Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Aula 9: Aluísio Azevedo e sua obra a) esta aula objetiva apresentar o autor Aluísio Azevedo, enfatizando a prosa de ficção, sua inserção social como intelectual, na segunda metade do século XIX; b) comentar aspectos sobre o realismo naturalismo em alguns de seus romances; c) identificar marcas autorais e do movimento literário realista e naturalista em seus romances principalmente O cortiço e O homem. Apresentação do autor e do contexto social e literário JOÃO VAZ - No Tejo http://joserosarioart.blogspot.com.br/2011/01/grupo-do-leao-jose-rosario.html Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (S. Luís do Maranhão, 1857; Buenos Aires, 1913) viveu num contexto em que as ideias viajavam mais rapidamente entre continentes, levando para lugares remotos o que havia de novidade no mundo das artes, das letras e das ciências. Não é de se estranhar, portanto, que com o aperfeiçoamento da imprensa e com a significativa velocidade com que circulavam teses, conceitos, ideias e estéticas, o Brasil tenha se distanciado de Portugal e se aproximado da França, com sua prodigiosa atividade intelectual e artística colocada em plano privilegiado. Tal afirmação não significa um efetivo distanciamento, mas um afastamento da cena portuguesa. Caso nos alonguemos nesse afastamento da cena portuguesa, poderemos identificá-lo também entre os autores clássicos do Realismo e do Naturalismo, 2 principalmente se nos lembrarmos de Eça de Queirós que se identificava mais com outros países europeus, nomeadamente através das cidades de Paris e Londres. O romance O mulato, de Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (S. Luís do Maranhão, 1857; Buenos Aires, 1913), publicado em 1881, mesmo ano em que foi publicado Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, provavelmente recebeu críticas por sua temática e linguagem julgadas menores em relação ao romance machadiano que, naquele momento, agregava os valores epocais consagrados ao movimento realista. Não nos propomos aqui revisitar a crítica da época, nem a história literária que enquadrou os romances naturalistas por um viés crítico acentuado, norteando suas qualificações por comparações com aquele que produziu uma das maiores obras e também uma das sombras na literatura do século 19: Machado de Assis. Tudo o mais, em relação à obra de Machado, era imperfeito e superficial. Importa-nos apresentar a obra de Aluísio Azevedo e identificar o que nela permanece de extraordinário até hoje, as qualidades que atraem leitores, críticos, escritores, que consideram o autor um dos “grandes do romance naturalista brasileiro”, nas palavras de Luciana Stegagno-Piccio (1997, p. 258). Aluísio Azevedo integra o grupo dos grandes como Inglês de Sousa, Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha, destacando-se por sua personalidade eclética e múltiplos talentos: intelectual, desenhista, pintor, panfletista anticlerical e um grande escritor. Aliás, o talento e o sucesso do escritor tornaram-se um signo multifacetado: a existência miserável de pobres e excluídos, o preconceito racial, assim como a falência de um projeto literário nacional que pudesse agregar as diferenças, numa representação consensual. Nos romances de Aluísio Azevedo o exagero predomina sobre a pretensão de uma representação nacional, não parece preocupá-lo a acusação de ser um escritor de sucesso, lido pelas massas. Esse foi um de seus melhores talentos. Aluísio Azevedo consagrou-se como um intelectual comprometido com a política, entre destacou-se como um ardoroso panfletista anticlerical, não poupando esforços ou talento para criticar de maneira veemente a atuação e o poder de grupos religiosos e de seus representantes na sociedade. Identifica-se, portanto, com o ideário pós-romântico, principalmente entre 1870 a 1890, quando novas teses monopolizaram a “inteligência nacional”. 3 Desde 1850, com a extinção do tráfico de escravos, a economia açucareira entrou num acelerado processo de decadência, o que favoreceu a transferência do prestígio econômico e político para o Sul do Brasil. As classes médias que integravam a população das cidades colocaram em discussão, com mais ênfase, questões ligadas ao liberalismo, a Abolição e à República. Tais assuntos já se apresentavam nas últimas produções em prosa de José de Alencar, e, em verso de Castro Alves e de Sousândrade, assim como na prosa regionalista de Franklin Távora (O cabeleira, por ex., publicado em 1876). Este último declarou o interesse por contar “histórias contemporâneas em estilo caseiro” (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 253), o que já evidencia um dos vínculos fortes do Realismo que privilegia o vínculo temporal com os acontecimentos atuais que mobilizam seus enredos. Uma das evidências dessa intensa mobilização social encontra-se registrada na imprensa da época. Na Revista Ilustrada, em 18/02/1886, sob o título ‘Scenas da escravidão, patrocinadas pelo partido da ordem, sob o glorioso e sábio reinado do senhor D. Pedro II, o grande...’, a Revista publica uma série de 13 desenhos mostrando, com crueza, a violência a que estão submetidos os escravos. Amordaçados, presos a