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Lenine e o Velho Iskra

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Lenine
Leon Trotski
1924
Primeira Edição: França, Librairie du Travail, primavera de 1925
Tradução de: Elisa Teixeira Pinto
Fonte: The Marxists Internet Archive
Prefácio
ESTE LIVRO não está acabado, o que poderá ser tomado nos dois sentidos da palavra. Em primeiro
lugar, seria absolutamente inútil tentar encontrar nele uma biografia de Lenine, um esboço do seu carácter,
ou mesmo uma exposição pormenorizada e completa das suas opiniões e métodos de acção. A obra
presente oferece apenas material a ser trabalhado, as linhas gerais, o esboço de um futuro trabalho a fazer
talvez também pelo signatário deste texto. Contudo, este processo de esquiço é inevitável e indispensável.
A par das biografias populares e dos estudos globais sobre o carácter de Lenine, torna-se necessário, a
partir de agora, lembrar com mais pormenores e mais atentamente certos episódios, certos aspectos da
vida e da personalidade de Lenine, tal como os nossos olhos o viram. A parte mais importante do livro
compõe-se de recordações do autor relativas a dois períodos separados por um intervalo de quinze anos: o
último semestre do velho Iskra («A Centelha») e o ano decisivo em cujo centro se situa a Revolução de
Outubro - isto é, aproximadamente de meados de 1917 até ao Outono de 1918. 
Porém, este livro também não está acabado num outro e mais restrito sentido: espero, se as circunstâncias
me permitirem, trabalhá-lo ainda, introduzir-lhe correcções, precisões, e completá-lo com novos
episódios, novos capítulos. A doença e a suspensão de actividade prática que ela provocou durante algum
tempo, permitiram-me reconstituir de memória muitas das coisas contadas neste livro. Ao reler os meus
primeiros apontamentos continuava a desenrolar o novelo das recordações, a lembrar-me dos factos
significativos, pelo menos na medida em que se referiam à vida de Lenine ou diziam respeito ao seu
carácter. Mas este método de trabalho tem um inconveniente: o produto que dele resulta jamais pode
chegar a bom termo. E foi por isso que me decidi, a certa altura, a parar com o manuscrito e a publicar a
primeira parte. O que não impede que, como já afirmei, me sinta ainda no direito de trabalhá-lo. Inútil
será acrescentar que ficarei para sempre reconhecido a todos os participantes dos acontecimentos e
episódios do período mencionado, caso queiram corrigir o meu trabalho ou reavivar estas ou aquelas
recordações. 
Não será supérfluo assinalar o silêncio voluntariamente feito sobre um certo número de circunstâncias,
visto estarem demasiado ligadas às discussões actuais. 
Acrescentei às duas partes essenciais do livro, que têm o carácter de recordações, os artigos e discursos,
ou as partes dos discursos, em que me foi dado caracterizar Lenine. 
Trabalhando com base em recordações, não me servi, por assim dizer, de nenhum material relativo à
época que descrevo. Pareceu-me que, não sendo minha intenção apresentar um estudo histórico completo
sobre um determinado período da vida de Lenine e querendo tão-somente fornecer dados em primeira
mão, precisamente aqueles com que eu próprio podia contribuir, melhor seria utilizar apenas a minha
memória. 
Quando o trabalho se encontrava redigido no seu conjunto, reli o tomo XIV das Obras de Lenine e o
livrinho do camarada Ovsiannikov sobre a paz de Brest-Litovsk; acrescentei então ao meu trabalho a!guns
aspectos complementares. Estes aditamentos são muito pouco numerosos. 
L. T. 
P. S. - Ao reler este livro, notei que nas minhas recordações chamo Leninegrado quer a Petrogrado, quer a
Petersburgo. 
Ora alguns camaradas designam pelo nome de Lenine até mesmo o Petrogrado de outrora. Parece-me que
é um erro. Pode-se dizer, por exemplo: Lenine foi preso em Leninegrado? É evidente que em Leninegrado
não teria sido possível prender Lenine. Seria ainda mais estranho dizer: Pedro fundou Leninegrado.
Talvez com o correr dos anos, dezenas de anos, o novo nome da cidade, como de um modo geral todos os
nomes próprios, perca a sua qualidade de lembrança histórica viva. Porém, neste momento, sentimos
nitidamente que Petrogrado só é Leninegrado desde 21 de Janeiro de 1924 e que este nome não poderia
ter sido adaptado mais cedo. Eis porque, nas minhas recordações, conservo relativamente a Leninegrado a
denominação que se usava na época que descrevo.
21 de Abril de 1924
Primeira Parte
Lenine e o Velho Iskra
«A cisão de 19O3 foi, por assim dizer, uma antecipação...»
(Palavras de Lenine em 191O) 
Sem dúvida alguma, para o futuro grande biógrafo de Lenine, o período do velho Iskra («A Centelha»)
(19OO-19O3) apresentará um interesse psicológico excepcional e, também, grandes dificuldades: pois é
precisamente durante esses breves anos que Lenine se torna Lenine. Tal não significa que ele vá deixar de
crescer. Muito pelo contrário, cresce e em que medida! - até Outubro e mais ainda depois de Outubro.
Porém o crescimento é de ora em diante mais orgânico. O salto foi imenso, da conspiração política ao
poder do 2ã de Outubro de 1917; mas foi, por assim dizer, uma mudança toda ela material, toda exterior,
do homem que já havia medido e pesado tudo quanto se podia pesar e medir. Entretanto, no crescimento
que precedeu a cisão no II Congresso do Partido há um impulso, imperceptível exteriormente, mas tanto
mais decisivo quanto todo ele era interior. 
As presentes recordações destinam-se a fornecer ao futuro biógrafo alguns dados sobre este período
extremamente memorável e significativo do desenvolvimento espiritual de Vladimir Ilitch. Desde então
até ao momento em que se escrevem estas linhas, decorreram mais de duas dezenas de anos, que
correspondem a períodos bem ricos para a memória humana. Poder-se-ão sentir também naturais
apreensões: em que medida esta narrativa reproduzirá exactamente o que se passou? Diria que não deixei
de sentir o mesmo temor, e isto durante todo o tempo do meu trabalho, sabendo que já existem
demasiadas recordações incoerentes e testemunhos inexactos. Ao escrever este ensaio, não tinha à mão
qualquer documento, nenhuma recolha de referências, nenhum dossier, etc. Penso, no entanto, que foi
melhor assim. Tive de me apoiar unicamente na memória e espero que o meu trabalho espontâneo, em tais
condições, tenha ficado mais bem protegido contra os involuntários retoques retrospectivos que tão
dificilmente se evitam mesmo quando exercemos sobre nós próprios uma crítica das mais rigorosas. E,
finalmente, para as pesquisas futuras, esta crítica até será mais fácil quando se pegar nos documentos e,
em geral, em todos os dossiers que se reportam a esse tempo longínquo. 
Em certas passagens, cito conversas e discussões de então, apresentando-as sob a forma de diálogo. É
claro que seria impossível pretender-se uma reprodução exacta dos diálogos, decorridos que foram mais
de vinte anos. Mas, quanto ao essencial, parece-me que a minha caneta me é fiel e, quanto a certas
expressões mais vivas, é :literal a reprodução. 
Como se trata de materiais para uma biografia de Lenine e, consequentemente, como isto tem uma
importância excepcional, permitir-me-ão, espero, que diga algumas palavras sobre certas particularidades
da minha memória. Recordo-me muito mal da topografia das cidades e mesmo das habitações. Em
Londres, por exemplo, perdi-me mais de uma vez numa distância tão insignificante como a que separava a
habitação de Lenine da minha. Durante muito tempo tive uma memória péssima para fisionomias, mas,
neste aspecto, fiz progressos notáveis. Em contrapartida, lembrava-me e lembro-me muito bem das ideias,
das suas com- binações e das conversas sobre as ideias. Este juízo que faço não é subjectivo, pude
convencer-me disso e verificá-lo muitas vezes: outras pessoas que tinham assistido às mesmas conversas
transmitiam-nas com menos exactidão do que eu e aceitavam as minhascorrecções. Convém acrescentar a
esta circunstância que, ao chegar a Londres, eu era um jovem provinciano que desejava fortemente
conhecer tudo e tudo compreender o mais rapidamente possível. É portanto natural que as minhas
conversas com Lenine e com outros membros da redacção do Iskra me tenham ficado vivamente gravadas
na memória. Eis aqui motivos que o biógrafo deverá ter em conta quando quiser julgar do valor histórico
das recordações que vão seguir-se. 
Cheguei a Londres em 19O2, no Outono, creio que em Outubro, de manhã cedo. Gesticulando, consegui
fazer-me compreender por um cocheiro e o trem conduziu-me a uma morada que eu trazia num papel e
que era o meu lugar de destino. Esse local era a habitação de Vladimir Ilitch. Tinham-me ensinado
antecipadamente a lição (deve ter sido em Zurique), tinham-me dito que batesse várias vezes com a
aldraba da porta. Tanto quanto me lembro, foi Nadejda Konstantinovna(1) quem veio abrir; deve ter
saltado da cama, creio, com o barulho que eu fazia. Era ainda muito cedo e qualquer homem mais
experimentado do que eu, mais habituado aos bons costumes da civilização, teria esperado paulatinamente
uma hora ou duas na gare, em vez de ir bater, por assim dizer de madrugada, à porta de outrem. Mas eu
ainda ,estava com o ímpeto da ,minha evasão de Verkolensk. Da mesma maneira, ou quase, tinha
invadido em Zurique o apartamento de Axelrod, não de madrugada, mas a meio da noite. 
