Prévia do material em texto
lizar-se para que a transformação ideal penetre no próprio fato. Assim, enquanto a atívidade prática pressupõe uma ação efetiva sobre o mundo, que tem por resultado uma trans- formação real deste, a atividade teórica apenas transforma nossa consciência dos fatos, nossas ideias sobre as coisas, mas não as próprias coisas. Nesse sentido, cabe falar de uma oposição entre o teórico e o prático. O PONTO-DE-VlSTA DO "SENSO COMUM*'. O PRAGMATISMO Pois bem, essa oposição tem um caráter relativo, pois quando se formulam com justeza as relações entre teoria e prática vemos que se trata bem mais de uma diferença do que de uma oposição. Na verdade, só se pode falar de oposi- ção — e sobretudo de oposição absoluta — quando as re- lações entre a teoria e a prática -são formuladas em bases fal- sas, seja porque esta última tenda a desligar-se da teoria, seja porque a teoria se negue a vincular-se conscientemen- te com a prática. O primeiro fato é o que constatamos no modo de conceber tais relações da consciência comum. Para ela, o prático — entendido, por sua vez, como já assinalamos anteriormente, num sentido estritamente utilitário — contra- põe-se absolutamente à teoria. Esta se faz desnecessária ou nociva para a prática. Em vez de formulações teóricas, te- mos assim o ponto-de-vista 'do "senso comum", que docil- mente se dobra aos ditames ou exigências de uma prática esvaziada de ingredientes teóricos. Em lugar destes, temos toda uma rede de preconceitos, verdades estereotipadas e, em alguns casos, superstições de uma concepção irracional (mágica ou religiosa) do mundo. A prática se basta a si mesma, e o "senso comum" situa-se passivamente, numa ati- tude acrítica, em relação a ela. O "senso comum" é o sen- tido da prática. Como não há inadequação entre "senso comum" e prática, para a consciência comum, ordinária, o critério que esta estabelece em sua leitura direta e imediata é inapelável. A consciência ordinária se vê a si mesma em opo- peito de um fato existente, enquanto que o que importa ao autêntico comunista é derrubar o que existe" (A ideologia alemã, ed. cit, p. 43). 210 sição à teoria, já que a intromissão desta no processo práti- co lhe parece perturbadora. A prioridade absoluta correspon- de à prática, e tanto mais quanto menos impregnada estiver de ingredientes teóricos. Por isso, o ponto-de-vista do "senso comum" é o do praticismo; prática sem teoria, ou com um mínimo dela2. Mas não é só a consciência comum que estabelece uma oposição radical entre teoria e prática. A história do pensa- mento filosófico mostra também um modo de conceber as relações entre teoria e prática sob uma forma que não passa do ponto-de-vista do senso comum, depurado de seu aspecto rudimentar e alçado ao nível de doutrina filosófica; tal é o ponto-de-vista do pragmatismo. Seu praticismo se põe em evidência, principalmente, em sua concepção da verdade; do fato de nosso conhecimento estar vinculado a necessidades práticas, o pragmatismo infere que o verdadeiro se reduz ao útil, com o que solapa a própria essência do conhecimento 2 Cramsci procurou determinar o tipo de vinculação entre o "senso comum" e & religião, por um lado, e entre aquele e a filosofia, por ou- tro, e se esforçou igualmente para assinalar o tipo de relação que o marxismo, como filosofia da praxis, mantém com o "senso comum". (Cf. O materialismo histórico e a filosofia de Benedetto C roce, Ed. Lautaro, Buenos Aires, 1958. A filosofia, para Gramsci, é uma "ordem intelec- tual" e, desse ângulo, implica numa superação da religião e do senso comum. A filosofia da praxis' se lhe apresenta inicialmente como critica do "senso comum" e, nesse aspecto, opõe-se à religião: "... não tende a manter os 'simples' em sua filosofia primitiva do senso comum, mas sim, ao contrário, a levá-los para uma concepção superior de vida'' (Ibidem, p. 19). Isso é necessário porque "o'homem ativo, de massa, age prati- camente, mas não tem clara consciência teórica de sua ação'' (Ibidem). A importância que Gramsci atribui à crítica do senso comum, em nome da praxis, se põe de manifesto em seu exame do livro de Bukharin, A teoria do materialismo histórico. Manual popular de sociologia marxista. Gramsci o critica pelo fato de não haver analisado criticamente a filo- sofia do senso comum, ou filosofia dos "não-filósofos", e de haver redu- zido sua crítica à das filosofias sistemáticas (Ibidem, p. 124). Por outro lado, Gramsci não se aferra a um conceito único e supra-histórico do senso comum, já que este é para ele um produto histórico. Por isso fala da necessidade de criar um novo senso comum e, remetendo-se a Marx, afirma: "Em Marx encontram-se amiúde alusões ao senso comum e à solidez de suas crenças. . ." Em suas referências "se encontra, até, im- plícita a afirmação da necessidade de novas crenças populares, de um novo senso comum e, portanto, de uma nova cultura e de uma nova fi- losofia que se arraiguem na consciência popular com a mesma solidez e imperatividade das crenças tradicionais" (Ibidem, p. 126). 