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1 LITERATURA PIAUIENSE ________________________________________________ Wellington de Jesus Soares 2 APRESENTAÇÃO Comparada às outras, a nossa literatura, de expressão local, é ainda muito jovem, criança que mal começou a dar os primeiros passos. E literatura para se firmar, como se sabe, demanda tempo e trabalho contínuo dos apaixonados pela arte da palavra. A Literatura Portuguesa data do século XII, com o lançamento da Cantiga da Ribeirinha (1189/1198), de Paio Soares de Taveirós, tendo, portanto, mais de oito séculos de existência. Nela despontam as genialidades de Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e José Saramago. Iniciada em 1500 com a Carta de Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Cabral, a Literatura Nacional tem uns 500 e tantos anos. Entre os nomes conhecidos dentro e fora do país, sobressaem Alencar, Machado, Clarice, Graciliano, Vinícius, Guimarães Rosa e Drummond. Quanto à “Literatura Piauiense”, considerando Poemas, de Ovídio Saraiva, como marco introdutório, texto lançado em 1808, ela tem apenas 207 anos de vida, um reduzido número de leitores e raros autores com projeção fora do Estado. Entenda-se esse termo em relação, como recurso didático, aos livros produzidos por escritores nascidos ou não aqui, que, de uma forma ou outra, mantêm laços sanguíneos e afetivos com o Piauí, quer abordando temas regionais (Fontes Ibiapina) ou universais (Mário Faustino). A falta de uma cronologia oficial da literatura local, definida e aprovada pelos críticos, além da APL e dos cursos de Letras, tem gerado muita controvérsias nas diversas esferas de ensino, dificultando o aprendizado de todos, sobretudo, dos maiores interessados na matéria: alunos e professores. Daí o presente estudo, neste curso de 60 horas, priorizar nomes já consagrados de nossa literatura. Num primeiro momento, serão vistos quatro autores: Da Costa e Silva, O. G. Rego de Carvalho, Assis Brasil e Torquato Neto. No segundo, mais três: H. Dobal, Mário Faustino e Fontes Ibiapina. Com eles, e sem desmerecer os demais, a Literatura de Expressão Piauiense está devidamente representada. Em certa ocasião, o crítico Antônio Cândido, um dos mais respeitados no país, escreveu algo sobre a literatura brasileira que, provavelmente, diz respeito à nossa também. Ou não? “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão.” 3 Sumário Texto para reflexão 1 ...................................................................................................................................... 5 Da Costa e Silva .............................................................................................................................................. 7 Autor ............................................................................................................................................................ 7 Obra ............................................................................................................................................................. 7 Características .............................................................................................................................................. 8 Temas ........................................................................................................................................................... 8 Influências .................................................................................................................................................... 9 Comentários ................................................................................................................................................. 9 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 10 Poemas selecionados ................................................................................................................................. 12 Texto complementar .................................................................................................................................. 15 O. G. Rego de Carvalho ................................................................................................................................ 18 Autor .......................................................................................................................................................... 18 Obra ........................................................................................................................................................... 18 Características ............................................................................................................................................ 19 Temas ......................................................................................................................................................... 19 Influências .................................................................................................................................................. 19 Comentários ............................................................................................................................................... 20 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 21 Textos selecionados ................................................................................................................................... 22 Torquato Neto ............................................................................................................................................... 24 Autor .......................................................................................................................................................... 24 Obra ........................................................................................................................................................... 24 Características ............................................................................................................................................ 26 Temas ......................................................................................................................................................... 26 Influências .................................................................................................................................................. 26 Comentários ............................................................................................................................................... 26 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 27 Textos selecionados ................................................................................................................................... 31 Assis Brasil ..................................................................................................................................................... 37 Autor .......................................................................................................................................................... 37 Obra ........................................................................................................................................................... 37 Características ............................................................................................................................................38 Temas ......................................................................................................................................................... 39 4 Influências .................................................................................................................................................. 39 Comentários ............................................................................................................................................... 39 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 42 Textos selecionados .................................................................................................................................. 43 Fontes Ibiapina .............................................................................................................................................. 45 Autor .......................................................................................................................................................... 45 Obra ........................................................................................................................................................... 45 Características ............................................................................................................................................ 46 Temas ......................................................................................................................................................... 47 Influências .................................................................................................................................................. 47 Comentários ............................................................................................................................................... 47 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 48 Textos selecionados .................................................................................................................................. 50 H. Dobal ......................................................................................................................................................... 54 Autor .......................................................................................................................................................... 54 Obra ........................................................................................................................................................... 55 Características ............................................................................................................................................ 55 Temas ......................................................................................................................................................... 56 Influências .................................................................................................................................................. 56 Comentários ............................................................................................................................................... 56 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 58 Textos selecionados .................................................................................................................................. 59 Mário Faustino .............................................................................................................................................. 64 Autor .......................................................................................................................................................... 64 Obra ........................................................................................................................................................... 64 Características ............................................................................................................................................ 65 Temas ......................................................................................................................................................... 65 Influências .................................................................................................................................................. 65 Comentários ............................................................................................................................................... 65 Texto para reflexão .................................................................................................................................... 66 Poemas selecionados ................................................................................................................................ 67 Bibliografia .................................................................................................................................................... 71 5 Texto para reflexão LITERATURA PIAUIENSE: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO Ao falar de “Literatura Piauiense”, sentimos a necessidade de delimitar o que consideramos como tal. O que significa, afinal, essa denominação? Primeiro, é bom lembrar que a produção literária a que nos referimos é, ao mesmo tempo, parte e todo. Pertence àquele conjunto maior que chamamos literatura nacional ou literatura brasileira, sem, entretanto, deixar de possuir uma certa individualidade, ou seja, uma singularidade, que a distingue da literatura nacional e das demais literaturas regionais. Historicamente, a literatura piauiense tem enfrentado o desafio de tornar-se parte significativa da literatura brasileira, legitimada pela crítica nacional e, ao mesmo tempo, apresentar-se como uma literatura de expressão “piauiense”, contribuindo, de forma decisiva, para a construção da identidade cultural do Estado. O movimento de construção da identidade da literatura piauiense teve origem no início do século XX, quando emergiram os primeiros trabalhos da crítica literária local estimulados pelo desenvolvimento da imprensa e pelo incremento da publicação de obras literárias do Estado. Na visão de nossos intelectuais daquele período, a construção do conceito de literatura piauiense dependia de um reconhecimento nacional, que desse legitimidade àquela produção, afirmando o talento literário dos autores piauienses. O critério de legitimação da literatura piauiense por meio da crítica nacional restringe-se, no entanto, ao substantivo “literatura”, primeiro termo da denominação em análise, remetendo-nos, assim, à questão específica: a produção escrita pelos piauienses tem mesmo valor literário? É de fato um objetivo estético criado através da palavra? O outro termo, no caso, o adjetivo "piauiense” tem a função de recortar dentro daquele conjunto maior da literatura brasileira a parte correspondente ao Estado do Piauí, ou seja, a expressão genuinamente piauiense que se distingue de todas as outras expressões literárias produzidas no País. Os critérios para delimitar o significado desse adjetivo “piauiense” são vários. Um deles é decorrente da biografia dos autores. Nesse caso, considera-se literatura piauiense toda obra produzida por autores nascidos no Piauí. Privilegiando a biografia dos autores, podemos, ainda, considerar “piauiense” a obra de autores radicados em outros Estados. A vantagem desse critério é a sua abrangência, que permite a incorporação de autores como Ovídio Saraiva e Mário Faustino, que nasceram no Piauí e se radicaram em outros centros, ou, então, caso contrário, autoresque nasceram em outros Estados e que se radicaram, permanentemente ou temporariamente, no Piauí, como Higino Cunha, Adalberto Peregrino, Odilo Costa Filho, para citar apenas os mais antigos. Por outro lado, esse mesmo critério aplicado a outras literaturas poderia nos subtrair alguns dos nossos autores, por exemplo, Taumaturgo Vaz, Jonas da Silva, Félix Pacheco, Da Costa e Silva e Amélia de Freitas Bevilacqua, os quais não só tiveram seus livros editados em outros Estados, como também viveram a maior parte do tempo fora do Piauí. Nessa situação, ainda poderia ser citado Lucídio Freitas, que, durante algum tempo, viveu em Belém do Pará, exercendo a docência na Faculdade de Direito daquele Estado e participando do movimento cultural de Belém, onde publicou sua primeira obra independente Vida obscura, de 1917. Um critério menos abrangente recortaria aquelas obras literárias que dão conta de uma realidade humana e social reconhecível como essencialmente piauiense. Esse critério englobaria os poemas sertanejos de Hermínio Castelo Branco, grande parte da poesia de Da Costa e Silva e de H. Dobal, a narrativa ficcional de Francisco Gil Castelo Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce Valéria Realce 6 Branco, Abdias Neves, João Pinheiro, Fontes Ibiapina, O.G. Rego de Carvalho, parte da obra de Assis Brasil e muitos outros autores, mas deixaria de contemplar as obras de autores, tais como: Jonas da Silva, Félix Pacheco, Celso Pinheiro, Mário Faustino, para não citar uma extensa lista. Ainda se poderia estabelecer outros parâmetros para definir o que é “literatura piauiense”. Um bastante interessante é o de incluir o público original da obra, ou seja, aquele a quem o autor destinou sua obra e com o qual pretende manter um diálogo. Seria o caso de perguntar-se: qual o leitor visado pelo autor no momento da publicação de sua obra? O leitor local? Existe um público de leitores piauienses com os quais os autores mantêm uma relação dialógica? É claro que uma obra que não tenha sido destinada originariamente ao leitor piauiense pode posteriormente entrar em sintonia com este público e com ele estabelecer um diálogo significativo. É talvez o caso de Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, que passou mais de cem anos totalmente desconhecido do público local e que, atualmente, vem sendo lido e discutido por um considerável número de leitores piauienses. Sem querer estender a discussão, que comporta ainda muitos outros argumentos, queremos apenas afirmar que nenhum critério definidor da literatura piauiense deve ser utilizado de maneira excludente. Tratando-se de uma literatura emergente, não devemos recusar nem descartar autores e obras; pelo contrário, precisamos engrossar o caldo da literatura piauiense, absorvendo o maior número possível de componentes. Acreditamos que o papel da crítica literária é fazer um recorte mais abrangente possível e depois classificar, colocando em ordem no conjunto, organizando autores e obras de acordo com critérios claros e coerentes, sem, entretanto, abrir mão de nada; ao contrário, apropriando- se do maior número possível de autores e obras. Profª. Dra. Maria do Socorro Rios Magalhães. In: Correio Corisco DA COSTA E SILVA Valéria Realce 7 Fez-me Poeta o Destino Quando nasci, o Destino Fez-me poeta, ainda no berço; Tanto assim que, pequenino, Minha mãe, rezando o terço, Pensava no meu destino, Entre os vaivéns do meu berço.. (Da Costa e Silva. In: Verônica) O AUTOR Seu nome completo é Antônio Francisco da Costa e Silva, mas responde pelo nome literário de Da Costa e Silva. Nasceu em Amarante, na rua das Flores, em 23 de novembro de 1885. Ainda na terra natal, teve alguns poemas publicados na Revista do Grêmio Amarantino. Já em Teresina, concluiu os preparatórios no Liceu Piauiense, transferindo- se depois para Recife, onde cursou Direito. Como Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, órgão do Ministério da Fazenda, emprego conquistado por concurso, morou em vários estados no exercício da função: Minas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Amazonas e Maranhão. Casou-se duas vezes: com a primeira mulher, Alice Salles Salomon, teve três filhos - Márcio, Mário e Benedito; com a segunda, Creusa Fontenele, outros três – Alice, Alberto e Elisabete. Ainda hoje é o poeta mais popular do Estado, eleito “Príncipe dos Poetas Piauienses”, autor da letra do Hino do Piauí e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). Vítima de um infarto, faleceu em 29 de junho de 1950, no Rio de Janeiro, depois de viver um longo tempo mergulhado em profundo silêncio (“exílio de si mesmo”) e afastado da escrita. A OBRA Da Costa e Silva representou um papel poético da maior relevância em sua época, mesmo sendo autor de uma meia dúzia de livros, escritos e publicados ao longo de 19 anos, entre 1908 e 1927. Alguns críticos o apontam tão bom quanto os poetas Augusto dos Anjos, paraibano, e o poeta José Albano, cearense. Pena não ter ainda merecido o reconhecimento nacional. Não fosse o trabalho empreendido pelo filho Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da ABL e poeta da melhor qualidade também, provavelmente sua obra já estivesse esquecida. Livro Ano Dados 8 Sangue 1908 Estreia simbolista e de invulgar domínio formal. Zodíaco 1917 Considerado seu melhor livro. Pandora 1919 Preocupação formal e mitologia clássica Verônica 1927 Subjetivismo e saudade da esposa morta. Alhambra 1928/1933 Obra inconclusa. Poesias completas 1950 Todos os livros num único volume. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Como todos os autores do começo do século XX, Da Costa e Silva fundiu em sua poética traços parnasianos (rigor formal, soneto e objetivismo) e simbolistas (linguagem musical, sugestão e individualismo), num jogo sincrético de estilos típicos desse período. Embora tenha usado a destreza técnica, que conhecia a fundo, não deixou que sua poesia se tornasse particularmente difícil, árdua e, menos ainda, hermética a ponto de ser incompreensível aos leitores. Quanto à linguagem utilizada nos textos, embora culta e trabalhada, foi dotada, segundo José Guilherme Merquior, de uma dimensão de oralidade como que incorporada à sua própria natureza íntima. Além, de uma inserção social, destaca o crítico Mas o traço marcante de sua poética é, de forma inequívoca, o caráter lírico que perpassa o conjunto da obra, como se pode constatar nos versos abaixo: “Mas foi tamanha a minha desventura, Que pendurei, muda e quebrada, a lira No salgueiro da tua sepultura.” TEMAS ABORDADOS Os críticos são unânimes em destacar a saudade como o eixo temático mais importante de sua obra, notadamente em relação a Amarante, ao rio Parnaíba e à sua mãe. Outro assunto muito presente em seus textos é a chamada poesia da natureza, sobre a qual dedica um livro completo, Zodíaco, evocando elementos diversos da flora e fauna. Impossível esquecer ainda os poemas dedicados à “musa uxória”, nos quais cantou a esposa morta, reunidos na segunda parte de Verônica, seu último livro completo. Da Costa e Silva soube também, a exemplo dos grandes poetas, refletir sobre a própria condição humana, tão bem retratada filosoficamente na seguinte estrofe: “Feliz daquele que os seus atos pauta Dentro dos dons da vida que o rodeia, E acha o leito macio e a mesa lauta Na indiferença da fortuna alheia.” INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS 9 Suas influências literárias foram muitas e distintas, inspirando-se sempre em grandes autores, nas suas obras e estilos, nunca perdendo a oportunidade de reverenciá- los. Entre os franceses, destacam-se Verlaine, Baudelaire e Mallarmé. Quanto aos portugueses, bebeu em Antero de Quental, Antônio Nobre e Cesário Verde. Na literatura norte-americana, a fontefoi Edgar Allan Poe. Já da produção nacional, despontam Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, nutrindo por este último especial devoção. Mas foi ao poeta belga Émile Verhaeren, a quem se referia como “mestre”, que dedicou um belo poema de caráter elegíaco, quando este faleceu num acidente de trem em 1916. “Mestre, tu que exaltaste a vertigem da vida Nas forças tumultuosas do progresso, Ampliando o mundo à ação da humanidade forte, Morres, sentindo-a sob as rodas de um expresso Com seus cavalos de vapor a toda a brida, Na fogosa pressão da máquina, seguida Da longa procissão dos vagões de transporte, Na indiferente e célere corrida, Ao ruidoso rumor dos seus carros de morte!” COMENTÁRIO DOS LIVROS Sangue Lançado quando o poeta, aos 23 anos, cursava Direito em Recife. Livro de caráter simbolista. Escorrem pelos textos o sentimento de amor materno, o apego à terra natal e a identificação com o rio Parnaíba, batizado de “Velho Monge”. Entre os poemas consagrados da obra de estreia, destacam-se “Cântigo do sangue”, “Deusa pagã”, “Rio das garças”, “Mater”, “Madrigal de um louco”, “Ironia eterna” e, o mais consagrado de todos, “Saudade”, soneto tido, sob a visão dos críticos, como “um dos mais belos momentos da poesia de língua portuguesa”. Zodíaco Um verdadeiro cântico de louvor à Natureza, em toda sua beleza e amplitude. Como afirma Osório Borba, “mais parece trechos de música, na sua missão sutilíssima de produzir os diversos ruídos do mundo”. Aqui o poeta amantino presta homenagem à flora, à fauna, às estações do ano e, de forma telúrica, à terra natal. O livro ostenta, como epígrafe, um quarteto de Verhaeren e uma dedicatória – “Ao meu longínquo Piauí – na divina evocação de sua natureza maravilhosa”. Entre os textos, constam dois poemas de defesa ecológica: “A Queimada” e a “A Derrubada”. Verhaeren Na verdade, é apenas um poema lamentando a morte e celebrando, em versos polimétricos, a liberdade e a grandeza da poesia de Émile Verhaeren, simbolista belga falecido num acidente de trem. Texto de caráter elegíaco. Pandora Considerada sua obra mais parnasiana, tanto pelo rigor técnico como pela retomada da cultura greco-latina. Essa ortodoxia dos chamados impassíveis é observada logo em “Canto Espiritual”, poema de abertura do livro: “Ânsia de perfeição! Glória 10 legítima, / Por quem o meu espírito se eleva / Para o infinito, na atração da luz”. Observa- se nos textos, do ponto de vista temático, uma bela combinação entre lirismo e sensualismo, harmonizados pela sensibilidade e o talento do poeta, como ilustra o soneto II do “Canto do Fauno”, na 4ª edição de Poesias Completas, de 2000. Verônica Em seu último livro publicado em vida, de espírito elegíaco e traços simbolistas, Da Costa e Silva lamenta a partida de Alice e expressa o amor que sentia pela esposa morta, sobretudo, na segunda parte da obra – “Imagens do Amor e da Morte”. De acordo com a crítica, a linguagem de Verônica é límpida, concisa e fluida; há menos contemplação realista do que em Zodíaco, ou sonhadora e lembrada do que em Pandora. Alhambra Não chegou a ser lançado como livro autônomo. O que aparece sob esse título, na edição de 1950 de Poesias Completas, são textos publicados pela imprensa entre 1928 e 1933. Para Alberto da Costa e Silva, “melhor seria julgá-los como poemas inacabados”. Em experimentos modernistas, merecem destaque “O carrossel fantasma” e “Refrão do trem noturno”. TEXTO PARA REFLEXÃO A Lição Perene ( Fausto Cunha ) A nova edição das Poesias Completas de Da Costa e Silva (Nova Fronteira, 1985), comemorativa do centenário de nascimento do poeta, nos põe mais uma vez em contato com uma das expressões mais altas da poesia brasileira deste século. Organizado com o maior carinho por seu filho, e também poeta, Alberto da Costa e Silva, esse belo volume sai num momento em que a poesia parece estar recuperando um pouco de seu antigo prestígio entre nós. Há uma sede de boa poesia entre os leitores mais jovens — e os concursos mostram que nunca se escreveu tanta poesia como agora. À parte alguns equívocos inevitáveis, os que têm alguma coisa a dizer já descobriram que sem os instrumentos de uma arte poética o melhor da inspiração, e mesmo do talento, se perderá. Só os ingênuos se permitem acreditar que nada existiu antes deles, e que podem prescindir dos liames imemoriais que fazem de cada poeta o continuador do mesmo e infinito poema. Em poucos poetas brasileiros essa lição é tão nítida e profunda quanto em Da Costa e Silva. Foi ele um dos poucos poetas realmente populares ao longo de várias décadas, presença em toda sorte de publicações e antologias, recitado e imitado. Essa popularidade não pode ser subestimada, porque ele a repartiu com dois outros grandes poetas do mesmo período, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos. O que chama a atenção é que nenhum dos três escrevia na clave do popularesco e do fácil: um deles cultivava uma linguagem difícil, os dois outros primavam pelo requinte formal. E são exatamente esses três que mantêm nosso interesse crítico por todo um grupo de poetas de transição, situados entre as últimas manifestações do parnasianismo e do simbolismo e os primeiros vagidos do modernismo. Recapitulando alguns poemas de Da Costa e Silva que se tornaram mais conhecidos — e que eram literalmente antológicos — , vemos que nenhum deles envelheceu. Pelo contrário. Depois do modernismo, temos o distanciamento e a visão 11 armada para avaliá-los melhor, e penetrar, sem emoções de fundo temático, no que trazem de essencial como poesia pura. Páginas como "Saudade", "A moenda", "Minha terra", "Vale de lágrimas", "Visões da morte", "Rosa Mística", "Rio das Garças", "A balsa", "Natureza sofredora" — e, mais tarde, esse "Adeus à vida", digno de um Antero de Quental — revelam o delicado trabalho de elaboração da obra-prima, a que não faltam lampejos de genialidade. As pequenas alterações que ele introduziu nos versos — e das quais Alberto da Costa e Silva nos dá expressiva relação no final do volume — mostram sua ânsia de perfeição e uma aguçada sensibilidade para com os detalhes mínimos, a exemplo de Alberto de Oliveira, que o antecipa, mas não o supera, no extraordinário domínio técnico do verso. Basta mencionar as sutis modificações em três versos do soneto "Saudade", que o tornaram perfeito: "E, ao vento, as folhas lívidas cantando/ A saudade imortal de um sol de estio", em vez de : E à noite as folhas lívidas cantando/ A saudade infeliz de um sol de estio", e sobretudo "As mortalhas de névoa sobre a serra" em vez de "Ai ! mortalhas de névoa sobre a serra", onde a substituição do lamento interjetivo não só eliminou um ruído anômalo na cadência dos versos como propiciou uma imagem de forte sugestividade. Pode-se observar que muitos dos poemas antologizados de Da Costa e Silva pertencem ao seu primeiro livro, Sangue, de 1908, publicado no Recife; não é, pois, de surpreender que com ele se tenha consagrado nacionalmente. Essa consagração teria bastado. Mas em 1917 o poeta desponta com outro grande livro, Zodíaco. Dois anos depois sai Pandora. Houve outra longa pausa, até Verônica , de 1927. Ainda jovem, Da Costa e Silva está no auge de sua forma. A recepção crítica foi boa, um dos sonetos do livro, "Adeus à vida", incorporou-se àquele grupo de eleição que se aloja, misteriosamente, na memória do público. Penso, no entanto, que somente agora podemos vislumbrar alguns dos aspectos mais significativos de Verônica, e que apontam para a sua excepcionalidade. Em Pandora, a epígrafe de Rubén Darío — um poeta de larga ressonância no Brasil — já fazia supor que se estabelecera o contato entre Da Costa e Silva e o modernismo espanhol (o qual, não custa advertir, nada tem a ver com o nosso, bastante posterior). Em Verônica se revela a síntese formal, o pensamento criador adquire a sua plena maturidade. O poetadesde muito que havia aprendido o verso livre de Verhaeren e Maeterlinck. Darío foi a chama que incendiou e renovou a poesia espanhola. O que em Verônica nos chama hoje particularmente a atenção, além do impressionante domínio formal, e talvez mais do que este, são alguns pequenos poemas que nos lembram de imediato (e daí a referência a Darío) a maneira de Juan Ramón Jiménez. "Subia a lua, leve", "Vivo como um sonâmbulo", "Na tarde azul e triste", "Sou como um rio misterioso", "A última ilusão", "A escada de sonho", são pequeninas obras-primas, como aquelas distribuídas com aparente negligência (mas obtidas à custa de angustiada procura) pelo poeta de Eternidades. Exemplar dessa rara maestria é "A escada de sonho", com seu jogo de assonâncias que parecem fluir com naturalidade. As peças recolhidas em Alhambra comprovam que Da Costa e Silva estava pronto para o "salto modernista", numa linha semelhante à de Felipe d'Oliveira, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, algo até de Mário de Andrade. Numa antologia do nosso modernismo, ele já tem o seu lugar com "O Refrão do trem noturno" e o "Carrossel fantasma". A página sonora e luminosa que é "O despertar no Amazonas", de 1928, espelha mais uma vez a paixão telúrica que está no sangue de toda a poesia de Da Costa e Silva. Importa notar aqui, mais que a facilidade com que o poeta transitava entre uma e outra estética, sua admirável sensibilidade à forma como o poema devia revestir-se. Sua inexaurível riqueza formal pode ofuscar-nos, mas não impedir-nos de descer mais fundo. Eis que o grande poeta é o nosso guia, ou captando e transfigurando a paisagem, ou pulsando a angústia 12 secreta e o frêmito lírico da sofredora alma humana. Se é, e por que é um poeta perene, a razão está aí. POEMAS SELECIONADOS Texto 1: A moenda Na remansosa paz da rústica fazenda, À luz quente do sol e à fria luz do luar, Vive, como a expiar uma culpa tremenda, O engenho de madeira a gemer e a chorar. Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda; E, ringindo e rangendo, a cana a triturar, Parece que tem alma, adivinha e desvenda A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar... Movida pelos bois tardos e sonolentos, Geme, como a exprimir, em doridos lamentos, Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor. Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda arrependida! – Álcool! Para esquecer os tormentos da vida E cavar, sabe Deus, um tormento maior! (Da Costa e Silva. In: Zodíaco) Texto 2: Rio das garças Na verde catedral da floresta, num coro Triste de cantochão, pelas naves da mata, Desce um rio a chorar o seu perpétuo choro... E o amplo e fluido lençol das lágrimas desata... Caudaloso a rolar, desde o seu nascedouro, Num rumor de orações no silêncio da oblata, Ao sol – lembra um rocal todo irisado de ouro, Ao luar – rendas de luz com vidrilhos de prata. Alvas garças a piar, arrepiadas de frio, Seguem de absorto olhar a vítrea correnteza. Pendem ramos em flor sobre o espelho do rio... É o Parnaíba, assim carpindo as suas mágoas, – Rio da minha terra, ungido de tristeza, refletindo o meu ser à flor móvel das águas. 13 (Da Costa e Silva. In: Sangue) Texto 3: O ÚNICO BEM Lutei, sonhei, sofri, desde criança, Nesta inquietude, nesta vã tortura De quem jamais consegue o que procura E, se consegue, perde quanto alcança. Já nem me resta ao menos a esperança, Para a ilusão da glória e da ventura; Nem a fé, ante a dúvida, perdura, Desde que o amor, num túmulo descansa. Tanto alcancei, quanto perdi, de sorte Que, em suprema renúncia, a alma vencida Não devera aspirar senão à morte. Mas, como a sorte me foi tão funesta, Aprendi muito mais a amar a vida, Porque é o único bem que ainda me resta. (Da Costa e Silva. In: Verônica) Texto 4: Saudade Saudade! Olhar de minha mãe rezando, E o pranto lento deslizando em fio... Saudade! Amor da minha terra... O rio Cantigas de águas claras soluçando. Noites de junho... O caburé com frio, Ao luar, sobre o arvoredo... piando, piando... E, ao vento, as folhas lívidas cantando A saudade mortal de um sol de estio. Saudade! Asa de dor do pensamento! Gemidos vãos de canaviais ao vento... As mortalhas de névoa sobre a serra. Saudade! O Parnaíba – velho monge As barbas brancas alongando... E, ao longe, O mugido dos bois da minha terra... 14 (Da Costa e Silva. In: Sangue) Texto 5: REFRÃO DO TREM NOTURNO Corre o trem dentro do túnel estrelado da noite tonto de velocidade ávido de espaço a arrastar uma rua ruidosa de carros e lá vai acelerando mais e mais as rodas rápidas da máquina que marcha — Muita força pouca terra muita força pouca terra Andam, resfolegam, sopram, bufam os cavalos-vapor a galopar invisíveis nitrindo aflitos silva a locomotiva a pupila alucinada reverberando na treva — compasso de relâmpago tomando a distância perdida na noite — Muita força pouca terra muita força pouca terra Em disparada o comboio foge trepidando ao vaivém dos vagões entrechocados na carreira como elefantes perseguidos no deserto É um pesadelo sob o silêncio o trem que passa o trem que desfila como um sonho rumoroso o trem que leva oscilando na perspectiva fugidia montes o trem que se lança no espaço como a vida no tempo — Muita força pouca terra muita força pouca terra (Da Costa e Silva. In: Alhambra) Texto 6: Amarante A minha terra é um céu, se há céu sobre a terra: 15 É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando, Que eterno sonho azul parece estar sonhando Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra... Que encanto natural o seu aspecto encerra! Junto à paisagem verde, a igreja branca, o bando Das casas, que se vão, pouco a pouco, apagando Com o nevoento perfil nostálgico da serra... Com seu povo feliz, que ri das próprias mágoas, Entre os três rios, lembra uma ilha, alegra e linda, A cidade sorrindo aos ósculos das águas. Terra para se amar com o grande amor que eu tenho! Terra onde tive o berço e de onde espero ainda Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho! (Da Costa e Silva. In: Zodíaco) TEXTO COMPLEMENTAR AUTOBIOGRAFIA PÓSTUMA "Eu sou tal Parnaíba: existe Dentro em meu ser uma tristeza inata” ”No dia em que nasci, fadou-me Apolo / a uma vida de júbilos e penas". Foi em 23 de novembro de 1885. Amarante, uma cidade "debruçada sobre as águas / lentas e sonolentas do Parnaíba", acolheu-me em seu solo. “Fui o mais feliz dos meninos do meu tempo”. Tive uma "infância ruidosa". Passei- a em contato com a natureza, "entre os rios, as árvores e a serra”. Na ponte sobre o riacho Mulato, um "manso riacho”, brinquei quando menino, "curvado sobre a gruta, a ouvir a fonte...” Pelos lajedos do morro, corri muito. Tudo isso viria, mais tarde, marcar profundamente a minha poesia. “Quando nasci, o Destino / fez-me poeta, ainda no berço". "Fui pelas musas embalado ao colo". Os meus primeiros versos foram publicados na Revista do Grêmio Amarantino, por volta de 1901. Mas não só me interessei pela poesia, dediquei- me também à escultura em madeira, fazia imagens: "já tinha o dom divino de um criador de imagens". " Saudade! Amor da minha terra...” " Saudade! Olhar de minha mãe” 16 Muito cedo tive que deixar a minha terra natal, porém jamais se apagou da minha memória o seu "encanto natural". ”A paisagem verde, a igreja branca, o bando / das casas", "o povo feliz que ri das próprias mágoas” são imagens que sempre acompanharam os meus passos. "Vejo e sinto, / quais se fossem imagens verdadeiras,/ tudo sem mesmo ver, num vago instinto...” Em Teresina, onde concluí os preparatórios, colaborei para alguns jornais. Neles se encontram alguns poemas que mais tarde seriam incluídos em Sangue, livro que publiquei em Recife, em dezembro de 1908. 