Buscar

Alexander Humboldt

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 9 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 9 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 9 páginas

Prévia do material em texto

2
Landi e o século XVIII na Amazônia
ALEXANDER HUMBOLDT 
ENTRE CIÊNCIA E ROMANTISMO
Claudio Greppi
- 2003 -
ALEXANDER HUMBOLDT ENTRE CIÊNCIA E ROMANTISMO
Claudio Greppi (tradução e notas por Luiz Fernando P. N. Franco)
1.A “DISPUTA DO NOVO MUNDO”
Em meados do século XVIII, justamente quando o nosso Antonio Landi partia para sua aventura amazônica, George Louis Leclerc, conde de Buffon, começava a publicar a sua monumental Histoire naturelle, em 44 volumes e que terá um peso determinante sobre toda a ciência européia até o fim do século. Num Supplément, datado de 1789, encontramos uma afirmação categórica: “le fait le plus important, le plus général, le plus inconnu à tous les naturalistes avant moi; ce fait est que les animaux des parties méridionales de l’ancien continent ne se trouvent pas dans le nouveau, et que réciproquement ceux de l’Amérique méridionale ne se trouven point dans l’ancien continent”. A ‘descoberta’ de Buffon chega como coroamento de uma série de reflexões importantes sobre a natureza americana e sobre sua alteridade: que, todavia, logo fora interpretada numa chave de inferioridade e dera início na Europa àquela discussão que acabou definida como ‘disputa do Novo Mundo’. Das plantas aos animais, a ‘difamação’ do mundo americano logo se estendera aos homens, tanto autóctones quanto de origem européia. É a esse contexto que se sobrepõe, em nítido contraste com as teses difamatórias, aquele que foi chamado o “segundo descobrimento da América” pelo cientista e viajante prussiano Alexandre Humboldt.[1: “O fato mais importante, o mais geral, o mais desconhecido de todos os naturalistas antes de mim; este fato é que os animais das partes meridionais do antigo continente não se encontram no novo e que, reciprocamente, os da América meridional não se encontram no antigo continente”]
Sobre a ‘disputa’, remeto o leitor à obra fundamental do americanista italiano Antonello Gerbi, de 1955, traduzido também em espanhol (México, 1960 e 1982), mais recentemente, em português (São Paulo, 1996) e, enfim, à reedição italiana de 2000: uma obra que conserva ainda toda a sua originalidade.
O conhecimento que Buffon podia ter no Novo Mundo era certamente muito limitado, não obstante as relações comerciais das colônias espanholas com a França, favorecidas pela trama dinástica com a ascenção ao trono de Felipe V (1701). As informações recentes, derivadas das viagens de Louis Feuillé (1701-1711) e de Amédée-François Frézier (1712-1714) referiam-se apenas ao litoral e, em particular, ao do Perú. A presença francesa na Guiana, a denominada France Équinoxiale, não oferecia muitas ocasiões de conhcer o interior do continente: os relatórios do catalão Pierre Barrère, médico em Caiena (1743), sublinham o interesse mas, também, a impentrabilidade da região. À lacuna não podiam suprir tampouco as observações dos jesuítas, reportadas nas inúmeras obras e os volumes de Lettres Édifiantes, acerca das reduções e das missões no Paraguai, uma vez que tinham uma recepção limitada. As fontes à disposição de Buffon são ainda as do Quinhentos: mas as obras de Oviedo e de Acosta, como as de Léry ou Thévet, então, eram já citadas mais de segunda mão do que relidas criticamente.[2: Recepção limitada inclusive ideologicamente: como mostrou G. Imbruglia (L’invenzione del Paraguay, Napoli, 1983), nos quarenta anos que separam o ponto de vista de Montesquieu, de que as reduções eram utopia realizada, “onde se podia ir”, e o de Diderot, para quem as Missões não eram um Estado feliz, o que mudara na Europa, à véspera da Revolução Francesa, era a idéia de utopia. V. tb. A. Pagden, European Encounters with the New World.]