211 como reprodução na consciência cognoscente de uma reali- dade, embora só possamos conhecer essa realidade — re- produzi-la idealmente — em nosso trato teórico e prático com ela. É preciso dizer, por outro lado, que, fiel ao ponto- ie-vista do senso comum, do "homem da rua", o pragmatis- mo reduz o prático ao utilitário, com o que acaba por dis- solver o teórico no útil. Alguns adversários do marxismo costumam imputar-lhe a concepção pragmatista da verdade. Ora, ainda que não faltassem marxistas que tenham concebido de modo pragmáti- co as relações entre a teoria e a prática — ou seja, a teoria como justificação e não propriamente como esclarecimento e guia de uma praxis que, ao mesmo tempo, a fundamenta e enriquece — o marxismo só pode ser assimilado ao pragma- tismo com base numa prévia tegiversação de sua verdadeira concepção da verdade, do critério desta e da natureza da própria praxis. Quanto à essência da verdade, já dissemos anteriormente que o pragmatismo identifica o verdadeiro com o útil. Essa tese da utilidade poderia confundir algumas pessoas se se levar em conta que o marxismo não vê no co- nhecimento um fim em si, mas sim uma atividade do homem vinculada a suas necessidades práticas às quais serve de for- ma mais ou menos direta, e em relação com as quais se de- senvolve incessantemente. Esse caráter prático-social pode- ria levar-nos a reconhecer a utilidade do conhecimento huma- no, em geral, e das ciências naturais e exatas em particular. Mas é assim que pensa o pragmatismo? "Verdadeiro — diz William James — é o que para nós seria melhor crer" . A verdade aqui é posta em relação com as crenças que nos são mais vantajosas. Portanto, a verdade fica subordinada a nos- sos interesses, ao interesse de cada um de nós. Por conse- guinte, não se manifesta em concordância com uma realidade que nossa consciência reproduz, e sim corresponde a nossos interesses, ao que seria— para nós — melhor, mais vanta- joso ou mais útil acreditar3. 3 Cf. a concepção pragmática da verdade que postula William James em seus trabalhos: Philosophical Conceptions and Practical Results (Con- cepções filosóficas e resultados práticos), 1898; Pragmatism. A New Na- me for Some Old Ways of Thinking (Pragmatismo. Nome novo para alguns modos antigos de pensar), 1909, e The Meaning of Thruth (O significado da verdade), 1909. 212 É evidente que quando o marxismo fala da utilidade ou função prático-social da ciência, coloca-se num plano muito diferente, pois não se trata da utilidade nesse sentido estrita- mente egoísta, mas sim da utilidade social. O conhecimento verdadeiro é útil na medida em que com base nele, o homem pode transformar a realidade. Ò verdadeiro implica numa reprodução espiritual da realidade, reprodução que não é um reflexo inerte, mas sim um processo ativo que Marx definiu como ascenso do abstraio ao concreto em e pelopensamento, e em estreita vinculação com a prática social. Q_.cjonhe'ci~ mento é útil na medida em que é verdadeiro, e não inversa- mente, verdadeiro porque útil, como afirma o pragmatismo. Enquanto para o marxismo a utilidade é consequência da ver- dade, e não seu fundamento ou essência,lpara o pragmatismo a verdade fica subordinada à utilidade, entendida esta como eficácia ou êxito da ação do homem, concebida esta última, por sua vez, como ação subjetiva, individual, e não como ati- vidade material, objetiva, transformadora. A diferença entre o marxismo e o pragmatismo no que concerne ao modo de conceber a verdade determina, por sua vez, seus diferentes critérios de verdade. Enquanto o primei- ro procura provar o verdadeiro como reprodução espiritual da realidade, o segundo pretende provar o verdadeiro como o útil . Onde encontrar o critério da verdade? Há uma apa- rente coincidência quando um e outro respondem: na prática. Mas essa aparência coincidente se desfaz de imediato se le- varmos em conta que o pragmatismo e o marxismo dão um significado muito diferente à prática: num caso, ação sub- jetiva do indivíduo destinada a satisfazer seus interesses; no outro, ação material, objetiva, transformadora, que correspon- de a interesses sociais e que, considerada do ponto-de-vista histórico-social, não é apenas produção de uma realidade material, mas sim criação e desenvolvimento incessantes da realidade humana. O critério de verdade para o pragmatismo é, por con- seguinte, o êxito, a eficácia da ação prática do homem enten- dida como prática individual. Para o marxismo, é a prática, mas concebida como atividade material, transformadora, e