correntes, amarrados, açoitados, multiplicam-se nas imagens os horrores do cotidiano de castigos corporais os mais diversos. Um dos desenhos reproduz a cena de um escravo sendo colocado vivo num ‘forno incandescente’. A expressão com que o artista desenha o seu rosto, com os olhos gritando frente ao destino inominável, resume a mensagem que a revista quer transmitir aos seus leitores: a escravidão é uma chaga que mancha a vida cotidiana do país. (BARBOSA, 2010, p. 104) A Revista Ilustrada foi uma das mais atuantes para a efetivação de um diálogo entre os anseios sociais e os intelectuais atuantes, não apenas em periódicos. Esse diálogo não foge à polêmica e irá mais longe do que poderia imaginar a classe senhorial do país. Em 15/10/1887, há uma imagem de cena aparentemente inédita que introduz as mudanças também na representação de parte da população negra. Trata-se de uma cena de leitura realizada por onze escravos, em roda, que ouvem um deles que lê o jornal O Paiz: “(...) um escravo lia no eito para os seus parceiros ouvirem um discurso abolicionista do conselheiro Dantas” (BARBOSA, 2010, p. 105), num cenário rural. 4 Estamos, portanto, no pórtico de outra cena social, cuja marca contextual é citadina pelos hábitos que nela se disseminaram, com maior rapidez, pois a imprensa, os locais de encontro, os cafés, por exemplo, contribuíram para a divulgação de conhecimentos científicos e de transformações sociais e filosóficas. Nestes últimos, temos o ideário que marcará, decisivamente, as últimas décadas do século XIX: o Positivismo, de Augusto Comte; o Determinismo, de Hipólito Taine. Nas ciências, a liderança indiscutível é de Charles Darwin, sendo a teoria que sustenta o Evolucionismo uma das principais razões para as grandes transformações no modo de se pensar o aparecimento da vida e a importância da própria ciência. As cidades e o Realismo Naturalista Aluísio Azevedo deteve-se na cidade, nas personagens múltiplas que protagonizam antagonismos de um país colonizado, tendo conquistado a Independência, mas não a valorização do homem comum, do brasileiro que não pertence à corte, nem às elites dirigentes. O olhar de Aluísio detém-se nos tipos populares, no seu modo de andar, de falar, de mentir e de amar, no humor das ruas e das situações espontâneas que marcaram a vida de brasileiros no segundo oitocentos. http://www.sitedoescritor.com.br/sitedoescritor_escritores_aazevedo.htmlOs títulos de suas principais obras são: Uma lágrima de mulher, 1880; O mulato, 1881, Casa de pensão, 1884; O cortiço, 1890; folhetins românticos tais como Mistérios da 5 Tijuca, intitulado em segunda edição Girândola de amores, 1882; A mortalha de Alzira, 1894; Memórias de um condenado, 1882; Filomena Borges, 1884; O homem, 1887; O coruja, 1890; O esqueleto (contou com a colaboração de Olavo Bilac), 1890; O livro de uma sogra, 1895; Demônios (contos), 1893; O touro negro (crônica), 1938. Na dramaturgia escreveu: Os doidos (comédia), em coautoria com Artur Azevedo, 1879; Flor de Lis (opereta), 1882; Casa de Orates (comédia), 1882; Frizmark (revista), 1888), 1886: O caboclo (drama), 1886. Essa numerosa lista de obras, sem contar os textos publicados em jornais ou as caricaturas em publicadas em periódicos tais como O mequetrefe, O Fígaro, Zig-Zag, dão uma ideia da intensa e numerosa produção desse escritor que pretendeu viver da literatura e assim o fez, em grande parte de sua vida. http://www.google.com/search?hl=pt-PT&site=imghp&tbm=isch&source=hp&biw=1280&bih=897&q=o+mulato+de+alu %C3%ADsio+de+azevedo&oq=o+mulat&gs_l=img.1.5.0j0i24l9.2807.5986.0.10595.11.10.1.0.0.1.333.1590.3j3j3j1.10.0.ernk_t imepromotiona..0.0 O Realismo-Naturalismo, assim denominado por surgir nesse cenário dinâmico e de significativas rupturas, marca uma simbiótica relação, o que torna problemático separá- los em termos distintos e autônomos. Merquior, apesar de não pretender explicar os termos consagrados, sintetiza o que é oportuno reiterar: “O romance realista – a dissecação impassível das biografias ordinárias, dos destinos comuns e anti-heroicos – não chegou a penetrar na literatura brasileira” (MERQUIOR, 1977, p. 108-109). O estilo naturalista ou o movimento estético designado Naturalismo é considerado a 6 “primeira manifestação de peso de um estilo pós-romântico” (Idem, p. 109). Émile Zola (1840-1902), escritor francês, é um dos mais populares entre os escritores brasileiros, entre eles, Aluísio Azevedo. Em termos de intertextualidades e/ou de influências entre o contexto artístico europeu e o contexto brasileiro, destaca-se o fato de Aluísio Azevedo ser um declarado leitor de Émile Zola e de Eça de Queirós sendo este último, um autor cuja obra realista foi bastante criticada por Machado de Assis, escritor que problematizou o termo Realismo na literatura. Na pintura, Gustave Coubert (ver imagem a seguir) utilizou, pela primeira vez, o termo, em 1855, quando atribui a denominação “Realismo” a uma exposição que reuniu quarenta telas, na cidade de Paris. Coubert defendia uma “arte viva”, que conseguisse retratar personagens em cenas comuns, subordinando a liberdade artística do Romantismo ao propósito de sinceridade na