Mais que pela vertente brasileira, o interesse europeu, ou pelo menos parisiense, pelo mundo amazônico, foi antes dirigido àquele peruano, primeiro com a viagem de Samuel Fritz, jesuíta, do qual a Europa conhece a partir de 1717 o esboço de carta da grande bacia fluvial; depois, sobretudo através da empresa de Charles Marie de la Condamine, o astrônomo enviado a Quito para medir o meridiano terrestre em 1735, que voltava à França nove anos depois pelo curso do rio Amazonas. No entanto, é justamente a Relation abrégée do astrônomo parisiense, publicada em 1749, que acabava brandida na ‘disputa’ pelos difamadores do Novo Mundo, como argumento a favor da tese da degeneração do povos americanos. Até mesmo o canto dos pássaros lhe teria soado pouco “agradável”! Eram evidentemente poucos os que logravam apreender a emoção do viajante face à paisagem amazônica manifesta nesta passagem: [3: Ch.Marie de La Condamine, Viagem pelo Amazonas (1735-1745), p. 105; trad.br., 1992 ]
“Chegado a Borja, vi-me num novo mundo, afastado de todo comércio humano, num mar de água doce, no meio de um labirinto de lagos, rios e canais, que penetram em todos os sentido uma floresta imensa, que só eles tornam accessível. Encontrava novas plantes, novos animais, novos homens.”[4: Ibid, p. 53]
Entre as tantas novidades, uma resina que se revela particularmente útil, e que os brasileiros conheciam já de longa data: 
“A resina chamada cahuchu é também muito comum nas margens do Marañon e se presta aos mesmos usos. Quando fresca, pode ser moldada na forma desejada. É impermeável à chuva, mas o que torna mais notável é sua grande elasticidade. Fazem-se garrafas que não são frágeis, botas, bolas ocas, que se achatam quando apertadas mas retomam a forma original quando cessa pressão. Com o mesmo material, os portugueses do Pará aprenderam com os omáguas a fazer bombas ou seringas que não precisam de pistão: têm a forma de peras ocas, perfuradas por um pequeno orifício na extremidade. Enchem-nas de água e, apertando-as quando estão cheias, obtém-se o efeito de uma seringa comum”[5: Ibid, p.67. O Petit Robert faz remontar o verbete seringa ao século XVI e, seu étimo, ao latim, de origem grega, syrinx, em francês, “roseau”, caniço. F. Edelweiss, ao mesmo tempo que chama a atenção para a sinédoque evidente, transferência do nome do artefato para a matéria de que é feito, vê uma confirmação de que a seringa amazônica sempre foi de borracha; cf. Estudos Tupis e Tupi-Guaranis, Rio, 1969, pp.166-171 ]
As observações de La Condamine não concernem, aliás, apenas à natureza e aos selvagens, referem-se também ao estágio diverso da ocupação portuguesa relativamente àquela espanhola. A partir de São Paulo de Olivença, primeiro vilarejo brasileiro, começam a aparecer casas e capelas em alvenaria: 
“O comércio com o Pará dá a esses índios e a seus missionários um ar de abastança que distingue à primeira vista as missões portuguesas das castelhanas do Alto Marañon, nas quais tudo se ressente da impossibilidade [em que se encontram os missionários da Coroa da Espanha] de se proporcionar qualquer das comodidades da vida , por não terem nenhum comércio com os portugueses, seus vizinhos, descendo o rio, tirando tudo de Quito, onde mal vão uma vez por ano, de onde a cordilheira os separa mais do que os separaria um mar de mil léguas.”[6: C.M. La Condamine, op.cit., p.72]
Como observa Numa Broc em La géographie des philosophes (1974), a viagem de volta de La Condamine tinha todos os requisitos para despetar em Paris uma onda de entusiasmo pelo rio Amazonas e, ao contrário, o relatório ficou restrito apenas ao Abrégé de 1749, que passou quase despercebido, ainda que se possa reconhecer a posteriori muitos motivos retomados meio século depois por Humboldt. Nem mesmo o aspecto venturoso da descida do rio Amazonas foi percebido pelos contemporâneos, eventualmente mais interessados na dramática epopéia posterior de Madame Godin, a esposa equadorenha de um outro membro da expedição do meridiano, ela também protagonista de uma descida do grande rio, bem mais venturosa, concluida felizmente com o reencontro com o marido, vinte anos depois...
