, mas se escuta nas canções, nos discos, nos rádios, na TV, na vida, enfim. Torquato tem muito que ver com isso. O sequestro da poesia pela literatura foi longo como o seqüestro dos diplomatas norte-amercianos pelos iranianos do Aiatolá Khomeini. No Brasil, foi o tropicalismo quem a libertou. Com esse des-movimento (que cuidou do próprio enterro, encenado na TV, pelas suas principais estrelas), irrompem na cena brasileira, como é de conhecimento de todos os leitores do “Folhetim”, poetas de primeiríssima ordem, se expressando, não em livros mas em discos. Bota Chico Buarque nisso. Absolutamente, Caetano, e seus companheiros, Gil, a seguir, Capinan, Tom Zé, o que a gente tem vontade de acrescentar, tudo de melhor que, em letra veio algo depois: Galvão, dos Novos Baianos, Waly Sailormoon, Duda Machado, todos letristas do período imediatamente pós-tropicália. Porque, com Torquato, começa a existir essa estranha estirpe de poetas: os letristas. Patrulhas dos mandarins das Belas Letras gostariam de lhes negar até o prestigioso título de poetas. E relegar a poesia da letra de música ao sub-solo da subliteratura. 29 A poesia da letra de música seria fácil, carregada de redundância e banalidade, laborando sobre sentimentos elementares, girando em torno de meia dúzia de situações prototípicas: boy meets girl, que bom, ela me ama, azar, ela não me ama mais, como era bom quando ela me amava, quem me dera uma paisagem assim e assado para transar com meu amor, as venturas e desventuras daquele amor romântico, inventado pelos trovadores provençais, os antepassados diante dos músicos-poetas do mundo pop. Só que a arte desses trovadores provençais (Arnaut Daniel, por exemplo) em nível de palavra é de teor tal, que coloca alguns deles entre os mais altos criadores da lírica de todas as épocas. Com ou sem música. Dias atrás, li, numa das principais revistas brasileiras a resenha de um disco de Chico Buarque, na qual o comentarista falava da poesia de Caetano, botando a palavra “poesia” entre aspas, acrescentando ainda um “digamos”, a “poesia” de Caetano. A questão é saber: mantemos ou tiramos as aspas, quando falarmos da poesia (ou da “poesia”) dos letristas e poetas-músicos? A geração à qual Torquato pertence, Caetano à proa, respondeu, criativamente, inundando o País com letras e canções de tamanha estatura poética que fica difícil achar paralelos na poesia escrita do mesmo período. Os mandarins vão ter que dormir com essa. Mas a hostilidade dos mandarins, guardiães da coroa de louros de Apolo, provocou o excesso contrário: o menosprezo pela poesia escrita que, de Guttemberg à poesia de vanguarda, tem quinhentos anos de evolução autônoma especialidade, diante da poesia da letra de música. A poesia escrita é uma criação da imprensa Guttenberguiana. Afinal, até o soneto foi feito, no início, para ser cantado. “Soneto” é, em italiano, um “sonzinho”. Mas a métrica, na poesia escrita, não se explica, se esquecermos que a poesia, nas origens, era “words set to music”, palavras para cantar. A ponto de Ezra Pound, poeta e músico, advertir que a poesia decai, quando passa muito tempo afastado da música, sua matriz e destino. No Brasil, dos anos 60 para cá, a poesia cantada e a escrita tem dialogando de modo fecundo, em inúmeros momentos. Basta invocar os conhecidos contactos, por exemplo, entre Caetano & Gil e a poesia concreta paulista (Caetano, em “Sampa”, introduz, na música popular, a própria expressão “poesia concreta”). Ou entre a poesia de Chico Buarque e as de Drummond e João Cabral. A essas influências da poesia escrita, acrescentou-se, nos anos 60, a da poesia de Oswald de Andrade & Antropofagia, ressuscitada por reedições e encenações de peças. A mais conhecida das letras de Torquato, “Geleia Geral” (o nome foi emprestado por Torquato de Décio Pignatari, que cunhou a expressão no editorial de uma revista “Invenção”) é oswaldiana até a medula. No ufanismo irônico. Na enumeração Kitsch-caótica das “relíquias do Brasil”. A mesma dança, ano que vem, mês que foi. A marca oswaldantropofágica, porém, está na própria linguagem de “Geleia Geral”: na técnica de cortes, de flashes, de montagens cinematográficas, de rimas trocadilho (inicia / anuncia), de malandragens verbais. “Geléia Geral” traz estes dois versos: “resplandente cadente fagueira num calor girassol com alegria”. Percebe-se que a cafona palavra “fagueira” vira “fogueira”, quando você ouve / lê o ígneo verso seguinte. E esse cadente se transforma num incandescente candente. Alta era a arte de Torquato, poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade. Jovens poetas do Brasil, quem não fez um poema em homenagem a Torquato, atire a primeira estrofe. A morte de Torquato foi um grande poema, suicídio, a performance máxima. A destruição da vida para a transformação em mito, com 30 nas “Metamorfoses” de Ovídio, onde os personagens morrem só para se transmutar em constelações, em estrelas. A garotada pegou o recanto. Torquato é meio-deus para vários poetas jovens que eu conheço. O modelo de sua vida integralmente dada à experiência poética, no fundo, a “trip” do barco bêbado do Rei Arthur, Arthur Rimbaud. Um grande sábio um dia disse que o signo é a morte da vida. Mas, sem signo, vida degradada, a vida não dura. A vida é curta, o signo é longo Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros. O Livro de Torquato é esse “Os Últimos Dias de Paupéria”, muito bem editado por Waly Sailormoon, vitrina dos vários possíveis de Torquato: em letra, poesia escrita, ensaios jornalísticos, fragmentos de diário, retrato estilhaço de um poeta por outro poeta. Essa – digamos – precariedade do “corpus torquatiano” “para falar como os mandarins é um fato de mistério: a incompletude, a obra aberta, o poder ser. Talvez, por isso, Torquato tenha influenciado tanto. Isso que se chama, imprecisamente, de “poesia marginal” o invoca entre os santos do seu panteão, quando não como “heros ktistes”, deus fundador. Morto aos 28 anos, Torquato deixou fragmentos, “rari nantes in gurgite vasto”, “disjecta membra”, cacos de uma explosão nuclear existencial. Mas a realidade, aí, foi de uma grande elegância e precisão. Atingido em cheio pela bomba da modernidade, Torquato dispersou-se em microepifanias, letras, poemas, textos de jornal. O que só aumenta seu pretígio numinal diante de uma geração televisiva, marshal-mclunaniana, descontínua, paratática. A flor que foi cortada antes do tempo é emblema de todas as virtualidades. Torquato é a divindade que, na poesia brasileira, preside o poder-ser. Se Torquato é o mártir auto-imolado da poesia cantada brasileira, Mário Faustino é seu desastrado (“hecatombado”) equivalente, na área escrita. Desaparecido em desastre aéreo, Faustino deixou atrás de si o perfume de uma militância poética, que teve seu auge no
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