Vladimir Ilitch estava ainda na cama e o seu rosto tanto reflectia amabilidade como um espanto aliás
compreensível. Foi nestas condições que tivemos a nossa primeira entrevista e que conversámos pela
primeira vez. Vladimir Ilitch e Nadejda Konstantinovna já me conheciam através de uma carta de Clair
(M. G. Krjijanovski), o qual, em Samara, me tinha, por assim dizer, introduzido oficialmente na
organização do Iskra sob o pseudónimo de «Pero» (A Caneta). Foi assim que me receberam: «Pero» tinha
chegado... Ofereceram-me chá, creio que na cozinha-sala de jantar. Lenine entretanto vestia-se. Eu
relatava a minha evasão e queixava-me do mau estado da «fronteira» (organização de passagem para o
estrangeiro) do Iskra: estava ela nas mãos de um «estudante de liceu», socialista-revolucionário que
tratava os camaradas do Iskra sem grande simpatia, por causa de uma dura polémica que se tinha
desencadeado; além disso, os contrabandistas tinham-me depenado impiedosamente, exagerando todos os
preços e retribuições acordados. Entreguei a Nadejda Konstantinovna uma lista algo modesta de
endereços e locais de encontro, ou, mais exactamente, informações sobre a necessidade de suprimir certos
endereços que de nada valiam. Por incumbência do grupo de Samarra (de Clair e outros), tinha visitado
Karkov, Poltava, Kiev, e quase em toda a parte ou, pelo menos, em Karkov e em Poltava, tivera ocasião
de verificar o estado extremamente deficiente das ligações entre as organizações. 
Não me lembro bem se foi nessa manhã ou no dia seguinte que dei um longo passeio em Londres com
Vladimir Ilitch. Mostrou-me Westminster (por fora) e outros edifícios importantes. Não recordo como foi
que ele disse, mas sei que meteu esta nuance na ,frase: «É o ,famoso Westminster deles». -É evidente que
o «deles» dizia respeito não aos ingleses, mas aos inimigos. Esta nuance, nunca sublinhada,
profundamente orgânica, traduzida sobretudo pelo timbre da voz, existia sempre em Lenine quando falava
.de valores culturais, de progressos recentes, das instalações do British Museum, da riqueza das
informações do Times ou, muitos anos mais tarde, da artilharia alemã ou da aviação francesa: «eles»
sabem, «eles» têm, «eles» fizeram, «eles» obtiveram, - mas que inimigos! Uma sombra imperceptível, a da
classe dos exploradores, parecia aos seus olhos estender-se sobre toda a cultura humana, e ele era sempre
sensível a esta sombra, tão claramente visível como a luz do dia. 
Tanto quanto me lembro, prestei dessa vez muito pouca atenção à arquitectura londrina. Atirado
bruscamente de Verkolensk para o estrangeiro, onde de resto me encontrava pela primeira vez, tomava
apenas umas primeiras impressões muito sumárias de Viena, de Paris e Londres, e não podia descer a
«pormenores» tais como o Palácio de Westminster. Além do mais, como se compreende, não fora para
isso que Vladimir Ilitch me tinha arrastado para esse longo passeio. O seu objectivo era conhecer-me e
submeter-me a um exame. 
E o exame versou efectivamente «todas as matérias do curso». Respondi às suas perguntas descrevendo a
composição do contingente exilado no Lena e dos agrupamentos que no seu interior se desenhavam. A
grande linha de separação das tendências definia-se então pelas opiniões que se professavam sobre a luta
política activa, o centralismo de organização e o terror. 
- Bem, mas há divergências teóricas sobre a doutrina de Bernstein? - perguntou Vladimir Ilitch. 
Contei que tínhamos lido o livro de Bernstein e a réplica de Kautski - tínhamos lido isso na prisão de
Moscovo e depois nos locais de deportação. Nem um só marxista, entre nós, havia elevado a voz em
defesa de Bernstein. Achava-se, como coisa evidente, que Kautski tinha razão. Mas entre os debates
teóricos que prosseguíamos então no plano internacional e nas discussões sobre organização política, nós
não estabelecíamos qualquer relação, não pensávamos sequer na possibilidade de uma relação, pelo
menos até ao momento em que, no Lena, apareceram os primeiros números do Iskra e a brochura de
Lenine «Que fazer?» 
Contei também que tínhamos lido com muito interesse os primeiros livrinhos filosóficos de Bogdanov.
Lembro-me perfeitamente do sentido de uma observação de Vladimir Ilitch a este respeito: a pequena
obra, que tratava da natureza considerada sob um ponto de vista histórico, parecia-lhe, também a ele,
muito apreciável, mas - enfim! -Plekanov não a aprovava, dizia que aquilo não era materialismo. Nessa
altura Vladimir Ilitch não tinha nenhuma opinião sobre o assunto, contentando-se em transmitir a opinião
de Plekanov, cuja autoridade filosófica respeitava, mas não sem ficar um tanto desconcertado. A
apreciação de Plekanov também me surpreendeu bastante. 
Interroguei ainda Vladimir Ilitch sobre as questões económicas. Contei-lhe como na prisão de
transferência de deportados, em Moscovo, tínhamos estudado colectivamente o seu livro O
Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e como, na Sibéria, trabalháramos no livro O Capital, tendo
ficado pelo Tomo II. Recordei a enorme quantidade de dados estatísticos que tinham sido trabalhados em
O Desenvolvimento do Capitalismo. 
- Na prisão de Moscovo, falámos mais de uma vez com admiração, deste trabalho gigantesco. 
- Pudera! ele não se fez de uma só vez - respondeu Lenine. 
Era-lhe visivelmente agradável verificar que camaradas jovens estudavam atentamente a mais importante
das suas obras económicas. 
Depois falámos da «doutrina» de Makhaiski, da impressão que causara aos deportados, daqueles que, em
maior ou menor número, ela seduzira. Contei que o primeiro caderno policopiado de Makhaiski nos tinha
chegado a Lena vindo «de cima» e que tinha produzido na maioria de nós uma forte impressão pela sua
crítica violenta ao oportunismo social-democrata, no que havia coincidência com a marcha dos nossos
próprios pensamentos, determinada pela polémica entre Kautski e Bernstein. O segundo caderno, onde
Makhaiski «arrancava a máscara» às fórmulas marxistas sobre a produção, vendo aí uma justificação
teórica da exploração do proletariado pelos intelectuais, esse tinha-nos indignado e desconcertado. Enfim,
o terceiro caderno, que havíamos recebido mais tarde e que continha um programa positivo, no qual as
sobrevivências do «economismo» se conciliavam com um embrião de sindicalismo,tinha-nos dado uma
sensação de absoluta inconsistência. 
Quando passámos a falar do meu trabalho futuro, a conversa limitou-se, é claro, a generalidades. Eu
queria antes do mais tomar conhecimento do que tinha sido recentemente publicado e pensava regressar
depois à Rússia ilegalmente. Ficou decidido que começaria por «olhar à minha volta». 
Nadejda Konstantinovna, para me alojar, levou-me para outro bairro, a uma casa onde habitavam
Zassulitch, Martov e Blumenfeld, que dirigia a tipografia do Iskra. Havia lá um quarto livre para mim. O
apartamento, de acordo com a disposição habitual das habitações inglesas, estava dividido não em
comprimento, mas verticalmente: no quarto de baixo morava a dona da casa e os locatários habitavam uns
por cima dos outros. Havia ainda uma divisão livre, que servia de sala comum, à qual Plekanov, depois da
sua primeira visita, tinha dado o nome de covil. Neste antro, um pouco por culpa de Vera Ivanovna
Zalssulitch, mas também com .a cumplicidade de Martov, reinava a maior das desordens. Era ali que se
tomava o café, que nos reuníamos para conversar, que se fumava, etc. Daí a alcunha. 
Assim começou o curto período londrino da minha existência. Atirava-me avidamente aos números do
Iskra e às brochuras do Zaria. É também a essa época que remonta a minha colaboração no Iskra.
Para o segundo centenário da fundação da fortaleza de Schlüsselburg redigi uma nota, que foi, creio, o
meu primeiro trabalho para o Iskra. Esta nota terminava com uma citação de Homero, ou mais
exactamente, do tradutor russo de Homero, Gneditch, falando eu das «mãos invencíveis» que a revolução
lançaria sobre o csarismo (a caminho da Sibéria, de comboio, eu ,tinha devorado a Ilíada). A nota agradou
a Lenine. Mas, a propósito das «mãos invencíveis», levantou uma dúvida legítima que me transmitiu com
um sorriso bonacheirão. «Mas foi extraída dum verso de Homero», retorqui eu para me justificar; no
entanto, confessei de bom grado que a citação clássica não era indispensáve1. Esta nota encontra-se no
Iskra, mas sem as «mãos invencíveis». 
Foi nessa altura que fiz as primeiras conferências em White-Chapel, onde «me media» com o velho
Tchaïkovski (já então ele era um velho) e com o anarquista Tcherkezov, que também não era novo. Como
resultado, fiquei sinceramente espantado ao ver que famosos emigrados de barba grisalha eram capazes de
debitar asneiras de grande quilate. A nossa ligação com White-Chapel era assegurada pelo velho
«londrino» Alexeiev, um emigrado marxista que tinha relações com a redacção do Iskra. Foi ele que me
iniciou na vida inglesa e, de uma maneira geral, constituiu para mim a fonte de toda a espécie de noções e
conhecimentos. Lembro-me que, na sequência de uma conversa circunstanciada com Alexeiev a caminho
de White-Chapel e depois no regresso, comuniquei duas opiniões suas a Vladimir Ilitch: uma respeitante à
queda do regime russo, a outra sobre o último livro de Kautski. A mudança de regime, dizia Alexeiev,
devia produzir-se não gradualmente, mas com uma enorme rapidez, por causa da rigidez da autocracia.
Esta palavra rigidez ficou vivamente gravada na minha memória. 
- Pois bem, mas ele pode ter razão - disse Lenine depois de ter escutado a narrativa. 
A outra opinião de Alexeiev reportava-se ao livro de Kautski «O Amanhã da Revolução Social». 
Eu sabia que esta brochura interessava muito a Lenine, brochura que, conforme ele próprio me disse, tinha
lido duas vezes e na qual acabara então de pegar pela terceira vez. Suponho que foi ele quem me
encarregou de ultimar a tradução russa. Quanto a mim, acabava de estudar atentamente a obra, seguindo o
conselho de Vladimir Ilitch. Ora Alexeiev achava que era obra de um oportunista. 
- Imbecil - disse Lenine de repente, e fez uma careta como sempre acontecia quando não estava satisfeito. 
Quanto a Alexeiev, este tinha o maior respeito por Lenine: - Julgo - dizia ele - que, para a revolução,
Lenine é mais importante do que Plekanov. Não repeti essas palavras diante de Lenine, claro, mas disse-as
a Martov, que nada respondeu. 