arte. https://www.google.com.br/search?hl=pt- BR&biw=1280&bih=897&site=imghp&tbm=isch&sa=1&q=site+de+gustave+coubert&oq=site+de+gustave+coubert&gs_l=img.12 ...11073.12206.0.14429.8.8.0.0.0.0.225.729.6j1j1.8.0...0.0...1c.1.11.img.aFI9VIFvxH8#imgrc=-BpKusfSEjJmQM%3A 7 %3B8fzNPO9hMzrhmM%3Bhttp%253A%252F%252Fwww.arlequim.com.br%252Fimages_prod%252F494034.jpg%3Bhttp %253A%252F%252Fwww.arlequim.com.br%252Fdetalhe%252F494034%252FGustave%252BCoubert.html%3B407%3B500 As cenas de trabalho serão frequentes nas telas de pintores realistas, sendo G. Coubert um daqueles que valoriza, sobremaneira, o cotidiano de homens e mulheres comuns, em momentos de vigor e de cansaço, de fome e de reunião, em lugares de atividade laborais pouco ou nada belos. O que importa é a objetividade do retrato que dá lugar ao feio, ao sujo, ao imundo, ao disforme, procurando realçar a preferência por temas e figurações que rejeitam os valores do Classicismo. No cenário francês, também Émile Zola representou para Merquior “uma extensão literária da mentalidade cientificista” (MERQUIOR, 1977, p. 109). Está presente em sua obra o “culto da pesquisa de laboratório e de investigação empírica” (Idem), reunidos na obra Introdução ao estudo da medicina experimental (1865), de Claude Bernard. Nesta introdução encontram-se os principais elementos para a estética naturalista, como se pode observar no texto ensaístico de E. Zola intitulado O romance experimental. Temos, então, o registro “minucioso e sistemático da experiência factual”, o que alguns críticos, entre eles Merquior e Antonio Candido, englobam na expressão “inventário da realidade” (Idem). De Portugal, romances de Eça de Queirós (1845-1900), Os Maias, por exemplo, (1888) e, anteriormente, O primo Basílio (1878), encontraram numerosos leitores que identificaram situações e personagens com um novo modo de perscrutar casos morais e sintomas de fraqueza do tecido social, tratados de modo espelhar no espaço romanesco realista. Entre o romance francês de Zola ou de Balzac e o romance de Eça de Queirós, os primeiros exerceram uma atração mais efetiva no contexto artístico brasileiro, principalmente por manterem vínculos mais estreitos com o ambiente cientificista. Mas passemos para O mulato, de Aluisio Azevedo, que pretendeu, com o romance, integrar os novos valores estéticos e sociais a sua obra. Aspectos realistas e naturalistas nos romances de Aluísio Azevedo 8 http://www.google.com/search?hl=pt- PT&site=imghp&tbm=isch&source=hp&biw=1280&bih=897&q=o+mulato+de+alu %C3%ADsio+de+azevedo&oq=o O escritor Aluísio Azevedo iniciou sua produção romanesca com Uma lágrima de Mulher (1879), com evidentes marcas de um Romantismo já ultrapassado. Em 1881, Azevedo publica O mulato, conseguindo provocar mais escândalo e recusa do que propriamente reconhecimento pela nova estética. O Mulato inicia o ciclo de romances realistas no Brasil, no entanto, como observa Lúcia Miguel Pereira, o título e a “glória pertenciam mais a Inglês de Sousa e ao seu Coronel Sangrado” (PEREIRA, 1988, p. 142), mas a crítica de modo quase uníssono procede como se este último não existisse. Divergências críticas à parte, é importante registrar não apenas o que parece uma carreira marcada pelo sucesso, mas as contradições que envolvem o reconhecimento e a inserção de Aluisio Azevedo na cena literária. O grande impacto propiciado pela publicação de O mulato representava muito mais o enfrentamento de termos polêmicos, em plena discussão na sociedade, trazendo para a literatura o preconceito social, o abolicionismo como um inevitável desfecho, a mentalidade provinciana e tacanha que ainda imperava em determinados núcleos populacionais mais afastados do eixo do Sudeste. O Maranhão, terra natal de Aluísio Azevedo, é o contexto do qual emerge a história de um personagem que marcará a história da literatura brasileira. Para trazer a essa aula o texto literário, citamos um trecho do primeiro capítulo, quando é iniciado o romance com uma descrição primorosa da cidade maranhense, em que o calor e a sensação abafadiça, quase sem ar, parecem penetrar a pele dos leitores. Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores 9 nem se mexiam, (...) (AZEVEDO, 2002, p. 13) [grifos nossos] A enumeração em sequência explora os ângulos possíveis de observação da cena descrita, dando-nos a impressão de um lugar localizável no tempo e no espaço, mas também na imaginação daqueles que leem. Há um ambiente em suspensão como se algo de fabuloso estivesse prestes a acontecer, mas o que se vê, emseguida, é a rotineira vida das personagens num cenário provinciano e previsível. No entanto, há uma crítica que aproxima o contexto provinciano dos grandes contextos citadinos: Viam-se deslizar pela praça os imponentes e monstruosos abdomens dos capitalistas; viam-se cabeças escarlates e descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapéu de pelo; risinhos de proteção, bocas sem bigode dilatadas pelo calor, perninhas espertas e suadas na calça de brim de Hamburgo. (AZEVEDO, p. 15) [grifos nossos] O enredo de O mulato combina uma ação densa em contraste com as passagens de descrição, que requerem uma pausa no ritmo da leitura, privilegiando o “inventário da realidade”, como se fosse fundamental captar o momento