Voltemos porém a Buffon. Não é claro de onde tenha podido tirar a idéia de que a natureza americana fosse, como um todo, hostilao desenvolvimento pleno de qualquer organismo, dominada pela humidade e pela putrefação, na qual se corrompem até as espécies importadas da Europa. Mas essa hostilidade teve também seus aspectos positivos. Dirigiu a história natural para um conhecimento cada vez mais aprofundado da diversidade das espécies animais e vegetais do Novo Mundo, introduziu a idéia de uma geografia zoológica, a idéia de possíveis mutações e, assim, da variabilidade das espécies. Seu antiamericanismo teve também o mérito de despertar, por contraste, uma reação, por vezes apologética, por parte de quem melhor conhecia o Novo Mundo, como os jesuítas, expulsos por Pombal em 1759 e por Carlos III em 1767. 
Antes mesmo da expedição do meridiano terrestre e daquela dos Limites, em 1741, o padre José Gumilla tinha publicado em Madrid El Orenoco illustrado y defendido, no qual os índios daquela região eram contudo muito mal tratados. Sua obra também era conhecida na França, com o título Histoire naturelle, civile et géographique de l’Orénoque. Postura diversa é a do italiano Filippo Salvatore Gili, que vivera vinte e cinco anos nas missões da Nova Andalusia e do Orenoco, autor de um Saggio di storia americana, o sia storia naturale, civile e sacra de’ regni e delle provincie spagnuole di Terra-ferma nell’America meridionale, impresso em Roma em quatro volumes entre 1780 e 1784. Gili contesta aos detratores aquela história, que amiúde forjavam em seus livros, a de “ser a América uma região recém-emersa das águas e, por conseguinte, úmida ao extremo, pantanosa e feita quase toda de lagos e pântanos”. Não toda a América é úmida, precisa. Mas, observa Gerbi, a defesa do jesuíta acaba concordando com muitas das afirmações de Buffon: é o clima que condiciona o atraso do novo continente, que faz com que plantas e animais importados da Europa sofram uma espécie de nanismo e que depois se estende a todo o mundo animal local, com exceção dos pássaros. O equívoco deve-se em geral ao hábito de dar à fauna americana os mesmos nomes daquela do velho mundo, como leões, cervos, urso: o próprio Buffon tinha criticado esse costume, reivindicando a contragosto a originalidade da fauna americana. 
Onde Gili diverge tanto de Buffon quanto de Gumilla é na avaliação dos indígenas: “um povo inculto, não feio, singular nos ritos, cruel, inconstante, mas fácil de amestrar na religião e nos costumes da vida civil”. Entretanto, seu trabalho não foi, pelo que sei, traduzido em outras línguas: será Humboldt seu leitor mais atento. Caberá ao sábio alemão a incumbência de botar ordem na confusão geográfica que se criou a propósito da hidrografia e da história natural do novo continente. Uma incumbência que o ocupará por quinze anos, pelo menos, da volta à França, em 1804, à publicação do segundo volume de sua Relation historique, dedicado à grande aventura no Orenoco. [7: A. Gerbi, op.cit., ed.it., p.324]
Humboldt não toma parte explícita na ‘disputa’ pró ou contra a natureza e a população americana. Mas todo o seu trabalho assinala o rebatimento preciso das posições de tantos seus colegas europeus, até o reconhecimento da natureza tropical como reino – diríamos hoje – da biodiversidade. Os mesmos elementos que tinham levado Buffon a difamar a América levam Humboldt a exaltar os “felizes trópicos” como lugar em que a natureza exprime todo seu potencial, face ao qual o horizonte “restrito” europeu é bem pouca coisa.