1906 marca o meu ingresso na Faculdade de Direito, em Pernambuco.Dessa época é o meu soneto "Saudade”. Saudade da minha terra. Saudade de minha mãe, de quem nunca consegui desvencilhar-me por completo. Presença marcante em minha vida e em meu mundo poético, dela guardo uma "imagem de piedade", "velando pelo meu destino" e rogando "por mim, piedosa e triste,/ em lágrimas de afeto e de bondade". “Corpo humano de espírito celeste,/ ” ela "surge ante mim”, "em horas de incerteza, de amargura’, com suas bênçãos de amor e preces de conforto”. “Em sua imagem vemos / os transportes sublimes e supremos / do Amor, que se transmite, mas não finda”. “Lutei, sonhei, sofri” "E contigo, serei tudo que sonhei ser,/ redivivo e imortal no esplendor do teu ser!” Sim, mais tarde, o meu filho, Alberto, realizaria o sonho que eu não atingi - ser diplomata. Dizem que ”o estranho aspecto, feio e rude / desta figura hostil de homem selvagem" tirou- me a oportunidade de concretizar este ideal. Mas "a natureza, que os seus dons reparte/, porque feio me fez, deu-me a vertigem / de lutar e vencer em toda parte”. Trabalhei no Ministério da Fazenda. Como funcionário da Delegacia Fiscal estive em vários Estados: Minas, Rio de Janeiro, São Paulo , Rio Grande do Sul, Amazonas e Maranhão. Em 1910 cheguei a Belo Horizonte. Nos cafés, tão famosos na época, reunia-me com os literatos. Cheguei a liderar um grupo de jovens acadêmicos. Fundei uma folha humorística Zaz-traz, que teve grande repercussão no meio literário, e colaborei para o Diário de Minas e para as revistas: A Vida Mineira, Vida de Minas, Vita e Tank. Dias de Glória, de Ventura! "Nunca julgara, nem jamais previra / o transe cruel” que me torturaria alguns anos mais tarde. Perdi a minha Alice, ”meu amor, minha vida, minha glória", com quem me casei em 1914. ”Tive-a a encarnar minha felicidade,/ quis detê-la, mas não pude". ”Foi tamanha a minha desventura", que cheguei a exclamar: "Por que me trouxe aqui o meu destino? / Por que de tão longe vim me prender por encarto / a Essa a quem tanto quis, a Essa que me quis tanto, / que, unidos pela fé, vivemos para o amor?"A desolação inspirou-me os poemas de Verônica, ”imagens da vida e do sonho; imagens do amor e da morte". Três foram os filhos domeu primeiro casamento: "Márcio, flor do meu ser, fruto do meu amor"; Mário,que herdou o encanto de Alice, "para mais me enlevar, para mais me prender"e Benedito que, ao nascer, "foi logo enfaixado de luto” - A mãe morreu porque"lhe deu o ser". Em 1921 fui para São Luís, onde permaneci até setembro de 1926, quando segui para o Rio de Janeiro. Como Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, no Amazonas e no Acre, parti para Manaus em 1927. E lá o "meu coração desperta". "Dentro em meu ser, num frêmito de aleluia", ecoa "o canto dionisíaco do meu sangue: ama de novo! ama de novo!" Casei-me outra vez em 1928. Creusa foi minha segunda mulher. Em Julho de 1929 nasce Alice, "o meu maior enlevo", em quem vi "minha mãe em miniatura”. 17 Para Porto Alegre segui em setembro de 1929. Lá convivi com vários escritores, chegando a dirigir, juntamente com Alberto de Andrade Queiroz, o suplemento literário do Diário de Notícias. Estive em São Paulo, onde fui incompreendido, insultado, hostilizado, por querer moralizar os serviços fiscais. A minha alma de poeta não poderia suportar as injustiças, comecei a desmoronar. O meu filho Alberto, que nasceu em 1931, foi o "meu lírio entre espinhos". “Alheado do mundo e de mim mesmo" Em 1932 nasce a minha caçula, Elisabeth. Nessa época submeti-me a uma intervenção cirúrgica. O que me veio depois? Somente depressão, neurastenia, tristeza e uma grande necessidade de isolar-me, de mergulhar-me em mim mesmo. " Eu já não escrevo, já não faço versos. Morreu em mim o sabiá que cantava... ” Foi o que declarei, em 1940, a uns rapazes piauienses que me entrevistaram em Fortaleza, onde vivia mergulhado em profundo silêncio. Realmente deixara de escrever. Um dos meus últimos poemas – O carrossel Fantasma - revela o meu vínculo à terra natal, de quem sempre estive perto, embora distante. “Adeus à Vida " “A morte não me assombra, nem me assusta“. “O que perturba e intimida / o meu espírito forte / não é a certeza da morte, mas a incerteza da vida”. "E aonde vou? " " Aonde vou? ” “Morte! Vida a buscar liberdade'."No dia 29 de junho de 1950 um enfarte, levou- me a "atingir a perfeição que eu auguro / em resignado e místico transporte” e a "levantar os olhos / para o que exista em luz além do espaço”. “Passa a vida ? Continua... Com o tempo quem passa é a gente ”. Da Costa e Silva – Antologia e Estudo/seleção de textos, notas, estudos biográficos e histórico e exercícios por Fabiano de Cristo Rios Nogueira, Maria Gomes Figueiredo Reis, Maria do Socorro Rios Magalhães, Maria do Perpétuo Socorro Neiva Nunes do Rego – Teresina: Centro de Ciências, Humanas e Letras / Departamento de Letras – PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO, UFPI,1985. O. G. REGO DE CARVALHO 18 “O autor não pode ter piedade de si mesmo, tem que se expor a nu, nem que seja para o ridículo, mas tem que se expor. E isto é o que falta fundamentalmente na maioria dos escritores piauienses. É exatamente essa sinceridade absoluta de escrever como se estivesse rasgando o coração. Eu não estou querendo falar com isso em obras piegas, pelo amor de Deus. Vocês não vão encontrar o pieguismo em minha obra, nem sentimentalismo também.” (Como e por que me fiz escritor / O. G. Rego de Carvalho) O AUTOR Orlando Geraldo Rego de Carvalho nasceu em Oeiras, antiga capital do Piauí, no dia 25 de janeiro de 1930. Desde cedo, tomou gosto pelas letras, mas foi em 1942, ao ler O Guarani, romance de José de Alencar, que decidiu ser escritor. Foi professor de literatura no colégio Estadual Zacarias de Góis, bacharelou-se em direito pela antiga Faculdade de Direito do Piauí, funcionário graduado do Banco do Brasil e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). O sonho na meninice era ser compositor, e não escritor. Ter uma mãe musicista, professora de vários instrumentos (piano, bandolim, violão e harmônica), o influenciava nessa preferência inicial. Aos 10 anos, teve sua primeira manifestação escrita, um trabalho escolar sobre o descobrimento da América e, para sua grata surpresa, publicado no jornal Fanal, que significa farol. O conto “Um filho” marca sua estreia literária em 1949, quando tinha apenas 19 anos. Depois de umas 30 recusas, o autor oeirense finalmente tem um texto publicado numa revista de circulação nacional. Em Teresina, fez parte do Grupo Meridiano, ao lado de dois grandes nomes de nossa cultura: H. Dobal (poesia) e Manoel Paulo Nunes (crítica). Através de suas obras e do Caderno de Letras Meridiano, eles provocaram mudanças significativas na literatura brasileira de expressão local. Encantou-se em Teresina aos 83 anos, no dia 9 novembro de 2013, deixando esposa (Divaneide Carvalho) e filho (Orlando Victor). A OBRA Autor de uma obra relativamente pequena, mas que o coloca ao lado dos grandes nomes da literatura em língua portuguesa. Com apenas três livros publicados, deixa claro que, em termos artísticos, importa mesmo é qualidade estética, e não quantidade. Os críticos piauienses o apontam como o melhor de nossos ficcionistas. Livro Ano Dados 19 Ulisses entre o amor e a morte 1953 Escrito pelo autor dos 19 aos 23 anos. Romance de caráter melancólico. Rio subterrâneo 1967 Escrito a partir do conto “Passeio a Timon”. Narrativa mais psicológica do autor e da qual ele mais gostava. Considerado sua obra-prima. Romance de caráter trágico. Somos todos inocentes 1971 Tributo que o autor presta a Oeiras. Romance de caráter dramático. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Enquadra-se a obra ogerreguiana na mesma linha dos autores que privilegiam o “coser para dentro”, uma literatura centrípeta,que busca analisar e explicar a alma humana, no que esta tem de mais profundo e misterioso. Fugindo aos velhos clichês da produção nordestina, focada em temas regionais, a exemplo da seca e da miséria, O. G. Rego se volta aos eternos dilemas universais, como o amor e a morte, sentimentos indeléveis na vida das pessoas. Quanto à técnica, sua ficção deve ser considerada modernista, pois não só abandona a linearidade narrativa (começo, meio e fim) como deixa o final sempre em aberto, transformando o leitor num coautor da obra. No tocante ao emprego da língua, opta por uma linguagem trabalhada e poética, mesclando termos eruditos com regionais, valorizando, sobretudo, a musicalidade das palavras. TEMAS ABORDADOS Fugindo do tradicional regionalismo nordestino, particularmente do romance de 30, O. G. Rego privilegiou temas universais em suas histórias: amor, morte, solidão, loucura, família, angústia existencial, sexualidade, preconceitos, aborto, frustração amorosa e religiosidade. Outro que mereceu destaque também, até pelo fato das personagens serem jovens, foi o da adolescência. Não à toa ele próprio fazer questão de se apresentar, nas palestras que ministrava, como o “romancista da juventude”. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS Como ninguém se torna um escritor sem ter sido um grande leitor, O. G. Rego não poderia ser diferente. E acabou bebendo em várias fontes, tanto da nossa quanto da literatura estrangeira. Entre os autores nacionais, recebeu influências de dois ficcionistas extraordinários: José de Alencar, cearense e mentor do romance impressionista; e Machado de Assis, carioca e criador do romance psicológico. 20 “O que tenho procurado fazer na minha história é fundir Alencar e Machado – O Romantismo de Alencar, sua linguagem poética, com o Realismo e o estilo um tanto sóbrio de Machado.” (Como e por que me fiz escritor / O. G. Rego de Carvalho) De fora do Brasil, foi Gustave Flaubert, escritor francês, a grande paixão literária, a ponto de ter lido toda sua obra. No caso de A educação sentimental, inclusive, leu repetida vezes. “O único autor de quem li quatro livros, li todos os livros que escreveu, foi Gustave Flaubert – Madame Bovary, Salambô, Tentação de Santo Antão e Educação Sentimental. A nenhum outro autor dei esse privilégio de ler a obra inteira, pois costumo ler apenas as obras fundamentais, aquelas que o passado peneira e diz: ‘Esta fica’.” (Como e por que me fiz escritor/ O. G. Rego de Carvalho) COMENTÁRIO DOS LIVROS Ulisses entre o amor e a morte Narrativa feita em 1ª pessoa por Ulisses, protagonista da história, que tem sua vida marcada tanto pela morte do pai quanto pela descoberta do amor em Conceição. No primeiro caso, ele a descreve de maneira sucinta e poética, tornando-se uma das mais belas metáforas de morte já escrita na literatura universal: “Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando. E puro, e distante, e feliz, encarou o céu e o tempo.” No segundo, o amor surge de repente, quando Ulisses vem morar com a família na capital, sentimento que o leva a sentir “dores” à noite. A história se desenrola em Oeiras e Teresina, mostrando Ulisses entre os oito e 15 anos de idade – da meninice à adolescência. O final acaba em aberto, sem o leitor saber o que será do futuro desse jovem após o fim do namoro com Conceição. Além do par romântico, outros personagens que aparecem na trama são: pai, mãe, José, Anália – a família de Ulisses; Norberto e Arnaldo, primo e amigo de Ulisses, respectivamente. Em estado de graça após a leitura, Cecília Meireles, grande poeta de nosso modernismo, assim se manifestou a respeito do livro: “Ulisses deixou-me uma sensação de poesia misteriosa e comovente”. 21 Rio Subterrâneo Romance mais importante não só de O. G. Rego de Carvalho, segundo os críticos, mas de toda a literatura piauiense. Livro de um escritor maduro e consequente, que cria um mundo misterioso habitado por criaturas dilaceradas pelos sentimentos de solidão, medo, loucura, angústia, desespero e neurose. Narrativa introspectiva de 3ª pessoa que, alterando a ordem cronológica dos fatos, mergulha no mundo inconsciente e sofrido de Lucínio, Joana, Helena, Afonsina, Benoni e Neusa. História ambientada em Timon, Teresina e Oeiras. Sobre a obra, Carlos Drummond de Andrade, nome maior da poesia nacional, teceu o seguinte elogio: “De Rio Subterrâneo tirei forte sensação de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhada com aguda consciência artística. É desses livros que a gente não esquece.” Somos todos inocentes Sua obra mais convencional no tocante aos aspectos temático e técnico. As velhas brigas entre duas grandes famílias de Oeiras (Ribeiros versus Barbosas) relatadas dentro de uma linearidade narrativa. No meio desse fogo cruzado, a frustrada história de amor entre Raul e Dulce, proibidos de serem felizes por causa da disputa política dos pais. Tributo que O. G. Rego de Carvalho paga à terra natal, primeira capital do Piauí, de onde o autor saiu ainda menino. A história se passa na Oeiras de 1929, de ares provincianos e horizontes limitados, com sobrados e primeiros carros simbolizando as famílias ricas. O livro foi agraciado com o Prêmio Coelho Neto, em 1972, pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Além dos personagens citados, destacam-se também Amparinho e Pedrina, esta última abortando um filho de Raul. TEXTO PARA REFLEXÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora tenham sido escritos em situações diferenciadas, esses três textos ficcionais possuem vários elementos em comum que, de modo particular, ajudam igualmente a tecer um panorama dos principais dilemas enfrentados pelo autor naquela época, sobretudo com relação ao tipo de experiência intelectual que pretendia realizar, além de demonstrarem uma insistente preocupação do autor com as cidades piauienses onde viveu, Oeiras e Teresina, escolhidas por ele enquanto pretexto para falar das experiências e vivencias de seus personagens. Em uma entrevista concedida a Pompílio Santos (KRUEL, 2007), O. G. Rego de Carvalho ressalta que tanto Ulisses entre o amor e a morte como Somos todos inocentes e RioSubterrâneo, constituem sua “autobiografia espiritual”, ou seja, “refletem” seus sentimentos e ideias de quando os escreveu. Em todos eles, afirma o literato, “paira uma sombra de melancolia, em grau maior ou menor” (CARVALHO, 2003, p. 315). Mas essa sombra melancólica não apontaria apenas em 22 direção a um estado patológico. Conforme ressaltou o próprio escritor, ela diz respeito a uma condição espiritual, uma angústia em relação ao tempo, a uma dada época, na qual não se depositam mais esperanças, enfim, à condição humana de um individuo dividido entre o passado e o futuro6 . Aquilo que O. G. Rego classifica como uma “sombra melancólica”, ao longo das suas narrativas ficcionais constitui a configuração de um olhar alegórico por meio do qual o escritor pensa o seu mundo, utilizando como principal argamassa desse pensamento o seu próprio fazer literário. Esse olhar se traduz numa mistura de “luto e jogo”, na tentativa de desvelar a dialética imanente de um período dividido “entre nostalgias de certezas desaparecidas e a leveza trágica do herói nietzschiano” (GAGNEBIN, 1999, p.38), que teria de enfrentar a dura missão de ser, a um só e mesmo tempo, destrutivamente criativo e criativamente destrutivo (HARVEY, 1992). (ENTRE FRAGMENTOS E RUÍNAS: O. G. Rego de Carvalho e os dilemas intelectuais de uma geração / José Maria Vieira de Andrade / InterEspaço – Revista de Geografia e Interdisciplinaridade) TEXTOS SELECIONADOS Texto 1 AMAVA-A SIM Não demorou muito, notei que o tempo havia serenado: a chuva se foralogo, mas já não me atraía a praça: esta perdera toda a poesia – Conceição. Ao voltar para a casa, indaguei de mim, enquanto metia o pé, insensivelmente, numa poça d’água, por que resistia à sedução essa garota. Que havia nela de extraordinário, além da beleza? Nada descobrindo, cheguei à conclusão de que amava e tudo so era passageiro. Depois, estando prestes a dormir, tornei a pensar em Conceição. Vi-a agora sorrindo, tão recatada, tão doce! Seus menores gestos me passavam pela mente, levando-me a uma ansiedade nunca sentida. Até altas horas fiquei desperto, e apenas consegui adormecer quando, desistindo de enganar meu próprio coração, disse-lhe baixinho: - Amo-a sim, meu velho. E repeti diversas vezes que a amava com loucura. CARVALHO, O. G. Rego de.Ulisses entre o amor e a morte, 13ª ed., 2003, pág. 95 Texto 2 O táxi livrou-se de um engarrafamento e veio por uma rua sombreada de oitizeiros Adiante o Parnaíba - uma torrente obscura, agitada ao depor do sol. Ela mal percebeu Timon, devido à névoa que caía, empalidecendo o arvoredo do bosque e as luzes do porto. Embaixo, o vulto do trem na ponte. - Chegamos; só nos resta a travessia - gritou Lucínio, em luta com a tosse. Eis o rio de minha angústia. Parece que fala, dentro dos remansos: “Ser bem-vinda. É doce a morte”. 