Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CURSO: Letras DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA II CONTEUDISTAS: Luiz Fernando Medeiros de Carvalho e Fabio Marchon Coube Aula 16 - Resistência social e política em Armando Freitas Filho Meta Apresentar a dinâmica formal da poesia de Armando Freitas Filho. Objetivos Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1. Identificar detalhes formais da poesia de Armando Freitas Filho; 2. Reconhecer como a poesia dialoga com o contexto social e político em épocas determinadas; 3. Realizar uma leitura críticorreflexiva da obra do autor. Introdução Essa aula tem como interesse primário desenvolver algumas considerações acerca da resistência social e política na obra do poeta carioca Armando Freitas Filho. No entanto, faz-se necessário contextualizar o leitor em relação à vasta obra de um dos nossos principais autores contemporâneos. Com o livro Dever, Armando completou em 2013 cinquenta anos de uma vasta atividade poética iniciada em Palavra, de 1963. Logo, percebemos desde início um produtivo poeta que nos proporciona desde a minuciosidade de um ÁTIMO à amplitude existente na vida humana. O leitor irá se guiar por uma tortuosa viagem poética, desde a complexidade dos temas sociais até a metalinguagem em nome de uma herança que vai da arte, do cinema, às mais variadas obras literárias. Verbete ÁTIMO Refere-se a uma parte pequena de algo, uma porção mínima. Fim do verbete 1. Primeiras considerações acerca do maquinário poético de Armando Freitas Filho Antes de começarmos o tema específico da aula, seria necessário apresentar alguns poemas que marcam a poesia mais recente de Armando Freitas Filho. Pois a obra do referido poeta pode ser vista também como algo contínuo, tal e qual a vida humana, com anseios e angústias que permanecem em características de um enxerto que se estabelece na pele de quem sente. Mas também é uma poesia que se abre para aquilo que não conseguimos deduzir quando sentimos. A poesia de Freitas Filho procura aguçar os sentidos do corpo, a mobilidade, os arrepios, o calor dos poros, como uma escrita poética produzida com lentes de aumento em relação aos acontecimentos cotidianos. Em seu livro Numeral, Nominal, de 2003, há um poema muito significativo, intitulado Móvel. Vejamos o poema: Móvel Mesa seca, no osso, sem o viço de origem. Com os quatro pés de esqueleto, já sem raízes pisando na terra, prestes a se quebrarem. A madeira é quase lenha que não lembra mais quando ousou folha flor fruto, vergou sua copa o tronco, com os ramos estalando sob o vento. Quando deu sombra e intervalo ao sol. Quando foi árvore de onde a ave deriva. (FREITAS FILHO, A. 2003, 58) Neste poema, muitos elementos da obra toda ressurgem e são dispostos na construção de sua arquitetura. Como, por exemplo, a árvore, o bosque, a madeira como símbolos da vida. É o que ocorre também em outro poema de Numeral, Nominal, intitulado 10 anos, Flor masculina do meu bosque/ seu cheiro começa a ser íngreme/ árduo – de cabelo e músculo/ – de dias ardidos de escalada. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 58) Trata-se de um poema sobre o tempo, a origem de uma árvore e o estágio atual de um móvel derivado daquela árvore. Trata-se de uma meditação sobre o trabalho do tempo sobre as coisas. O poema reproduz em sua estrutura esse aproveitamento das letras em seu interior. Por exemplo, a aliteração existente em “folha, flor, fruto”, assim como “ave deriva”. As letras retornam no poema e causam efeitos metamórficos, a constante transformação das coisas em relação ao tempo. A árvore agora é móvel, e quase não lembra mais de sua origem. É uma descrição plástica de uma natureza tornada morta. Início do Boxe Explicativo Para prolongar a discussão acerca do poema “Móvel”, ver: CARVALHO, L. A folha como véu. Rio de Janeiro: Caetés, 2012. Fim do Boxe Explicativo Início do boxe de curiosidade Figura 16.1: Antes de se tornar mariposa, o animal passa por um processo de metamorfose, passando pelas fases de lagarta e crisálida. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Metamorfose.jpg Autor da imagem: Gilberto Santa Rosa Metamorfose tem a ver com a transformação de uma coisa em outra, exatamente como no caso ilustrado na imagem. Na poesia de Freitas Filho é pode-se perceber a metamorfose como a natureza que se transforma em outra coisa, deixando de ser o que um dia foi. Fim do boxe de curiosidade Assim, dividido em duas metades nítidas, o poema contrasta ostensivamente com o que se arquiva da árvore/natureza com seu estágio atual na dimensão da cultura. Para isso, o olhar retrocede no tempo de modo a flagrar os possíveis cenários de onde o objeto do presente teria vindo, numa leitura exemplarmente transgressora: para fora do temático, para fora do utensílio e para fora do humano. E com esse procedimento o poema apresenta aquilo que a armadura geral de todo o livro e também seu particular ensinamento, constituído pelo registro obstinado de um modo de olhar que instaura um outro modo de usar o objeto sobre o qual se debruça – ambos, não por acaso, móveis. Trata-se de um móvel, apenas. É como se o olhar testasse nas coisas o que vai percorrer nas pessoas. Da constatação, entretanto, surge