em que acontece, os lugares onde se desenrolam as cenas. No romance, o protagonista, Raimundo, é mulato e tem olhos azuis, criado em Portugal, tendo se formado em Direito graças à mesada garantida por um familiar que se mantém no anonimato, durante certa parte do enredo. O seu pai, pouco a pouco se descobre, havia sido um rico português que teve um filho, no caso o próprio Raimundo, com uma escrava chamada Domingas. O português casa com outra mulher de posição social, mas que nutre um romance com o vigário da localidade, o que se perpetua inclusive após o casamento. Ao descobrir o adultério, o pai de Raimundo mata a esposa e é assassinado pelo vigário que, logicamente, não é descoberto, conseguindo manter-se às margens do escândalo trágico. Antes desse desfecho, o pai de Raimundo entrega o filho a um parente que o envia, provavelmente para protegê-lo, para estudar em Portugal. Raimundo cresce desconhecendo suas origens, mas o curioso é que parece desconhecer também sua raça. Mesmo sendo instruído, belo e inteligente, Raimundo não suspeita de suas origens mestiças. A descrição feita da personagem parece mesclar as singularidades do protagonista ao heterogênero compósito racial que compõe o “brasileiro”. 10 Ao retornar ao Maranhão, Raimundo, desconhecedor de suas origens familiares e de seu passado, apaixona-se por Ana Rosa, amor que, ao ser assumido, é imediatamente recusado pela família e pela influência nefasta do vigário que ainda atua como conselheiro de grande parte da população local, principalmente aquela mais abastada. Ao planejarem uma fuga para casarem-se, ambos veem frustrados os seus sonhos e desejos. A figura do vigário, incontestavelmente o antagonista de Raimundo, é das mais pérfidas e dissimuladas no elenco de personagens azevedianos. Não por acaso o vigário é comparado a um ator. No contexto artístico do Realismo defendido por Aluísio Azevedo, o ator deixa de ter o valor e as qualidades reconhecidas desde o Romantismo, pois, naquele momento, as qualidades eram aquelas derivadas da sinceridade. O vigário surge nas tintas da ironia da descrição, comparado a um mágico cujo brilho advém das lantejoulas e da pouca visibilidade do ambiente perfumado por nuvens de incenso. E o velho artista, entre uma nuvem de incenso, que nem um deus de mágica, e coberto de galões e lantejoulas, como um rei de feira, lançou, do alto da sua solenidade, um olhar curioso e rápido sobre o público, irradiando-lhe na casa esse vitorioso sorriso dos grandes atores nunca atraídos pelo sucesso. (Idem, p. 330) [grifos nossos] Ao ouvir de Ana Rosa a verdade sobre o afeto que nutria por Raimundo, o padre Diogo se enraivece, destaca-se a sua cólera e o seu medo, por sua vez, de ver seu inimigo sair vitorioso: - E não se lembra que, com isso, ofende a Deus por vários modos? ...Ofende, porque desobedece a seus pais, ofende, porque agasalha no seio uma paixão reprovada por toda a sociedade. (...) Além de mulato, é um homem mau, sem religião, sem temor de Deus! (...) (Idem, p. 335) [grifos nossos] Será também o padre quem ardilosamente incita os ânimos da personagem Dias, que nutre interesse por Ana Rosa, o que o coloca numa posição de ameaça iminente em relação a Raimundo. O vigário sugere uma tocaia: “Dias fechou os olhos e concentrou toda a energia no dedo que devia puxar o gatilho. A bala partiu, e Raimundo, com um gemido, prostrou-se contra a parede.” (p. 370) [grifo nosso]. Dias torna-se, pelo poder de manipulação do vigário, um dedo que puxa o gatilho, sendo o vigário o mentor do crime, mais um crime. O desfecho é o já previsível, Raimundo é assassinado, não se descobre o assassino material (aquele que puxa o gatilho) nem o mentor. A vida segue um rumo também previsível. Nas últimas páginas, ressurge a imagem de Ana Rosa, com 11 filhos, aparentemente feliz, casada com Dias. A descrição nas últimas passagens é a de um grupo familiar sem maiores problemas, sem indício algum da passagem de Raimundo pela vida daqueles que prosseguem. Parece não haver memória, nem no lugar, nem nas personagens, sendo a vida que prossegue uma realização dos instintos biológicos da natureza, sobrepondo-se à historicidade do sujeito. É notório no romance o modo como o autor enfatiza a falência dos sentimentos em face da realidade que norteia interesses, aceitação social e manutenção do status quo. O envolvimento político do projeto estético Realista dá-se principalmente pelo privilégio do meio social sobre os desejos das personagens. Após a leitura de textos críticos citados anteriormente, pode-se, então, destacar algumas marcas do Realismo, marcas estas que tem um valor enumerativo, mas não representam um consenso nos livros sobre o assunto: a) ênfase na realidade; b) predomínio da racionalidade e da razão, que parece funcionar com uma linguagem próxima à linguagem comum, ressalvadas as diferenças entre o campo literário e o real; c) distanciamento aparentemente racional entre o autor e os temas; d) objetividade; e) estética e política juntas como forma de transformar a realidade; f) retrato fiel das personagens, o que inclui a personagem feminina descrita sem traços idealizantes ou etéreos. Tais marcas ou qualidades podem se fundir a outras, sendo o