23 Helena empalideceu e abaixou a vista. "Não convém que me iluda. Sinto-me desfalecer agora". E recusou a mão que o primo lhe oferecia, para ajudá-la a desce. O vento fazia ondas por toda a parte, agitando o bote levemente. Ela hesitou a princípio, entrando nervosa, pelo braço do vareiro. - Ande, que está chovendo. O mestre encaminhou o barco rio acima, até que adiante largou o remo e se dirigiu ao motor. Pingos a engrossar, nuvens a todo céu. Mas ainda dava tempo para a travessia, e para chegarem à quinta em sossego. Sentados no banco da popa, juntos do saco e do baú. Lucínio e Helena miravam a vastidão das águas, confusa dentro da neblina. Iam silenciosos: ele, a evocar a insônia da noite precedente, cheia de mistério e duvida, ela absorta na contemplação das espumas, como se visse os buraquinhos de Joana na parede - uma corrente secreta, viscosa, assim um rio subterrâneo: álgido escuro e aterrador. CARVALHO, O. G. Rego de. Rio Subterrâneo, 1967 Texto 3 Entre as ruínas da cadeia, Dulce lembrava-se da manhã em que, protegida pelas rótulas da janela, entrevira a chegada de Raul. Seu porte baixo, porém garboso, era inconfundível. Quem não o conhecesse, logo imaginaria, ser descendente do velho Joaquim Ribeiro, tal a semelhança física. Como o avô, não dispensava o chapéu de palhinha, nos dias de muito sol. Viera num sedã azul, que ele próprio guiava, antes de transpor a ponte, já os meninos corriam à sua frente, cheios de alegria. À porta, velhas e mocinhas acenavam- lhe a sorrir. Com exceção de alguns rapazes, que se distraíam no jogo de damas, todos se esforçavam para ver o automóvel e o chofer. Raul, um pouco envaidecido, andara sem pressa, buzinando nas esquinas, nas ruas estreitas por onde os burricos carregavam lenha e até mesmo na Praça da Vitória, onde sobressaía o Sobrado. O prazer, sendo inédito, não tinha limites, e a cada instante exibia as luvas, ao saudar os parentes e amigos. Dulce não pudera vê-lo bem, e continuava em seu posto quando a mãe entrou no quarto. - Não tem vergonha, menina? Ela corara e não conseguira responder. D. Odete, percebendo-lhe o vexame, abanara a cabeça em negativa. - Não se iluda, minha filha. Você sabe o que a esperaria, se viesse a apaixonar- se por ele. Dulce olhara-a com resignação, caindo em seus braços. - Mamãe - dissera-lhe, enquanto a apertava com torça - por que não acabam essa história? Os filhos não têm culpa. A senhora afastara-se de leve, fitando-a carinhosamente. Não torne a falar nesse assunto. Eu... Eu nada posso fazer. No passado, quando Raul veio passar férias... - Calara-se de súbito, esmorecida. Ninguém consegue demover seu pai. Depois que ela saíra, Dulce atirara-se à rede, pensando com amargura no próprio destino. A mãe conhecia-lhe o segredo. E agora? O pai não lhe bateria? Não; talvez nem viesse a saber. "Oh, como é triste amar assim. Se ao menos pudéssemos falar- nos." Domingo haveria uma festa no sobrado. Lá estariam as primas de Raul com as colegas, dispostas a conquistá-lo: até Pedrina compareceria. Dulce não se conformava. Era imperioso ir, ainda que tivesse que enfrentar a zanga do pai. 24 À noite, de tanto imaginar cenas em que lhe pedia licença, sem a obter, terminara sentindo a cabeça tonta. Quase de manhã, a brisa dos morros, cheia de perfume silvestre, restituíra-lhe a calma e ela adormecera. Ao despertar com o movimento do pai que seguia para a “Varjota”, ocorrera-lhe uma ideia. “E se eu pedir a ajuda de Amparinho?" CARVALHO, O. G. Rego de.Somos todos inocentes, 5ª ed., revista, 1955 TORQUATO NETO “um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia resplandente cadente fagueira num calor girassol com alegria na geleia geral brasileira que o jornal do brasil anuncia” (GELEIA GERAL / TORQUATO NETO) O AUTOR Torquato Neto nasceu à fórceps no Hospital Getúlio Vargas, em Teresina, no dia nove de novembro de 1944. Era filho de Heli da Rocha Nunes (Promotor Público) e Maria Salomé da Cunha Araújo (Professora primária). Desde cedo gostou de ler e escrever. O primeiro rascunho poético, com temática voltada para o universo familiar, foi produzido aos nove anos: “o meu nome é Torquato / o de meu pai é Heli / o da minha mãe Salomé / o resto ainda vem por aí”. Seu itinerário escolar começa em Teresina, onde fez o primário e o ginásio; passa por Salvador, cidade na qual fez o antigo científico e conheceu os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil; e deságua no Rio de Janeiro a fim de cursar Jornalismo e Filosofia, iniciando mas não concluindo nenhum. Torquato queria ser mesmo era diplomata, mas, infelizmente, não realizou tal sonho. A passagem por Londres ocorreu para fugir do sufoco que era o Brasil na época da ditadura militar. Projetou-se em nível nacional por ter sido um dos principais teóricos da Tropicália, movimento artístico que revolucionou a arte brasileira no final da década de 60. "Geleia Geral”, composição de sua autoria, tida como manifesto-síntese desse movimento. Além de poeta, Torquato foi também jornalista, cineasta, ator e letrista, tendo várias composições suas musicadas e interpretadas por grandes nomes da nossa MPB. No Rio de Janeiro, Torquato Neto se casou com Ana Duarte, com quem teve um único filho – Thiago Silva de Araújo Nunes, que adulto, ao invés da carreira artística, preferiu ser piloto de avião em companhia aérea privada. Um dos padrinhos de casamento foi o cantor Gilberto Gil. A exemplo de tantos outros artistas geniais e talentosos, tanto dentro como fora do Brasil, Torquato Pereira de Araújo, neto, se encantou ainda muito jovem, aos 28 anos, ao ligar o gás no banheiro e morrer asfixiado, no Rio de Janeiro. A data fatídica era 10 de novembro de 1972, depois de ter passado a noite anterior, junto com alguns amigos, comemorando o seu aniversário.Nosso “Anjo Torto”, como ficou conhecido no meio cultural, foi enterrado no cemitério São José, em Teresina. Antes do desfecho trágico, ele escreveu um bilhete de amor e despedida. “FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e 25 enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acreditoem amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar.” Seus escritos só vieram à tona postumamente, com a publicação de três livros: Os Últimos Dias de Paupéria, O Fato e a Coisa e Juvenílias. Sem falar também da revista cultural Navilouca, lançada em 1973, da qual foi um dos idealizadores. A OBRA Destacou-se Torquato Neto como um artista multifacetado, atuando em várias frentes simultaneamente, desde a escrita de poesia à produção de filme. Ele deixou uma obra relativamente pequena, mas importante do ponto de vista estético, que influência a cultura nacional até hoje. Em termos literários, não publicou nenhum livro em vida, tendo vindo à tona postumamente três volumes: “Os Últimos Dias de Paupéria”, lançado em 1973 e organizado pelo amigo Waly Salomon e a viúva Ana Duarte; “O Fato e a Coisa” e “Juvelílias”, ambos de 2012, organizados pelo primo George Mendes e o amigo Durvalino Couto. No que diz respeito à cinematografia, nosso “Anjo Torto” optou pelos filmes marginais, chamados também de “undergrounds”, produzidos com poucos recursos e de forma independente, nos quais ele atuava como ator e diretor. Passados tantos anos, esses filmes, produzidos em bitola Super-8, são tidos hoje como “cults”. Foi como letrista, e dos bons, que Torquato se projetou nacionalmente, embora não cantasse nem tocasse instrumento algum. No fundo, foi um poeta da palavra escrita que se converteu à palavra falada. Ele teve suas letras musicadas e cantadas por grandes artistas da nossa Música Popular Brasileira: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu Lobo, Elis Regina, Jards Macalé, Luís Melodia, Carlos Pinto e a banda de rock Titãs (Sérgio Brito). Livros Os Últimos Dias de Paupéria (1973) O Fato e a Coisa (2012) Juvenílias (2012) Filmes O Terror da Vermelha ou o Forasteiro daCidade Verde Só matando Adão e Eva do Paraíso ao Consumo Nosferatu no Brasil Principais Composições Geleia Geral Lua Nova Louvação Pra Dizer Adeus Mamãe, Coragem Go back Let’s Play that Deus vos Salve a Casa Santa 26 A Rua Zabelê Veleiro Marginália II CARACTERÍSTICAS DA OBRA Quanto aos principais traços de sua produção, Torquato Neto deixou uma obra marcada pelo sentimento de liberdade e compromissada com o ideário da contracultura. Daí ter sido batizado como o “poeta da ruptura” pelos críticos. No aspecto formal, destacam-se: - 1. fragmentação do discurso; 2. linguagem sintética, apoiada em elipses e subentendidos; 3. Sintaxe descontínua, utilizando-se de técnicas de corte, como no cinema; 4. elaboração de metáfora; 5. uso reiterado de antíteses; 6. uso de gradação; No aspecto do estilo e da temática, sobressaem: - 1. estilo em forma de colagem, onde são confrontados os elementos mais díspares; 2. atitudes de carnavalização diante da vida e da arte: redescoberta do efeito parodístico e do teatro de Oswald de Andrade. TEMAS ABORDADOS Embora tenha deixado uma obra fragmentada, que veio à tona postumamente, é possível observar alguns temas muito recorrentes em seus textos, com destaque para a morte e os conflitos existenciais. Além desses, aparecem ainda o apego à terra natal, questões políticas e sociais, a solidão na cidade grande, infância, a procura constante pela fé e o lirismo amoroso. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS As influências recebidas foram muitas e variadas, até pelo fato de ter sido, ao longo da vida, um leitor contumaz, daqueles de andar sempre com livro debaixo do braço. Há quem afirme que ao completar 14 anos pediu de presente para o pai as obras completas de Machado de Assis, melhor ficcionista da literatura nacional. Entre os brasileiros, teve preferência inicial por Castro Alves, Gonçalves Dias e Sousândrade, poetas românticos, trocando-os depois pela leitura dos modernos Carlos Drummond, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, João Cabral, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rubem Braga, Décio Pignatari e os irmãos Campos (Augusto e Haroldo). Da literatura estrangeira, sorveu as lições de Ezra Pound, Andre Gide, Rainer Maria Rilke e Maiakovski COMENTÁRIO DOS LIVROS Os Últimos Dias de Paupéria A primeira edição do livro foi lançada em 1973, no ano seguinte à morte de Torquato Neto, por iniciativa de Waly Salomon (amigo baiano) e Ana Duarte (viúva do poeta), reunindo o conjunto de seus escritos: alguns poemas, letras de música, o diário do sanatório de Engenho de Dentro, cartas, estudos, 27 frases soltas, pensamentos, roteiros de filme e, sobretudo, os textos da coluna Geleia Geral publicados no Última Hora, jornal carioca. O Fato e a Coisa Embora tenha sido o único livro concebido em vida por Torquato, ele só foi publicado 40 anos após a morte do poeta, em 2012, uma iniciativa que partiu do primo George Mendes e do amigo Durvalino Couto. O volume reúne textos escritos entre 1962 e 1964, trazendo poemas de inegável beleza que prenunciavam o talentoso letrista que viria a se tornar no futuro. Juvenílias Também lançado em 2012, o livro reúne poemas esparsos que Torquato deixou datilografados e organizados em pasta. Esse espólio inédito foi enviado a George Mendes, curador de sua obra, pela viúva do poeta, a artista gráfica Ana Duarte. “Qualquer rabisco de um grande artista é documento que informa, se não pela estética, ao menos pelo lado histórico”, explica o primo. TEXTO PARA REFLEXÃO Os últimos dias de um romântico Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato Neto perfez o fadário de todo vampiro que se preza, percorrendo a sina dos “não mortos”. COROAS PARA TORQUATO um dia as fórmulas fracassam a atração dos corpos cessou as almas não combinam esferas se rebelam contra a lei da superfícies quadrados se abrem dos eixos sai a perfeição das coisas feitas nas coxas abaixo o senso das proporções pertenço ao número dos que viveram uma época excessiva Paulo Leminski Torquato Neto é, talvez, o único mito poético dessa geração que aí está, “mito”, aqui, no sentido originário de figura-síntese de uma idéia com força e valor coletivos. Arquétipo. Modelo. Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá- la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros da nossa gente: o mito do poeta morto jovem. Esse mito, de extração romântica, tem uma linhagem que começa no Werther de Goeth, passa por Musset, Nerval, entre nós, por Álvares de Azevedo, Casimiro deAbreu, 28 Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, os “prematuros desaparecidos”, em contraposição às prósperas longevidades de um Drummond, por exemplo. Esse mito, certamente, é um pálido reflexo do mais profundo mito do mundo mediterrâneo e, por extensão, do ocidente: o de um deus jovem, que dá a vida pelos que nela crêem: Adônia, Osíris, Jesus. Essa ideia para um chinês, um japonês, um oriental, um budista, é perfeitamente absurda. “Credo quia absurdum”. Nós todos acreditamos em Torquato. Afinal, a autoimolação não é gesto ao alcance de qualquer um. A vida de Torquato Neto não interessa. Não interessa a vida de ninguém. Eu não aceito esse ponto de vista. Acho até que, em certos poetas, o desenho da vida pode ser um poema. Não se escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude, o comportamento, sartreanamente, com as escolhas globais. Tem poetas nos quais importa, também, a peripécia contextual que cerca seu fazer e seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro. O que se sabe de Torquato: um poeta de província (Piauí? Goiás? Santa Catarina?), um dos letristas da Tropicália, suicidou-se, parece. Pouco se sabe de Torquato. Felizmente. Mito que se preza não tem biografia. As biografias têm a irritante mania de reconduzir os mitos das suas rarefeitas altitudes para as platitudes da humana condição. Vai ver,no fundo, Torquato era pessoa como qualquer um de nós, esse Qualquer Um de Nós que pena atrás da grana, engole cara feia de patrão e exulta, como os escravos, no dia da distribuição dos pães; Conhece “aquela pessoa”. Deixa traços de sua passagem. E passa. Ainda brilha o dia tropicalista, que raiou na poesia brasileira, nos idos de 68. Foi a época em que nós todos começamos a nos tratar de loucos. Até ali, loucura era insulto. Nós desfraldamos a loucura como o fervor de quem empunha uma bandeira. Freudianos, a loucura foi igual para todos. Mais alguns foram mais loucos que os outros. Não há democracia no reino da loucura. Torquato foi um príncipe da loucura, um Ludwig da Baviera no Posto Seis. E lá estava Torquato nos alvores do dia tropicáustico, tropicalmo, as mãos cheias de versos, frases claras, frases raras, armas, araras. Torquato marca uma mudança radical, um salto qualitativo, na história disso que se chama, na falta de termo melhor, poesia brasileira. Poesia que, hoje, não apenas se lê nos livros, mas se escuta nas canções, nos discos, nos rádios, na TV, na vida, enfim. Torquato tem muito que ver com isso. O sequestro da poesia pela literatura foi longo como o seqüestro dos diplomatas norte-amercianos pelos iranianos do Aiatolá Khomeini. No Brasil, foi o tropicalismo quem a libertou. Com esse des-movimento (que cuidou do próprio enterro, encenado na TV, pelas suas principais estrelas), irrompem na cena brasileira, como é de conhecimento de todos os leitores do “Folhetim”, poetas de primeiríssima ordem, se expressando, não em livros mas em discos. Bota Chico Buarque nisso. Absolutamente, Caetano, e seus companheiros, Gil, a seguir, Capinan, Tom Zé, o que a gente tem vontade de acrescentar, tudo de melhor que, em letra veio algo depois: Galvão, dos Novos Baianos, Waly Sailormoon, Duda Machado, todos letristas do período imediatamente pós-tropicália. Porque, com Torquato, começa a existir essa estranha estirpe de poetas: os letristas. Patrulhas dos mandarins das Belas Letras gostariam de lhes negar até o prestigioso título de poetas. E relegar a poesia da letra de música ao sub-solo da subliteratura. 29 A poesia da letra de música seria fácil, carregada de redundância e banalidade, laborando sobre sentimentos elementares, girando em torno de meia dúzia de situações prototípicas: boy meets girl, que bom, ela me ama, azar, ela não me ama mais, como era bom quando ela me amava, quem me dera uma paisagem assim e assado para transar com meu amor, as venturas e desventuras daquele amor romântico, inventado pelos trovadores provençais, os antepassados diante dos músicos-poetas do mundo pop. Só que a arte desses trovadores provençais (Arnaut Daniel, por exemplo) em nível de palavra é de teor tal, que coloca alguns deles entre os mais altos criadores da lírica de todas as épocas. Com ou sem música. Dias atrás, li, numa das principais revistas brasileiras a resenha de um disco de Chico Buarque, na qual o comentarista falava da poesia de Caetano, botando a palavra “poesia” entre aspas, acrescentando ainda um “digamos”, a “poesia” de Caetano. A questão é saber: mantemos ou tiramos as aspas, quando falarmos da poesia (ou da “poesia”) dos letristas e poetas-músicos? A geração à qual Torquato pertence, Caetano à proa, respondeu, criativamente, inundando o País com letras e canções de tamanha estatura poética que fica difícil achar paralelos na poesia escrita do mesmo período. Os mandarins vão ter que dormir com essa. Mas a hostilidade dos mandarins, guardiães da coroa de louros de Apolo, provocou o excesso contrário: o menosprezo pela poesia escrita que, de Guttemberg à poesia de vanguarda, tem quinhentos anos de evolução autônoma especialidade, diante da poesia da letra de música. A poesia escrita é uma criação da imprensa Guttenberguiana. Afinal, até o soneto foi feito, no início, para ser cantado. “Soneto” é, em italiano, um “sonzinho”. Mas a métrica, na poesia escrita, não se explica, se esquecermos que a poesia, nas origens, era “words set to music”, palavras para cantar. A ponto de Ezra Pound, poeta e músico, advertir que a poesia decai, quando passa muito tempo afastado da música, sua matriz e destino. No Brasil, dos anos 60 para cá, a poesia cantada e a escrita tem dialogando de modo fecundo, em inúmeros momentos. Basta invocar os conhecidos contactos, por exemplo, entre Caetano & Gil e a poesia concreta paulista (Caetano, em “Sampa”, introduz, na música popular, a própria expressão “poesia concreta”). Ou entre a poesia de Chico Buarque e as de Drummond e João Cabral. A essas influências da poesia escrita, acrescentou-se, nos anos 60, a da poesia de Oswald de Andrade & Antropofagia, ressuscitada por reedições e encenações de peças. A mais conhecida das letras de Torquato, “Geleia Geral” (o nome foi emprestado por Torquato de Décio Pignatari, que cunhou a expressão no editorial de uma revista “Invenção”) é oswaldiana até a medula. No ufanismo irônico. Na enumeração Kitsch-caótica das “relíquias do Brasil”. A mesma dança, ano que vem, mês que foi. A marca oswaldantropofágica, porém, está na própria linguagem de “Geleia Geral”: na técnica de cortes, de flashes, de montagens cinematográficas, de rimas trocadilho (inicia / anuncia), de malandragens verbais. “Geléia Geral” traz estes dois versos: “resplandente cadente fagueira num calor girassol com alegria”. Percebe-se que a cafona palavra “fagueira” vira “fogueira”, quando você ouve / lê o ígneo verso seguinte. E esse cadente se transforma num incandescente candente. Alta era a arte de Torquato, poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade. Jovens poetas do Brasil, quem não fez um poema em homenagem a Torquato, atire a primeira estrofe. A morte de Torquato foi um grande poema, suicídio, a performance máxima. A destruição da vida para a transformação em mito, com 30 nas “Metamorfoses” de Ovídio, onde os personagens morrem só para se transmutar em constelações, em estrelas. A garotada pegou o recanto. Torquato é meio-deus para vários poetas jovens que eu conheço. O modelo de sua vida integralmente dada à experiência poética, no fundo, a “trip” do barco bêbado do Rei Arthur, Arthur Rimbaud. Um grande sábio um dia disse que o signo é a morte da vida. Mas, sem signo, vida degradada, a vida não dura. A vida é curta, o signo é longo Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros. O Livro de Torquato é esse “Os Últimos Dias de Paupéria”, muito bem editado por Waly Sailormoon, vitrina dos vários possíveis de Torquato: em letra, poesia escrita, ensaios jornalísticos, fragmentos de diário, retrato estilhaço de um poeta por outro poeta. Essa – digamos – precariedade do “corpus torquatiano” “para falar como os mandarins é um fato de mistério: a incompletude, a obra aberta, o poder ser. Talvez, por isso, Torquato tenha influenciado tanto. Isso que se chama, imprecisamente, de “poesia marginal” o invoca entre os santos do seu panteão, quando não como “heros ktistes”, deus fundador. Morto aos 28 anos, Torquato deixou fragmentos, “rari nantes in gurgite vasto”, “disjecta membra”, cacos de uma explosão nuclear existencial. Mas a realidade, aí, foi de uma grande elegância e precisão. Atingido em cheio pela bomba da modernidade, Torquato dispersou-se em microepifanias, letras, poemas, textos de jornal. O que só aumenta seu pretígio numinal diante de uma geração televisiva, marshal-mclunaniana, descontínua, paratática. A flor que foi cortada antes do tempo é emblema de todas as virtualidades. Torquato é a divindade que, na poesia brasileira, preside o poder-ser. Se Torquato é o mártir auto-imolado da poesia cantada brasileira, Mário Faustino é seu desastrado (“hecatombado”) equivalente, na área escrita. Desaparecido em desastre aéreo, Faustino deixou atrás de si o perfume de uma militância poética, que teve seu auge noCaderno B do “Jornal do Brasil”, na época de Reynaldo Jardim, quando Mário, diretor, abriu espaços e tempos para o que de mais radical se fez e fazia. Aberto tanto para o melhor passado quanto para o mais agudo presente, o suplemento de Faustino foi um momento histórico. Poundiano, Mário Faustino imprimiu ao Caderno B do JB uma diretriz clara, seletiva, paideumática, a única que tem “virtú” para atuar como agente de transformação da cultura: escolhas radicais, a partir de critérios precisos. Como poeta, “último verse- maker”, como o chamou um companheiro de geração, Faustino deixou uma produção incompleta e fragmentária, sílabas para uma palavra que se ia chamar “O Homem e Sua Hora”, macropoema, ao molde dos “Cantos” de Pound, que deveria sintetizar a experiência vital do poeta num todo significante. Contemporâneos, em alguns aspectos, Faustino é o oposto de Torquato. Torquato é popular, “reles”, pop, para tocar no rádio, sermos plebeus. Faustino é “sermo nobilis”, aristocratizante, altamente letrado, cheio de laivos da geração de 45 (helenismos, palavras raras, preciosismos da expressão, anticoloquialismo). Na poesia Provença medieval, distinguia-se entre um “trobar léu” um “trobar ric” e um “trobar clus”, o poetar leve, o poetar rico e o poeta escuro. O “trobar léu”, o poeta leve, era o mais parecido com isso que, hoje, é normal na letra da música popular: o verso fluente, fácil de entender, pop. (ver os trovadores Marcabru, Guilhaum de Peitau, Peire Vidal). Palavras solenes e sintaxe elevada, o “trobar ric”. “Clus” era o “trobar” difícil, não acessível à primeira audição, seja pela complexidade da “metaphysical” idéia ou pelo abstruso da imagem, da alusão, pela raridade da palavra ou pela extrema arquitetura musical do edifício verbal da letra (Arnaut Daniel). Nessa lógica “trovençal”, Faustino pratica um “trobar ric”, com ocasiões de “clus”. 