um visgo contido naquela exuberante e antiga árvore. Esse traço de melancolia é a componente da aporia. A árvore é viva, lugar de vivacidade e o poema também se quer vivo, vai para o papel não para morrer. Como suporte metonímico do poema, a mesa, entretanto, envia o aviso de que pode se quebrar. A mesma mesa que produz a vivacidade do vivo no poema é pensada como lugar de impasse. O deslocamento do olhar concentra-se no humano. A corrosão no tempo, agora não mais na perspectiva da origem, mas na perspectiva do deslocamento para o futuro. Entre a origem e o futuro. Além desses comentários, há que se destacar outros aspectos muito interessantes no poema. Há uma animização da madeira, uma espécie de subjetivação. Como se a madeira, no seu estágio atual de móvel carcomido pelo tempo, tivesse uma espécie de Alzheimer, um esquecimento proveniente de um desligamento da origem árvore. Esta madeira não lembra mais quando “ousou folha flor fruto”. Tudo é muito interessante neste verso. O verbo ousar indicando a juventude da madeira, o seu caráter aventureiro de assumir riscos. A sequência folha flor fruto, sem vírgulas, indica um composto da árvore, como imagem que vibra na memória. Do ponto de vista formal é uma herança da prática modernista de abolir as vírgulas e liberar as palavras na frase. A frase “não lembra mais” entra só uma vez no poema, e fica em elipse provocando o leitor que precisa acioná-la por mais duas vezes enquanto lê os versos seguintes: “Quando deu sombra e intervalo ao sol./Quando foi árvore de onde a ave deriva.” Este último verso é interessantíssimo porque constrói uma relação formal entre árvore e ave, uma espécie de etimologia poética, somente oferecida como dom do poema à compreensão do leitor. A ave efetivamente deriva da árvore como lugar de espaço, como habitat usual do pássaro e no poema como derivação da forma árvore, já que seus fonemas já estão contidos no interior da sequência /árvore/. Início de Boxe de Curiosidade (NP: Profs, confesso que não consegui entender porque falamos de Francis Ponge neste momento. Acho que é preciso explicar melhor qual a ligação deste poeta com a poética de Armando Freitas Filho para que o estudante consiga relacioná-los.) (NP: Poderia esclarecer a relação entre Francis Ponge e Freitas Filho?) Figura 16.2: Retrato de Francis Ponge. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Francis_Ponge#/media/File:Francis-Ponge.jpgNascido em 1899, em Montpellier, França, o poeta Francis Ponge, tem como característica trabalhar o que é natural como parte integrante de seu ser. O mundo dos objetos o fascina, e faz com que boa parte de sua obra seja dedicada a eles. Os objetos emudecidos são ricos para uma poética das palavras que se destina às coisas. Assim como há certo fascínio de Armando Freitas Filho pela mesa que segura o poema, a caneta, a máquina de escrever, etc. A palavra por si só, é algo rude, mas é o material que serve para transbordar o fazer poético. Vejamos como exemplo seu poema denominado A Mesa, de 1967: A mesa Mesa que foi minha mesa Lembrar-me-ei/ de ti, minha mesa, , mesa Não importa qual, mesa qualquer que seja. A mesa, quanto a mim, é onde me apoio para escrever, [mas] No entanto na verdade Que eu me instale nela, não que eu me sente e mãos com pernas e pés embaixo, braços em cima, minha escrivaninha deitada em cima dela para o que eu inclinaria um pouco o busto e a cabeça e dirigiria meu olhar (PONGE, 2002, p. 177) Fim de Boxe de Curiosidade O poema “Móvel” resume, em parte, a obra de um poeta em vigília com aquilo que o cerceia. Escrever poesia é como um talhar de uma madeira, causando tremor ou barulho nas paredes de um quarto. Sentir o fremir constante de um vento brando, soar ruidosamente as palavras diante dos acontecimentos. É perceber uma folha a cair da árvore prestes a se tornar mesa. Nessa perspectiva, o poeta se interessa não apenas pelo que está presentificado ou facilmente visível. Escrever poesia é uma atividade que procura os talhos, é algo influenciado pelo som do dedo na tecla, do barulho externo, do olho que fecha e abre, como se tudo pudesse fazer parte de uma verdadeira engrenagem que produz poesia. Para isso, os sentidos precisam estar aguçados. E nessa esteira, a origem da árvore do poema anterior pode ser vista não como retorno à árvore, mas tudo aquilo que a rodeia, sendo a folha caída também, e continua na mesa. Início de Boxe de Curiosidade Figura 16.3: Máquina de escrever Valentine, da marca Olivetti, de 1970. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Olivetti-Valentine.jpg#/media/File:Olivetti- Valentine.jpg"> Objeto de inspiração do fazer poético, a máquina de escrever é um instrumento mecânico capaz de imprimir caracteres sobre uma folha de papel. Este objeto maquínico é datado de 1714. Com o advento do computador, muitas máquinas de escrever se tornaram objetos obsoletos, dada a sua limitada funcionalidade. No entanto, o contato direto com o texto produzido, assim como a impossibilidade de “deletar” a letra, uma vez escrita, imprime até hoje marcas nos poetas contemporâneos. Fim de Boxe de Curiosidade Segundo Viviane Bosi, em “Objeto Urgente”, Armando Freitas Filho vem: Adensando ao ponto de transfiguração todos os elementos que compõem o seu percurso, sempre numa profundidade superior, que nos permite ver com clareza a consistência de uma poética, tanto em sua particularidade quanto nos pontos comuns com seus contemporâneos (BOSI, V. 2003, p. 5). Para tanto, a autora propõe percebermos o diálogo oriundo da tensão existente à presença do homem em relação ao seu tempo de vida. Essa complexa existência é numerada por datas, atos nomeados que remetem às coisas. Nesse sentido, Bosi dirá que “Há uma coragem entre a raivosa e erótica, que arremete para dentro das coisas – não em consonância, mas em desafio” (BOSI, V. 2003, p. 5). Para continuarmos essa discussão, vejamos o seguinte poema: 4 VII 98 A mão é que pensa, pesa e apanha o que a cabeça imagina. As veias de hoje, grossas, no dorso, não dormem. No início foram invisíveis. Depois diante da vida, durante – firmes. Só se desenhando nítidas no instante Do impulso, susto, pegada. Agora ao fim, não se apagam. Saltadas sempre não precisam de nenhum empenho. para surgirem, azuis, paradas no esforço cheias de sangue, passando por dentro: duro, batido. (FREITAS FILHO, A. 2003, 576) Logo, para o poeta, traçar já é re-traçar, sem ter uma origem acessível entre as lacunas existentes em um pensamento, como porosidades. O poeta considera a mão como continuação do pensamento. Uma máquina de escrever é o prolongamento da mão. Mão que faz o poema, com suas veias esguias, que pode ser vista desde a sensibilidade da palma ao copo ao lado da mesma. Com suas marcas de tempo e de uso. E mesmo assim, ainda produz um poema. É o que podemos ver também no numeral 19: 19 Escrever o pensamento à mão Reescrever passando a limpo passando o pente grosso, riscar rabiscar na entrelinha, copiar segurando a cabeça, pelos cabelos batendo à máquina(...) (FREITAS FILHO, A. 2003, 43) Perceba que o poema nos faz pensar no erro como objeto de construção também do texto. É como se estivéssemos com aflição de apagar o que agora não pode mais ser apagado. Nessa perspectiva nos resta aprender a conviver com esse maquinário errante que é escrever a palavra, fazer poesia. Início da atividade Atividade 1 Atende ao objetivo 1 A partir da leitura sobre a produção poética em Armando Freitas Filho, explique como um objeto pode servir de inspiração para o poeta. (DIAGRAMAÇÃO: Deixar 10 linhas para resposta) Resposta comentada: Como você pode ver nos poemas citados até agora, em Armando Freitas Filho, escrever poesia por si só já é algo muito relevante e inspirador. Logo, para o poeta, faz-se necessário aguçar os sentidos das coisas que o rodeia e perceber, por exemplo, na mão que segura a caneta, na respiração de quem escreve, no toque das teclas, na mesa que não somente sustenta o poeta ao produzir o poema, mas também é vida, já foi árvore que quase “não lembra mais”, teve folhas que caíam, eras o habitat de aves, é vida que o poema quer ter para não morrer entre outros pensamentos. Fim da atividade 2. Contexto social e político As características sociais e políticas começam a influenciar o contexto da poesia de Armando Freitas Filho a partir dos acontecimentos ditatoriais e, sobretudo, após o AI-5 em 1968. Palavras que remetem à violência começam a ganhar força, paulatinamente, na configuração do poema, na perspectiva social vivenciada pela repressão, e a legitimação da força a partir dos generais e outros líderes da ditadura brasileira. É nesse momento que vemos temas serem inseridos, como a passagem do tempo ao encontro da ação da força. Em Numeral/Nominal, último dos livros que integram a alentada edição de sua poesia reunida, intitulada Máquina de Escrever (2003), o poeta Armando Freitas Filho formula a obsessão com o tempo como força do limite - como se o ponto extremo a que sua obra estava alcançando naquele momento ameaçasse paralisar a mão que escreve através do exercício minucioso e exaustivo do testemunho da passagem do tempo que impregna todas as coisas. Em “10 anos”, é o numeral que aparece seguido pela dedicatória ao filho Carlos. O que é dito é ainda força de futuro, irrupção. Tudo é preparação para o aguçamento do princípio corrosão: “Mas a infância já se feriu, inevitável/ ao entrar na casa dos dois dígitos para sempre”. Vejamos: (...) a pele lisa que a barba e a acne Ainda não contrariam, o ar de entrega Que se mantém embalsamado pelo sono ou por algum sonho de maldade, com mulher de celofane, Mas a infância já se feriu, inevitável ao entrar na casa de dois dígitos para sempre. A dor de alterar-se, de altear-se Estala, e a inocência também é de sangue. Uma e a outra se quebram e reanimam-se: têm o mesmo comportamento,prazo bravio e breve, das ondas do mar. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 58) Observe-se a utilização da expressão adverbial “para sempre” como acelerador do processo TELEOLÓGICO da corrosão até chegar à palavra “prazo”: “A dor de alterar- se, de altear-se/ estala, e a inocência também é de sangue./Uma e outra se quebram e reanimam-se:/têm o mesmo comportamento, prazo/ bravio e breve, das ondas no mar.” Verbete TELEOLÓGICO Refere-se à teleologia, estudo dos propósitos das coisas, das finalidades do universo. Fim do verbete As preocupações com o tempo e com o rumo dos acontecimentos do mundo aumentam com chegada do primogênito aos 10 anos de idade. Sabendo que dessas dezenas não irá passar. A dimensão em relação à vida e uma simples onda na arrebentação é um dos sintomas da brevidade do tempo, e para isso, o poeta lança seu olhar, com hesitação, configurando sua poesia aos rumos do contemporâneo. À vinda do acontecimento. No livro Raro mar, o mar como cenário paradisíaco registra também uma natureza apta às modificações humanas através do cimento, como as construções habitacionais que compõem a cena e encurralam cada vez mais a margem natural da cidade. É o que podemos ver em “Litoral”: Cheiro de suor morto à luz latejante Da sirena, com sonoplastia feita De rumores, dos sustos curtos sob o cerco Das amontoadas montanhas atormentadas Não pelo raio, nem por nuvens pretas Ou a chuva de pedra, trovoada, tempestade. A natureza, num instante, sai do lugar Da margem do risco que o mapa permite: Nada, como um dia depois do outro, nada. (FILHO, A. 2006) A violência inserida no contexto social de uma grande cidade. O contraste entre o que se vivencia entre o mar e o cimento tem em Raro mar um registro tormentoso, asfixiante, barulhento, capaz de tornar cada instante um risco que contorna as ruas. A natureza impetuosa e inquieta é ocultada, afunilando-se à morte implícita. O cimento avança sobre a natureza retraída, que dá lugar cada vez mais ao solapamento do cinza das casas e do asfalto. Paisagem rarefeita e aberta ao caos da violência urbana. Exemplifiquemos com mais uma passagem: Susto de montanha, detalhe de mar Morrendo – o sol flagrante. Vista de helicóptero, as casas se alastram Sob o rap, o zap, o bater das hélices Como jogos de armar que não acabam Pois faltam peças da mesma marca E se repuxam, nas lajes. (FREITAS, A. 2006) Sobre as montanhas, as casas se ramificam, mesmo sob as hélices e as armas, oriundos de conflitos gerados pela guerra estabelecida pelo tráfico. A poesia de Armando marca no poema “Morro” esse duplo sentido de morar e morrer, pois a vida fica em suspensão do “peso de cada dia indeciso” (FREITAS, A. 2006). Início de Boxe de curiosidade Uma influência perceptível de Armando Freitas Filho em relação à representação da violência e da transgressão pode ser vista no poema “Riviera”. Nesse poema, há alusão em relação ao filme Acossado, de Jean-Luc Godard. Inserido na Novelle Vague, o filme de 1960 retrata a história de amor entre Michel, um criminoso, e Patrícia, uma jornalista que acaba envolvida e se apaixonando pelo transgressor. Vejamos o traço apaixonado e transgressor inseridos no poema: RIVIERA Acossado, no subsolo, pelo gesto gratuito preso na cadeira durante duas sessões sob o pulso entrecortado do crime e do amor livre, errático, debaixo do lençol e da morte, disparada na rua: Traído! Denunciado! Entregue! Atingido nas costas, correndo até cair no asfalto de cara para o céus e para o rosto do anjo delator distante, indiferente, americano(...) (FREITAS FILHO, 2009, p.81) Fim de boxe de curiosidade Os meios de comunicação transmitem a morte em código, através dos aparelhos celulares. Não há mais como vislumbrar a cidade sem reparar em aspectos de violência. É nessa perspectiva que podemos ver uma influência de elementos externos, sejam eles sociais ou políticos, em relação à poesia de Armando Freitas Filho. É o que acontece, por exemplo, no poema “Império”. Vejamos um trecho do poema: Torres. Terror. Cada uma parece Um 1. As duas juntas marcam o dia do espetáculo e a soma dos alvos prateados em fundo azul matinal 1 minuto antes. 1 minuto depois o que foi 1 Número íntegro se parte em N (FILHO, A. 2006) Segundo Carvalho, O poema ‘Império’ reúne as referências sobre a data onze de setembro e encena oantes e o depois do acontecimento. Agora toda a concentração corrosiva funciona para pensar o acontecimento político. Forma plástica de dizer o poema através da experiência concretista visual, dizer com outros signospara além do verbal. (CARVALHO, L. 2012, p. 34). Vejamos mais um trecho do livro para exemplificar a referida abordagem acerca do poema: Poema da meditação sobre o estilhaçamento da unidade. Nomeia o número, identifica o número e trabalha a ruptura de sua unidade. No poema “Império” concentra-se toda a poética do livro: fazer surgir de um todo as microformas da dispersão e do corte, ao mesmo tempo ponto máximo da encenação da corrosão e resposta múltipla à paralisia. Ali onde existe a ponta de resistência do uno, a divisibilidade age (CARVALHO, L. 2012, p. 34). Dentro dessa conjuntura, podemos notar que é proporcionada no poema uma cena que nos projeta a imaginar a dispersão da unidade, a cena em que o poema apresentado nos leva a perceber o disfarce de uma unidade. Logo, o efeito é de provocar poeticamente o múltiplo. Não se trata de um poema sobre um acontecimento. O exercício é sobre a linguagem na sua poderosa proliferação transgressiva, para fora da organização de um centramento do olhar. O ponto central do poema é a realização visual das duas concentrações de unidade assinaladas pelo numeral no início e no fim do poema: “1 minuto depois o que foi 1” realização formal da ideia de unidade, da ideia de centramento da soberania, e sua transformação visual em N, semioticamente realizando a queda , a transição para o nada, para