leitor desses romances pouco a pouco habilitado para identificá-las sem proceder a processos de exclusão, mas sim de predominância. Quanto ao Naturalismo, como tentamos introduzir anteriormente, as marcas mais enfáticas são: a) o determinismo biológico; b) o objetivismo científico; c) características da realidade ou das personagens são vistas como temas de patologia social; d) predomínio dos métodos de observação e análise da realidade; e) descrição das personagens humanas a partir da ótica da sensualidade que aproxima homens e animais; f) lentidão nas sequencias descritivas; g) tendência à impessoalidade para tornar evidente o distanciamento entre o autor/narrador e a matéria narrada. As diferenças entre Realismo e Naturalismo podem registrar uma presença mais expressiva das obras e do ideário imagético de Gustave Flaubert (França) nos romances realistas, enquanto nas obras naturalistas, a identificação ocorre principalmente com as obras e o ideário, principalmente o registro na linguagem ficcional, de Émile Zola; predomínio do romance documental que prioriza a observação analítica, no romance 12 realista; o romance como tendo um objetivo primeiro de perscrutar a realidade social; as personagens. No Realismo, as personagens destacam-se do conjunto amplo de excluídos, de marginalizados e explorados, dando valor de protagonismo àqueles que são destituídos de valor social. No Naturalismo, temos exemplares das classesdominantes; uma preocupação com um tratamento imparcial que não trai ou denuncia a intensidade dos sentimentos ou valores ideológicos de seus autores. No romance experimental naturalista, prioriza-se a experimentação e a observação científica, o ambiente romanesco aproxima-se a um laboratório de experiências quase empíricas. No Naturalismo, as personagens são destituídas de marcas próprias, tendendo então o romance a simplificar as personagens, consideradas no reduzido contexto dos fatores biológicos, históricos, sociais que determinariam suas ações, o que dá um lugar qualificado às ciências biológicas que então se estabeleciam no cenário científico. 13 http://www.google.com.br/imgres? imgurl=http://educaterra.terra.com.br/literatura/realnaturalismo/rea_cortico.jpg&imgrefurl=http://educaterra.terra.com.b r/literatura/realnaturalismo/realnaturalismo_30.htm&h=223&w=300&sz=21&tbnid=taJX1cArHl49AM:&tbnh=94&tbnw= 126&zoom=1&usg=__HObxeBv1zL4vKOImpzpxZiyjh6I=&docid=y00SXzcapzZIPM&hl=pt- BR&sa=X&ei=WMKCUbnwFue60QGl7YDYDw&ved=0CD4Q9QEwAg&dur=878 Os romances Casa de pensão e O cortiço são considerados os melhores de Aluísio Azevedo, avaliados por uma crítica e um público exigentes, que reconheceram qualidades inovadoras. No entanto, J. Guilherme Merquior, crítico reconhecido na década de oitenta do século vinte, só enxergou o zolaísmo, a tara biológica e a crítica social (MERQUIOR, 1977, p. 115). Luciana Stegagno-Picchio considera que toda a obra de Aluísio Azevedo é de crítica ou de denúncia social, sendo Casa de pensão uma “estória em parte autobiográfica de um provinciano que, deslocando-se do Maranhão Natal para a Capital, deixa-se corromper e ser sorvido pelas areias movediças da imoralidade citadina.” (1997, p. 259) Se O mulato provocou tanta polêmica ao colocar como protagonista um personagem que não identifica a própria raça, que tem formação intelectual em instituições portuguesas, regressa ao Maranhão admitindo seu ateísmo, sem reconhecer o grau de preconceito e provincianismo presente no ambiente social e cultural no qual circula; em O cortiço, Aluísio Azevedo centra o ambiente do romance na cidade do Rio de Janeiro, reunindo “(...) pobreza, desemprego, sonhos, mortes e amores, e não lhe faltam doses de violência” (LAJOLO, 2004, p. 73) A crítica literária parece supervalorizar a dimensão autobiográfica na produção romanesca de Aluísio Azevedo, o que acirra ainda mais o valor da crítica social realizada pelo autor. No entanto, Casa de pensão é um marco na obra de Azevedo, pois torna visível, sem deixar dúvidas, o talento do romancista que soube transpor da realidade para a ficção as personagens e as situações que marcarão o vigor de sua produção artística e intelectual. O cortiço é talvez um dos romances mais lidos da literatura brasileira, e essa predileção pode ser compreendida, parcialmente, pela inclinação autoral de tratar na prosa assuntos polêmicos até hoje, acirrando paixões extremadas. 14 A sensualidade descritiva da prosa de Aluísio Azevedo é um motivo a mais para continuar certo fascínio sobre seus leitores, de todas as idades e gêneros. Nas palavras de Stegagno-Picchio, o romance é “dedicado a uma das pragas do Rio de Janeiro de fim de século: a promiscuidade da habitação coletiva no cortiço”, além de “estória igualmente de corrupção, toda ela centrada na observação da animalização humana estimulada pelo sexo e pelo dinheiro” (1997, p. 259), que tem sua identificação com a obra e as marcas descritivistas de Émile Zola (principalmente em Pot-Bouille e do Assommoir). O vocabulário da crítica literária enfatiza o tom moralista com que, muitas vezes, o romance realista e naturalista foi lido, ativando posições extremadas. Será Merquior o que mais atribuirá ao romance O cortiço as qualidades