31 Torquato é “léu” e, às vezes, “clus”. A coexistência dessas diferenças entre dois grandes poetas contemporâneos deve ser altamente didática para todos aqueles que querem reduzir a poesia a um só momento, a um só “trobar”. Em passado “Folhetim”, num ensaio “Forma é Poder”, denunciei a suposta “objetividade” da linguagem jornalística, mostrando como esse efeito é precipitado de uma codificação de linguagem, uma cristalização canônicas de recursos que, estabilizando o discurso, transmita a sensação de “realidade”. Jornalismo não tem “estilo”. Ora, o que há no mundo da inteligência são as especificidades de cada consciência. Todas as cabeças são “estilos”. A linguagem jornalística é imposta por uma autoridade: um Poder. Mas pode- se dinamitar essa tirania: por dentro, na linguagem. De pronto, lembro três momentos: os jornalismos de Oswald de Andrade, de seu herdeiro, Paulo Francis, e de Torquato. Na coluna que, longo tempo, manteve no jornal. “Última Hora”, Torquato praticou, em nível de massas, a mais ágil das linguagens: esplendidamente “subjetiva”, descontínua, ideogrâmica, blocos carregados de eletricidade, movida a elipses, elipse, a figura-mestra de Torquato, conduzida até a elíptica apoteose de auto-eliminação final, o efeito da Falta. Não exagero ao dizer que Torquato criou um padrão de jornalismo cultural. Um padrão baseado na extrema criatividade de linguagem. Na hibridização dos discursos: poética, factual, materiais nobres x pobres. Esse jornalismo torquatiano estava a serviço de uma causa, a promoção do super-oito e do cinema marginal, periférico às glórias e consagrações do Cinema Novo, em vias de academização, comercialização e caretice. Breve nas telas deste cinema. Torquato Neto. Não diz pouco da grandeza do poeta Torquato dizer que sua última grande preocupação foi o cinema, essa arte não-verbal, mas síntese de todas as artes, destino das artes, conforme Eisenstein: destinação do verbal, do gestual, do visual, num só ponto- ômega. Poesia é ação entre códigos: todo poeta é intersemiótico. É Pound, músico e poeta. Maiakovski: poeta e artísta plástico. Em termos de Brasil século 20, são conhecidas as relações entre Oswald, Murilo e Cabral e as artes plásticas. Ou as tangências e secâncias entre Bandeira e Vinícius e a música. E “concreta” era a pintura, antes da poesia. O poeta não é um escritor: é um artista. Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato perfez o fadário de todo vampiro que se preza, a sina dos “un dead”. Mais conciso que o bilhete final de Maiakovski, o de Torquato diz tudo. Diz quando a vida pode ficar pesada nas mãos de uma criança. Paulo Leminski é poeta e compositor, autor de “Catatau” e “Verdura”. Jornal Folha de São Paulo, Folhetim, 7.11.1982. TEXTOS SELECIONADOS COGITO Eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível Eu sou como eu sou 32 agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora Eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim Eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim. (O poema acima foi publicado no livro "Os Últimos Dias de Paupéria", Max Limonad - Rio de Janeiro, 1973, e selecionado por Ítalo Moriconi para figurar no livro "Os cem melhores poemas brasileiros do século", Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 269.) GO BACK Você me chama Eu quero ir pro cinema Você reclama Meu coração não contenta Você me ama Mas de repente a madrugada mudou E certamente Aquele trem já passou E se passou passou daqui pra melhor, foi! Só quero saber do que pode dar certo Não tenho tempo a perder (Letra musicada e interpretada por Sérgio Brito / Titãs) LET’S PLAY THAT quando eu nasci um anjo louco muito louco veio ler a minha mão não era um anjo barroco era um anjo muito louco, torto com asas de avião eis que esse anjo me disse apertando minha mão com um sorriso entre dentes 33 vai bicho desafinar o coro dos contentes vai bicho desafinar o coro dos contentes let's play that (Letra musicada e interpretada por Jards Macalé) GELEIA GERAL Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplendente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geleia geral brasileira Que o jornal do Brasil anuncia Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi "A alegria é a prova dos nove" E a tristeza é teu Porto Seguro Minha terra é onde o Sol é mais limpo Em Mangueira é onde o Samba é mais puro Tumbadora na selva-selvagem Pindorama, país do futuro Ê bunba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bunba iê iê iê É a mesma dança, meu boi É a mesma dança na sala No Canecão, na TV E quem não dança não fala Assiste a tudo e se cala Não vê no meio da sala As relíquias do Brasil Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Super poder de paisano Formiplac e céu de anil 34 Três destaques da Portela Carne seca na janela Alguém que chora por mim Um carnaval de verdade Hospitaleira amizade Brutalidade, jardim Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi Plurialva, contente e brejeira Miss linda Brasil diz: "Bom Dia" E outra moça também, Carolina Da janela examina a folia Salve o lindo pendão dos seus olhos E a saúde que o olhar irradia Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi Um poeta desfolha a bandeira E eu me sinto melhor colorido Pego um jato, viajo, arrebento Com o roteiro do sexto sentido Faz do morro, pilão de concreto Tropicália, bananas ao vento Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumbaiê iê iê É a mesma dança, meu boi Ê bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi Ê bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi É a mesma dança, meu boi É a mesma dança, meu boi (Letra musicada e interpretada por Gilberto Gil / Manifesto-síntese da Tropicália) 35 POEMA DO AVISO FINAL É preciso que haja alguma coisa alimentando o meu povo: uma vontade um certeza uma qualquer esperança. É preciso que alguma coisa atraia a vida ou a morte: ou tudo será posto de lado e na procura da vida a morte virá na frente e abrirá caminhos. É preciso que haja algum respeito ao menos um esboço: ou a dignidade humana se afirmará a machadadas. (Letra musicada por Gomes Brasil, James Brito e Mike Soares / Interpretada por Cláudia Simone) MARGINÁLIA II Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu pecado Meu sonho desesperado Meu bem guardado segredo Minha aflição Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu degredo Pão seco de cada dia Tropical melancolia Negra solidão Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui, o Terceiro Mundo Pede a bênção e vai dormir Entre cascatas, palmeiras Araçás e bananeiras Ao canto da juriti Aqui, meu pânico e glória Aqui, meu laço e cadeia 36 Conheço bem minha história Começa na lua cheia E termina antes do fim Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Minha terra tem palmeiras Onde sopra o vento forte Da fome, do medo e muito Principalmente da morte Olelê, lalá A bomba explode lá fora E agora, o que vou temer? Oh, yes, nós temos banana Até pra dar e vender Olelê, lalá Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo (Letra musicada e interpretada por Gilberto Gil) ASSIS BRASIL 37 “Depois de muitos anos cheguei a compreender, já escritor tarimbado, que a arte nasce quando viver não é suficiente para exprimir a vida’, como disse André Gide.” (Memória e aprendizado / Assis Brasil) O AUTOR Assis Brasil é o escritor piauiense mais premiado em nível nacional e um dos poucos (se não o único) a viver profissionalmente de sua arte. Autor de uma obra vasta e diversificada, que inclui romance, conto, ensaio e textos infanto-juvenis. Destaca-se ainda como crítico literário e organizador de antologias poéticas. Filho da cidade de Parnaíba, seu nome completo é Francisco de Assis Almeida Brasil, nascido a 18 de fevereiro de 1932. Lá viveu sua infância, tendo estudado no Instituto São Luís Gonzaga, partindo em seguida para Fortaleza, onde concluiu os antigos ginásio e científico. No Rio de Janeiro, cidade na qual passa a residir a partir da década de 50, trabalha nas Casas Pernambucanas, durante o dia, e cursa jornalismo à noite, na Pontifícia Universidade Católica (PUC). A estreia literária aconteceu em 1953, com a publicação de Verdes Mares Bravios, livro infanto-juvenil marcado pela influência do escritor cearense José de Alencar, perceptível no título da obra. Ao longo da carreira dedicada às letras, que já ultrapassou os 60 anos, ele já lançou uns 130 títulos. Os mais de um milhão de exemplares vendidos o tornam um best seller nacional. Em termos de prêmios literários, Assis Brasil já ganhador quase todos, com destaque para o Walmap (duas vezes, com Beira Rio Beira Vida/1965 e Os que bebem como os cães/1975) e o Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (pelo conjunto da obra, em 2004). Atualmente o autor reside em Teresina, participa das atividades culturais do Estado e continua produzindo bastante. Em 2006, foi o autor homenageado pelo Salão do Livro do Piauí – Salipi. A OBRA Duas são as marcas principais da obra de Assis Brasil: quantidade em termos de títulos lançados e variedade de gêneros cultivados, abrangendo desde o romance à crítica, do conto ao ensaio, da literatura infantil à tradução. Tudo escrito sem abrir mão, entretanto, da qualidade estética e da alquimia verbal. 38 Romance Tetralogia Piauiense Beira Rio Beira Vida A Filha do Meio Quilo O Salto do Cavalo Cobridor Pacamão Ciclo do Terror Os Que Bebem Como os Cães O Aprendizado da Morte Deus, o Sol, Shakespeare Os Crocodilos Quarteto de Copacaba na O Destino da Carne Sodoma Está Velha O Prestígio do Diabo Históricos Nassau, Sangue e Amor nos Trópicos Villegagnon, Paixão e Guerra na Guanabara Tiradentes, Poder Oculto o Livrou da Forca Jovita, Missão Trágica no Paraguai Novela O Livro de Judas Ulisses, o Sacrífico dos Mortos A Volta do Herói A Rebelião dos Órfãos Tiúbe, a Mestiça Conto Contos do Cotidiano Triste A Vida Não é Real História do Rio Encantado Infanto- Juvenis Verdes Mares Bravios (Aventura no Mar) Aventuras de Gavião Vaqueiro O Primeiro Amor O Velho Feiticeiro A Viagem Proibida O Destino é Cego A Primeira Morte CARACTERÍSTICAS DA OBRA A obra de Assis Brasil ainda não está classificada dentro de um estilo literário por razões da plena produtividade do autor e das possíveis modificações a que está sujeita. No entanto, como autor contemporâneo é possível notar em sua obra marcas de estilos transatos e influências de grandes autores brasileiros, que vão de Machado de Assis a Guimarães Rosa. Entre outras, são marcas comuns ao estilo de Assis Brasil: Visão pessimista da vida,do mundo e das pessoas; Análise da sociedade ressaltando as relações humanas por meio da hipocrisia e das contradições; Densidade psicológica das personagens; 39 Regionalismo crítico; Reflexão sobre a mesquinhez e a precariedade da sorte humana; Linguagem: estilo conciso, sentenças curtas, equilíbrio entre a linguagem e o conteúdo. Não se preocupa em descrever fisicamente os ambientes e os personagens. No que se refere à construção narrativa, observa-se o predomínio da introspecção, o rompimento com a linearidade episódica, que se fragmenta em sua estrutura, opção pelo fluxo de consciência como elemento norteador do processo narrativo. TEMAS ABORDADOS A obra de Assis Brasil, seja regional ou não regional, explora uma linearidade temática que vai ao encontro da filosofia existencialista, cara aos neorrealistas franceses, centrada principalmente em aspectos como a solidão, a dor, o absurdo, a incomunicabilidade, a angústia, a náusea, o destino e a morte. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS Diferentemente de outros que negam as influências literárias sofridas, Assis Brasil é dos poucos autores que fazem questão de citá-los com orgulho. Dentre outros, merecem destaque três: José de Alencar, escritor cearense; Machado de Assis, escritor carioca e William Faulkne, escritor estadunidense. COMENTÁRIO DE LIVROS Devido à extensão de sua obra, o presente estudo se concentrará em apenas dois de seus romances: Beira Rio Beira Vida e Os que Bebem Como os Cães, ambos bastante lidos e premiados nacionalmente. BEIRA RIO BEIRA VIDA É o livro que abre a Tetralogia Piauiense, de caráter telúrico e preocupação social. Em 1965, ganhou o prêmio Walmap de melhor romance. O espaço físico é a cidade de Parnaíba, onde marinheiros e prostitutas habitam o cais do rio num jogo de desejos e frustrações. Luíza é filha de Cremilda e mãe de Mundoca. No presente da narrativa, ela já está velha, mais de 70 anos, vive sozinha com a filha e sobrevive das lembranças do cais. Passa os dias a ‘resmungar’ sua história e tem a filha como sua única interlocutora. No passado, Luíza teve uma infância marcada pelo desprezo da mãe, prostituiu-se aos 15 anos com Nuno e quase casou com Jessé, o único que poderia ter mudado a sua vida e oseu destino. Personagens 40 Nome Dados Luíza Prostituta, filha de Cremilda, era constantemente humilhada pela mãe. Cremilda Misto de prostituta e empresária, mãe de Luíza, mostra- se amargurada, oportunista e sem perspectivas. Mundoca Feia, desprezada pela sociedade, é filha de Luíza, rompe o ciclo da prostituição, mas também não ama, não casa, não tem filhos. Jessé Criado por Cremilda, tem anseio de ascender economicamente. Gosta de Luíza. Vira marinheiro e morre no incêndio do navio-gaiola. Nuno Marinheiro, boa-pinta, pai de Mundoca, grande amor de Luíza. Estrutura e características do romance Capítulos curtos; Narrado em 1ª pessoa, a narrativa flui do inconsciente da personagem; Há um narrador em 3ª pessoa que pouco aparece na história; Predomina o discurso indireto e indireto livre. Quando o discurso direto se faz presente, são falas curtas, incisivas, secas, ríspidas ou nostálgicas, ampliando a carga de comoção do texto. Não há linearidade do enredo, nem do tempo nem das ações das personagens; Linguagem marcada pela economia linguística, sintaxe simples, períodos curtos, vocabulário seco e reduzido ao mundo das personagens. Principais temas A prostituição como um ciclo e única opção de vida; Marginalização das mulheres do cais; Preconceito à população ribeirinha; Denúncia dos horizontes estreitos da província; Hipocrisia da igreja católica; Impossibilidade de ascensão social. OS QUE BEBEM COMO OS CÃES Livro que abre o Ciclo do Terror, de caráter ecumênico e denúncia contra a ditadura militar. É o romance mais político de Assis Brasil. Nele o autor denuncia, implicitamente, a violência e a opressão que assolaram o Brasil após o golpe de 1964. O enredo está centrado na figura de Jeremias, professor de literatura, que é preso sob a acusação de fazer a “cabeça” de seus alunos. A narrativa, em tempo psicológico, já começa com Jeremias preso e tendo sofrido lavagem cerebral, a ponto de perder todas as suas referências: nome, profissão, estado civil, se tem filho ou não. E o mais grave, até a capacidade de expressão. 41 A ação se desenrola em três espaços: a cela, o pátio e o grito. O primeiro representa o confinamento e a solidão; o segundo, o banho e a certeza de não estar sozinho. Quanto ao grito, espaço da interioridade, manifestam-se a liberdade e o gesto de solidariedade. Os únicos alentos que ele encontra no presídio, aos quais se apega como um náufrago, são a descoberta de Deus e a companhia de um casal de ratinhos, batizados de César e Julieta. Indagação pertinente é a que faz Jeremias no final, antes de cortar os pulsos no muro, válida até os nossos dias: “O Homem é uma paixão inútil?”