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ANÁLISE DA CANÇÃO "PIERCING", DE ZECA BALEIRO Na produção de Zeca Baleiro, uma das temáticas mais abordadas é o individualismo exagerado da sociedade pós-moderna. O cantor revela em muitos de seus textos a efemeridade e o esvaziamento das relações sociais e as consequências disso, como a solidão, a comunicação escassa e as relações interpessoais superficiais ao extremo. Baleiro compõe sobre o homem que vive num “momento histórico marcado pela superação de limites através do conhecimento e, contraditoriamente, pelo consequente retrocesso no que diz respeito às relações humanas” (SOUZA, 2007, p.45). Aqui, leremos e estudaremos a composição Piercing, que tem o individualismo exacerbado como tônica. Fixemos nosso olhar na canção Piercing, que se encontra no álbum Vô Imbolá, de 1999: "Quando o homem inventou a roda logo Deus inventou o freio, um dia, um feio inventou a moda, e toda roda amou o feio" Tire o seu piercing do caminho Que eu quero passar Quero passar com a minha dor pra elevar minhas idéias não preciso de incenso eu existo porque penso tenso por isso insisto são sete as chagas de cristo são muitos os meus pecados satanás condecorado na tv tem um programa nunca mais a velha chama nunca mais o céu do lado disneylândia eldorado vamos nós dançar na lama bye bye adeus gene kelly como santo me revele como sinto como passo carne viva atrás da pele aqui vive-se à mingua não tenho papas na língua não trago padres na alma minha pátria é minha íngua me conheço como a palma da platéia calorosa eu vi o calo na rosa eu vi a ferida aberta eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar mas a minha mente boquiaberta precisa mesmo deserta aprender aprender a soletrar Não me diga que me ama Não me queira não me afague Sentimento pegue e pague emoção compre em tablete Mastigue como chiclete jogue fora na sarjeta Compre um lote do futuro cheque para trinta dias Nosso plano de seguro cobre a sua carência Eu perdi o paraíso mas ganhei inteligência Demência, felicidade, propriedade privada Não se prive não se prove Dont't tell me peace and love Tome logo um engov pra curar sua ressaca Da modernidade essa armadilha Matilha de cães raivosos e assustados O presente não devolve o troco do passado Sofrimento não é amargura Tristeza não é pecado Lugar de ser feliz não é supermercado O inferno é escuro não tem água encanada Não tem porta não tem muro Não tem porteiro na entrada E o céu será divino confortável condomínio Com anjos cantando hosanas nas alturas nas alturas Onde tudo é nobre e tudo tem nome Onde os cães só latem Pra enxotar a fome Todo mundo quer quer Quer subir na vida Se subir ladeira espere a descida Se na hora "h"o elevador parar No vigésimo quinto andar der aquele enguiço Sempre vai haver uma escada de serviço Todo mundo sabe tudo todo mundo fala Mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la Quem não quer suar camisa não carrega mala Revólver que ninguém usa não dispara bala Casa grande faz fuxico quem leva fama é a senzala Pra chegar na minha cama tem que passar pela sala Quem não sabe dá bandeira quem sabe que sabia cala Liga aí porta-bandeira não é mestre-sala E não se fala mais nisso Mas nisso não se fala... O rap Piercing se inicia com uma citação cheia de trocadilhos recitada pelo próprio Zeca Baleiro. Nela, há críticas à moda e ao conceito de belo e de feio. O ritmo da canção é acelerado como o próprio ritmo da vida. O refrão aparece logo no princípio: “Tire o seu piercing do caminho que eu quero passar/ Quero passar com a minha dor”. Neste refrão há um intertexto com o verso Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor, da canção A flor e o espinho, de Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha. O refrão é afirmativo, impositivo, uma ordem de fato. O objeto piercing pode metaforizar tanto umbigo quanto boca, haja vista que são nestes locais onde o piercing geralmente se encontra, além de serem estes os locais do amor e/ ou do ato sexual. Nota-se aí o caráter individualista do eu lírico, que impõe um ato de prazer próprio. Dessa maneira, só existe o prazer individual e suas as ordens. A comunicação entre os indivíduos é precária. Assim, não há alteridade por parte do eu poético. Na primeira estrofe, percebemos a angústia de um ser solitário no hábitat em que se encontra. É um ser que também não tem referências: “Herdeiro do homem moderno que suportava sua condição humana de restrições e privações apoiando-se (primeiro) na religião e (depois) na ciência, o indivíduo da contemporaneidade vive num contexto em que a religião já não é mais uma verdade nem um conforto absoluto, e a ciência não corresponde mais às suas expectativas. Assim, desprovido de seus grandes pilares de sustentação resta a este homem tentar transformar a realidade na qual vive através do conhecimento, da hipermodernização. Todos os feitos, portanto, não preenchem o vazio deixado pelos discursos que antes garantiam ao homem a sensação de bem-estar. Devido a isso, sobra um espaço que será preenchido pelo discurso da mídia, pelo consumismo exacerbado e pela necessidade desenfreada de