A redacção do Iskra e do Zaria era composta, como se sabe, por seis pessoas: três «velhos», Plekanov,
Zassulitch e Axelrod, e três jovens, Lenine, Martov e Potressov. Plekanov e Axelrod viviam na Suíça.
Zassulitch residia em Londres, com os jovens. Nessa época, Potressov encontrava-se algures no
continente. Esta dispersão dos colaboradores tinha certos inconvenientes, mas Lenine não parecia
preocupar-se com isso e até se sentia satisfeito. Antes de me deixar voltar a atravessar a Mancha, iniciou-
me com prudência nos assuntos internos do jornal e disse-me, entre outras coisas, que Plekanov insistia
em que toda a redacção fosse estabelecer-se na Suíça, mas que ele, Lenine, se opunha a tal transferência
porque isso só poderia prejudicar o trabalho. Foi então que compreendi pela primeira vez, ou antes,
adivinhei por indícios ténues, que a presença da redacção em Londres devia explicar-se por razões entre
as quais a polícia, sem dúvida, tinha o seu papel, mas onde também a influência dos redactores alguma
coisa tinha a ver. No trabalho corrente de organização política, Lenine desejava a máxima independência
possível em relação aos «velhos» e, sobretudo, a Plekanov, com o qual já tivera graves conflitos,
particularmente ao elaborar um projecto de programa do partido. Os mediadores eram, em casos destes,
Zassulitch e Martov: Zassulitch desempenhava de algum modo o papel de testemunha de Plekanov nestes
duelos, e Martov era a testemunha de Lenine. Os dois intermediários estavam de facto dispostos a
conseguir a conciliação e, além disso, tinham muita amizade um pelo outro. Só a pouco e pouco consegui
conhecer os diferendos verdadeiramente sérios que tinham surgido entre Lenine e Plekanov sobre a parte
teórica do programa. Lembro-me que Vladimir Ilitch me perguntou o que pensava do programa que
acabava de ser publicado (no nº2ã do Iskra, se não me engano) . Porém, eu tinha apenas assimilado o
programa nas suas grandes linhas e, portanto, era incapaz de exprimir uma opinião sobre a questão interna
que interessava Lenine. As divergências assentavam na necessidade de definir, segundo Lenine, mais
clara e categoricamente as tendências essenciais do capitalismo, a concentração da produção, a decadência
das classes intermediárias, a diferenciação das classes, etc.; nestas questões Plekanov exigia mais reserva
e maior prudência. O programa, com se sabe, está todo semeado de «mais ou menos» que se devem a
Plekanov. Tanto quanto me lembro, de acordo com o que nos contaram Martov e Zassulitch, o primeiro
esboço de Lenine, em oposição ao de Plekanov, tinha merecido uma crítica muito dura por parte deste
último, formulada em tom de mofa arrogante, com a qual, em casos destes, se distinguia Jorge
Valentinovitch. Mas não era assim, claro está, que se podia desencorajar ou intimidar Lenine. O conflito
tomou um carácter verdadeiramente dramático. Vera Ivanovna, segundo ela própria contou, dissera a
Lenine: - Jorge (Plekanov) é um galgo: mordisca bem mas acaba sempre por largar; você é um buldogue:
quando morde nunca mais larga. 
Recordo-me perfeitamente desta frase, bem como da conclusão de Zassulitch: - Lenine ficou muito
contente com esta comparação. -«Eu mordo e não largo mais?...É isso?», perguntou ele ainda, encantado.
E Vera Ivanovna imitava com uma bonomia trocista a entoação. 
Durante a minha estadia em Londres, Plekanov esteve lá alguns dias. Foi então que o vi pela primeira vez.
Visitou a nossa habitação comum, passou pelo «covil», mas eu estava ausente. 
- Jorge veio cá - disse-me Vera Ivanovna; como ele quer vê-lo, vá a casa dele. 
- Que Jorge? - perguntei intrigado, pensando para comigo que existia mais um personagem famoso que eu
não conhecia. 
- Essaé boa! Plekanov... Nós chamamos-lhe Jorge. Fui à noite a casa dele. Num quarto pequeno estavam
com Plekanov, o social-democrata alemão Beer, escritor bastante conhecido, e o inglês Askew. Não
sabendo onde meter-me, porque todas as cadeiras estavam ocupadas, Plekanov, não sem ter hesitado,
convidou-me a sentar na cama. Achei que era efectivamente natural, não adivinhando que Plekanov,
europeu até às unhas dos pés, não podia decidir-se por uma medida tão excepcional a não ser num caso de
extrema necessidade. A conversa era em alemão; Plekanov não dominava suficientemente esta língua e
limitava-se a monossílabos. Primeiro Beer referiu-se à maneira como a burguesia inglesa sabia seduzir os
operários dignos de atenção; depois falou-se dos predecessores ingleses do materialismo francês. Beer e
Askew foram embora logo de seguida. Jorge Valentinovitch esperava, aliás com razão, ver-me partir com
eles, pois já era tarde e não se devia incomodar os donos da casa com o barulho da conversa. Ora, muito
pelo contrário, eu pensava nesse momento que a verdadeira conversa ainda mal havia começado. 
- Foi muito interessante o que Beer disse - observei. - Sim, a propósito da política inglesa, é interessante;
quanto à filosofia, são bagatelas - respondeu Plekanov. Vendo que eu não me dispunha a sair, Jorge
Valentinovitch propôs-me ir beber cerveja ali perto. Fez algumas perguntas sem importância, foi amável,
mas havia nessa amabilidade não sei que impaciência escondida. Sentia que a sua atenção estava dispersa.
Talvez estivesse simplesmente fatigado de dia de trabalho. No entanto, eu saí pouco satisfeito, com um
sentimento de amargura. 
Durante este período em Londres, como depois em Genebra, encontrava muito mais vezes Zassulitch e
Martov do que Lenine. Em Londres, na mesma habitação, em Genebra, almoçando e jantando
habitualmente nos mesmos pequenos restaurantes, Martov, Zassulitch e eu víamo-nos várias vezes ao dia,
enquanto Lenine vivia no seu ambiente familiar; por causa disso, cada encontro com ele, fora das sessões
oficiais, adquiria a importância de um pequeno acontecimento. 
Zassulitch era uma personagem singular e singularmente simpática. Escrevia muito lentamente, sofrendo
verdadeiramente todos os tormentos da criação literária. 
- O que Vera Ivanovna faz não é uma composição, é um mosaico - disse-me um dia, nessa época,
Vladimir Ilitch. 
E, de facto, ela aplicava o texto frase a frase sobre o papel, andando longamente no quarto de um lado
para o outro, deslizando e martelando o chão com as pantufas, fumando sem parar cigarros que ela própria
enrolava, atirando pontas ou meios cigarros para todos os lados, sobre os peitoris das janelas, sobre as
mesas, espalhando cinza sobre a blusa, sobre os braços, sobre os manuscritos, no copo de chá e, se a
ocasião se apresentasse, para cima do seu interlocutor. Era e manteve-se até ao fim uma velha intelectual
radical, a quem o acaso tinha infligido a inoculação do marxismo. Os artigos de Zassulitch provam que
ela tinha assimilado admiravelmente os elementos teóricos de Marx. Mas, ao mesmo tempo, a base moral
e política de uma radical russa dos anos 7O-71 conservou-se nela intacta até ao fim. Na intimidade,
permitia-se amuar contra certos processos ou deduções do marxismo. A palavra «revolucionário»
continha para si um significado particular, independente da consciência de classe. Lembro-me de ter tido
com ela uma conversa acerca dos seus Revolucionários nos meios burgueses. Servi-me da expressão: os
revolucionários burgueses-democratas. 
- Mas não - replicou Vera Ivanovna, com um toque de despeito ou, mais exactamente, de desgosto - nem
burgueses, nem proletários, mas simplesmente revolucionários. Pode dizer-se, é claro, os revolucionários
pequeno-burgueses - acrescentou - se se meter na pequena burguesia tudo o que não se pode encaixar
noutro lado... 
O local de concentração das ideias social-democratas era então a Alemanha, e nós seguíamos com
extrema atenção a luta dos ortodoxos contra os revisionistas na social-democracia alemã. Mas sobre isso
Vera Ivanovna pensava apenas o que muito bem entendia, dizendo de repente: 
- Está bem!... Eles acabarão com o revisionismo, eles restabelecerão Marx, eles transformar-se-ão na
maioria e, no entanto, viverão com o seu Kaiser. 
- «Eles» quem, Vera Ivanovna? 
- Os sociais-democratas alemães, claro. 
Aliás, sobre este ponto, Vera Ivanovna não se enganava tanto quanto nessa altura parecia, muito embora
tudo viesse a passar-se de outro modo, que ela não previa, e por razões diferentes... 
Relativamente ao programa de repartição das terras, Zassulitch mostrava-se céptica - não que ela o
recusasse formalmente, mas ria-se disso com bom humor. 
Recordo-me doutro episódio. Pouco antes do Congresso, veio a Genebra Constantino Constantinovitch
Bauer, um dos velhos marxistas, homem aliás pouco equilibrado, que durante certo tempo manteve ,
relações amigáveis com Struve, mas que, nessa altura, hesitava entre o grupo do Iskra e o do
Osvobojdénie (A Emancipação). Em Genebra começou a pender para o Iskra, mas recusava-se a aceitar o
princípio da repartição. Foi a casa de Lenine, a quem provavelmente já conhecia. No entanto, não voltou
de lá convencido, sem dúvida porque Vladimir Ilitch, conhecendo a sua natureza de Hamlet não se deu ao
trabalho de o persuadir. Eu conhecera Bauer durante a deportação: tive com ele uma conversa muito longa
sobre aquela malfadada repartição. Não sem muito suor, expus-lhe todas as razões que tivera tempo de
reunir ao longo de seis meses de intermináveis discussões com os socialistas-revolucionários e, em geral,
com todos os adeptos do programa agrário do Iskra. E eis que, nessa mesma noite, Martov (lembro-me
que foi ele) comunicou na reunião da redacção, na minha presença, que Bauer tinha ido a sua casa e se
declarara definitivamente «partidário do Iskra». Trotski, dizia-se, ter-lhe-ia dissipado todas as dúvidas... 