que o tornaram inesquecível e incontornável para aqueles que desejam conhecer a literatura brasileira. O crítico destaca o valor do coletivo, os caracteres múltiplos que compõem um elenco de personagens inusuais, até aquele momento, no romance brasileiro. Temos personagens capoeiras e proletários, entre todos aqueles representantes das camadas mais pobres da população. Em O cortiço, Aluísio Azevedo elege o ambiente marginal da cidade do Rio de Janeiro, as populações urbanas excluídas, primando pelo detalhismo que não singulariza personagens para torná-las protagonistas em destaque apenas, mas sim para torná-los parte inseparável da multidão de excluídos. Como afirma Merquior: A história do português João Romão, que enriquece explorando o trabalho dos hóspedes de sua infecta estalagem numa pedreira infernal, e planeja sua ascensão sem nada perder em matéria de brutalidade, é tanto mais convincente quando o autor atenua as explicações deterministas e o melodramatismo das situações. (MERQUIOR, 1977, p. 115) O crítico literário, portanto reivindica mais realismo do mais realista dos escritores brasileiros... Sem confundir ficção com história, é interessante e oportuno nos perguntarmos: o que dizem os historiadores sobre os cortiços e as doenças no Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX? Em recente pesquisa, o historiador Sidney Chalhoub investigou as condições sociais e ambientais dos cortiços na cidade do Rio de Janeiro. E parece ter encontrado o enredo de O cortiço... 15 INÌCIO DO BOX A narrativa do episódio da destruição do famoso Cabeça de Porco, ocorrido no dia 26 de janeiro de 1893, serve como preâmbulo para a construção de uma versão da história dos cortiços no Rio de Janeiro das últimas décadas do século passado, objeto do primeiro capítulo do livro. A associação classes pobres/classes perigosas, definida e veiculada por políticos e administradores num contexto marcado pelos conflitos, lutas e tensões produzidos no quadro das transformações nas relações de trabalho, estaria intimamente vinculada à qualificação das habitações populares como espaços de periculosidade, alvos, portanto, de uma ação repressiva. A intervenção das autoridades públicas sobre os cortiços seria legitimada através da ideologia da higiene, difundida por médicos e engenheiros, que assumindo, explicitamente, o “desejo de fazer a civilização europeia nos trópicos”, enquanto porta-vozes da verdade da ciência e escudados na isenção do tecnicismo, submetiam, na prática, a política à técnica, fazendo “política deslegitimando o lugar da política na história”. (ENGEL, Magali Gouveia. “Cortiços, febre amarela e vacinophobia: uma história na encruzilhada de muitas histórias”. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 1, n2, 1996, pp. 188-192.) Para maiores detalhes sobre o tema, consultar: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia da Letras, 1996. FIM DO BOX 16 Aluísio Azevedo e o Naturalismo: O homem http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://images.quebarato.com.br/T440x/o%2Bhomem%2Baluisio%2Bazevedo%2Bsao %2Bpaulo%2Bsp%2Bbrasil__2DE203_1.jpg&imgrefurl=http://sp.quebarato.com.br/sao-paulo/o-homem-aluisio- azevedo__2DE203.html&h=500&w=360&sz=57&tbnid=3rcaoOXkqeuJGM:&tbnh=90&tbnw=65&zoom=1&usg=__Yg0cJ3kCh D-bIxnzd0b76jzn2M4=&docid=CtJGs-y-Y2LCvM&hl=pt- BR&sa=X&ei=rseCUdPRKKTl0QH0tYC4DA&sqi=2&ved=0CEMQ9QEwBA&dur=86 O romance O homem foi publicado em 1887, sendo até hoje identificado ao Naturalismo, tão caro a Aluísio Azevedo. O romance apresenta ideiase recursos cientificistas, valendo-se das teses do determinismo biológico para reduzir a vida humana, marcada pelas interações e escolhas sociais, como um teatro de repetição e animalização dos interesses e afetos ligados à sexualidade. O prazer sexual é visto como mais um apetite humano, que impede a capacidade de discernir, escravizando, principalmente, as mulheres a uma vida de doença (a histeria) e delírio. 17 A crítica literária reconhece no romance uma evidência elaborada da leitura feita por Aluísio Azevedo do romance de Émile Zola intitulado Thérèse Raquin, publicado em 1867. O romance francês destaca a traição amorosa e o plano maquiavélico de assassinato empreendido pelos amantes, num ambiente de detalhamento realista, mas também de certa nebulosidade, como se a narração projetasse a mentalidade determinada e ao mesmo hesitante, cruel e gradualmente culpada das personagens protagonistas. Mas retomemos o enredo de O homem, de Aluízio Azevedo, história que se desenrola em direção ao sofrimento de Madalena, única filha do Conselheiro Pinto Marques, um burguês, autoritário e, ao mesmo tempo, afeiçoado à filha ao ponto de intervir drasticamente em vários momentos da narrativa. É uma personagem que representa o temor da sexualidade, principalmente a feminina, e que permanece dela distante, entendendo-a como manifestação de doenças psíquicas, de manias e fragilidades. Madalena apaixona-se pelo afilhado do pai, Fernando, o que será o início de sua existência trágica. Quando o pai descobre a afeição de Madalena, revela a Fernando que, na verdade, ambos são irmãos, sendo Fernando filho de uma relação fora do casamento. Fernando, chocado com a