. Ficção e realidade se entrecruzam nesta instigante narrativa do romancista parnaibano. Personagens Nome Dados Jeremias Professor de literatura, 42 anos, casado, opositor do regime militar, preso político, torturado físico e psicologicamente na cadeia, suicida-se cortando os pulsos no muro da prisão. Protagonista da história e personagem — símbolo de todos aqueles que morreram (na cadeia ou fora dela) combatendo o regime autoritário implantado no Brasil a partir de 1964. Dulce Esposa de Jeremias, vivia criticando o marido por se envolver com política. Dizia: "Para que se importar com os outros se já vivemos com tanta dificuldade?" Matilde Mãe de Jeremias, "de olhos ternos e rosto sereno". É chamada pelo filho e amigos de Tide. Cacilda Filha de Jeremias e Dulce, apelidada pelo pai de Tudinha. Tinha tranças longas. Seu grande desejo era que o pai lhe desse a boneca da avó. Soldados e carcereiros Representantes da repressão militar, aparecem sem nomes e por meio de recursos metonímicos: fivelas de cintos, fardas e botas. Prisioneiros Vítimas do regime militar, presos por suas convicções políticas e ideológicas. Estrutura e características do romance - Narrativa estruturada em 41 capítulos cíclicos: a cela, o pátio e o grito; - Ruptura da linearidade cronológica; - Capítulos curtos; - Linguagem simples; - Emprego do discurso indireto livre - Fato histórico apresentado sob a ótica da ficção; - Resgate de flashes da vida de Jeremias através da memória; - Repetição de situações como expressão da monotonia carcerária. Principais temas 42 A opressão política e militar; A perda da liberdade; O rebaixamento do homem à condição de animal; A tortura física e psicológica; A incomunicabilidade; O reaprendizado da linguagem; A morte como espaço de liberdade frente ao absurdo da tortura. TEXTO PARA REFLEXÃO Da gênese de Beira rio beira vida (Halan Silva) à memória do professor Benedito Nunes (1929-2011) Tenho diante dos olhos uma brochura datada de 1965. É a primeira edição de Beira rio beira vida (Edições o Cruzeiro), do romancista piauiense Assis Brasil que, no dia 18 de fevereiro de 2012, irá completar oitenta anos de vida. A capa traz a imagem de um porto com um círculo amarelo que me lembra o sol de Parnaíba. O tempo cronológico possibilita-me viajar em direção ao passado e especular a gênese desse romance singular na literatura brasileira. A tiragem de dez mil exemplares aponta para o sucesso de Assis Brasil que, em 1964, arrebatou com Beira rio beira vida o prêmio literário mais importante do país - o Prêmio Nacional Walmap (Waldomiro Magalhães Pinto). Olho fixamente para a brochura de Beira rio beira vida. Súbito, ela me transporta ao universo do Nouveau Roman, movimento literário francês dos anos 1953-1970, que muitos ainda confundem com um movimento de vanguarda. Em suma, o que o Nouveau Roman propõe é a desconstrução dos elementos estruturais do romance tradicional: a trama, o personagem e o lugar do narrador. Na linha de frente do Nouveau Roman, atuaram Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Claude Simon, Michel Butor e Marguerite Duras, que se enquadram no que se pode chamar de autor-crítico e de crítico-autor. Ao escrever um romance, esses escritores punham em prática concepções individuais acerca da estética do romance. Assis Brasil, que é um autor-crítico e crítico-autor, ao escrever Beira rio beira vida, sem negar as conquistas do romance moderno, encontradas, por exemplo, em autores como James Joyce, William Faulkner e Franz Kafka, incorporou elementos estéticos peculiares ao Nouveau Roman. A leitura do romance La modificacion (Éditions de Minuit, 1957) de Michel Butor (1926), filosófico que migrou para a literatura (poesia/crítica/romance), foi determinante durante o processo de feitura de Beira rio beira vida. La modificacion é um romance desprovido de trama, escrito na segunda pessoa do plural Vous. Ação resume-se na viagem de Léon Delmon, que toma um trem em Paris e segue para Roma, onde pretende se encontrar com sua amante. Na viagem, que dura 21h, ele dialoga com passageiros, pensa na família e muda de plano. Nesse romance realista, há somente um personagem, dado que a esposa, os filhos e a amante só existem no pensamento de Léon Delmon. Em La modificacion, o autor torna o leitor participativo. Deliberadamente, Michel Butor faz com que o leitor assuma o lugar do autor no ato da leitura. Essa brochura amarelada pela pátina do tempo suscita-me uma pergunta inevitável: há uma trama em Beira rio beira vida? Observo o narrador e os dois personagens-narradores, Luíza e Mundoca, eles mantêm um diálogo permanente (só interrompido pelo narrador) e me põem diante de uma ação que afasta para longe a 43 possibilidade de uma trama (na acepção tradicional do termo). Luíza e Mundoca recuam no tempo, deparam-se com o passado marcado pela prostituição e pela marginalização. Na palavra dos narradores não se percebe onisciência. À sua maneira, cada um dos três narradores conta parte da ação (é ponto de vista na narração). No que tange ao tempo, penso estar diante de um romance anacrônico; pois não há início, apenas o começo daação, que se desenvolve num ponto avançado da narrativa. O romance não termina, retorna ao começo da ação (a narrativa é circular). Em Beira rio beira vida, contrastam duas modalidades de tempo: o tempo cósmico, perceptível no movimento exterior da natureza (o subir e o baixar das águas do Parnaíba) e o tempo psicológico, configurado na experiência da sucessão dos estados internos dos personagens-narradores Luíza e Mundoca. O tempo cósmico é prospectivo e irreversível, não permite movimento de recuo em direção ao passado. Por sua vez, o tempo psicológico é sempre reversível, permite recuos em direção ao passado ou avanços em direção ao futuro. Em Beira rio beira vida, há uma unidade de lugar. O cenário ou o teatro do mundo é a cidade de Parnaíba dos anos quarenta, que os narradores, como se fossem demiurgos, reconstroem na memória. Como em La modificacion, Beira rio beira vida dispõe de poucos personagens, basicamente dois: Luíza e Mundoca. Os personagens Cremilda, Jessé, Nuno e Darcy Mavinier, por exemplo, só existem na memória de Luíza e de Mundoca. O personagem Darcy Mavinier, que fora levado do mundo real para ficção, insere Beira rio beira vida no Roman à Clef. Ao escolher o tema da rejeição social, ao romper com a onisciência e a centralidade do narrador, ao optar pela ação em prejuízo da trama, ao abolir o traço psicológico dos personagens, ao assumir o tempo anacrônico e a unidade do lugar, Assis Brasil renuncia aos cânones do romance tradicional e assume um lugar de destaque no realismo da contemporaneidade, que muitos pensadores preferem chamar de Pós- Modernidade. TEXTOS SELECIONADOS I: “- Luíza. - Não diga nada, Jessé. - Desta vez não demoro muito. - Você nem imagina como demora toda vez. Um dia não volta mais. - Só vou apanhar um carregamento de algodão, coisa à-toa, o embarque é rápido. - O rio já subiu? - Já. Espera por mim, Luíza? - O povo é falador, você andando com uma mulher que tem no bucho um filho de outro. - Não ligo. - Vai acabar ligando, de tanto ouvir a língua deles. Quem pode resistir? - Eu vou ser negociante em Parnaíba, Luíza. - Negociante, Jessé? - Você não sabe ainda? Esperou no cais. Com Ceci ou sem Ceci no colo, com os vestidinhos novos que fazia para a boneca, ou sem fazer coisa alguma, esperou no cais. O rio subia e baixava, a barriga crescia, aquela indisposição de manhã – às vezes se encontrava chorando, assoava o nariz nos panos de Ceci e olhava a curva dos igarapés, o horizonte do rio. - Luíza, já pra casa. 44 O tom era outro, a mãe queria simplesmente companhia, quando o cais começava a escurecer – companhia para as maquinações, para que a casa tivesse mais uma mulher para atrair os barqueiros. Como fez força para se livrar de quantos a queriam mesmo de barriga grande. - Que que tem, besta? A mãe apenas gargalhava com o ar de consentimento, pensando em mais dinheiro para aquela noite. - Seu filho nem vai saber nem nada. A mãe olhava para o seu estado e resolvia intervir: - Deixa ela de mão, Darcy. Você voltou degenerado do tal de Rio de Janeiro? O certo era que minha mãe não se sentia bem com aquelas preferências dos homens por mim, Mundoca. Mesmo quando eu ainda estava esperando você. Aquele tal de Darcy, não queira saber. Filho de gente rica lá da cidade, ela se vangloriava ao dizer que o tal do moço rico foi conhecer mulher de verdade em cima dela. Dizia assim mesmo, Mundoca: ‘em cima de mim, em cima de mim’, e soltava aquela gargalhada – ‘Era um fedelho cheirando ainda a leite, todo desajeitado’ – tinha orgulho em falar nisso. Parecia até uma lembrança que amenizava a velhice dela.” BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida. Ediouro: Rio de Janeiro, s/d. p.51. A Cela A escuridão é ampla e envolvente. O silêncio total, cortado apenas por aquele velho barulho que parte de seus ouvidos. Sempre fora assim: quando em silêncio, em paz ou em expectativa, o zumbido voltava, em duração enervante, direto como a fala direta do policial: - Deixa as mãos dele algemadas. Aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do próprio corpo – estava no chão frio: não era cimento nem tijolo, terra batida, úmida, mas não molhada ao ponto de ensopar sua roupa – os braços para trás das costas, os pulsos algemados. Aos poucos ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a areia: - sentia o cheiro da terra – uma terra velha e usada, com cheiro de mofo, com cheiro de urina – sentia as paredes, mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros. A posição era incômoda: as mãos nas costas, o corpo meio de lado, o rosto na areia fria. - Deixa as mãos dele algemadas. Por quanto tempo cheirava a terra abafada pelo próprio corpo? Horas, dias – lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar, mas na verdade não tinha vontade de fazer coisa alguma, queria apenas permanecer na posição incômoda, como se estivesse em maratona para provar que o corpo podia resistir a tudo. BRASIL, Assis. Os que bebem como os cães. FONTES IBIAPINA 45 "A melhor maneira de dizer a verdade é na ficção de mentira" (Fontes Ibiapina. In: entrevista ao jornal O Dia, edição de 19 de janeiro de 1974) O AUTOR Fontes Ibiapina nasceu em Picos, na Fazenda Lagoa Grande, em 1921. Foi jornalista, professor e magistrado, tendo sido juiz em várias comarcas do Piauí. Em 1942, mudou-se para Teresina, onde cursou o secundário e formou-se em Direito, na antiga Faculdade da Praça Demóstenes Avelino. As primeiras letras e o primário foramconcluídos ainda na sua terra natal. Pertenceu à Academia Piauiense de Letras (cadeira nº 9), foi membro do Conselho Estadual de Cultura do Piauí, além de um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Parnaíba de Letras. Homem culto e pesquisador de nossas tradições populares e folclóricas. Um autêntico polígrafo, deixou uma obra vasta e diversificada, que engloba romance, conto, folclore, crônica, teatro e ensaio. A estreia literário ocorreu em 1958, com Chão de Meu Deus, livro de contos. A partir daí não parou mais de escrever e publicar, tendo lançado 38 livros ao todo, sem falar de 20 ainda inéditos, dos quais cinco já foram editados. João Nonon de Moura Fontes Ibiapina faleceu no dia 10 de abril de 1986, na cidade litorânea de Parnaíba, onde morava na época e exercia as funções de Juiz de Direito. A OBRA Há quem afirme que, entre títulos lançados e inéditos, Fontes Ibiapina escreveu quase 40 livros. Destaca-se como um grande contador de histórias, sobretudo, das relacionadas ao homem do interior, com quem conviveu de perto. Sua obra compreende as seguintes publicações: Romances 46 Sambaíba, 1963 Palha de Arroz, 1968 Tombador, 1971 Nas Terras do Arabutã, 1984 Curral de Assombrações, 1985 Vida Gemida em Sambambaia, 1985 Contos Chão de Meu Deus, 1958 Brocotós, 1961 Pedra Bruta, 1964 Congresso de Duendes, 1969 Destinos de Contratempos, 1974 Quero, Posso e Mando, 1976 Eleições de Sempre e Até Quando, 1985 Crônicas Mentiras Grossas do Zé Rotinho, 1977 Lorotas e Pabulagens de Zé Rotinho, s/d de publicação Folclore Paremiologia Nordestina, 1975 Passarela de Marmotas, 1975 Teatro O Casório da Pafunsa, 1982. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Fontes Ibiapina é apontado pela crítica como herdeiro do Romance de 30, que teve como introdutor o paraibano José Américo de Almeida, autor de A Bagaceira. Sua obra é permeada de "causos populares", fixando aspectos do homem comum e regional. Entre as várias espécies literárias cultivadas por ele, o conto se destaca como sua melhor forma de expressão. Autor de linguagem simples, coloquial e humorística, reproduzindo o linguajar espontâneo do interior, inclusive dizeres e ditados populares. Seus enredos organizam-se de forma tradicional.As personagens são simples e planas, sem grandes complexidades nem surpresas no transcorrer da narrativa, quer do ponto de vista comportamental ou psicológico. 47 Embora tenha se destacado como escritor regionalista, mesclando folclore e ficção, desenvolveu também o romance urbano, com destaque para Palha de Arroz, sua obra mais conhecida e adaptada para o cinema em 1979, com o título de A Solução Final. TEMAS ABORDADOS Por ter focado sua obra no sertão piauiense, Fontes Ibiapina explorou os velhos temas do regionalismo nordestino: seca, miséria, êxodo rural, crendices, latifúndio, exploração, analfabetismo, marginalização social, desigualdades, fervor religioso e superstições. Todos esses assuntos ligados ao caboclo piauiense, vivendo num meio adverso e abandonado à própria sorte, retratado nos sofrimentos e virtudes de seu cotidiano. “Nada era inventado, tudo havia sido vivido com intensidade, tudo memorizado”, como fez questão de afirmar o escritor picoense. Uma das poucas exceções foi Palhade Arroz, romance ambientado em Teresina, ao explorar os problemas urbanos (energia, água, saneamento) e a violência policial da capital. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS Por estar inserida na prosa regionalista de 30, marcada pelo “realismo bruto”, segundo termo usado pelo crítico Alfredo Bosi, Fontes Ibiapina tomou como referências literárias os romancistas nordestinos desse período: José Américo de Almeida (A Bagaceira), Raquel de Queiroz (O Quinze), José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Graciliano Ramos (Vidas Secas). Outras duas fontes inspiradoras foram Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro). COMENTÁRIO DE LIVROS Dentre os romances publicados, destacam-se Palha de Arroz (1968), livro no qual Fontes Ibiapina denuncia a marginalização das camadas pobres de Teresina, que moram em casas de palha na beira do Parnaíba, e a violência da polícia do interventor Leônidas Melo, em plena ditadura getulista; e Vida Gemida em Sambambaia (1985), retrato dramático da seca no interior do Piauí, ganhador do Prêmio Nacional do Clube do Livro. É no conto que se encontra, de acordo com os críticos, o melhor de sua produção literária. A diversidade temática permeia esses textos, além de mostrar as faces telúrica e ecumênica do autor. Destaque para Chão de Meu Deus (1958) e Brocotós (1961), títulos que alcançaram repercussão tanto dentro como fora do Estado. Como folclorista, mostra-se um grande conhecedor de nossas tradições, resgatando do esquecimento as crendices e superstições do sertanejo piauiense – lobisomem, mula- sem-cabeça, cabeça de cuia. Sem falar também dos ditados populares, provérbios e citações. O fato de ter sido Juiz de Direito, servindo em vários municípios, e tendo a 48 oportunidade de ouvir “causos” dos próprios caboclos, o ajudou bastante no levantamento dessa cultura popular interiorana. TEXTO PARA REFLEXÃO Fontes Ibiapina Por Abdenaldo Rodrigues e Adriano Lobão Aragão O homem é a expressão do meio cultural em que vive. Assim foi Fontes Ibiapina: a representação viva da cultura do Piauí, autor de obras que retratam com apuro a vida no sertão através de uma literatura cheia de graça, situada entre o real, o folclórico e o mítico. As pesquisas realizadas por Ibiapina são os mananciais da produção do autor, que busca, nas relações intrínsecas do homem com o meio, matéria-prima para sua literatura. A produção de Ibiapina está inserida na prosa regionalista contemporânea, contextualizada no Brasil a partir da década de 30, quando, segundo Alfredo Bosi, a ficção encaminhou-se para o chamado “realismo bruto”, identificado na linguagem oral, nos brasileirismos e regionalismos léxicos, onde destacamosJosé Américo de Almeida (A Bagaceira), Raquel de Queiroz (O Quinze),José Lins do Rego (Pedra Bonita) e Graciliano Ramos (Vidas Secas). Ante toda tradição resgatada no romance de 30 e reinventada nos anos 50 porGuimarães Rosa, temos a estreia de Fontes Ibiapina com o livro de contosChão de Meu Deus, em 1958, tendo uma segunda edição em 1965. Em Fontes Ibiapina, não encontramos propriamente um regionalismo mágico, mas a própria pesquisa folclórica, tanto na Paremiologia Nordestina e Passarela de Marmotas, como no restante de sua obra. Para Câmara Cascudo, “o que caracteriza essencialmente uma cultura não é a existência de padrões equivalentes aos nossos no espaço e no tempo. Uma cultura vive pela sua existência”. Desse modo, a cultura nordestina se identifica na própria realidade social. Essa afirmação se estrutura na interpretação do pensamento social deGilberto Freyre, onde em Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933, consegue fazer rigorosa distinção entre raça e cultura. O nordestino, diz o sociólogo, nunca foi uma raça inferior, como queria a elite etnocêntrica que, na diferença, encontrava alicerce para o preconceito. Esse pensamento elitista foi tão enraizado em nossa História, que até mesmo intelectuais como M. Paulo Nunes, comentando Casa-Grande & Senzala, na primeira edição de seu livroModernismo & Vanguarda, embora critique o etnocentrismo, ainda vê a cultura regionalista nordestina de mulatos e cafuzos como equivalência de atraso: “Eram, isto sim, como em grande parte ainda o são hoje em dia, pessoas culturalmente atrasadas, doentes e desassistidas.” (M. Paulo Nunes, inModernismo & Vanguarda, p.241) É inconcebível a existência de uma cultura superior a outra, pois o termo cultura só pode ser concebido do ponto de vista antropológico, já que confundir cultura com erudição é deturpar seu significado. Daí a não existência de déficit cultural e a importância dos trabalhos de Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Noé Mendes,Pedro Silva, Fontes Ibiapina e outros não menos importantes. 49 O enfoque de Gilberto Freyre abriu um leque de possibilidades que confluíram para o estudo de aspectos essencialmente regionais que, aos poucos, foram incorporados à Literatura Brasileira. A linguagem oral, os costumes, as tradições e as crenças do Nordeste fizeram surgir, pela força de sua expressão, obras-primas como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Vila dos Confins, deMário Palmério, Vida Gemida em Sambambaia, de Fontes Ibiapina, atingindo o quase “estado bruto” da realidade do sertão nordestino, almejado desde Franklin Távora, ainda no Romantismo, conforme podemos constatar no prefácio de O Cabeleira. A ficção regionalista se expressa principalmente no Nordeste. A paisagem decadente, os problemas da seca, os costumes e as crenças dão aos ficcionistas regionalistas base para a estruturação de um espaço de conflito expressivo. A psicologia do sertão e o pensamento mítico do sertanejo transcendem a miséria e o drama da seca. Poderíamos dizer que se trata do homem em estado bruto, enfrentando a natureza: a potência do homem diante da seca, sobrevivendo. Até mesmo sua linguagem há de ser bruta; daí a identificação com pedra em João Cabral de Melo Neto (ver os poemas O Sertanejo Falando e A Educação pela Pedra) e o magistral trabalho com a linguagem do sertanejo, notadamente no personagem Fabiano, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Se em Graciliano encontramos a deficiência da linguagem em Fabiano, e a recriação da linguagem em Guimarães Rosa, em Fontes Ibiapina a linguagem também perdeu suas amarras com a norma, buscando a partir de espaço próprio mostrar a significação da fala sertaneja, sem precisar de certa adjetivação excessiva, que encontramos em A Bagaceira, de José Américo de Almeida, por exemplo. Ibiapina fundamentou sua linguagem nas construções simples, sem levar em consideração a sintaxe e a regência. Almeida Garrett, na primeira metade do século XIX, é o precursor dos estudos das coisas populares e tradições do povo português. Seu interesse parte das influências recebidas das baladas de Walter Scott, as de Burger,e os irmãos Grimm. No Brasil, contudo, o estudo do folclore só vem à tona depois da revolução literária no Modernismo brasileiro, onde há um desprendimento da Literatura Portuguesa. Surgem, dessa forma, folcloristas como Sílvio Romero,Celso de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Batista Caetano, Couto Magalhães, Beaurepaire Rilhas e Araripe Júnior. Mas é no Nordeste, com Câmara Cascudo e Leonardo Mota que o folclore atinge o seu auge literário. No espaço piauiense, por sua vez, pode-se citar um seleto grupo de estudiosos que desenvolveram um trabalho de significativa relevância, como é o caso deLeônidas de Sá, no século passado e, mais recentemente, Artur Passos, Pedro Silva, Noé Mendes, João Alfredo de Freitas, Raimundo Rosa de Sá e Fontes Ibiapina. Quanto a Fontes Ibiapina, foi um exímio catalogador das lendas, fábulas e adágios do Nordeste. Embora o seu estudo temático tenha como geografia determinada o Piauí, sua produção se torna universalizada, devido à força significativa do folclore, definida pelas relações do homem no seu cotidiano natural, onde as crendices apresentam um incomparável valor como manifestação social. As fábulas e lendas,ensinava Fontes Ibiapina, “têm sua razão de ser, sua causa, origem, sua utilidade econômica, moral e social”. Ibiapina partia do princípio de que o folclore é uma manifestação espontânea, mas que se expressa em determinados segmentos sociais, onde é o povo simples das pequenas cidades, das fazendas, da periferia que desenvolve sua criatividade. Na sua obra, existe a consonância da tríade homem-terra-tradição. É através dessa mesclagem que surge um espaço folclórico próprio, capaz de mostrar o pensamento, a ação e a vivência integrados às expectativas e emoções do homem sertanejo, tornando-o sujeito de sua história. 