- E quanto à repartição, ele também está convencido?- perguntou Zassulitch, quase assustada. 
- Muito particularmente quanto à repartição. 
- O po-o-bre!... - exclamou Vera Ivanovna com um tom tão impagável que desatámos todos a rir. 
Lenine disse-me um dia: 
- Em Vera Ivanovna, muitas coisas assentam na moral, no sentimento. 
E contou-me que ela e Martov tinham parecido inclinar-se para o terror individual quando Val, o
governador de Vilna, mandou vergastar os manifestantes operários. 
Vestígios deste «desvio» temporário, como hoje diríamos, podem encontrar-se num dos números do Iskra.
Eis, creio, o que se terá passado: 
Martov e Zassulitch estavam a preparar o número sem o auxílio de Lenine, que se encontrava no
continente. Recebeu-se um telegrama - sobre a aplicação da vergasta aos detidos de Vilna. Em Vera
Ivanovna acordo heroína radical que atira sobre Trepov porque este mandava chicotear os detidos
políticos. Martov apoiou-a nessa ocasião... Ao receber o último número do Iskra, Lenine ficou indignado: 
- É o primeiro passo para a capitulação face ao socialismo-revolucionário - gritou. 
Ao mesmo tempo recebeu-se um protesto de Plekanov. 
Este episódio teve lugar antes da minha chegada a Londres, podendo muito bem acontecer que haja
algumas inexactidões na minha narrativa; porém, da base do incidente lembro-me eu sem risco de erro. 
- É certo que - dizia-me Vera Ivanovna à laia de explicação - não se trata aqui de maneira nenhuma do
terror como sistema; mas eu penso que através do terror se pode ensinar essa gente a nunca mais
chicotear... 
Zassulitch nunca entrava em verdadeiras discussões; menos ainda sabia falar em público. Nunca
respondia directamente aos argumentos do seu interlocutor, mas dentro dela gerava-se qualquer coisa, e
depois, bruscamente, inflamava-se e lançava rapidamente,tão rapidamente que quase sufocava, uma série
de frases, dirigindo-se não a quem dela esperava uma resposta, mas àquele que, assim o julgava, era capaz
de a compreender. 
Se os debates decorriam segundo um processo regulamentar, sob a direcção de um presidente, Vera
Ivanovna nunca se inscrevia para tomar a palavra, pois para dizer qualquer coisa tinha necessidade de se
excitar. Mas em tal caso, mesmo assim ela falava, sem ligar nenhuma às inscrições, formalidade que
desprezava em absoluto, e interrompia sempre tanto o orador como o presidente, dizendo até ao fim o que
tinha para dizer. Para a compreender era necessário entrar por reflexão no curso dos seus pensamentos. E
os seus pensamentos - justos ou errados - eram sempre interessantes e só a ela pertenciam. Não é difícil
imaginar o contraste que representava Vera Ivanovna, com o seu radicalismo difuso e o seu subjectivismo,
com toda a sua desordem, em relação a Vladimir Ilitch. Não se pode dizer que não houvesse entre ambos
simpatia, mas o que é certo é que também ali existia o sentimento profundo de uma incompatibilidade
orgânica. Entretanto, Zassulitch, psicologicamente, sentia desde então, não sem um certo desagrado, a
força de Lenine; era o que ela queria exprimir com a frase: «Ele morde e não larga mais». 
A complexidade das relações existentes entre os membros da redacção só se me foi tornando inteligível a
pouco e pouco, e não sem esforço. Tinha chegado a Londres, como já disse, como provinciano autêntico,
em todos os sentidos da palavra. Não só me encontrava no estrangeiro pela primeira vez, como também
nunca tinha visto Petersburgo! Em Moscovo, como em Kiev, vivera apenas na prisão de transferência. Só
conhecia os escritores marxistas através dos seus artigos. Na Sibéria, tinha lido números do Iskra e o «Que
fazer?», de Lenine. A respeito de Ilitch, autor do «Desenvolvimento do Capitalismo», ouvira vagamente
falar na prisão de Moscovo (por Vanovski, creio), como sendo a estrela mais próxima da social-
democracia. Sabia poucas coisas de Martov e nada sobre Potressov. Em Londres, estudando afanosamente
o Iskra, o Zaria e, em geral, as nossas publicações no estrangeiro, encontrei um dos números do Zaria
onde havia um brilhante artigo dirigido contra Prokopovitch sobre o papel e o significado dos sindicatos. 
- Quem é este Molotov? - perguntei a Martov. - É Parvus. 
Mas eu também nada sabia sobre Parvus. Tomava o Iskra como um todo e, durante esses meses, a ideia de
ali procurar, no jornal ou na redacção, tendências diferentes, nuances, influências, etc., ,era-me ainda
estranha e, diria mesmo interiormente hostil. 
Lembro-me de ter notado que alguns editoriais e artigos do Iskra, se bem que não assinados, eram
redigidos por alguém que falava de si próprio na primeira pessoa: «naquele número, eu disse», «já escrevi
sobre este assunto», etc.. Tirei informações para conhecer o autor desses artigos. Acontece que tudo era de
Lenine. Numa conversa fiz-lhe notar que, em minha opinião, do ponto de vista literário não vinha muito a
propósito falar na primeira pessoa em artigos não assinados. 
- Porque é que acha falta de propósito? - perguntou ele, intrigado, pensando talvez que nesse momento eu
não estava de facto a falar por acaso e que não exprimia apenas uma opinião pessoal. 
- Parece-me que é assim - respondi sem precisão, pois não tinha qualquer ideia nítida sobre o assunto. 
- Não sou da sua opinião - disse Lenine com um riso enigmático. 
Nessa época, este processo literário podia parecer imbuído de um certo «egocentrismo». Na realidade,
dando aos seus artigos, mesmo aos não assinados, um carácter singular, Lenine imprimia uma garantia à
sua :linha doutrinária, ;pois não estava lá muito seguro quanto à dos seus colaboradores mais próximos.
Devemos aqui reconhecer, no mais ínfimo pormenor, esta obstinada tensão para o objectivo, perseverante,
persistente, independente de todas as convenções, indiferente às formalidades, que caracteriza
essencialmente Lenine como chefe. 
O director político do Iskra era ele, mas Martov era o seu principal recurso como redactor. Escrevia fácil e
interminavelmente, tal como falava. Quanto a Lenine, esse passava longas horas na biblioteca do British
Museum, onde trabalhava nas questões teóricas. 
Recordo-me que um dia, na sala de leitura, Lenine escreveu um artigo contra Nadejdine, o qual tinha
então na Suíça a sua pequena casa editora, formando uma espécie de grupo intermédio entre os social-
democratas e os socialistas-revolucionários. Entretanto, Martov, na noite anterior (ele trabalhava
sobretudo de noite), tivera tempo de escrever um grande artigo sobre Nadejdine e enviara-o a Lenine. 
- Você leu o artigo do Júlio? - perguntou-me Vladimir Ilitch no museu. 
- Li. 
- Que pensa dele? 
- Parece-me bom. 
- Bem, bem, pode ser bom, mas não é suficientemente claro. Não tira conclusões. Acabei de tomar aqui
algumas notas, mas não sei de momento que lhes fazer: a menos que as acrescente como observações
complementares ao artigo do Júlio... 
Passou-me um caderninho cheio de notas escritas a lápis. No número seguinte do Iskra o artigo de Martov
apareceu com as notas de Lenine em pé de página. Nem o artigo nem as notas estão assinados. Não sei se
estas notas foram incluídas nas Obras Completas de Lenine. Garanto que o autor é ele. 
Meses mais tarde, nas semanas que precederam o Congresso, houve na redacção um violento incidente
entre Lenine e Martov, que estavam em desacordo sobre a táctica das manifestações de rua, mais
exactamente sobre a questão da luta armada contra a polícia. Lenine dizia que era preciso criar pequenos
grupos armados e treinar operários militantes para se baterem contra as forças da polícia. Martov opunha-
se a esta ideia. O debate teve lugar perante a redacção. 
- Mas não dará isso origem a qualquer coisa do género dum terrorismo de grupos? - perguntei eu a
propósito. 
(Devo lembrar que neste período a luta contra a táctica terrorista dos socialistas-revolucionários
desempenhava um grande papel na nossa acção.) 
Martov agarrou nesta observação e desenvolveu a ideia de que era preciso ensinar a proteger as
manifestações de massa contra a polícia, mas não criar grupos de combate. Plekanov, de quem eu e, sem
dúvida, os outros esperávamos alguma coisa, furtou-se a qualquer resposta, convidando somente Martov a
esboçar um projecto de resolução que permitisse debater a questão sobre um texto determinado. Este
episódio foi, aliás, abafado pelos acontecimentos que o Congresso nos trazia. Fora das reuniões e das
conferências não tive muita oportunidade de observar Martov e Lenine em diálogo. As longas discussões,
as conversas caóticas, que degeneravam constantemente em mexericos de emigrados e em tagarelices,
género de ocupação pela qual Martov se sentia atraído, já então desagradavam a Lenine. Este prodigioso
maquinista da revolução, fosse na política, ,fosse nos trabalhos teóricos, nos estudos filosóficos como no
estudo das línguas estrangeiras ou nas conversações, tinha apenas uma e a mesma coisa em vista: o
objectivo final. Era talvez o mais inflexível utilitarista que jamais terá saído do laboratório dos tempos.
Mas como o seu utilitarismo se caracterizava pela mais ampla grandeza histórica, a sua personalidade
nunca diminuiu nem empobreceu com isso: pelo contrário, desenvolvia-se e enriquecia incessantemente, à
medida que cresciam a sua experiência da vida e a sua esfera de acção. 