2. ORIENTAR-SE NO LABIRINTO FLUVIAL
O primeiro nó, que para ser desfeito, Humboldt e seu competente colega botânico, Aimée Bompland, tinham enfrentado a subida do Orenoco até o rio Negro e a fronteira brasileira, era hidrográfico e comportava um reconhecimeto astronômico e cartográfico. Reinava a maior confusão na cartografia européia da América meridional, justamente a propósito dos cursos do Amazonas e do Orenoco. O primeiro era representado como uma grande serpente que atravessava o continente dos Andes ao Atlântico, em que poucos pontos determinados astronomicamente, além de pouco precisos, permaneciam quase que restritos à foz. As fantasias acerca de um grande lago interno, talvez ligado ao curso do Orenoco, derivavam ainda do mito do Eldorado, remontavam aos tempos de sir Walter Raleigh: não obsatante, um imenso “lago Parima” comparecia ainda na carta do padre Samuel Fritz, publicada em 1717.
É somente em 1744 que é publicada a primeira carta ‘científica’ do curso do rio Amazonas, traçada por La Condamine com base nos levantamentos feitos durante os quatro meses da descida que o levara de Cuenca a Pará, como La Condamine chama ainda Belém. O astrônomo tinha podido medir com certa exatidão as coordenadas das desembocaduras dos afluentes e as dos assentamentos portugueses, compativelmente com as condições astronômicas e com as dificuldades da navegação. A Carte du cours du Maragnon ou de la grande rivière des Amazones segue todo o itinerário de viagem até Caiena, entre os 5º ao norte e ao sul do equador, e dela consta também um croquis bastante claro do delta e da posição de Belém. À margem do percurso, a carta não prima por igual clareza. Ao norte do equador, uma escrita informa que “les Portugais du Pará ont remonté em 1743 de la rivière des Amazones dans l’Orenoque par le Rio Negro”. Mas a solução do mistério que o astrônomo parisiense propõe é no mínimo tortuosa. Ele imagina o Orenoco nascendo a ocidente, como ramo do Caquetà, o nome espanhol do rio Japurá, para, depois, se bifurcar outra vez e formar o rio Negro, a uma distância notável da desembocadura deste no Marañon. A hipótese tinha enganado até o maior cartógrafo parisiense, Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville, em sua Amérique méridional de 1750, embora corrigisse a rede hidrográfica numa versão sucessiva na qual introduzira o rio Cassiquiare que faz a comunicação entre as águas do rio Negro e do Orenoco. Segundo Humboldt, é provável que o infatigável cartógrafo tivesse obtido essa importante informação através de relações com jesuítas portugueses presentes em Paris. [8: C.M. La Condamine, op.cit. p.150]
Observando a carta de La Condamine, pode-se bem entender que tanto seu apuro quanto suas incertezas possam ter levantado a questão das fronteiras e estimulado o esclarecimento que fora confiado às expedições promovidas pelo tratado de 1750 entre Espanha e Portugal. Quando de sua partida junto a Bompland de La Coruña, em 1799, Humboldt dispunha do material produzido pela expedição espanhola comandada por don José Solano e que, como se sabe, não tinha completado a própria missão, interrompida em San Fernando de Atabapo: o relatório do frade Antonio Caulín (História corográfica de Nueva Andalucia) e as cartas de La Cruz Olmedilla e de Surville. Só depois, nos quinze anos que separam sua volta à França da publicação do segundo volume da Relation historique, em 1819, é que o cientista alemão vem a saber das fontes brasileiras e, em particular, das cartas produzidas pelo serviço hidrográfico [dépot hidrographique] de Rio de Janeiro que lhe permitem reconstruir o puzzle hidro-cartográfico amazônico com suficiente exatidão. “Cartas manuscritas portuguesas, restituidas recentemente no serviço hidrográfico do Rio de Janeiro, confirmam as noções que adquiri in loco...” [p.459] e, em nota, “ Estudando estas cartas que são muito instrutivas para a parte oriental do Brasil, é reconhecível a extrema dificuldade que têm os geógrafos portugueses de conjugar suas noções sobre o Baixo-Japurá e o Baixo-Putumayo com as noções espanholas sobre as nascentes desses rios.” Mais adiante uma nota atribui a Requena , um dos comissários das fronteiras, a “grande carta manuscrita” da qual foram obtidas aquelas do Rio de Janeiro que Humboldt pôde consultar, provavelmente em decalques recebidos em Paris. [9: A. von Humboldt, Relation historiquz du voyage aux regions équinoctiales du Nouveau Continent fait en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803, 1804 par Alexandre de Humboldt et Aimé Bompland, Paris, 1819, vol. II, p. 460.]
