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V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS COMO EXPRESSÃO DA EDUCAÇÃO POPULAR: A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE Maria das Neves de Medeiros1 RESUMO Este trabalho tem o objetivo de mostrar a construção da Educação de Jovens e Adultos (EJA) como expressão da Educação Popular (EP),enfatizando a contribuição do pensamento de Freire para essa construção. Buscarei resgatar as primeiras iniciativas relativas a EJA no Brasil, até o presente momento, procurando descrever algumas possibilidades e limites para a construção de uma escola pública popular, que atenda aos anseios e necessidades das camadas populares. Faremos também uma rápida reflexão em torno da relação entre a EJA e a EP, abordando a contribuição dos movimentos populares para a extensão da educação para todos e por fim, tecemos algumas considerações em torno da temática mencionada, explicitando os principais ideais pedagógicos freireanos tais como: a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a educação como ato de conhecimento e de transformação social, a politicidade da educação, a preocupação com a liberdade, com o diálogo e o dialógico e a importância do respeito à identidade cultural dos alunos. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Educação Popular. Escola pública popular. INTRODUÇÃO As reflexões apresentadas neste trabalho tratam de mostrar a educação de jovens e adultos (EJA) como expressão da educação popular (EP). A EP como concepção geral da educação, passou por diversos momentos epistemológico- educacional e organizativos, desde a busca da conscientização, que deveria atuar sobre o nível cultural das camadas populares, em termos explícitos dos interesses delas, chegando até a defesa de uma escola pública popular. A educação popular, como prática educativa e como teoria pedagógica que nasceu, principalmente na América Latina, no calor das lutas populares, contribuiu para que idéias e atividades essenciais na educação brasileira mudassem e inovassem. No atual contexto a educação popular, faz-se mais do que necessária, frente à concepção dominante de educação que reforça, na prática, a exclusão social e a insolidariedade humana. Mesmo com alguns avanços em termos quantitativos, no nível de escolarização, a taxa de analfabetismo da população maior de quinze anos no Brasil, apontam para uma ordem de 12,4%. Apesar de queda anual e de marcantes diferenças regionais e setoriais, a existência de pessoas que não sabem ler ou escrever por falta de condições de acesso ao processo de escolarização deve ser motivo de autocrítica constante e severa. O presente trabalho divide-se em quatro partes. Na primeira procuramos fazer um breve histórico da educação de jovens e adultos, mostrando as primeiras iniciativas, relativas à EJA no Brasil, até o presente momento. 1 Mestranda do Programa de pós-graduação em educação da UFPB. (neves.medeiros@uol.com.br). V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 Na segunda parte, detivemo-nos em ver a educação popular na escola pública, procurando descrever algumas possibilidades e limites para a construção de uma escola pública popular, que atenda aos anseios e necessidades das camadas populares. Na terceira parte fazemos uma reflexão em torno da relação entre a EJA e a EP, abordando a contribuição dos movimentos populares para a extensão da educação para todos, pois são muitos os atores sociais que vêm se responsabilizando pela EJA. E por fim, tecemos algumas considerações em torno da temática abordada, enfatizando a significativa contribuição do pensamento de Paulo Freire para a EP e conseqüentemente para a ampliação de acesso ao saber das camadas populares, bem como por uma possível transformação da sociedade. CAMINHOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM BREVE HISTÓRICO As primeiras iniciativas sistemáticas, relativas à educação de jovens e adultos no Brasil, ganharam contornos claros no início do séc. XX. De fato, nos períodos que antecederam esse marco, ou seja, durante a Colônia, o Império e a Primeira República, ocorreram ações educativas esparsas, e pouco significativas, voltadas aos jovens e adultos. No campo dos direitos legais, durante o Império, as disposições em relação à necessidade de proporcionar educação aos adultos analfabetos eram vagas. Não se definiam claramente as responsabilidades. Vale lembrar também que, nesse período, só era considerada como portadora de direitos uma pequena parcela da sociedade, da qual os escravos, os indígenas e grande parte das mulheres ficavam excluídos, ou seja , a concepção de cidadania, era muito restrita, considerada apenas como direito das elites econômicas. Na segunda década do século XX, muitos movimentos civis, e mesmo oficiais, se empenharam na luta contra o analfabetismo, considerado "mal nacional" e "uma chaga social". A pressão trazida pelos surtos de urbanização, nos primórdios da indústria nacional, impondo a necessidade de formação de uma mão-de-obra local, aliada à importância da manutenção da ordem social nas cidades, impulsionaram as grandes reformas educacionais do período em quase todos os estados brasileiros. Além