o zero. 1 minuto depois o que foi 1 número íntegro se parte em N em 1001 decimais do que era uno de sol, vidro, aço, pedra e esplendor no dia 10 e agora é 0. (FREITAS FILHO, A. 2006, p.73) E já que falamos em poema político, destaque-se o poema de cunho social que está em seu livro Raro mar de 2006, Unready-made. Trata-se da descrição e composição no poema de um carro-carroça-casa que vai sendo montado enquanto o poema se mostra ao longo de seus versos, para evidenciar o processo de sobrevivência de um morador de rua, processo que o poema tenta elaborar enquanto se mostra na invenção das palavras: Unready-made Mix de catre-carro-arca feito de desmanche De madeira disparatada, céu aberto, desastre. Motor arcaico de músculo moído, suor, berro- /arcacatrecarro/ - empurrado pedra acima. Ponto de partida, de chegada de récamier primitivo Carroarcatre cheio de jornal, cacareco, catapapel (...) e junta parcelas no chão do percurso carrocatrearca rangendo no asfalto sobre rolimãs movido a álcool, cola, a calão na fala estropiada. (FREITAS FILHO, A. 2006, p.59) O título remete à expressão “ready-made”, ou uma coisa pronta deslocada do seu uso normal para ser instalada em outro ambiente e assim ganhar novo sentido, desenvolvida pela primeira vez por Marcel Duchamps. No entanto, essa coisa pronta é o que resta, o que sobra sobre o asfalto, como em um carro de mão de um catador de papel. O que está pronto na cidade é a pobreza, o lixo lançado às margens da rua a céu aberto. O que já está pronto não é objeto de desautomatização da arte, mas a vida lançada nas indecisas ruas da vida cotidiana na cidade. Início de boxe de curiosidade Figura 16.4: Retrato doartista francês Marcel Duchamp (1887-1968). Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marcel_Duchamp_01.jpg Autor da imagem: George Grantham Bain Collection (Library of Congress) O artista, escultor e pintor Marcel Duchamp nasceu na França, em 1987. É considerado o inventor do ready made, que traria uma revolução na percepção da arte ao se projetar para aquilo que já está pronto. A transposição da arte pelas coisas para fora do seu uso habitual provocava o que podemos chamar de desautomatização da arte, como a obra de grande impacto na época denominada “A fonte”. Essa obra, rejeitada como objeto artístico em um júri dos Estados Unidos, é objeto de inspiração para discussões que vão da arte até ao pensamento psicanalítico, devido a sua forma passível de sexualização. Figura 16.5: A Fonte. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fontaine_Duchamp.jpg Fim de boxe de curiosidade O acréscimo do prefixo- un - designa o caráter interminável da combinatória formal do poema entre as palavras carro, catre e arca. Destaque-se também o poema político, inscrito no livro “longa vida”, de 1982, intitulado As paredes têm ouvidos: As paredes têm ouvidos/ainda/ recordam e guardam/ as manchas, a impressão/dos gritos feito grades/do sangue salpicado/das sombras/dos guardas/ ainda/não foram abertas/ as janelas/ e pelas aberturas/rasgadas/ o vento não passa/ não sopra/ o céu não corre livre/ esvoaçante/em desfraldado azul/embora lá fora/é bom lembrar/noventa milhões em ação/cantaram/pra frente Brasil/pra não escutar/dos nossos corações/o susto-soluço-síncope/pois enquanto a bola/rolava/ fora das quatro linhas/ o pau-de-arara cantava/ comia o sarrafo, baixava a botina/e a cortina/ sobre os Arquibaldos/os Geraldinos/ e todos juntos vamos/pra frente, pros porões/ levados pelos Macários / (...)diante das tevês/o esquadrão de ouro da morte/toca a bola, manda bala/ é bom no samba/é bom(principalmente)no couro/e se a Copa do Mundo/ é nossa/ para sempre/ como brasileiro/não há quem possa/se esquecer que fora do estádio/expulsa das arquibancadas/ a torcida explodia/ e vaiava/ a dor de tantos gols contra/ em silêncio”. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 327) Neste poema aparece o aproveitamento dos clichês, dos provérbios que são estratificações da língua popular, aproveitamento de marchas que compuseram a ideologia de expansão consumista e ufanista no período autoritário do regime militar porque passou o Brasil. Início do boxe de curiosidade Figura 16.5: Militares protegendo o Palácio da Guanabara, no Rio de Janeiro, durante o Golpe de 64. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Guanabarasandbag.jpg Autor da imagem: Arquivo Nacional Em 31 de março de 1964, militares contrários ao governo de João Goulart (PTB) destituíram o então presidente e assumiram o poder por meio de um golpe. O governo comandado pelas Forças Armadas durou 21 anos e implantou um regime ditatorial. A ditadura restringiu o direito do voto, a participação popular e reprimiu com violência todos os movimentos de oposição. Fonte: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/ditadura-militar-1964-1985-breve- historia-do-regime-militar.htm Fim do boxe de curiosidade Tudo isto é revisto neste poema que nasce desses interstícios e mostra uma outra face, o poema que nasce desse jogo com as palavras. O poema convoca e mostra outros sentidos ocultos pela superfície ideológica do sistema vigente: “(...) E salve a seleção” é trecho de marcha triunfalista da campanha de 70 da seleção brasileira de futebol, seguido pela enunciação do sujeito lírico “ salve-se quem puder”. Desse confronto vai nascendo o poema como atrito e mostrador dos conflitos. O poema recua em slogans de campanhas futebolísticas anteriores a 70, mergulha no inconsciente da língua das marchinhas populares para produzir um novo fraseamento: “‘e se a Copa do Mundo/ é nossa/ para sempre/ como brasileiro/ não há quem possa’... E então chega ao poema o novo fraseamento, este do poema que nasce para meditar no cristalizado pela operação ideológica”. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 327) Após essa passagem, a inserção do futebol como escape dos problemas políticos inerentes à ditadura militar, uma vez que, dentro do estádio, o brasileiro passava a ser torcedor, com direito a voz que não poderia ter enquanto manifestante ou oposição naquela conjuntura “(...) como brasileiro/ não há quem possa/ se esquecer/ que fora do estádio/expulsa das arquibancadas/ a torcida explodia/ e vaiava/a dor de tantos gols contra/ em silêncio”. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 327) A poesia de Armando Freitas Filho é mais que uma voz, é vibração e sopro, fôlego captado e inserido no poema. Do cimento que encurrala o mar à torcida incandescente louca por um grito de liberdade, o poeta se faz vivo em traços e retraços do tecer a vida com a morte. Pois é entre essa linha tênue que encontramos seu poema. Início da atividade Atividade 2 Atende ao Objetivo 2 Com base na leitura da aula, como você entende a situação política brasileira através do poema “As paredes têm ouvidos”? (DIAGRAMAÇÃO: Deixar 10 linhas para resposta.) Resposta comentada: Para entendermos o poema, faz-se necessário compreender o contexto social e político vivenciado pelos brasileiros na época. O livro Longa Vida, datado de 1982, ano que precedeu as primeiras manifestações em torno das eleições diretas para Presidência da República no Brasil, ressoa vários aspectos que contemplam a necessidade de representação através do grito da torcida, do desejo de reivindicação e questionamento através do futebol, instante singular de clamor público, uma vez que era também ano de Copa do Mundo. No momento em que se encontra dentro da torcida, há a voz popular, silenciada pela repreensão da ditadura militar fora dos estádios. E, voltando ao poema, a maneira de silenciar a população, segundo o poeta, era como um verdadeiro gol contra. Fim da atividade Início da atividade Atividade Final Atende ao Objetivo 3: Em “À flor da pelo, no livro “À mão livre”, de 1979, Armando Freitas Filho constrói um poema derivado de um verbete do Aurélio, intitulado “pele”. Vejamos dois trechos: I. Pele áspera, por doença ou carência, por doença ou carência. 2. Pele arrepiada pelo medo, pelo desejo, pelo choque elétrico, pelo frio cimento de um animal muito magro. Cair na pele de. Cair na pele de, com cassetete em punho. Bras. Pop. Zombar ou escarnecer de você algemado; gozar! Cortar a pele de. Fazer mal (a alguém); torturar; tosar a pele de. Estar na pele de, e enfiar agulhas sob as unhas. Estar na posição, situação, etc., ocupada por (alguém), e então avaliar todo esse sofrimento; estar; estar no lugar de. Salvar, de qualquer maneira, a pele. Bras. Esquivar-se da responsabilidade em mau ato porque o Brasil é grande; livrar-se de castigo ou reprimenda. Sentir a pele do torturado. Ressentir-se profundamente de (alguma coisa) que, agora, só e cicatriz, lembrança envergonhada, nem isso talvez; sofrer na própria carne sua invasão blindada. (...) II. Sentir a pele do torturado, do empalado. Ressentir-se profundamente de (alguma coisa) que, agora, com a possível mudança da história e do regime de encolha, só é cicatriz, lembrança envergonhada, nem isso talvez; sofrer na própria carne sua invasão blindada, marcial. Tirar a pele (ah!). Explorar, defraudar, violar, matar (alguém) sem nenhum remorso, pois o país não tem memória nacional; tirar a pele de, até o osso, e xingar. Tirar sua pele de você, sua identidade. Gozar na pele de, impunimente, com a polícia a seu favor, para sempre. Cortar a pele de, e esquecerde tudo isso bem depressa, pois agora a história é outra, as águas passadas não movem o moinho, e o Brasil é feito por nós? (FREITAS FILHO, 2003, p. 291-293). A partir da leitura dos dois trechos, leia o verbete “pele” no dicionário. Em seguida, acompanhe horizontalmente o verbete e destaque as possíveis alterações. Compare as transformações das outras frases do verbete “pele” com as demais transformações existentes no poema e responda quais são as principais diferenças através das palavras escritas para além do seu sentido literal. ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ Resposta comentada: Para entendermos o poema em prosa “Á flor da pele”, faz-se importante notar que o significado literal, ou seja, aquele inserido em um dicionário, nem sempre reproduz tudo o que pode ser registrado dentro de um contexto. Logo, o poeta desenvolve a ideia da tortura e da perseguição “à flor da pele”, algo que fica marcado no corpo e incapaz de ser deletado. Esse poema faz alusão ao sofrimento de muitas vítimas existentes no período da ditadura militar no Brasil. O poeta nos atenta também para o apagamento da memória desse período, uma vez que o rumo do país é trilhado sem resolver problemas inerentes ao passado. Fim da atividade CONCLUSÃO Ao longo de mais de cinqüenta anos de produção poética, Armando Freitas filho nos convida a contextualizar a poesia com os aspectos sociais e políticos brasileiros. Com um olhar clínico em torno dos acontecimentos sociais, em sua obra, encontram-se representadas as mazelas da pobreza a do descaso político em relação às habitações periféricas, às camadas hierarquicamente rebaixadas ou deixadas de lado dentro da cidade. O contexto político também é retratado através da repreensão da ditadura militar que desemboca no poema de maneira criativa a representada coletiva através do clamor popular pelos rumos da política brasileira. Trata-se de um autor que trabalha de maneira peculiar a complexidade da existência humana tecendo a vida sobre a morte, elucidada pela periculosidade de viver dentro das grandes cidades brasileira. Freitas Filho nos convida e nos desperta para pensar a alteridade inerente a toda e qualquer relação com o outro. RESUMO (NP: Profs, precisamos elaborar um resumo da aula. Fiz uma proposta para suas apreciações e análises. Percebam que fiz uso de trechos de sua aula e os articulei de modo que o estudante consiga retomar os principais conceitos abordados.) O objetivo dessa aula foi desenvolver algumas considerações acerca da resistência social e política na obra do poeta carioca Armando Freitas Filho. A poesia de Freitas Filho procura aguçar os sentidos do corpo, a mobilidade, os arrepios, o calor dos poros, como uma escrita poética produzida com lentes de aumento em relação aos acontecimentos cotidianos. O poema “Móvel” resume, em parte, a obra de um poeta em vigília com aquilo que o cerceia. Trata-se de um poeta que se interessa não apenas pelo que está presentificado ou facilmente visível. Em sua obra é possível notar que traçar é re-traçar, sem ter uma origem acessível entre as lacunas existentes em um pensamento, como porosidades. O poeta considera a mão como continuação do pensamento. Características sociais e políticas começaram a influenciar o contexto da poesia de Armando Freitas Filho a partir dos acontecimentos ditatoriais, sobretudo, após o AI-5 em 1968. É nesse momento que vemos temas serem inseridos, como a passagem do tempo ao encontro da ação da força. No livro Raro mar, o mar como cenário paradisíaco registra também uma natureza apta às modificações humanas através do cimento, como as construções habitacionais que compõem a cena e encurralam cada vez mais a margem natural da cidade. Os meios de comunicação transmitem a morte em código, através dos aparelhos celulares. Não há mais como vislumbrar a cidade sem reparar em aspectos de violência. É nessa perspectiva que podemos ver uma influência de elementos externos, sejam eles sociais ou políticos, em relação à poesia de Armando Freitas Filho. Será possível notar a inserção do futebol como escape dos problemas políticos inerentes à ditadura militar, uma vez que, dentro do estádio, o brasileiro passava a ser torcedor, com direito a voz que não poderia ter enquanto manifestante ou oposição naquela conjuntura “(...) como brasileiro/ não há quem possa/ se esquecer/ que fora do estádio/expulsa das arquibancadas/ a torcida explodia/ e vaiava/a dor de tantos gols contra/ em silêncio”. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 327) A poesia de Armando Freitas Filho é mais que uma voz, é vibração e sopro, fôlego captado e inserido no poema. Do cimento que encurrala o mar à torcida incandescente louca por um grito de liberdade, o poeta se faz vivo em traços e retraços do tecer a vida com a morte. Pois é entre essa linha tênue que encontramos seu poema. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSI, Viviane. “Objeto urgente”. IN: Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. CARVALHO, Luiz Fernando Medeiros de. A folha como véu. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2012. FREITAS FILHO, Armando. Lar,. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. _______________________.Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. _______________________. Raro mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. PONGE, F. A mesa. São Paulo: Iluminuras, 2002. Assim, dividido em duas metades nítidas, o poema contrasta ostensivamente com o que se arquiva da árvore/natureza com seu estágio atual na dimensão da cultura. Para isso, o olhar retrocede no tempo de modo a flagrar os possíveis cenários de onde o objeto do presente teria vindo, numa leitura exemplarmente transgressora: para fora do temático, para fora do utensílio e para fora do humano. E com esse procedimento o poema apresenta aquilo que a armadura geral de todo o livro e também seu particular ensinamento, constituído pelo registro obstinado de um modo de olhar que instaura um outro modo de usar o objeto sobre o qual se debruça – ambos, não por acaso, móveis. O deslocamento do olhar concentra-se no humano. A corrosão no tempo, agora não mais na perspectiva da origem, mas na perspectiva do deslocamento para o futuro. Entre a origem e o futuro. Além desses comentários, há que se destacar outros aspectos muito interessantes no poema. Há uma animização da madeira, uma espécie de