50 (Texto publicado originalmente em amálgama #2, fevereiro de 2002) TEXTOS SELECIONADOS Texto 1 “Dizem os que entendem do riscado, que sabem onde têm as ventas, que a desculpa do amarelo é comer terra como a do papa-mel é o pau não ter oco. É o caso de nós aqui vivermos soletrando cancão em breves, alegando que não temos campo em assuntos literários. Na verdade, falando mesmo de oitiva, sem dadas nem tomadas ou arrodeios, escritor por estas bibocas de confins de sertão é coisa tão escassa que nem garupa de jumento. Difícil que só minhoca em terra seca. De se contar nos dedos de uma mão e não ocupar todos. De tão pobre a nossa literatura, chega a ponto de não ter de seu um couro para morrer em cima, apesar de tratar da terra onde se diz que o boi morreu. Além do mais, não se encontra de louça um caco em matéria de auxílio, ou mesmo sequer um tico de estímulo por parte dos Poderes Públicos dos homens que carregam o rei na barriga. Não há dúvida que o mundo é dos mais expertos e a sorte do pobre é como a do cambito – morrer lascado – haja vista que atrás dele corre um bicho e sua cuia sempre cai emborcada.” (In: Paremiologia Nordestina, pág. 9) Texto 2 A fazenda Como muitas demais daqueles tempos. (A história começa lá pelos confins dos idos de mil setecentos e noventa e quê para o começo de mil e oitocentos). Como muitos demais daqueles tempos, casarão bonito. Bem na sentada dum morro de subida leve. À frente, uma verdura de carnaubal se perdendo mundo a fora. Uma beleza de encantar, o panorama. Uma vista que se perdia nas distâncias até ao longe onde se atravessava uma barra azul de serras. Assim ao lado, um riacho perene se escorregando em sussurros suaves por entre carnaubeiras, ladeado de pastagens verdes de seca e inverno. Já do lado da cozinha, a caatinga que esta não tinha fim de limite. Casarão talentoso e imponente. Paredes de pedras com quase um metro de diâmetro. Salões amplos, quartos espaçosos. Em cima, um sótão arrogante. Alpendre sombrio. Nas laterais, uma infinidade de portas e janelas num sorriso senhorial escancarado para o mundo. Assim perto, a senzala de negros-de-sujeição, o esteio daquela riquezona toda.” (In: Curral de Assombrações, pág. 11) 51 Texto 3 “Trinta e um de dezembro bem que foi um dia triste para aquele povo. Era que Manoel Felício fechava os olhos para o mundo. Até que viveu muito. Mas era que todos queriam e esperavam que ele vivesse mais. Chegou a contar oitenta e cinco janeiros bem completos. Infelizmente, já de mãos estiradas e olhos puxados para os oitenta e seis, deu a alma ao Criador. Morreu com o século o único e verdadeiro dono das terras de Sambaíba – 31 de dezembro de 1900. Bem moço ainda chegara ao Brasil. E gostava mesmo de contar como havia vindo das terras de Portugal. Uma história bonita de fazer gosto! De navio. E não viera fugido nem enxotado da Justiça, como muitos safados que depois se tornaram importantes aqui. De livre e espontânea vontade. Ouvira por boca de gente que por aqui estivera e depois voltara para a Europa, narrativas bonitas sobre as terras do Brasil. Aí não pôde se conter. Narrativas interessantes! Falavam de florestas sem começo e sem fim. De rios e mais rios que, de tão grandes, ninguém sabia onde nasciam, nem tão pouco onde terminavam. Em homens brabos, e em pássaros de toda cor e que cantavam de todo jeito.” (In: Sambaíba, pág. 17) Texto 4 "E mais sofreram outros. Muito mais sofreram outros. Deles que até morreram. Com aqueles dois olhos que a terra há de comer, viu a morte de Zeca Palito. Depois de uma grossa tunda, enterraram-no em pé, até ã altura dos peitos. Só dos ombros pra cima de fora. Aí chegou um oficial, farda da Polícia Militar, com um bocado de galões nos ombros. Só que ninguém podia saber quem era. Mascarado. Mas, de tenente para baixo, que estavam ali, fizeram continência a ele. E ficaram em posição de sentido até segundas ordens: -À vontade! A seguir, pergunta o que ele havia feito. Vai um feitor e responde que fora flagrado tentando fugir. 52 Então o desgraçado meteu o bico da botina nos queixos de Zeca palito, que foi só a conta. Só fez descangotar. Morreu na mesma da hora. E diz que do mesmo jeito morreu Feitosa. E muitos outros. Uns dessa, outros de outra natureza, de outra maneira. O certo é que muitos brasileiros estão sepultados ali nas Ilhotas - sem cemitério, sem cruz, sem nada. Custou muito suor, muito sangue, muitas vidas aquele prédio bonito das Ilhotas onde diz que hoje é uma Escola de Menores Abandonados. Estava lá agora até um filho de Zeca palito. Coitado! ... sofrendo naquele mesmo lugar onde seu pai sofrerá até a morte." (In: Palha de Arroz, pág. 112) Texto 5 Peixe Grande - Bem. Esta não conto de vista. Mas afirmo ser verdadeira, porque ouvi a mesma da boca dum velho que nunca mentiu. Creio que vocês conheçam de perto o velho Passarinho lá do Angico Branco. E quem conhece o velho Passarinho não pode dizer que em relação a ele se trate dum homem mentiroso nem de longe. Naqueles tempos nos tempos da maniçoba como se diz, ele esteve durante uns anos pelas matas da Amazônia. Mais ou menos pelas eras de 1910 a 1912. Sei dum bocado de estórias interessantes daquelas regiões que ele sempre me contava numa temporada em que fomos vizinhos. Hoje eu passo é tempo sem me avistar com aquele amigo velho (que até nem sei se ainda vivo com as graças de Deus). Mas de todas as estórias suas a mais interessante que achei foi a seguinte: Ia ele descendo um tal de Rio Madeira, numa embarcação grande de nome batelão. Quando de repente, o barco começou a balançar pra lá e pra cá, vira-não-vira. Foi quando um marinheiro velho de tarimba deu pela coisa e gritou pros demais: “rezemos pra Nossa Senhora do Navegantes e Nossa Senhora da Guia, que é o peixe grande!” Nisto o tal peixe botou a cabeça fora. Diz que cada olho do tamanho dum tacho. O tal barco diz que até ia correndo em velocidade, mas foi logo que marcou a carreira. Carregado de porcos, cana e certas mercadorias outras de mantimentos. Mais que logo, começaram a jogar cana e outrascoisas dentro d’água, pra o peixe ir comendo tudo e dar alívio ao 53 barco. Naquele movimento todo de atrapalhações, um pobre velho tropeçou num porco e os dois caíram n’água. Deixem que naquela embrulhada do velho com o porco desceu também uma cadeira. Finalmente, conseguiram ancorar o batelão nas proximidades de uma aldeia de índios. Ainda bem que os tais índios já eram mansos, que foram até domesticados por um tal de Tenente Cândido Rondon. Os ditos índios vieram e se prontificaram para a matança do peixe. E mataram mesmo o danadão. Mais de cem homens arrastaram o monstro pra fora do rio. E o mais interessante de tudo: quando abriram a pança do danado, lá estava o velho sentado na cadeira, bem refestelado, chupando cana e jogando os bagaços para o porco. Digam se tem termo uma coisa destas! Mas é uma pura verdade, porque nós todos conhecemos o velho Passarinho e sabemos o mesmo não ser homem de mentira nem por brincadeira. (In: Mentiras Grossas de Zé Rotinho, pág. 65) H. DOBAL 54 "A vida é uma cantiga alegre: o primeiro sorriso de cada filho e todos os microamores que inutilizam a vitória da morte." (H. Dobal. In: Cantiga de viver, Ephemera, 1985) O AUTOR Seu nome completo é Hindemburgo Dobal Teixeira, mas assina literariamente apenas H. Dobal, talvez por soar melhor ou, quem sabe, estabelecer uma relação afetiva com o leitor. Nasceu no dia 17 de outubro de 1927, em Teresina, tendo residido também em Brasília, Londres e Berlim. Desde cedo tomou gosto pela leitura e a escrita. Formou-se em Direito pela antiga Faculdade de Direito do Piauí. Por concurso, abraçou o serviço público federal, aposentando-se como auditor fiscal do Tesouro Nacional. Foi membro das Academias Piauiense e Brasiliense de letras. Com O. G. Rego de Carvalho e Manoel Paulo Nunes, lançou o Movimento Meridiano na década de 40, renovando as letras no Estado. Os três formam uma geração das mais fecundas da literatura de expressão piauiense. Além de poeta, destacou-se também como crônica e contista. A estreia literária ocorreu em 1966, com a publicação de O Tempo Consequente, obra poética elogiada pela crítica e leitores até hoje. Com o lançamento de O Dia Sem Presságios, em 1970, conquistou o Prêmio Jorge de Lima, do Instituto Nacional do Livro. Manuel Bandeira o incluiu em sua Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos. Embora não ligasse muito para os enquadramentos literários, sua obra insere-se no modernismo brasileiro, na geração que desponta a partir de 45, comprometida com uma linguagem substantiva e bastante crítica em relação aos problemas sociais, vertente representada por João Cabral de Melo Neto. Infelizmente, a “indesejada das gentes” veio buscá-lo em 2008, privando os piauienses do convívio diário com um de seus poetas mais queridos. Pena sua obra ainda ser desconhecida, mesmo sendo da melhor qualidade literária, do grande público leitor, tanto dentro como fora do Piauí. 55 A OBRA Se quisesse, H. Dobal poderia ter escrito apenas os dois primeiros livros – O Tempo Consequente e O Dia Sem Presságios – que seu nome já estaria consagrado em nossa literatura. Insatisfeito com tamanha proeza, resolveu nos brindar com outros títulos, apresentando um distinto olhar sobre o mundo e o tempo, recortados por uma memória privilegiada. Manuel Bandeira foi quem melhor definiu sua obra: “Poeta ecumênico, chamou Odylo a Dobal no seu tão belo e compreensivo estudo apresentando o novo poeta. Mas eu prefiro dizer o poeta total, o poeta por excelência... Só mesmo um poeta ‘ecumênico’ como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento profundo, visceral da terra.” Seguem abaixo seus livros mais importantes: Título Ano Dados O tempo consequente 1966 Estreia/poesia O dia sem presságios 1970 Poesia/Prêmio Jorge de Lima A província deserta 1974 Poesia/Apontado como o melhor de seus livros A cidade substituída 1978 Poesia/Tom crítico Os signos e as siglas 1986 Poesia/Retrato impiedoso de Brasília Um homem particular 1987 Conto/Incursão na prosa Ephemera 1995 Poesia/Último livro CARACTERÍSTICAS DA OBRA Segundo Manoel Paulo Nunes, parceiro de geração, a poética dobaliana está centrada em três aspectos distintos, porém complementares: a lírica, que perpassa toda sua obra; a elegíaca, poemas que remetem a laços familiares, terras dos antepassados e momentos da infância; e a épica, que resgata fatos históricos de nosso passado, retratados nos poemas “Leonardo” e “El Matador”. O estilo sóbrio, a linguagem simples e direta, o lirismo contido, o telurismo e o ecumenismo, a denúncia social e o tom irônico são outras características marcantes de sua obra. 56 TEMAS ABORDADOS Na obra de estreia, O Tempo Consequente, H. Dobal já enumera alguns temas que o angustiarão ao longo da vida, traduzidos em poesia de rara sensibilidade qualidade: a relação do homem com o espaço, o abandono, o esquecimento, a marginalização, o amor, o tempo, a solidão, o destino e a morte. Sem esquecer também a província, descrita sob um ponto de vista universal. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS Quando um grande poeta sofre influência de outro, ele tende a camuflar esse caráter, daí ser muito difícil essa percepção. Ainda mais que as referências são mutáveis até o autor definir seu próprio estilo, além do desejo de superá-las do ponto de vista estético. Segundo Harold Bloom, “todo poeta é uma resposta a outro poeta, e que todo poema é uma desleitura (misreading) de outro. Um poema é o produto de uma angústia pela falta de primazia." Além dos clássicos, H. Dobal assimilou também as lições dos poetas de língua inglesa (T. S. Eliot e e.e. cummings), dos franceses (Baudelaire e Mallarmé), dos brasileiros (Manoel de Barros e João Cabral de Melo Neto) e do piauiense Mário Faustino. Entre os romancistas contemporâneos, identificou-se com a prosa de Kurt Vonnegut, Jr. (norte-americano), Jerzy Kosinski (polonês) e Calvin Tompinks (norte-americano). COMENTÁRIO DE LIVROS O TEMPO CONSEQUENTE Estreia literária de H. Dobal, tido como seu livro mais identificado com o Piauí. Dividido em duas partes: O Campo de Cinza, a província descrita nos aspectos natural, social e humano, com destaque para o texto épico “Leonardo”, a saga de um herói da terra pela independência do Estado; e As Formas Incompletas, de caráter ecumênico, o poeta transitando entre temas universais – a solidão, o amor, a morte... O DIA SEM PRESSÁGIOS Este livro proporcionou ao poeta um dos prêmios literários mais importantes do país: o Jorge de Lima, concedido pelo Instituto Nacional do Livro. Obra que fotografa a conturbada e complexa sociedade mundial da década de 60, com suas mudanças e conflitos: a pílula, a bomba, os transplantes e o LSD. Destaque para o poema "El Matador”, corajosa denuncia contra o extermínio dos índios piauienses pelos colonizadores brancos. O PROVÍNCIA DESERTA 57 É considerado pela crítica o melhor de seus livros. Nele, percebe-se H. Dobal como um grande campeador de lembranças, tanto às ligadas ao Piauí como as vivenciadas fora do Brasil. O livro esta dividido em quatro partes: As Informações da Natureza, A Serra das Confusões, Os Dias na Cidade e Londinium. A CIDADE SUBSTITUÍDA Vemos aqui H. Dobal denunciando a desfiguração arquitetônica de São Luís, sob o olhar silencioso dos maranhenses e dos que visitam essa cidade colonial. Sentindo-se um cidadão do mundo, por destino nascido no Piauí, não podia calar diante de tamanha barbaridade praticada contra o estado vizinho. OS SIGNOS E AS SIGLAS Trata-se de uma contundente radiografia de Brasília, cidade onde viveu durante alguns anos e na qual, segundo destacano livro, existem apenas duas classes sociais: as autoridades e os desconhecidos. UM HOMEM PARTICULAR Representa sua estreia na ficção. São contos curtos, densos e marcados por uma linguagem poética. O prosador aqui não fica nada a dever ao poeta. Ambos encantam e provocam, no leitor, o indescritível prazer da leitura. EPHEMERA Última obra publicada pelo autor, em 1995. Uma coedição envolvendo a Academia Piauiense de Letras (APL) e a Universidade Federal do Piauí (Ufpi). Livro que retoma as principais marcas de sua poética: lirismo e elegia, numa perspectiva mais pessoal. TEXTO PARA REFLEXÃO 58 A grandeza poética de H. Dobal Por Edmilson Caminha O valor da poesia brasileira contemporânea se deve não só aos grandes poetas que todos aplaudem, mas, igualmente, aos outros que, tão bons quanto aqueles, a maioria desconhece. Quem já leu poemas de Francisco Carvalho e Loyola Rodrigues, do Ceará, João Carlos Teixeira Gomes, da Bahia, Cassiano Nunes, de Brasília? Os leitores da província, testemunhas do talento de quem se pode igualar aos eleitos pela fama. Junte- se, a esses que não aparecem, o piauiense H. Dobal. No discurso com que recentemente o saudou em nome da Academia Brasileira de Letras, o poeta Ivan Junqueira desculpou-se pela demora em descobrir um escritor com a estatura do colega de Teresina, comparável, segundo ele, a Carlos Drummond de Andrade e a João Cabral de Melo Neto. O Tempo Consequente, livro com que estreou em 1966, já revela a grandeza e a força da poesia de H. Dobal. Tomem-se, para ilustração, os versos de “Fazenda”: São trinta cabeças / de gado cabrum. / Criação miúda / sem qualquer ciência. / (...) Mas vem da morte / sua serventia / o couro e a carne para o homem / mais pobre do que elas. Versos curtos, magros, incisivos, em que mal se percebe a adjetivação, tal a dureza com que é usada. E aí já se descobre, também, a vertente maior da poética dobaliana: o Piauí áspero e belo, a paisagem rude e sedutora, a seca e o rio, o homem e os bichos. É intensa e profunda a relação de H. Dobal com a terra piauiense, como um Anteu que arranca do chão as gotas da seiva que lhe dão a vida. Manuel Bandeira, oficial do mesmo ofício, estava certo: “Só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento profundo, visceral da terra.” Na consciência da morte e no apelo do amor, o piauiense encontra matéria para a boa poesia — mas consciência sem angústia, apelo sem aflição. A morte aparece / sem fazer ruído, lemos nas primeiras páginas de As Formas Incompletas. Se, em “Os Amantes”, o poeta volta à mocidade para se fazer ouvir (Eis-me de novo adolescente. Triste / vivo outra vez amor e solidão.), é a voz madura que entoa a “Oração para Invocar as que não Vieram”: Venham a mim todas as que não me quiseram, / todas as que deixaram de conhecer, no sentido bíblico, / um homem competente não só na palavra amor / mas também nos carinhos mais fundos. Outros poemas se constroem na terceira pessoa (Os namorados na estrada / vão preparados para o domingo.) — como se, discreto e reservado, assumisse o poeta a isenta condição de observador, para melhor falar dos sentimentos alheios e não do que lhe vai no próprio coração. Daí o à vontade com que compõe “Os Graffiti Amorosos”: Sexoral. Orgasmo. Liberdade / para as minorias eróticas. Nada, porém, que exceda a criação dobaliana de fundo épico, a exemplo do primoroso “Leonardo”: No campo raso vai galopando / Leonardo de Nossa Senhora / das Dores Castello Branco. “El Matador” denuncia a bárbarie de João do Rego Castello Branco, 59 piauiense feroz: Matador de índios. / A fama de seu nome / a fúria de seu nome. / Sua memória em sangue / se repete. “Memorial do Jenipapo” lembra a famosa batalha que se travou nos domínios piauienses de Campo Maior: Este monumento / se levanta agora / na paisagem nobre: / que as éguas da noite / jamais perturbem / o sono anônimo / dos enterrados / nesta terra pobre. Se há poetas que viram personalidades públicas, H. Dobal é um homem particular — como o compreende o cineasta Douglas Machado no filme que lhe dedicou. Segundo já disseram, sua obra deu dimensão universal à poesia piauiense. Pela força e pela grandeza com que nos emocionam, os versos de H. Dobal são daqueles que, sozinhos, valem por uma literatura. TEXTOS SELECIONADOS El Matador De sangue e de fogo se faz um nome. no sangue e no fogo se desfaz a história de muitas vidas. A sangue e fogo a ferro e fogo um homem liquida seus semelhantes. No sangue a crueldade desnecessária No sangue a violência contra os desarmados. Ao preço de tantas vidas sua vida se perde do consumo do tempo. Não matador de touros toureador da morte vencedor dos verões. Matador de índios. Sua glória triste pesa sobre nós. Sobre a sua memória pesa a morte inglória das nações Tapuias. 