Ao lado de Lenine, Martov, nessa época seu mais próximo companheiro de luta, já não se sentia à
vontade. Ainda se tratavam por tu, porém começava a sentir-se um pequeno esfriamento nas suas
relações. Martov vivia muito mais do momento presente, das zangas, do trabalho corrente de publicista,
das polémicas, últimas novidades e tagarelices. Lenine, mastigando osfactos do dia-a-dia, penetrava
profundamente, através do pensamento, no amanhã. Martov tinha inúmeras e por vezes brilhantes
intuições, concebia hipóteses, fazia propostas que ele próprio depressa esquecia; Lenine, esse, retinha
aquilo ,de que necessitava e somente no momento em que necessitava. A transparente fragilidade dos
pensamentos de Martov obrigou, mais de uma vez Lenine a abanar a cabeça em sinal de apreensão. Ainda
não tinha havido tempo de definir-se, nem mesmo de aparecer, qualquer diferença entre as respectivas
linhas políticas; apenas se podem sentir as diferenças voltando ao passado, à luz do que depois aconteceu.
Mais tarde, aquando da cisão no II Congresso, os colaboradores do Iskra dividiram-se em duros e brandos.
Estas denominações, como se sabe, ocorreram nos primeiros tempos, o que provava que ainda não existia
nenhuma linha de divisão, havendo no entanto uma diferença na maneira de abordar as questões, na
decisão, na persistência para o objectivo final. Voltando às relações entre Lenine e Martov, pode dizer-se
que, antes da cisão, antes do Congresso, Lenine já era um «duro», enquanto Martov era um «brando». E
ambos bem o sabiam. 
Lenine observava Martov, a quem muito estimava, com um olho crítico e ligeiramente desconfiado;
Martov, sentindo esse olhar, ficava aborrecido e, em resultado de um tique nervoso, erguia os seus magros
ombros. Quando se encontravam e conversavam, já não havia entre eles entoações amigáveis,
brincadeiras - ou, pelo menos, eu não me apercebia disso. Lenine, ao falar, deixava escorregar o olhar para
o lado de Martov, e os olhos deste vitrificavam-se sob as lunetas que nunca limpava. E quando Vladimir
Ilitch falava comigo de Martov, havia na sua voz uma nuance particular: «O quê, foi o Júlio que disse
isso?». E então o nome de Júlio era pronunciado de uma certa maneira, ligeiramente sublinhada, como se
Lenine fizesse um aviso: «Ele é bom, sem dúvida, ele é bom, é mesmo notável, mas infelizmente é um
brando». 
Sem dúvida .alguma, Vera Ivanovna tinha também sobre Martov uma certa influência, não política, mas
psicológica, conservando-o um pouco afastado de Lenine. É claro que o que eu aqui digo é mais uma
generalização psicológica do que a constatação de um facto Imaterial; e isto reporta-se a coisa que se
passaram já lá vão vinte e dois anos. Durante este tempo, muitas outras coisas vieram inscrever-se na
minha memória e, na imagem que dou de momentos imponderáveis para caracterizar relações pessoais,
pode haver inexactidões ou um desvio de perspectiva. Qual a parte da memória e qual a da imaginação
que reconstrói involuntariamente à sua maneira o passado? Penso, contudo, que no essencial, a minha
memória reproduz o que se passou e como se passou. 
Depois das minhas conferências experimentais, por assim dizer, em White-Chapel (Alexeiev apresentou
sobre isso um «relatório» à redacção), mandaram-me fazer conferências no continente, em Bruxelas,
Liège e Paris. O tema destas conferências era o seguinte: «Do materialismo histórico e do modo como ele
é compreendido pelos socialistas-revolucionários». Vladimir Ilitch mostrou muita curiosidade pelo
assunto. Apresentei-lhe um resumo pormenorizado, acompanhado de citações. Aconselhou-me a trabalhar
o tema e a fazer sobre ele um artigo para o número seguinte do Zaria, porém não tive tal audácia. 
De Paris fui logo de seguida chamado por telegrama a Londres. Tratava-se de me enviarem ilegalmente à
Rússia, de acordo com o esquema de Vladimir Ilitch: lá queixavam-se de carências, da falta de camaradas,
e era Clair, creio, que reclamava o meu regresso. Mas, mal tivera tempo de chegar a Londres, já o plano
estava modificado. L. G. Deutch, que então se encontrava em Londres e era muito bom para mim, contou-
me mais tarde como «interviera a meu favor», demonstrando que «este adolescente» (nunca me chamava
de outra maneira) tinha necessidade de viver no estrangeiro para completar a sua instrução; Lenine, após
ter discutido um pouco, aceitou a ideia. Era muito sedutor trabalhar na organização russa do Iskra; no
entanto, aceitei de bom grado ficar ainda mais um tempo no estrangeiro. Um domingo, fui com Vladimir
Ilitch e Nadejda Konstantinovna à igreja socialista de Londres, onde um meeting social-democrata se
fazia acompanhar do canto de salmos, piedosamente revolucionários. O orador era um compositor-
tipógrafo que regressara, creio, da Austrália. Vladimir Ilitch traduzia-nos em voz baixa o seu discurso, o
qual tinha um sentido bastante revolucionário, pelo menos para essa época. Em seguida, todos se
levantaram e cantaram: «Deus todo-poderoso, faz com que não haja mais sobre a terra nem reis, nem
ricos...» ou qualquer coisa ,do género. 
- Há no proletariado inglês uma multidão de elementos revolucionários e socialistas que estão dispersos -
disse a propósito Vladimir Ilitch, quando saímos da igreja; - mas tudo isso se combina com o
conservadorismo, a religião, os preconceitos, e não consegue vingar e generalizar-se... 
Interessa aqui fazer notar que Zassulitch e Martov viviam completamente à margem do movimento
operário inglês, estando totalmente absorvidos pelo Iskra e por aquilo que o rodeava; enquanto Lenine, de
tempos a tempos, fazia incursões nos meios operários ingleses. 
É inútil dizer que Vladimir Ilitch, Nadejda Konstantinovna e a mãe desta viviam mais que modestamente.
Regressados da igreja social democrata, almoçámos na pequena cozinha - sala de jantar da habitação
composta por duas divisões. Vejo ainda os pequenos bocados de carne grelhada que foram servidos na
frigideira. Tomou-se chá. Gracejaram, como sempre, acerca do meu regresso a casa, perguntando se eu
seria capaz de encontrar sozinho o caminho: eu era muito desastrado a reconhecer as ruas e, com a minha
tendência para a sistematização, chamava a este defeito «a minha cretinice topográfica». 
Aproximava-se a data fixada para o Congresso e, finalmente, foi decidido transferir o centro do Iskra para
Genebra: a vida lá I era incomparavelmente mais barata e as ligações com a Rússia mais fáceis. Lenine,
contra vontade, consentiu. Endossaram-me para Paris, de onde, juntamente com Martov, deveria partir
para Genebra. A preparação do Congresso intensificou-se. Pouco tempo depois também Lenine chegou a
Paris. Deveria fazer três conferências sobre a questão agrária na Escola de Altos Estudos Sociais, escola
fundada em Paris pelos professores que haviam sido escorraçados das universidades russas. Os estudantes
marxistas tinham insistido para que Lenine fosse convidado, tanto mais que Tchernov já anteriormente
tomara a palavra neste estabelecimento. Os professores estavam preocupados e suplicavam ao
conferencista agressivo que, na medida do possível, não provocasse polémica. Mas Lenine recusou aceitar
qualquer condição e começou a primeira conferência dizendo que o marxismo era uma teoria
revolucionária, a qual, por consequência, provocava polémica, mas que esta combatividade não estava de
modo algum em contradição com o seu carácter científico. 
Lembro-me que antes desta primeira conferência Vladimir Ilitch estava muito excitado. Porém, na
tribuna, dominou-se logo ou, pelo menos, tinha ar disso. O professor Gambarov, que viera para o ouvir,
comunicou a Deutch a sua impressão em duas palavras: «Um verdadeiro professor!» Este homem amável
julgava que fazia o maior dos elogios. Em todas as conferências entrou a polémica contra os Populistas e
o social-reformista agrário David, que Lenine punha ao lado dos populistas; entretanto, as lições
mantiveram-se no âmbito da teoria económica, sem tocar na luta política de então, no programa agrário da
social-democracia, dos socialistas-revolucionários, etc. O conferencista quisera limitar-se assim, tendo em
conta o carácter académico da cátedra. Mas, depois da terceira lição,Lenine fez uma conferência política
sobre a questão agrária numa sala, creio que no nº 11O da avenida de Choisy; esta reunião foi organizada
não pela Escola de Altos Estudos, mas pelo grupo parisiense do Iskra. A sala estava cheia. Todos os
estudantes da Escola foram lá ouvir as deduções práticas do curso teórico que lhes tinha sido ministrado.
A prelecção incidiu sobre o programa agrário do Iskra dessa época e, em particular, sobre a restituição às
comunas das terras repartidas. Não me recordo do nome dos opositores que tomaram a palavra. Mas
lembro-me que, na sua conclusão, Vladimir Ilitch foi maravilhoso. Um dos camaradas parisienses do Iskra
disse-me à saída: «Hoje, Lenine ultrapassou-se». Como é habitual, os camaradas foram com o
conferencista para o café. Estavam todos muito satisfeitos e o próprio Lenine encontrava-se num estado
de agradável excitação. O tesoureiro do grupo, muito contente, comunicou-nos o montante da receita que
ia entrar na caixa do Iskra: qualquer coisa como 75 ou 1OO francos, uma soma que não era de desprezar.
Passou-se isto no princípio de 19O3. Não posso, neste momento, determinar exactamente a data, mas
julgo que não será muito difícil fazê-lo, se é que não está já feito. 
Foi durante esta estadia de Lenine em Paris que se decidiu fazê-lo assistir a um espectáculo de ópera. N. I.
Sedova, membro do Iskra, ficou encarregado disso. Vladimir Ilitch foi à Ópera Cómica e regressou com a
pasta que não largava desde que ia dar os cursos na Escola dos Altos Estudos. Representava-se Louise, de
Gustave Charpentier, um drama lírico cujo tema é muito democrático. Formávamos um grupo no
galinheiro. Além de Lenine, Sedova e eu, estava também Martov, creio. Não me lembro dos outros. Esta
ida à Ópera Cómica incluiu um pequeno incidente completamente estranho à música, mas que, no
entanto, se gravou fortemente na minha memória. Lenine tinha comprado sapatos em Paris, mas eram
muito apertados. Sofreu durante várias horas e, finalmente, decidiu desfazer-se deles. Como por acaso, os
meus próprios sapatos precisavam de ser substituídos. Lenine deu-me os dele e, ao princípio, pareceu-me
que eram mesmo da minha medida, tão contente fiquei. Decidi estreá-los ao ir à ópera Cómica. Na ida
tudo correu bem. Mas no teatro comecei a sentir que a coisa estava a correr mal. Talvez por isso não me
lembre da impressão que a ópera causou a Lenine e a mim próprio. Recordo apenas que ele estava então
muito disposto a brincar e que ria muito. No regresso, eu já sofria cruelmente e Vladimir Illitch, sem
qualquer piedade, gozou-me durante todo o caminho. No entanto, havia uma certa comiseração na sua
troça: não tinha ele próprio sofrido o suplício dos sapatos durante várias horas? 