revelação e com o significado que assume o conhecimento de tal verdade para o futuro dele e de Madalena, retira-se do Rio de Janeiro, viaja para a Europa, afastando-se daquela por quem nutrira ardente sentimento. Como era previsível, o sofrimento de Madalena é intenso, levando o pai a revelar além do segredo de família os motivos para o afastamento abrupto de Fernando. A questão que se afigura para impedir o amor entre Madalena e Fernando é o incesto, tema que será recorrente na ficção naturalista da época, como se verá também na ficção portuguesa com Os Maias (1888), de Eça de Queirós. A questão moral alia-se finamente ao interesse cientificista pelo desejo amoroso e suas consequências. A esse elenco de proibições e intensa fonte de repressão sexual na sociedade soma-se a morte de Fernando, após um ano de sua viagem para a Europa. No artigo “O homem: possessão sexual, vampirismo e pecado original no romance O homem de Aluísio Azevedo”, a autora, Isabel Guimarães R. Freire, identifica no enredo não apenas marcas do Naturalismo e do determinismo biológico, mas sim “valores e símbolos anteriores à corrente literária referida”, funcionam como “resíduos da mentalidade medieval, que, por sua vez, contêm valores herdados de outras eras” (FREIRE, 2013). Desse modo, pela teoria da residualidade, citada por Freire, elaborada por Roberto Pontes, os 18 fenômenos que estariam implicados no romance azevediano seriam: a possessão sexual, o vampirismo e o pecado original. Para compreender a complexidade do romance, sem privilegiar uma leitura que explora principalmente os temas polêmicos, é preciso dar lugar ao romance e ao material que nele se apresenta como importante para a sua leitura. Temos então o Posfácio da obra escrito por Letícia Malard (2003, p. 207-219), que materializa a importância da circulação das ideias cientificistas, de Charcot e de Freud, principalmente, que colocaram a histeria como um tema chave para a ciência e a compreensão da sexualidade feminina: Nos fins do século XIX e princípios do XX é [a doença denominada histeria] abordada por duas condutas: pela primeira, os sintomas histéricos são creditados à sugestão, à autossugestão ou à simulação; pela segunda, a doença é vista como igual a qualquer outra, porém de caráter neurológico. Freud avançou além dessas condutas, considerando-a [a doença] uma doença psíquica cujas causas são específicas. Colocou-a relacionada às principais descobertas da Psicanálise, tais como inconsciente, fantasia, mecanismos de defesa e de recalque, transferência e identificação. Tratou-a através da psicoterapia. (MALARD, 2003, p. 216) No enredo de O homem, acompanha-se a trajetória de uma personagem cada vez mais solitária e reclusa. Madalena restringe-se ao seu quarto, no espaço privado da casa paterna que se torna um espaço de clausura. A personagem, chamada Magdá pelos íntimos, pouco a pouco, se vê fortemente atraída por um jovem, chamado Luís, filho da tia Zefa, noivo de Rosinha. Nos seus sonhos, a atração por Luís, por sua virilidade, confundia-se às lembranças de Fernando, seu primeiro amor. Luís é uma personagem que parece extraída de uma pintura de Coubert, trabalhava numa pedreira próxima, vivia impregnado de suor e resíduos da escavação. A proximidade das residências, de Magdá e de Luís, fazia com que a música, cantada por ele, junto a Rosinha, sua noiva e criada na casa do Conselheiro, chegasse até os ouvidos de Madalena, que tentava adormecer, na mesma noite em que viviam realidades tão diferentes: “Esta cantilena chegava até a casa do Conselheiro reduzida a uma toada errante e tão lânguida que entristecia”. (AZEVEDO, 203, p. 101). Os sonhos de Madalena são repletos de ambientes da natureza, tornando-se a pedreira, cenário de trabalho de Luís, uma montanha, “em plena efervescência de verdura e toda 19 coberta de flores.” (Idem, p. 102). O ambiente no sonho de Magdá não poderia ser menos romântico, enquanto a vida real assinalava um pesadelo insípido. A presença do médico da família, Dr. Lobão, não ajuda Madalena, pois ela o considera um estranho, um homem a quem não pode confiar seus delírios repletos de sensualidade. A jovem então clama pela Virgem Mãe Santíssima: “que a livrasse daqueles pensamentos impuros; que lhe mandasse dos céus todas as noites um dos seus anjos para lhe velar o sonho e impedir que a sua pobre alma, enquanto ela dormia, fosse vagabundear por ali, como a alma de qualquer perdida.” (Idem, p. 110). Seus sonhos continuam cada vez mais impregnados de uma realidade tão frustrante quanto os seus dias. O homem, que aparecia em seus sonhos, era uma soma das qualidades de Fernando, enquanto, também no sonho, o pai de seu filho, um menino, é Luís, o noivo de Rosinha, sua empregada. O filho, dos sonhos de Madalena, torna-se tão real quanto qualquer outra: “O filho era a sombra de Fernando; ela vivia para esta sombra.” (Idem, p. 165). Habitante de uma ilha tão bela quanto sonhada, Magdá começa a urdir maneiras de provocar a morte de Rosinha e de Luís, o que faz envenenando o vinho que oferece aos noivos, num último brinde macabro. O resultado vem logo a seguir: “Rosinha e Luís agonizavam ao lado um do outro; a boca muito aberta e as ventas arregaçadas à