A questão do rio Cassiquiare e da comunicação entre as bacias dos dois grandesrios é relegada a um plano de fundo, apenas como uma ulterior aferição, necessária, embora menos pelas idéias que circulavam na América do que pelos preconceitos que voltavam à tona na Europa e cujo ímpeto repunha em dúvida os conhecimentos já adquiridos sobre a hidrografia americana. Uma versão em miniatura da ‘disputa’ contrapunha os geógrafos de gabinete, como Philippe Buache, àqueles que se apoiavam nos testemunhos diretos. Para os primeiros não era admissível que um rio se bifurcasse senão na fase deltaica. Por que isto não acontece na hidrografia das regiões temperadas, a afirmação contrária era considerada monstruosa. O Novo Mundo não podia se comportar senão como o Velho. Entre duas bacias fluviais, não pode haver comunicação, mas separção nítida, possivelemente sufragada por cadeias de montanhas. Se as fontes espanholas dizem o contrário, erram. 
Ao ler as setecentas páginas do volume da Relation historique dedicado ao relatório de viagem até o rio Negro, encontram-se idéias que procedem de observações feitas diretamente, in loco, ao lado de reflexões acumuladas durante os anos parisienses e devidas à troca intensa de correspondência e à consulta de material coligido depois do retorno. Entre as primeiras são interessantes as referências freqüentes aos conhecimentos geográficos das populações indígenas, às quais Humboldt atribui sempre a máxima consideração, tanto no que diz respeito às vias de comunicação no labirinto hidrográfico, quanto pelo que se referem à botânica. O padre Bernardo Zea, que o acompanha ao longo de todo seu itinerário, é um ótimo intérprete. “Os índios, repito, são excelentes geógrafos”: suas informações consentem, em muitos casos, corrigir as cartas produzidas pelos colonizadores. 
Mas também são interessantes as informações que Humboldt colhe dos portugueses encontrados nos postos avançados dos espanhóis acerca do estado dos territórios situados além da divisa brasileira:
“Entre os portugueses que encontramos em San Carlos, havia vários militares que tinham estado em Barcellos e no Grão-Pará. Vou hoje reunir tudo o que pude aprender sobre o curso do rio Negro (...) Entro propositadamente nesse detalhe geográfico para mostrar como o governo português formou assentamentos, mesmo nessa parte remota do Brasil. Há onze vilarejos numa extensão de 25 léguas. Até a embocadura do rio Negro, conheço outros 19, além das seis vilas de Thomar, Barcellos, San Miguel de Rio Branco, Moura e Villa do Rio Negro. As margens desse único afluente do Amazonas são portanto dez vezes mais povoadas do que todas as margens reunidas do Alto e Baixo-Orenoco, do Cassiquiare, do Atabapo e do rio Negro. [478][10: A. von Humboldt, op. cit, p. 478.]