Falei atrás na agitação que sentia Lenine antes de começar as suas conferências. Impõe-se voltar ao
assunto. Emoções deste género manifestaram-se em Lenine noutras circunstâncias e, muito mais tarde,
quando teve de aparecer em público; e eram tanto mais fortes quanto mais «estrangeiro» era para ele o
auditório e quanto mais acidental a ocasião do discurso. A maneira de falar de Lenine mostrava-se sempre
cheia de segurança, de veemência; ele dizia rapidamente o que tinha para dizer, de modo que os seus
discursos eram uma prova bastante dura para os estenógrafos. Mas quando não se sentia à vontade, a sua
voz ficava com um som que não era o dele e que se parecia com uma espécie de eco reflectido e
impessoal. Pelo contrário, quando Lenine sentia que o auditório era precisamente aquele que tinha grande
necessidade de o ouvir, então a voz adquiria uma extrema vivacidade, tornava-se leve e persuasiva; já não
era a voz de um «orador», no sentido comum do termo, era a voz de um conversador, mas elevada ao tom
necessário à tribuna. Já não era arte oratória, ultrapassava a eloquência vulgar. Poder-se-á objectar, é
verdade, que qualquer orador fala muito melhor quando se sente entre os seus. Em geral, está correcto.
Mas a questão reside em saber em que auditório e em que circunstâncias um orador se sente como em
casa. Os europeus, do tipo Vandervelde, formados nos hábitos parlamentares, precisam de um certo
envolvimento solene e de tudo quanto apela para a eloquência. Nas reuniões em que se festejam
aniversários ou se homenageiam entidades oficiais, sentem-se de facto bem. Mas, para Lenine, reuniões
deste género representavam verdadeiras desgraçazinhas pessoais. Ele falava com muito brilho e de uma
maneira persuasiva quando tinha de analisar questões de política de combate. As suas melhores peças de
oratória devem ser os discursos que proferiu no Comité Central nas vésperas de Outubro.
Notas: Primeira Parte
(1)Nome próprio e nome paterno de Krupskaia, mulher de Lenine. - (N. do Ed.). (retornar ao texto) 
Antes das conferências de Paris tinha ouvido Lenine uma só vez, creio, em Londres, em fins de Dezembro
de 19O2. Coisa bizarra, não me resta qualquer lembrança do carácter dessa manifestação, nem do tema
que foi tratado. Estaria quase disposto a duvidar da realidade desta recordação. No entanto, tenho a
certeza que houve então uma reunião de russos, muito importante para Londres, à qual assistiu Lenine; se
ele não tivesse lá ido para fazer uma conferência, provavelmente não o teríamos visto. Explico da seguinte
maneira esta lacuna da minha memória: a conferência foi provavelmente consagrada, como habitualmente
se fazia, a um tema tratado no último número do Iskra; eu tivera assim a possibilidade de ler o artigo de
Lenine sobre o assunto e, consequentemente, a conferência não apresentava para mim nada de novo; além
disso, não houve debates; os poucos adversários que se encontravam em Londres não tiveram a audácia de
tomar a palavra contra Lenine; o auditório, composto em parte por «bundistas», em parte por anarquistas,
constituía um meio bastante ingrato; como resultado de tudo isso, a conferência deixou poucos vestígios.
Lembro-me apenas que no fim da reunião os B..., marido e mulher, do antigo grupo de Petersburgo «O
Pensamento Operário» (Rabotchaia Misl), que viviam há bastante tempo em Londres, se aproximaram de
mim e me convidaram: 
- Venha a nossa casa na véspera do Ano-Novo. (É por isso que eu localizo a data da reunião no fim de
Dezembro). 
- Porquê? - perguntei espantado, como autêntico bárbaro. 
- Passaremos o tempo entre camaradas. Ulianov estará lá e Krupskaia também. i Lembro-me bem que
eles disseram Ulianov e não Lenine; não compreendi logo à primeira de quem é que se tratava. Zassulitch
e Martov foram igualmente convidados. No dia seguinte, no «covil», reunimo-nos em conselho para saber
o que fazer; perguntámos a Lenine se ele corresponderia ao convite. Julgo que ninguém lá foi. E foi pena:
teria sido uma ocasião excepcional única no género, para ver Lenine, com Zassulitch e Martov, numa
festa de Ano-Novo. 
Quando cheguei a Genebra ido de Paris, fui convidado para casa de Plekanov, com Martov e Zassulitch;
penso que Vladimir Ilitch também lá foi. No entanto, dessa noite apenas me resta uma recordação
extremamente confusa. Em todo o caso, essa reunião não teve qualquer carácter político; poderia dizer-se
que foi «mundana» ou, ainda, das mais banais. Eu conservei-me na minha cadeira, lembro-me disso,
bastante desanimado e aborrecido e, desde que o dono ou a dona da casa não me prestassem o mínimo
sinal de atenção, não sabia que fazer de mim próprio. As filhas de Plekanov serviam chá e bolinhos.
Havia em todas as palavras, em todos os gestos, qualquer coisa de tenso, uma espécie de constrangimento
que provavelmente não era só eu a sentir. Talvez por causa da minha juventude eu sentisse essa ligeira
frieza mais vivamente que os outros. Esta visita a Plekanov foi a primeira e a última. É claro que as
impressões que me ficaram foram das mais fugidias e, muito possivelmente, fortuitas, tal como foram
fugidios e fortuitos todosos meus encontros com Plekanov. Tentei noutro lado caracterizar
resumidamente a brilhante figura do primeiro mestre em marxismo que jamais a Rússia teve., Limito-me
aqui às impressões dos primeiros encontros, nos quais, ai de mim, não tive realmente grande sorte.
Zassulitch, que ficava muito triste com tudo isto, dizia-me 
- Sei que o Jorge é algumas vezes insuportável, mas, no fundo, é um animal do mais amável que há. (Era
a maneira dela fazer um elogio). 
Não pude evitar referir aqui que na família de Axelrod reinava uma atmosfera de simplicidade e de
sincera camaradagem. Ainda hoje me lembro, com gratidão, das horas que passei à mesa hospitaleira dos
Axelrod quando das minhas frequentes idas a Zurique. Vladimir Ilitch também lá foi mais do que uma vez
e, tanto quanto eu sei pelas narrativas desta família, sentia-se ali confortado e à vontade. Aliás, não tive
oportunidade de o encontrar em casa dos Axelrod. 
Quanto a Zassulitch, a sua simplicidade e afabilidade em relação aos jovens camaradas eram
verdadeiramente incomparáveis. Se não se pode falar da sua hospitalidade no sentido habitual do termo, é
que ela tinha mais necessidade de lhe receber o benefício do que de a proporcionar aos outros. Vivia,
vestia-se e alimentava-se como a mais modesta das estudantes. No domínio dos valores materiais, as suas
maiores alegrias eram o tabaco e a mostarda. Consumia um e outra em grandes quantidades. Quando
espalhava sobre uma fatia muito fina de presunto uma espessa camada de mostarda, nós dizíamos: «Vera
Ivanovna está na farra ». 
L. G. Deutch, quarto membro do grupo A Emancipação do Trabalho, também se distinguia pela sua
bondade e atenção para com a juventude. Até agora não referi que, na qualidade de administrador do
Iskra, ele assistia às sessões da redacção com voz consultiva. Deutch acompanhava geralmente Plekanov,
tendo opiniões mais que moderadas sobre a táctica revolucionária. Um dia pôs-me estupefacto ao
declarar: 
- Nunca haverá um levantamento armado, meu jovem, e tal não é necessário. Na penitenciária havia
«galos» entre nós que, ao primeiro pretexto, procuravam combater e faziam-se agredir. Eu seguia outra
conduta: ser firme, fazer constar à administração que se poderia vir a dar uma grande batalha, mas sem
nunca se chegar a vias de facto. Por este meio, obtinha um certo respeito por parte da administração e
condições mais suaves no regime. É a táctica que devemos empregar face ao csarismo; de outro modo,
demolir-nos-ão, aniquilar-nos-ão sem qualquer utilidade para a causa... 
Fiquei de tal maneira fulminado com este sermão sobre a táctica que falei dele sucessivamente a Martov,
a Zassulitch e a Lenine. Não me lembro qual foi a reacção de Martov. Vera Ivanovna disse-me: 
- O Eugénio (era o velho pseudónimo de Deutch) foi sempre assim: pessoalmente é um homem duma
coragem excepcional; mas, em política, é extremamente prudente e comedido. 
Lenine, depois de me ter ouvido, pronunciou qualquer coisa ,do género de: «Hum...hum...si-im», e
desatámos ambos a rir, sem mais comentários. 
Os primeiros delegados do próximo II Congresso começavam a reunir-se em Genebra e nós
conferenciávamos com eles ininterruptamente. Neste trabalho preparatório Lenine tinha indiscutivelmente
preponderância, muito embora o seu papel não fosse sempre perceptível. Havia sessões da redacção do
Iskra, sessões de organização do Iskra, reuniões separadas com grupos de delegados e assembleias
plenárias. Uma parte dos delegados tinha chegado com dúvidas, objecções ou reclamações de grupos. Este
trabalho preparatório absorvia muito tempo. 
Apenas três operários vieram ao congresso. Lenine conversou em pormenor com cada um deles e
conquistou-os a todos. Um deles era Schotmann, de Petersburgo. Era ainda muito jovem, mas prudente e
ponderado. Lembro-me que, regressados de uma conversa com Lenine (Schotmann tinha ficado na mesma
casa onde eu estava), repetia sem parar: 
- Como brilham os seus olhinhos! Dir-se-ia que eles vêem através de nós!... 