social. Enquanto para o pragmático o êxito revela a verdade, ou seja, a correspondência de um pensamento com meus in- teresses, para o marxismo a prática social revela a verdade 213 ou falsidade, isto é, a correspondência ou não de um pensa- mente com a realidade. Vemos, portanto, que nem na con- cepção da verdade, nem no que se refere ao critério e, prin- cipalmente, ao modo de conceber a prática podem identificar marxismo e pragmatismo, já que não só não coincidem, como até se acham em posições diametralmente opostas4. Por con- seguinte, a contraposição de teoria e prática se manifesta aqui — como no mundo da consciência comum —, por uma redução do prático ao utilitário, e, consumada esta, pela dis- solução do teórico (do verdadeiro) no útil. Ao longo da história da filosofia, porém, a contraposição de teoria e prática apresenta-se melhor em outras formas. Nelas, assume também um caráter absoluto, seja porque a teoria se vê a si mesma tão onipotente em suas relações com a realidade que se concebe a si mesma como praxis (posição característica, principalmente, do idealismo, e muito parti- cularmente dos jovens negelianos), seja porque a prática é considerada como mera aplicação ou degradação da teoria (ponto-de-vista do pensamento grego antigo), e não se re- conhece, portanto, que a praxis pode enriquecer a teoria. Contudo não existe tal posição absoluta, e sim relativa — ou melhor, trata-se de uma diferença — no seio de uma uni- dade indissolúvel. Por isso, devemos falar principalmente de unidade entre teoria e prática e, nesse âmbito, da auto- nomia e dependência de uma com relação a outra. O problema das relações entre a teoria e a prática — e, portanto, o de sua autonomia e dependência mútuas — po- de ser formulado em dois planos: a) num plano histórico- social como formas peculiares de comportamento do homem, enquanto ser histórico-social, com referência à natureza e à 4 Uma análise mais minuciosa, do ponto-de-vista marxista, da contra- posição entre marxismo e pragmatismo no problema das relações entre praxis e conhecimento, pode ser encontrada nas seguintes obras: Josef Linhart, Americky Pragmatismus (O pragmatismo america- no), Praga, 1949 (existe uma tradução em espanhol); Adam Schaff, Z zagadnién marksistow.skiej teori prawdy (trad. espanhola, Buenos Ai- res, 1964, com o título de "A teoria da verdade no materialismo e no idealismo''); M. N. Rutkevich, Praktika-osnova poznanija i krit erii is- tinyy ( A prática como fundamento do conhecimento e critério da ver- dade), Moscou, 1952, e Guy Besse, Pratique social et théorie, Paris. 1963 (trad. esp. Praçtica social y teoria dei conocimiento, Havana, 1964, e Buenos Aires, 1966). 214 sociedade; b) em determinadas atividades práí :as (produzir um objeto útil, criar uma obra de arte, transformar o Esta- do ou instaurar novas relações sociais) . A PRÁTICA COMO FUNDAMENTO DA TEORIA Consideradas as relações entre teoria e prática no pri- meiro plano dizemos que a primeira depende da segunda, na medida em que a prática é fundamento da teoria, já que de- termina o horizonte de desenvolvimento e progresso do co- nhecimento. À esse respeito, diz com justeza Engels: "Até agora, tanto as ciências naturais como a filosofia menospreza- ram completamente a influência que a atividade do homem exerce sobre seu pensamento e conhecem apenas, de um la- do, a natureza e, de outro, o pensamento. Mas o fundamen- to mais essencial e mais próximo do pensamento humano é, exatamente, a transformação da natureza pelo homem, e não a natureza por si só, a natureza enquanto tal, e a inteligên- cia humana foi crescendo na mesma proporção em que o homem ia aprendendo a transformar a natureza"5. O conheci- mento científico-natural progride no processo de transforma- ção do mundo natural em virtude de que a relação prática que o homem estabelece com ele, mediante a produção ma- terial, coloca-lhe exigências que contribuem para ampliar tanto o horizonte dos problemas como o das soluções. As origens do conhecimento das forças naturais estão ligadas ao começo de seu domínio sobre elas nas primeiras etapas da produção material. À existência de uma concep- ção pré-teórica (mágica ou estreitamente empirista) da na- tureza está vinculada a uma prática estreita e limitada, vazia de elementos teóricos. Uma prática dessa espécie, justamen- te por sua limitação, pelo baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, de pouco domínio do homem sobre a natureza, podia ocorrer sem um conhecimento cientí- fico das forças naturais, e, em vez de buscar as relações causais entre os fenómenos, podia contentar-se em atribuí-los à ação de forças sobrenaturais. Quando as forças da nature- •"' K Engels, Dialética da Natureza, trad. de W. Roces, Ed. Grijalbo, Mrxiro, DF, 1961, p. 183 2/5