E acrescenta, 
“Esse contraste não se deve à diferente fertilidade do solo ou à facilidade maior de navegação oferecida pelo rio Negro, conservando uma mesma direção de noroeste para sudeste. É antes o efeito das instituições políticas”. As missões espanholas nada fazem para introduzir no território de que têm a responsabilidade aqueles elementos de progresso civil que, para um europeu do século das Luzes, estão associados à navegação fluvial, ao comércio e ao melhor uso dos recursos naturais. A própria comunicação, agora confirmada, entre os dois grandes rios, poderia se tornar uma oportunidade extraordinária para o desenvolvimento comercial. De San Carlos de Rio Negro pode-se chegar ao Pará [Belém] em 20 ou 25 dias, menos de quantos ocorrem para descer de volta o Orenoco até Angostura [Ciudad Bolivar]. Algumas obras de canalização poderiam completar a infraestrutura do imenso espaço fluvial como uma única bacia comercial: desde que as duas potências européias cheguem a um acordo ou que os povos americanos conquistem a independência. 
3.FELIZES TRÓPICOS
Alexander Humboldt foi o mais famoso cientista europeu da primeira metade do Oitocentos, mas essa fama não se deveu a seus escritos. Com exceção de Tableaux de la nature, publicados em 1807, que permanecem um modelo de reflexão científica destinada não apenas aos iniciados, os outros textos, e em particular o relatório que deveria coligir os registros da experiência extraordinária dos cinco anos da viagem ao Orenoco, a Cuba, pelos Andes e no México, permanecem todos sob a forma de esboços inacabados, com acréscimos e anotações que acabam levando à perda de vista do fio condutor originário da narração. Assim, a redação da Relation historique se arrasta por anos e anos: um primeiro volume sai só em 1814, dez anos depois do retorno; o segundo, em 1819, o terceiro em 1829 e o quarto não sairá jamais. A narrativa se interrompe no momento de iniciar o longo percurso andino, de Cartagena de las Indias a Lima. Ao mesmo tempo, todavia, algumas obras monográficas mais esbeltas e sobretudo as conferências, em Paris e Berlim, garantem ao cientista um lugar na cultura européia de que jamais alguém dispôs. Desde os anos 40 até a morte do cientista em 1859, em Paris como em Berlim, em Londres como em Nova Iorque persiste a espera ansiosa por aquela que deveria ser a grande obra conclusiva de toda uma longa vida dedicada à ciência – aquele Cosmos, essai d’une description physique du globe, do qual sairão os primeiros volumes, de grande fascínio mas já por demais distante das novas aquisições das ciências naturais. Esgotou-se aquela que foi chamada a “fase humboldtiana” nas ciências da natureza, feita de cultura enciclopédica e de apaixonada coleta de dados quantitativos e qualitativos sobre todos os aspectos do mundo físico. O ano da morte de Humboldt coincide com a publicação de A origem das espécies de Charles Darwin.
Remontando do Cosmos aos decênios de trabalho que o precederam, encontramos um tema revelador, que ilumina também a relação do cientista com a experiência adquirida durante a viagem americana: é o tema da paisagem e de sua representação. No segundo volume, traçando uma história da sensibilidade pelos fenômenos naturais e dos fatores que estimulam o estudo da natureza, Humboldt introduz um capítulo sobre “A influência vivificante da pintura de paisagem sobre o estudo da natureza”: um excursus que parte de longe, dos testemunhos do mundo clássico, ao Renascimento, aos grandes mestres como Claude Lorrain, Nicolas Poussin e Salvator Rosa, no momento em que escreve, caracterizado por uma grande tensão inovadora. As viagens de Cook, observa Humboldt, abriram horizontes completamente novos para os artistas europeus. As obras de William Hodges e John Webber, os pintores que acompanharam Cook na segunda e na terceira viagem, dão testemunho do quanto as técnicas aprendidas nas escolas européias, tendo por modelo os grandes mestres, podem ser empregadas na representação de cenários completamente novos como os dos mares do Sul : novas atmosferas, novas plantas, novos animais. Só a pintura de paisagem pode restituir a cada espécie seu contexto ambiental, seu habitat. Projeta-se uma nova figura, a do pintor-viajante, a que o cientista confia para chegar aos lugares mais distantes.