O delegado de Nicolaiev era Kalafati. Vladimir Ilitch interrogou-me longamente sobre a pessoa dele,
porque eu o tinha conhecido lá, em Nicolaiev, e depois, com um ar malicioso, acrescentou: 
- Ele diz que, quando o conheceu, você era qualquer coisa do género dum tolstoiniano. 
- Pois bem! Aí está uma asneira! - exclamei, quase indignado. 
- Bah! não há grande mal nisso! - replicou Lenine, fosse para me consolar, fosse para me atazanar. - Você
tinha então, creio, dezoito anos, e bem sabe que as pessoas não nascem marxistas. 
- Pode ser - respondi -, mas quanto ao tolstoiismo, nunca tive nada de comum com isso. 
Nas reuniões preparatórias demos muita atenção à elaboração dos estatutos; um dos momentos mais
importantes nos debates sobre o esquema de organização foi aquele em que se discutiram as relações
mútuas entre o jornal central e o Comité Central. Eu tinha ido para o estrangeiro com a ideia de que o
jornal central devia «subordinar-se» ao Comité Central. Tal era O estado de espírito da maioria dos
«russos» do Iskra, sem que, contudo, esta opinião fosse muito clara e firme. 
- Isso não funciona - replicou-me Vladimir Ilitch. A proporção das forças não se apresenta assim.
Vejamos, como farão eles para nos comandar de lá dos confins da Rússia? Isso não funciona... Nós
formamos um centro estável e somos nós que comandaremos daqui. 
Estava dito num dos projectos que o órgão central seria obrigado a publicar os artigos dos membros do
Comité Central. 
- Mesmo contra o jornal central? - perguntou Lenine. 
- Evidentemente. 
- E para quê? Isso não tem razão de ser. Uma polémica entre dois membros do órgão central poderia ser
útil em certas condições; mas uma polémica dos «russos» do Comité Central (quer dizer, dos membros
que residiam na Rússia) contra o órgão central seria inaceitável. 
- Então, é a ditadura completa do jornal central? - perguntei eu. 
- E que mal vê nisso? - replicou Lenine. É assim que tem de ser na presente situação. 
Houve nesse período muito reboliço à volta da questão do «direito de cooptação». Numa das reuniões,
nós, os jovens, acabámos por decidir sobre o direito de cooptação positiva e negativa. 
- Mas aquilo a que vocês chamam cooptação negativa é, pura e simplesmente, aquilo que em bom russo se
chama «pôr no olho da rua» - disse-me no dia seguinte Vladimir Ilitch, que se pôs a rir. - Não é tão
simples como parece. Experimente só - ha! ha! ha! - fazer uma cooptação negativa na redacção do Iskra! 
Para Lenine, a mais grave das questões consistia em saber como se organizaria em seguida o órgão central
que, em suma, devia desempenhar simultaneamente o papel do Comité Central. Lenine julgava
impossível manter o antigo conselho dos seis. Quase infalivelmente, Zassulitch e Axelrod tomavam em
todas as questões litigiosas o partido de Plekanov, .em consequência do que, no melhor dos casos,
estávamos três contra três. Nem um nem outro destes dois grupos teria consentido eliminar um dos
membros do Conselho. Portanto, nada mais restava senão seguir o caminho oposto e ampliar o Conselho.
Lenine queria que eu fosse o sétimo, de modo que, sendo o Conselho dos sete considerado como uma
redacção ampliada, formaríamos um grupo redactorial mais restrito, composto por Lenine, Plekanov e
Martov. Vladimir Ilitch punha-me pouco a pouco ao corrente deste plano, sem dizer, aliás, uma só palavra
sobre a proposta que fizera de me pôr a mim como sétimo membro da redacção, sem me dizer que esta
proposta tinha sido aceite por todos, salvo Plekanov, em quem o plano encontrou um adversário firme. A
introdução de um sétimo já significava por si mesma, aos olhos de Plekanov, um aumento do grupo da
Emancipação do Trabalho: quatro «jovens» contra três «velhos»! 
Penso que este plano foi a causaprincipal da atitude eminentemente antipática de Jorge Valentinovitch
relativamente à minha pessoa. Além disso, para cúmulo do azar, manifestaram-se abertamente entre nós
pequenos mal entendidos diante dos olhos dos delegados. Isto começou, parece-me, por causa dum
projecto de um jornal popular. Certos delegados insistiam na necessidade de se criar, a par do Iskra, um
órgão que aparecesse, se possível, na Rússia. Tal era particularmente a ideia do grupo «O Jovem
Operário». Lenine era um adversário firme deste projecto. Os motivos que apresentava para isso eram de
diversa ordem, mas o principal residia no medo de que se formasse um grupo particular que pudesse
constituir-se na base de uma «popularização» simplificada das ideias da social-democracia antes que o
núcleo do partido tivesse tempo de consolidar-se como devia. Plekanov declarava-se resolutamente pela
criação de um órgão popular, opondo-se a Lenine e procurando evidentemente o apoio dos delegados
regionais. Eu apoiava Lenine. Numa das reuniões desenvolvi a ideia - certa ou errada, já não importa
agora - de que nós tínhamos necessidade não de um órgão popular, mas de uma série de brochuras e
folhetos de propaganda, que ajudariam os operários mais evoluídos a elevar-se ao nível do Iskra, e que um
jornal popular reduziria o lugar ocupado pelo Iskra e faria desaparecer a fisionomia política do Partido,
fazendo-o descer ao «economismo» e ao socialismo-revolucionário. Plekanov replicou-me: 
- Por que razão faria o jornal desaparecer a fisionomia do Partido? É claro que, num órgão popular, nós
não poderemos dizer tudo quanto temos para dizer. Apresentaremos nele reivindicações, palavras de
ordem, sem nos ocuparmos com questões de táctica. Diremos ao operário que é preciso lutar contra o
capitalismo, mas, como é evidente, não faremos teoria sobre a maneira como se deve lutar contra o
capitalismo. 
Servi-me desta argumentação: 
- Mas - disse eu -, os «economistas» e os socialistas-revolucionários dizem todos que é preciso lutar
contra o capitalismo. A divergência começa justamente no ponto onde é preciso determinar a maneira de
lutar. Se num órgão popular nós não respondermos a esta questão, faremos desaparecer, por isso mesmo, a
diferença entre nós e os socialistas-revolucionários... 
A minha réplica pareceu vitoriosa. Plekanov não encontrou nada para lhe opor. É evidente que este
episódio não contribuiu para melhorar as nossas relações. 
Depressa se produziu um novo conflito numa sessão da redacção, que decidiu, enquanto esperava que o
Congresso regulasse a questão do efectivo redactorial, admitir-me nas sessões com voz consultiva.
Plekanov opôs-se categoricamente. Mas Vera Ivanovna disse-lhe: 
- Pois bem, quem o leva sou eu. E, com efeito, levou-me à sessão. Só muito mais tarde tive conhecimento
deste segredo de bastidores; apresentei-me na redacção sem saber de nada, sem nada ter adivinhado. Jorge
Valentinovitch saudou-me com a polidez refinada em que se tinha tornado mestre. 
Por infelicidade, a redacção iria nessa mesma sessão examinar um conflito que tinha eclodido entre
Deutch e Blumenfeld, de que já atrás falei. Deutch era administrador do Iskra. Blumenfeld dirigia a
tipografia. Neste campo surgiu uma contestação acerca das competências. Blumenfeld queixava-se da
intromissão de Deutch nos assuntos internos da tipografia. Plekanov, por razões de velha amizade, apoiou
Deutch e propôs que se limitassem os direitos de Blumenfeld à técnica tipográfica. 
Eu repliquei que era impossível dirigir-se uma tipografia restringindo-se a pessoa simplesmente ao
domínio da execução técnica; que também existiam problemas de organização e de administração, e que
Blumenfeld devia ter autonomia em todas estas questões. 
Lembro-me da réplica azeda de Plekanov: 
- Sem dúvida que o camarada Trotski tem razão ao dizer que à técnica se sobrepõem a diversos elementos
administrativos e outros, como nos ensina a teoria do materialismo histórico; no entanto..., etc.. 
Lenine e Martov apoiaram-me com circunspecção e fizeram adoptar uma decisão no sentido por mim
apontado. Foi a gota que fez transbordar o copo. 
Nestas duas circunstâncias Vladimir Ilitch colocou-se, como vimos, do meu lado. Mas, ao mesmo tempo,
observava com apreensão o modo como as minhas relações com Plekanov se iam deteriorando, o que
ameaçava comprometer definitivamente o plano de reorganização da redacção que ele tinha delineado.
Numa das reuniões seguintes, onde se encontravam delegados chegados de novo, Lenine, puxando-me
para o lado, disse-me: 
- Na questão do jornal popular, deixe que seja antes Martov a responder a Plekanov. Martov deixará
escorregar o assunto, enquanto você quererá mesmo cortar. É melhor deixar escorregar. 
Estas expressões «cortar» e «deixar escorregar» ficaram nitidamente gravadas na minha memória. 
Depois de uma das sessões da redacção no café «Landolt», talvez depois da sessão de que acabei de falar,
Zassulitch, com o tom particular que empregava em tais circunstâncias, numa voz timidamente insistente,
queixou-se de nos ver atacar «demasiado» os liberais. Era nela o ponto fraco. 
- Vejam - dizia -, como eles se esforçam. - O seu olhar evitava Lenine, mas era sobretudo a ele que se
dirigia. - No último número da Emancipação, Struve dá o exemplo de Jaurés; exige que os liberais russos
não rompam com o socialismo, sem o que ficariam sob a ameaça de sofrer a miserável sorte do
liberalismo alemão; quer que eles se inspirem no exemplo dos radicais-socialistas franceses. 
Lenine estava em pé, próximo da mesa, com um falso «panamá» na cabeça, que tinha puxado para a testa
(a sessão terminara e ele ,preparava-se para sair). 
- É preciso bater neles ainda com mais força - disse, sorrindo alegremente e como que para arreliar Vera
Ivanovna. - Pois! pois! - exclamou ela verdadeiramente desolada - dão um passo para nós, e nós devemos
bater-lhes! 