notoriedade, exclusividade, destaque” (SOUZA, 2007, p.46). O sujeito inicia a estrofe criticando a religião (“Pra elevar minhas idéias não preciso de incenso”), citando a frase penso, logo existo do filósofo e matemático francês René Descartes. É um ser tenso, como sua época, e que por isso mesmo insiste. Sempre com espírito de competição e com o ímpeto desejo de vencer/subir na vida a qualquer preço. Os versos iniciais vão evocar incessantemente à religião. É exposto que Cristo tem sete chagas e o poeta, vários pecados, assim como o fato de Satanás ter um programa de TV, comprovando, como já elencado, que religião e ciência não são mais verdades absolutas ao ser pós-moderno. Também, há referências negativas ao inferno (“Nunca mais a velha chama”) e ao céu (“Nunca mais o céu do lado”). Ao invés de cantar/dançar na chuva, o eu lírico prefere dançar na lama e dá adeus ao diretor dos filmes Singin’ in the rain (Cantando na chuva) e It's Always Fair Weather (Dançando nas nuvens), Gene Kelly. Desse modo, reforça a idéia do caos no mundo em que está inserido. Nos versos seguintes, a religião é retomada em forma de crítica. O poeta critica o catolicismo ao revelar que não tem papas na língua e não traz padres na alma. Ao parafrasear o verso Minha pátria é minha língua, da canção Língua, de Caetano Veloso, o poeta mostra toda sua falta de patriotismo e seu exacerbado modo de pensar em si próprio (“Minha pátria é minha íngua”). Contudo, é notório que ele conhece o mundo exterior e não se conhece (“Me conheço como a palma da platéia calorosa”). Pela citação Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar da canção Avôhai, de Zé Ramalho, compreende-se que o eu poético é dotado de conhecimentos específicos, possui o instinto de competitividade, entretanto, não há espaço em sua vida para outro ser. Os três versos finais revelam que a mente desse sujeito precisa aprender a soletrar (aprendizado básico), embora ele seja dotado de vários conhecimentos, ou seja, é um homem que pouco sabe em se tratando de relações afetivas ou de si mesmo. A segunda estrofe, por seu turno, versa sobre a fragilidade das relações afetivas. Aqui, tudo gira em torno do dinheiro, que é o mediador de todas as relações na vida contemporânea. Nos seis primeiros versos, o eu poético aponta que não quer ser amado, querido, afagado. Sugere, dessa forma, um sentimento pegue e pague, uma relação baseada em bens monetários. O amor, então, é um produto a ser consumido e que pode tranquilamente ser jogado fora como chiclete. Mais adiante, veremos que o consumismo é retomado (“Eu perdi o paraíso, mas ganhei inteligência/ Demência, felicidade, propriedade privada”). Velhos discursos, como “peace and love”, são refutados. O ser em questão afirma “não me diga paz e amor”. É um sujeito que nega “tudo” para se afirmar como “nada”. Desconsidera discursos religiosos,científicos, ideológicos, entre outros, ao chamar a modernidade da “Matilha de cães raivosos e assustados”. O poeta considera o homem pós-moderno estressado e de pouco raciocínio, se aproximando assim dos animais. O mundo seria um circo de feras. Essa relação entre presente e passado (pós-modernidade e modernidade) é vista no verso “O presente não devolve o troco do passado”. Hutcheon pondera: “O que o pós-modernismo faz, conforme, seu próprio nome sugere, é confrontar e contestar qualquer rejeição ou recuperação modernista do passado em nome do futuro. Ele não sugere nenhuma busca para encontrar um sentido atemporal transcendente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz do presente. Mais uma vez, daríamos a isso o nome de ‘presença do passado’” (HUTCHEON, 1991, p.39). Fechando a estrofe, os três últimos versos retomam ao consumismo. O eu poético critica o fato de certos sentimentos como “sofrimento” ou “tristeza” serem vistos como coisas ruins, já que são sentimentos naturais ao homem. A critica é direcionada aos homens que só se sentem felizes ao consumir. O consumismo como cura para as dores a as mazelas é altamente refutado pelo sujeito (“Lugar de ser feliz não é supermercado”). A tônica da terceira estrofe é o discurso cristão. Num tom esperançoso, o eu lírico descreve o céu e o inferno. Nesse discurso, o ser vive num inferno (Terra) e pretende ser salvo, ir para o céu (Divino). Interessante notar que o inferno é descrito com o verbo no presente, já o céu é descrito com o verbo no futuro. O inferno é escuro, não tem nada, enquanto o céu será divino, com anjos, “Onde tudo é nobre e tem nome”. Há uma referência a segunda estrofe no trecho “Onde os cães só latem pra enxotar a fome”. Se na segunda estrofe, os cães da Terra (inferno) eram raivosos e assustados, no céu os cães só latem quando precisam se alimentar. Por fim, a quarta estrofe vai lidar com a mesma questão do refrão, a falta de comunicação. Fechando o texto, a referida estrofe trata da contradição que é uma “sociedade em que a comunicação em grande escala é uma realidade, mas a comunicação nas micro-esferas sociais, ou seja, a verdadeira comunicação entre os indivíduos é nula” (SOUZA, 2007, p.48). (Ricardo Salvalaio)
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