subjetivação. Como se a madeira, no seu estágio atual de móvel carcomido pelo tempo, tivesse uma espécie de Alzheimer, um esquecimento proveniente de um desligamento da origem árvore. Esta madeira não lembra mais quando “ousou folha flor fruto”. Tudo é muito interessante neste verso. O verbo ousar indicando a juventude da madeira, o seu caráter aventureiro de assumir riscos. A sequência folha flor fruto, sem vírgulas, indica um composto da árvore, como imagem que vibra na memória. Do ponto de vista formal é uma herança da prática modernista de abolir as vírgulas e liberar as palavras na frase. A frase “não lembra mais” entra só uma vez no poema, e fica em elipse provocando o leitor que precisa acioná-la por mais duas vezes enquantolê os versos seguintes: “Quando deu sombra e intervalo ao sol./Quando foi árvore de onde a ave deriva.” Este último verso é interessantíssimo porque constrói uma relação formal entre árvore e ave, uma espécie de etimologia poética, somente oferecida como dom do poema à compreensão do leitor. A ave efetivamente deriva da árvore como lugar de espaço, como habitat usual do pássaro e no poema como derivação da forma árvore, já que seus fonemas já estão contidos no interior da sequência /árvore/. Em “10 anos”, é o numeral que aparece seguido pela dedicatória ao filho Carlos. O que é dito é ainda força de futuro, irrupção. Tudo é preparação para o aguçamento do princípio corrosão: “Mas a infância já se feriu, inevitável/ ao entrar na casa dos dois dígitos para sempre”. Vejamos: (...) a pele lisa que a barba e a acne Ainda não contrariam, o ar de entrega Que se mantém embalsamado pelo sono ou por algum sonho de maldade, com mulher de celofane, Mas a infância já se feriu, inevitável ao entrar na casa de dois dígitos para sempre. A dor de alterar-se, de altear-se Estala, e a inocência também é de sangue. Uma e a outra se quebram e reanimam-se: têm o mesmo comportamento, prazo bravio e breve, das ondas do mar. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 58) Observe-se a utilização da expressão adverbial “para sempre” como acelerador do processo TELEOLÓGICO da corrosão até chegar à palavra “prazo”: “A dor de alterar-se, de altear-se/ estala, e a inocência também é de sangue./Uma e outra se quebram e reanimam-se:/têm o mesmo comportamento, prazo/ bravio e breve, das ondas no mar.” Verbete TELEOLÓGICO Refere-se à teleologia, estudo dos propósitos das coisas, das finalidades do universo. Fim do verbete As preocupações com o tempo e com o rumo dos acontecimentos do mundo aumentam com chegada do primogênito aos 10 anos de idade. Sabendo que dessas dezenas não irá passar. A dimensão em relação à vida e uma simples onda na arrebentação é um dos sintomas da brevidade do tempo, e para isso, o poeta lança seu olhar, com hesitação, configurando sua poesia aos rumos do contemporâneo. À vinda do acontecimento. No livro Raro mar, o mar como cenário paradisíaco registra também uma natureza apta às modificações humanas através do cimento, como as construções habitacionais que compõem a cena e encurralam cada vez mais a margem natural da cidade. É o que podemos ver em “Litoral”: A violência inserida no contexto social de uma grande cidade. O contraste entre o que se vivencia entre o mar e o cimento tem em Raro mar um registro tormentoso, asfixiante, barulhento, capaz de tornar cada instante um risco que contorna as ruas. A natureza impetuosa e inquieta é ocultada, afunilando-se à morte implícita. O cimento avança sobre a natureza retraída, que dá lugar cada vez mais ao solapamento do cinza das casas e do asfalto. Paisagem rarefeita e aberta ao caos da violência urbana. Exemplifiquemos com mais uma passagem: É nessa perspectiva que podemos ver uma influência de elementos externos, sejam eles sociais ou políticos, em relação à poesia de Armando Freitas Filho. É o que acontece, por exemplo, no poema “Império”. Vejamos um trecho do poema: Segundo Carvalho, O poema ‘Império’ reúne as referências sobre a data onze de setembro e encena oantes e o depois do acontecimento. Agora toda a concentração corrosiva funciona para pensar o acontecimento político. Forma plástica de dizer o poema através da experiência concretista visual, dizer com outros signospara além do verbal. (CARVALHO, L. 2012, p. 34). Vejamos mais um trecho do livro para exemplificar a referida abordagem acerca do poema: No livro Raro mar, o mar como cenário paradisíaco registra também uma natureza apta às modificações humanas através do cimento, como as construções habitacionais que compõem a cena e encurralam cada vez mais a margem natural da cidade. É nessa perspectiva que podemos ver uma influência de elementos externos, sejam eles sociais ou políticos, em relação à poesia de Armando Freitas Filho. Será possível notar a inserção do futebol como escape dos problemas políticos inerentes à ditadura militar, uma vez que, dentro do estádio, o brasileiro passava a ser torcedor, com direito a voz que não poderia ter enquanto manifestante ou oposição naquela conjuntura “(...) como brasileiro/ não há quem possa/ se esquecer/ que fora do estádio/expulsa das arquibancadas/ a torcida explodia/ e vaiava/a dor de tantos gols contra/ em silêncio”. (FREITAS FILHO, A. 2003, p. 327)
Compartilhar