- Precisamente. Struve disse aos seus liberais: em vez de usarem contra o nosso socialismo os grosseiros
processos alemães, devem empregar os meios mais subtis dos franceses; é preciso atrair, amimar, enganar,
desviar à maneira dos radicais de esquerda, franceses que andam de namoro com o jauressismo. 
Está visto que eu não relato literalmente esta memorável conversa. Mas o seu sentido e espírito gravaram-
se-me na memória com a maior nitidez. Não tenho à mão, neste momento, material que me permita
verificar aquilo que relato, mas não é difícil fazer esta verificação: basta folhear os números de A
Emancipação da Primavera de 19O3 e encontrar-se-á um artigo de Struve consagrado à questão da atitude
dos liberais face ao socialismo democrático em geral, bem como ao jauressismo em particular. lembro-me
desse artigo de acordo com o que me disse Vera Ivanovna na cena que acabo de relatar. Se se somar à data
inscrita no número de A Emancipação a que me refiro o lapso de tempo para que essa publicação
chegasse a Genebra, se encontrasse nas mãos de Vera Ivanovna e fosse lida, quer dizer, três a quatro dias,
poder-se-á estabelecer de uma forma bastante ,exacta a data da discussão que acabo de narrar, no café
«Landolt». Foi, lembro-me, num dia primaveril (talvez no princípio do Verão), o sol brilhava alegremente
e o risinho vindo da garganta de Lenine era jovial. Recordo-me do seu ar tranquilamente trocista, seguro
de si mesmo e «sólido» - precisamente sólido, embora Vladimir Ilitch fosse então bastante magro e não
como era no último período da sua vida. Vera Ivanovna, como sempre, exultava, voltando-se ora para um
ora para outro. Mas ninguém, parece-me, se meteu na discussão, a qual, aliás, não durou muito tempo,
apenas o tempo de se pegar nos chapéus. 
Eu e Zassulitch regressámos juntos. Ela mostrava-se abatida, sentindo que o jogo de Struve estava de
facto estragado. Eu não lhe podia dar nenhum consolo.Entretanto, nenhum de nós pressentia então em
que medida, quão admiravelmente, tinham sido anulados os trunfos do liberalismo russo neste pequeno
diálogo que teve lugar perto da porta do café «Landolt». 
 
* * * 
 
Reconheço todas as insuficiências daquilo que acabo de contar: a minha narrativa é mais pobre do que eu
a imaginava quando lancei mãos a este trabalho. No entanto, diligentemente recolhi tudo o que a minha
memória reteve, mesmo o menos significativo, pois actualmente já não resta ninguém que possa falar em
pormenor deste período. Plekanov está morto. Zassulitch morreu. Martov morreu. E Lenine também. É
duvidoso que algum deles tenha deixado as suas memórias. Talvez Vera Ivanovna? Mas não ouvimos
falar disso. Da redacção do Iskra dessa época apenas restam Axelrod e Potressov. Tanto um como outro,
excluídos motivos de outra ordem, não tomaram parte de modo significativo no trabalho da redacção e
assistiram poucas vezes às nossas reuniões. L. G. Deutch poderia contar alguma coisa, mas também ele
partiu para o estrangeiro próximo do fim da época atrás descrita, pouco tempo antes de mim próprio, e,
além disso, não participou directamente nos trabalhos da redacção. Informações inestimáveis poderão ser
dadas e sê-lo-ão, esperemos, por Nadejda Konstantinovna. Ela estava então no fulcro de todo o trabalho
de organização; era ela que recebia os camaradas vindos de longe, era ela que fazia as recomendações e
que conduzia ao caminho de ferro os que partiam; era ela que estabelecia as ligações, que fixava os
encontros, que escrevia as cartas, que cifrava, que decifrava. No seu quarto sentia-se quase sempre o
cheiro de papel aquecido à chama. E frequentemente lamentava-se, com a sua doce insistência, por não
receber muitas cartas, ou por haver engano na cifra ou por terem sido escritas com tinta química de tal
modo que uma linha se sobre- punha a outra, etc.. Claro que mais importante ainda é o facto de, neste
trabalho de organização ao lado de Lenine, Nadejda Konstantinovna poder dia a dia observar tudo o que
se passava com ele e ao seu redor. No entanto, estas linhas, assim o espero, não serão supérfluas, em parte
porque Nadejda Konstantinovna assistia poucas vezes és reuniões da redacção, pelo menos àquelas onde
estive presente. E, finalmente, sobretudo porque o observador do exterior regista mais facilmente aquilo
que não se vê quando a presença é constante. Seja como for, contei o que fui capaz. Porém, agora,
gostaria de formular algumas reflexões gerais, gostaria de dizer por que razão, em minha opinião, na
época do antigo Iskra se produziu uma crise decisiva no sentimento político que Lenine devia ter em
relação a si próprio, na maneira como, por assim dizer, a si mesmo se apreciava; por que razão esta crise
foi inevitável e se tornou indispensável. Lenine chegou ao estrangeiro na maturidade, com a idade de
trinta anos. Na Rússia, nos círculos estudantis, nos primeiros grupos da social-democracia, nas colónias
de deportados, tinha ocupado o primeiro lugar. Ele não podia deixar de sentir a sua própria forma, até pela
simples razão de que todos aqueles, com quem contactava e trabalhava a reconheciam. Partiu para o
estrangeiro de posse de uma bagagem teórica muito importante, com uma séria provisão de experiência
política e todo animado dessa tensão para o objectivo que constituía a sua verdadeira natureza espiritual.
No estrangeiro iria primeiramente colaborar com o grupo de A Emancipação do Trabalho e, antes do
mais, com Plekanov, o profundo e brilhante comentador de Marx, o mestre de várias gerações, teórico,
pensador político, publicista, orador que criara uma nome europeu e ligações em toda a Europa. Ao lado
de :Plekanov encontravam-se duas grandes autoridades: Zassulitch e Axelrod. Não só o passado heróico
de Vera Ivanovna a colocava na vanguarda, como também ela era dotada de um espirito dos mais
penetrantes, de uma vasta cultura, principalmente histórica, e de uma rara intuição psicológica. Por
intermédio de Zassulitch tinha-se estabelecido no seu tempo a ligação do «Grupo» com o velho Engels.
Ao contrário de Plekanov e de Zassulitch, que estavam mais estreitamente ligados ao socialismo latino,
Axelrod representava no «Grupo» as ideias e a experiência da social-democracia alemã. Esta diferença das
«esferas de influência» exprimia-se mesmo através dos locais de residência. Plekanov e Zassulitch
habitavam sobretudo em Genebra, Axelrod em Zurique. Axelrod tinha-se dedicado és questões de táctica.
Como é sabido, não deixou nenhum estudo de teoria ou história. Geralmente escrevia pouco. Mas aquilo
que escrevia tratava quase sempre das questões de táctica do socialismo. Neste domínio Axelrod mostrava
originalidade e penetração. Pelas múltiplas conversas que tive com ele (durante algum tempo eu e ele
estivemos muito ligados, bem como com Zassulitch), imagino perfeitamente que muitas das coisas
escritas por Plekanov sobre as questões de táctica foram o resultado de um trabalho colectivo e que neste
trabalho a parte de Axelrod é muito mais importante do que possa parecer através dos documentos
impressos. O próprio Axelrod dissera mais de uma vez a Plekanov, chefe indiscutível e querido do
«Grupo» (até à ruptura em 19O3): 
- Tu, Jorge, tu tens a tromba comprida, consegues ir buscar tudo quanto precisas. 
Axelrod escreveu, como se sabe, o prefácio dum manuscrito enviado da Rússia por Lenine: «As Tarefas
dos Social-Democratas na Rússia». 
Em consequência disso, o «Grupo» adoptou de algum modo o jovem e dotado trabalhador russo, mas, ao
mesmo tempo, isto provava que ele era considerado como um discípulo. Foi precisamente na qualidade de
discípulo que Lenine chegou ao estrangeiro, com dois outros alunos. 
Não assisti aos primeiros encontros dos alunos com os mestres, as conversas em que foi elaborada a linha
principal do Iskra. Não é, porém, difícil de compreender, à luz das observações sobre o semestre que
acabei de descrever e particularmente à luz do II Congresso do partido, que a gravidade do conflito, para
além das questões de principio que só então começavam a levantar-se, tinha como causa a inexactidão do
julgamento feito pelos antigos sobre a importância crescente e o significado do leninismo. 
Durante o II Congresso e logo após, a indignação de Axelrod e dos outros membros da redacção contra
Lenine fazia-se acompanhar de uma certa espantação: 
- Como ousou ele ir tão longe? A surpresa aumentou ainda mais quando depois da ruptura de Plekanov a
Lenine, que se deu logo a seguir ao congresso, Lenine continuou apesar de tudo, a conduzir a batalha. 
O estado de espirito de Axelrod e dos outros poderia talvez exprimir-se nestes termos: «Que mosca lhe
mordeu?» 
«Ainda não há muito tempo que chegou ao estrangeiro, diziam os antigos; veio na qualidade de discípulo
e foi assim que ele se apresentou (naquilo que contou sobre os primeiros meses do Iskra, Axelrod insistia
especialmente neste ponto. Donde lhe vem agora, de repente, esta bela segurança? Que audácia é esta?»
etc.. 
Em seguida, procuravam adivinhar-lhe os esquemas: ele tinha preparado o seu terreno na Rússia, não era
de espantar que todos os meios de ligação estivessem nas mãos de Nadejda Konstantinovna; era 1á que
muito discretamente se trabalhava a opinião dos camaradas russos contra o Grupo da Emancipação do
Trabalho. Zassulitch não estava menos indignada que os outros, mas talvez ela compreendesse um pouco
melhor. Não fora em vão que dissera a Lenine que quando ele mordia «não largava mais», e nisso se
distinguia de Plekanov. E sabe-se lá que impressão não teriam produzido estas palavras no seu tempo?
Não tinha Lenine repetido: «Sim, é verdade: quem conhecerá melhor Plekanov do que Zassulitch? Ele
mordisca, puxa e abandona a Presa; ora não se trata aqui de mordiscar para depois largar... é preciso
morder e segurar firme». 
Em que medida e em que

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