 
“Só um homem que é sensível às belezas naturais das zonas ocupadas por montanhas, rios, florestas; um homem que tenha pessoalmente percorrido a zona tórrida, que tenha contemplado a riqueza e a variedade da vegetação não só nas costas povoadas, mas nas encostas dos Andes cobertas de neve, do Himalaya e dos montes Nilgiri do Mysore ou das florestas compreendidas entre o Orenoco e o rio Amazonas: só um tal homem pode se dar conta da imensidão dos horizontes que se abrem à pintura de paisagem entre os trópicos dos dois continentes, no arquipélago de Sumatra, de Bórneo e das Filipinas e entender até que ponto é impossível comparar as obras realizadas até agora, por mais maravilhosas que sejam, com a grandeza dos tesouros da natureza, dos quais a arte não se apoderou.” (ed.inglesa, II, p.91) [11: A. von Humboldt, Cosmos, ed. inglesa, New York – London, 1859, vol. II, p. 91.]
O excerto comparecia em Cosmos, escrito em 1844. Mas tamanha era a importância atribuida por Humboldtao tema que ele inseriu por inteiro a autocitação na terceira edição de Tableaux de nature, em 1849, já do alto de seus oitenta anos. Aqui, o tema da pintura de paisagem se insinua no capítulo central da obra, dedicado à “fisiognômica das plantas”, onde é proposta uma classificação dos agrupamentos vegetais correlata com a distribuição geográfica e com a morfologia das associações ou, em outras palavras, com aquilo que os geógrafos sucessivos chamarão de ‘paisagem’. Compreende-se melhor ainda, então, que os “quadros” do título, tableaux, devam ser literalmente entendidos como representações visuais dos grandes cenários, em que a representação literária pressupõe e deixa de bom grado espaço para aquela pictórica. O próprio Humboldt tentou utilizar o croquis obtido diretamente in loco, mas as gravuras que destes derivam nas Vues des Cordillères, confiadas a gravadores parisienses, resultam frias e muito distantes da expectativa. Bem mais eficazes, e atuais em sua força expressiva, são os diagramas distributivos que acompanham as primeiras reflexões sobre a geografia das plantas. O primeiro, um croquis traçado em Guayaquil durante o deslocamento de Lima a Acapulco, mostra como o cientista tivesse atingido a capacidade de combinar entre si as observações e as medidas tomadas durante a travessia andina , logrando descrever aquilo que hoje chamamos pattern distributivo da vegetação por faixas altitudinais, estendidos, depois, às diversas condições latitudinais.
Enquanto isso, o projeto do pintor-viajante não ficara no papel. Moritz Rugendas, de volta do Brasil, mostra seus desenhos a Humboldt em Berlim, cuja qualidade ele reconhece. Ele promove então a concessão de um financiamento público para outros pintores alemães como Ferdinand Bellermann, Eduard Hildebrand, Albert Berg, que têm, assim, a oportunidade de repercorrer as pegadas de Humboldt no Novo Continente, completando com as respectivas habilidades artesanais o trabalho de observação do cientista. A viagem ganha em frescor toda vez que o pintor reencontra os lugares descritos na Relation historique, esboça a fisionomia com a possibilidade de insistir nos detalhes ou no conjunto, de cumprir um trabalho de análise ideográfica que, logo logo, será anulado pela fotografia (mas isso é uma outra questão: de qualquer maneira, Humboldt ficou bastante interessado, como era previsível, na inveção de Daguerre).
Da ciência à arte, da arte à ciência: o interesse de Humboldt pelos aspectos fisiognômicos dos complexos naturais que hoje chamamos ecosistemas volta à atualidade no momento em que a ciência moderna recompõe os pattern distributivos de Humboldt com os pattern evolutivos de Darwin: um longo caminho foi percorrido pelas reflexões sobre a alteridade das regiões equinociais do Novo Continente!

Outros materiais