60 Tenente-coronel dos auxiliares João do Rego Castello Branco chefe da tropa senhor dos trabalhos castigos e desgostosos, matador de índios. Sem firmeza nos ajustes de paz. Firme na guerra a todos os índios. Rápido na guerra lança os proclamas as derramas de gente farinha cavalos e bois. Índios e ouro Seu sonho execrando. A lagoa dourada o rio do Sono: se resolve em sangue a sede de ouro. Os corpos no campo para os pastos das feras. Passados à espada Acoroazes Pimenteiras Gueguezes raça extinta lembrança extinta nomes nações apagados no próprio sangue. 61 Matador de índios. A fama de seu nome A fúria de seu nome. Sua memória em sangue se repete. (In: O Dia Sem Presságios, 1970) CAMPO MAIOR Ai campos do verde plano Todo alagado de carnaúbas. Ai planos dos tabuleiros tão transformados tão de repente num vasto verde num plano campo de flores e de babugem. Ai rios breves preparados de noite e nuvem. Ai rios breves amanhecidos na várzea longa, cabeças d’água do Surubim no chão parado dos animais, no chão das vacas e das ovelhas. Ai campos de criar. Fazendas de minha avó onde outrora havia banhos de leite. Ai lendas tramadas pelo inverno. Ai latifúndios. (In: O Tempo Consequente, 1966) O RIO Meu rio Parnaíba feito lembrança não corre mais entre barrancos. É um fio na memória um rio esgotado no recreio de muitas manhãs, rio risco rio tatuado na deriva de um dia perene. Meu rio turvo se depositando num claro engano que não se renova, e descendo suas águas pelo nunca mais de outras infâncias ensolaradas. Meu rio largo de água doce de brejo 62 jaz o seu curso entre coroas e canaranas, e de outros meninos consumidos no sol de suas águas num delta escuro dividido rola o dia perene. (In: O Tempo Consequente, 1966) FAZENDA São trinta cabeças de gado cabrum. Criação miúda sem qualquer ciência. Somente um chiqueiro defesa noturna que bem cedo aberto o dia Ihes dá. Rústicas a vida de qualquer maneira sabem extrair Mas vem da morte sua serventia o couro e a carne para o homem mais pobre do que elas. (In: O Tempo Consequente, 1966) CANTIGA DE VIVER Sozinho na cama um homem espera sua hora. A inesperada hora de tantos. A vida é uma cantiga triste mais triste e à-toa que a das andorinhas — Las oscuras golondrindas tão mal vivida tão mal ferida tão mal cumprida. A vida é uma cantiga alegre: 63 o primeiro sorriso de cada filho e todos os microamores que inutilizam a vitória da morte. (In: Ephemera, 1995) MÁRIO FAUSTINO 64 “Não morri de mala sorte, Morri de amor pela Morte”. (Mário Faustino.In. Romance, O homem e sua hora, 1955) O AUTOR Mário Faustino é piauiense de Teresina, nascido em 22 de outubro de 1930. Daqui seguiu para Belém, onde continuou seus estudos e trabalhou no jornalismo local – A Província do Pará e A Folha do Norte. Nessa época, ganha uma bolsa nos Estados Unidos para estudar teoria literária e literatura norte-americana, ficando por lá entre os anos de 1951 a 1953. Em 1956, muda-se para o Rio de Janeiro, exercendo as atividades de professor na Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e editorialista do Jornal do Brasil. No Suplemento Dominical do jornal carioca, assina a página “Poesia- Experiência”, uma reflexão sobre o fazer poético merecedora de reconhecimento nacional, cujo lema era Repetir para aprender, criar para renovar. Consagrou-se como poeta de rara sensibilidade, tradutor refinado e crítico dos melhores, merecendo o respeito e a admiração de autores e intelectuais de um modo geral. Sem falar também de um grande jornalista, transitando com competência nas diversas funções da área, desde mero colaborador até editor-chefe. Homem culto e poliglota. Faleceu num acidente aéreo nos arredores de Lima, em novembro de 1962, em viagem a Nova York como correspondente internacional do JB. Embora tenha se encantado ainda tão jovem, aos 32 anos, Mário Faustino dos Santos e Silva deixou um legado literário dos mais importantes em língua portuguesa. A OBRA Mário Faustino publicou um únicolivro em vida – O Homem e Sua Hora, em 1955, pela Editora Livros de Portugal, no qual “uniria a elaboração poética ao conhecimento teórico, reflexivo, da poesia.” Logo após a conclusão de “O Homem e Sua Hora”, Mário Faustino entrega-se à escrita de um longo poema, cósmico e biográfico, a que nunca chegaria a terminar (pela morte prematura que o arrebatou desta vida), embora o tivesse reformulado por várias vezes. Em 1985, veio à tona Poesia Completa/Poesia Traduzida, organizado por Benedito Nunes, reunindo toda a sua produção, desde o livro lançado até os primeiros e últimos 65 poemas. Sem falar dos textos traduzidos de poetas estrangeiros – Horácio, Dante, Shakespeare, Goethe, Pound, Eliot, Stock, entre outros. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Em artigo datado de 1957, escrito a jovens poetas, Mário Faustino definiu as diretrizes de sua obra: “Que se procure fazer sempre o novo, o válido e que se considere a poesia como insubstituível forma de cultura, da qual depende, em boa parte, a vitalidade da língua, portanto do pensamento, portanto da nação”. Fez questão de destacar também que, superada a dicotomia conteúdo/forma, “o poema deve equivaler, com forma específica de sentir e conceber o mundo, a um dos modos originais da experiência humana”, de que fazem parte inúmeros recursos linguísticos, a exemplo da unidade entre palavra e coisa, bem como o emprego de metáforas. Tradição, experimentalismo, afinidade com o concretismo, novos padrões de linguagem, sentido lúdico do trabalho criativo, gosto por textos longos, didatismo e preferência pelos substantivos e verbos são traços fundamentais de sua poética. TEMAS ABORDADOS Sua obra é uma reflexão exaustiva em torno dos seguintes temas: amor e morte, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e impureza, Deus e o homem, tempo e eternidade. Embora antagônicos, esses temas levam o poeta, “antena da raça”, a equilibrar-se no dialético universo dos sentimentos humanos. Mas o assunto trabalhado obsessivamente por ele nos textos é, sem dúvida, o da morte, celebrando-a sem medo e de forma resignada, como podemos constatar em“Sinto que o mês presente me assassina” - um canto premonitório da morte. INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS Foram muitas as influências literárias sorvidas por Mário Faustino, englobando desde autores brasileiros até estrangeiros, dos clássicos aos contemporâneos. Assimilou o melhor de cada um deles, mas produziu, de forma criativa e inovadora, uma obra de valor estético inquestionável. Dentre as fontes inspiradoras, destacam-se Homero, Virgílio, Horácio, Camões, Garret, Fernando Pessoa, Gôngora, Machado, Lorca, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Shakespeare, Dante, Keats, Drummond, Cecília, Eliot, Novalis, Yeats, Rilke e Cummings. Foram as poesias de Ezra Pound e Jorge de Lima, entretanto, que mais o seduziram, lições que aplicou ao longo de seu itinerário poético. COMENTÁRIO DE LIVRO O HOMEM E SUA HORA Obra que marca a poética em língua portuguesa e coloca seu autor entre um dos maiores nomes de nossa literatura.Segundo Ivo Barbiere, "toda a atividade de Mário Faustino com a linguagem, trabalhando a sua palavra sem esquecer a palavra do outro, foi sempre uma tentativa de salvar a poesia sem perder o mundo, de valorizar o poeta valorizando o homem. O seu projeto poético coincidiu rigorosamente com o seu projeto existencial". 66 O livro é dividido em três partes: DisjectaMembra (Horácio/poeta latino), reunindo 13 poemas; Sete sonetos de amor e morte, abordando os seus temas preferidos, em versos decassílabos e sem estrofação, à maneira inglesa; e, enfim, O homem e sua hora, um único e longo texto constituído por 236 versos. Como porta de entrada, temos ainda Prefácio, um belo poema metalinguístico explicitando o título e a essência da obra. TEXTO PARA REFLEXÃO Mário Faustino – o lapidador de palavras (ElfiKürtenFenske) Auto-retrato Oh não passar somente sugerido! Desespero de nunca ver o anjo Não conhecer nem mesmo a rosa e o lírio Ter medo e ter vergonha ajoelhado Querer ser puro e sempre ver-se impuro A espera da morte a incerteza A secreta esperança de ficar A pétala da rosa sob a cota O endereço guardado sobre o peito Ver navios que chegam e vão sozinhos E depois de tanta dor e tanta angústia Pensar ter dado a luz a algo vivo E levantar-se apenas com o poema. - Mário Faustino (18 abr. 1948) O Homem e sua Hora (1955), uma das principais obras de Mário Faustino, se caracteriza pela complexidade de metros, ritmos, formas poéticas e símbolos empregados nos 22 poemas que o compõem, bem como pelo diálogo vivo com uma ampla tradição poética que remonta a Homero (IX-VII a.C.) e Horácio (65-8 a.C.), chegando até Ezra Pound (1885-1972) e Dylan Thomas (1914-1955). Na tradição brasileira, dialoga de perto com poetas como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Cecília Meireles (1901- 1964) e, sobretudo, Jorge de Lima (1895-1953), a quem Faustino dedica um dos mais aprofundados estudos críticos. Benedito Nunes (1929) fala do caráter politonal dessa poesia. Nela, a ode, o hino, a elegia e a canção se combinam com recursos dramáticos (apóstrofe, diálogo) e com formas narrativas como a parábola, o relato mítico e o heroico das epopeias. Os temas prediletos são universais, como o amor, o tempo e o senso da transitoriedade, a morte e a própria poesia. A arte poética que define a concepção do livro de 1955 é expressa nos versos de Vida Toda Linguagem. O título do poema já evidencia a função vital da palavra e, portanto, da poesia, como meio de apreensão, ordenação e conhecimento do mundo. Os poemas escritos de 1956 a 1959 e divulgados na imprensa carioca revelam uma nova concepção poética, marcada por grande experimentação linguística inspirada pelas propostas dos poetas concretistas de São Paulo, com os quais mantém intenso diálogo, http://1.bp.blogspot.com/-xxXhN3C6kPE/UhvyD3PO1EI/AAAAAAAALJk/zTlz0q0HZCU/s1600/M%C3%A1rio+Faustino+-+assinatura.PNG 67 embora sem jamais integrar o grupo. Recorre, assim, à visualidade, à dimensão gráfica da página e à disposição espacial dos vocábulos, desmontando as palavras e explorando seu potencial sonoro-semântico, entre outros procedimentos marcantes do concretismo. É o que se verifica em poemas como Cavossonante Escudo Nosso e Ariazul. A partir de 1959, a poesia de Faustinoentra numa fase de pesquisa expressional, indicando a maturidade espiritual do poeta. Essa fase é representada pelo projeto não concluído de um poema longo, biográfico e ao mesmo tempo cósmico. Para esse poema total, planeja compor fragmentos altamente elaborados e integráveis, instantes lírico- épicos de uma Obra-em-Progresso, que exprimiria o fluxo incessante de sua consciência mitopoética. Como exemplo de poeta-crítico, Faustino sempre alia intimamente a criação à intensa reflexão sobre a tradição e o fazer poéticos, chegando mesmo a cobrar de grandes nomes da poesia modernista que atuem do mesmo modo, no sentido de promover a atualização e o aprofundamento da pesquisa estética. É o que ele busca realizar como crítico de poesia do SDJB. A projeção alcançada por Faustino na cena literária dos anos 1950 talvez se deva mais a essa atuação como crítico do que como poeta, assinando a página "Poesia- Experiência" nesse suplemento que marca época pelo seu projeto gráfico ousado e pela competência dos profissionais que arregimenta, sob a direção do poeta Reynaldo Jardim (1926- ) e com o apoio da proprietária do jornal, condessa Pereira Carneiro (1899-1983). Entre os principais nomes que colaboram no suplemento, destacam-se Mário Pedrosa (1900-1981), Ferreira Gullar (1930), Antônio Houaiss (1915-1999), Barbara Heliodora (1923- ), Assis Brasil (1945) e Judith Grossmann (1931). Graças a Faustino e Jardim, o SDJB dá ao movimento concretista um apoio fundamental, pela divulgação ampla que faz o grupo paulista alcançar no Rio uma ressonância não encontrada em São Paulo. É também na página-seção "Livro de Ensaios" que os concretistas Augusto de Campos (1931) e Haroldo de Campos (1929 - 2003), ao lado de José Lino Grünewald (1931 - 2000), são revelados como críticos literários. O compromisso do SDJB com a vanguarda concretista vai orientar até mesmo o projeto de reforma gráfica do jornal, de autoria do artista plástico Amilcarde Castro (1920-2002), que dá um tratamento novo à página, explorando os aspectos visuais da palavra e da colocação espacial do textona página. POEMAS SELECIONADOS Prefácio Quem fez esta manhã, quem penetrou à noite os labirintos do tesouro, quem fez esta manhã predestinou seus temas a paráfrases do touro, a traduções do cisne: fê-la para abandonar-se a mitos essenciais, 68 desflorada por ímpetos de rara metamorfose alada, onde jamais se exaure o deus que muda, que transvive. quem fez esta manhã fê-la por ser um raio a fecundá-la, não por lívida ausência sem pecado e fê-la ter em si princípio e fim: ter entre aurora e meio-dia um homem e sua hora. - Mário Faustino, em "Poesia completa e traduzida". (Organização, introdução e notas de Benedito Nunes). São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. Legenda No princípio Houve treva bastante para o espírito Mover-se livremente à flor do sol Oculto em pleno dia. No princípio Houve silêncio até para escutar-se O germinar atroz de uma desgraça Maquinada no horror do meio-dia. E havia, no princípio, Tão vegetal quietude, tão severa Que se estendia a queda de uma lágrima Das frondes dos heróis de cada dia. Havia então mais sombra em nossa via. Menos fragor na farsa da agonia, Mais êxtase no mito da alegria. Agora o bandoleiro brada e atira Jorros de luz na fuga de meu dia — e mudo sou para contar-te, amigo, O reino, a lenda, a glória desse dia. - Mário Faustino, em "O homem e sua hora e outros poemas". (Organização Maria Eugenia da Gama Alves Boaventura Dias). 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Soneto antigo Esse estoque de amor que acumulei Ninguém veio comprar a preço justo. Preparei meu castelo para um rei Que mal me olhou, passando, e a quanto custo. 69 Meu tesouro amoroso há muito as traças Comeram, secundadas por ladrões. A luz abandonou as ondas lassas De refletir um sol que só se põe Sozinho. Agora vou por meus infernos Sem fantasma buscar entre fantasmas. E marcho contra o vento, sobre eternos Desertos sem retorno, onde olharás Mas sem o ver, estrela cega, o rastro Que até aqui deixei, seguindo um astro. - Mário Faustino, em "Poesia completa e traduzida". (Organização, introdução e notas de Benedito Nunes). São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. Vida toda linguagem Vida toda linguagem, frase perfeita sempre, talvez verso, geralmente sem qualquer adjetivo, coluna sem ornamento, geralmente partida. Vida toda linguagem, há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome aqui, ali, assegurando a perfeição eterna do período, talvez verso, talvez interjetivo, verso, verso. Vida toda linguagem, feto sugando em língua compassiva o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa! leite jorrado em fonte adolescente, sêmen de homens maduros, verbo, verbo. Vida toda linguagem, bem o conhecem velhos que repetem, contra negras janelas, cintilantes imagens que lhes estrelam turvas trajetórias Vida toda linguagem – como todos sabemos conjugar esses verbos, nomear esses nomes: amar, fazer, destruir, homem, mulher e besta, diabo e anjo e deus talvez, e nada. Vida toda linguagem, vida sempre perfeita, imperfeitos somente os vocábulos mortos com que um homem jovem, nos terraços do inverno, / contra a chuva, tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse 70 outra, imortal sintaxe à vida que é perfeita língua eterna. - Mário Faustino, em "Poesia completa e traduzida". (Organização, introdução e notas de Benedito Nunes). São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. Ego de Mona Kateudo Dor, dor de minha alma, é madrugada E aportam-me lembranças de quem amo. E dobram sonhos na mal-estrelada Memória arfante donde alguém que chamo Para outros braços cardiais me nega Restos de rosa entre lençóis de olvido. Ao longe ladra um coração na cega Noite ambulante. E escuto-te o mugido, Oh vento que meu cérebro aleitaste, Tempo que meu destino ruminaste. Amor, amor, enquanto luzes, puro, Dormido e claro, eu velo em vasto escuro, Ouvindo as asas roucas de outro dia Cantar sem despertar minha alegria. - Mário Faustino, em "O homem e sua hora e outros poemas". (Organização Maria Eugenia da Gama Alves Boaventura Dias). 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 71 BIBLIOGRAFIA COSTA E SILVA, Antônio Francisco da. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 4ª edição, 2000. KRUEL, Kernard. (Organização e Apresentação) O. G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica. Teresina; Zodíaco, 2007. CARVALHO, O. G. Rego de. Como e por que me fiz escritor. Teresina: Projeto Lamparina, 1994. VAZ, Toninho. Pra mim chega: biografia de Torquato Neto. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2005. BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Memória e Aprendizado: entrevista concedida a Francigelda Ribeiro. Teresina: Edufpi, 2010. MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. Literatura Piauiense: Horizontes de Leitura & Crítica Literária (1900-1930). Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, 1998.DOBAL, H. Obra completa. Teresina: Corisco, 1997. BARROS, Eneas do Rêgo. O menino da Lagoa Grande. Teresina: Editora Nova Aliança, 2012. NUNES, Benedito. Poesia completa / Poesia traduzida - Torquato Neto. São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. 72 Wellington de Jesus Soares, piauiense de Teresina, nasceu em 1958. Licenciado em Letras pela Universidade Federal do Piauí (Ufpi) e com pós- graduação na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC). É professor de literatura desde 1983, ministrandoaulas em instituições de ensino médio e superior de Teresina. Durante 10 anos, foi um dos organizadores do Salão do Livro do Piauí (Salipi), estando à frente hoje de um novo e importante projeto cultural: a Revestrés. Além da revista, encampa também uma coluna no jornal Meio Norte aos domingos, Crônica da Cidade, no suplemento Vida. É um dos animadores do Café Literário, sarau poético realizado mensalmente na Livraria Anchieta. Como escritor, já publicou cinco livros, todos na área ficcional: Linguagem dos sentidos (conto, 1992), Maçã profanada (conto, 2003), Por um triz (crônica, 2007), Um beijo na bunda (crônica, 2011) e O dia em que quase namorei a Xuxa (crônica, 2013).