falta de ar” (Idem, p. 198). Ao perceber a morte de ambos, o Conselheiro pede socorro, mas já é tarde. Os gritos de desespero dos empregados levam a notícia da morte à vizinhança. Em breve, a casa foi assaltada por uma porção de gente. A mãe e a avó do cavouqueiro entraram na carreira, terríveis, desgrenhadas, estralando com os tamancos no soalho – os braços nus, a saia enrodilhada na cintura – a bramirem chorando; ao passo que o Conselheiro deixava-se estrangular pelos soluços,atirados ao fundo de uma poltrona, com o rosto escondido entre as mãos. (Idem) O final do romance culmina com a chegada da polícia para fazer o corpo de delito. Madalena finaliza com sua realidade delirante, afirma, acariciando os cabelos do cadáver de Luís: “Este é o meu querido esposo bem-amado, pai de meu filho, senhor poderoso na terra e descendente de Deus; matei-o e mais a essa outra que aí está, porque ele me traiu com ela!” (Idem, p. 199). A crítica à religião é um destaque dos escritores naturalistas, principalmente Aluísio Azevedo. Ainda com as palavras de Letícia Malard, no romance O homem, a “ideia de 20 Deus existe, mas não se vincula a determinada religião nem a princípios morais” (MALARD, 2003, p. 217). Diferente do que acontece em O mulato, em que o vigário é um notório vilão, em O homem, um dos aspectos da doença de Magdá é a crença religiosa que não a liberta do delírio, pelo contrário, prende-a nele, tornando-a uma presa fácil do diagnóstico de louca e assassina confessa. Também se pode ler, em O homem, uma fina crítica ao celibato imposto pela religião, contrariamente aos instintos naturais de homens e mulheres. Para Malard, até hoje a crítica literária não reconhece o valor da obra O homem, de Aluísio Azevedo, considerado, desde a sua publicação, “literatura menor, caricatura grotesca eivada de exageros desnecessários, no conjunto da obra de Aluísio Azevedo” (Idem, p. 218). Até a atualidade, o romance é desqualificado por sua “temática sexual – não pornográfica, mas doentia e antirreligiosa – tratada com a crueza do Naturalismo” (Idem). O que sobressai, no entanto, é que O homem é um romance de seu tempo, mas não se encerra no passado, enfatiza o quanto o enredo fictício reapresenta ou torna legível a realidade social, científica e filosófica de uma época. Os autores desse período e movimento sofreram, por sua vez, a marca de estar à sombra da figura de Machado de Assis. Os críticos são quase impiedosos com todos os demais escritores. Mas, na obra de Aluísio Azevedo, até o que era considerado defeito apresenta-se hoje como uma marca autoral. A via ficcional escolhida por Aluísio é uma via construída muito particularmente por uma produção intelectual e artística que buscou interpretar e se apropriar das questões e contradições de seu tempo. Sem ironia. Ou com menos ironia. Seus temas e histórias escolhem a linguagem, o enquadramento do narrador, a seleção de cenas e ações. É um autor que não se deixa aquietar pelo cânone, por seus critérios implacáveis. Sente-se na obra de Azevedo a procura por um lugar. E esse lugar talvez ainda não tenha sido a ele concedido. Por esse viés, a produção literária de Aluísio Azevedo permanece atual e é um sucesso indiscutível. 21 ATIVIDADES 1) Após estudo de textos críticos citados durante as aulas (por exemplo, de Merquior, de Bosi, Lúcia Miguel Pereira, etc), identifique as qualidades que considera definitivas para o romance realista e para o romance naturalista. 2) Ao ler textos de História, indicados durante as aulas, o tema da ciência é tratado em sua dimensão social, mostrando o quanto a vacina, por exemplo, atingiu em cheio as crenças e os preconceitos dos populares. Em sua opinião, a ciência conseguiu ultrapassar as barreiras dos preconceitos? Comente. 3) A linguagem dos romances de Aluísio Azevedo primam pela descrição, em prejuízo da narração. A descrição favorece a compreensão do ambiente social e também do psicológico. Dos trechos citados dos romances, destaque um que exemplifique essa afirmação, e, depois, comente. Bibliografia AZEVEDO, Aluísio. O mulato. Porto Alegre: L&PM, 2002. ______. O homem. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2003. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa. Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010, p. 104. 22 BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999. FREIRE, Isabel Guimarães R. “O homem: possessão sexual, vampirismo e pecado original no romance de Aluísio Azevedo”. In: http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2013/TEXTO %2008_jj.pdf. Acesso em 02/05/2013. MALARD, Letícia. “Posfácio.” In: AZEVEDO, Aluísio. O homem. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 207-219). MELLO, Celina Maria Moreira de; CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira (Org.) Crítica e movimentos estéticos – configurações discursivas do campo literário. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 137-165. MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Liv. José Olympio, 1977. PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). História da Literatura Brasileira. São Paulo: EdUSP, 1988. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A., 1997.
Compartilhar