disso, os movimentos operários, fossem de inspiração libertária ou comunista, valorizavam a educação em seus pleitos e reivindicações. É a partir de 1940 que começa a esboçar-se uma política voltada para a educação de jovens e adultos. Um fato que contribuiu para essa política foi à apuração, pelo recenseamento geral de 1940, de uma taxa de 55% de analfabetos na população de 18 ou mais. Segundo Beisiegel (2003), outros fatores contribuíram, como a luta dos educadores em favor da melhoria da educação nacional e as iniciativas dos grupos no poder no sentido da inclusão das grandes massas populares urbanas em suas bases de sustentação política. A educação de adultos em nosso meio desenvolveu-se a partir das atividades de alfabetização, dentro da concepção de universalização do ensino e do conhecimento surgidos com a idéia de democratização que, de certo modo, buscava a homogeneização cultural através da escola, 2 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 que fornecia certos códigos lingüísticos e alguns valores que permitiam uma certa participação social. Nessa perspectiva, são várias as campanhas de alfabetização dirigida às camadas sem escolarização que se insere dentro da vertente da educação popular, como: a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (1947); a Campanha Nacional Educacional Rural (1952); a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, que teve seu auge em 1959 e 1960; a Mobilização Nacional contra o Analfabetismo (1962). Essa alfabetização objetivava integrar os adultos iletrados num mundo que a escola não lhes havia proporcionado; ali ensinava-se, fundamentalmente, leitura, escrita e matemática. É nos anos 60 que aparecem Paulo Freira e sua equipe de trabalho, que dão uma virada no enfoque da educação popular, ao propor que os processos metodológicos para a alfabetização de adultos transcendam as técnicas e centrem-se em elementos de conscientização. Lançam seu manifesto contra a educação bancária que desumaniza o homem e o converte num depósito de conteúdos; e propõem como saída a Educação Problematizadora. O desafio proposto por Freire era conceber a alfabetização de adultos para além da aquisição e produção de conhecimentos cognitivos, mesmo sendo estes necessários e imprescindíveis. O pensamento pedagógico de Paulo Freire, assim como sua proposta para a alfabetização de adultos inspiraram os principais programas de alfabetização e educação popular que se realizaram no país no início dos anos 60. Esses programas foram empreendidospor intelectuais, estudantes e católicos engajados numa ação política junto aos grupos populares. Desenvolvendo e aplicando essas novas diretrizes, atuaram os educadores do MEB (Movimento de educação de base), ligados à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dos CPCs ( Centros de Cultura Popular), organizados pela UNE ( União Nacional dos Estudantes), dos Movimentos de Cultura Popular, que reuniam artistas e intelectuais e tinham apoio de administrações municipais, a Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, da Secretaria Municipal de Educação de Natal e a Campanha de Educação Popular (CEPLAR) na Paraíba.Essas duas últimas campanhas citadas tinham vínculos com o estado e efetuaram um tipo de educação popular, que, "se não estavam diretamente em função dos interesses dos trabalhadores, abriram espaços, a partir de interesses imediatos, para a conquista daqueles interesses fundamentais”.(WANDERLEY, 1984, p.106).Em 1963, a União Estadual de Estudantes do Estado de São Paulo realizou importante projeto piloto de educação popular na vila Helena Maria em Osasco, também orientando os trabalhos pela concepção de alfabetização de Paulo Freire. Segundo Jezine (2003, p.157), esses movimentos "tinham como objetivo promover a conscientização do povo, para que este pudesse atuar transformando sua realidade". Esses diversos grupos foram se articulando e passaram a pressionar o governo federal para que os apoiasse e estabelecesse uma coordenação nacional das iniciativas. Em janeiro de 1964, foi aprovado o Plano Nacional de Alfabetização, que previa a disseminação por todo o Brasil de Programas de Alfabetização orientados pela proposta de Paulo Freire. No dizer de Fávero (1983), os anos 60-64 foram, particularmente, críticos e criativos em quase tudo. Houve questionamentos: Pretendeu-se um projeto político que possibilitasse superar a dominação do capital sobre o trabalho e, em decorrência, reformular tudo o que dessa dominação decorre. 3 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 Tudo, e muito mais, foi repensado e discutido em círculos cada vez mais amplos, das ligas camponesas às universidades.(FÁVERO, 1983, p.8-9). O paradigma pedagógico que se construiu nessas práticas baseava-se num novo entendimento da relação entre a problemática educacional e a problemática social. Antes apontado como causa da pobreza e da marginalização, o analfabetismo passou a ser interpretado como efeito da situação de pobreza gerada por uma estrutura social não igualitária. Era preciso, portanto, que o processo educativo interferisse na estrutura social que produzia o analfabetismo.Nesse sentido, "a educação de adultos teria, portanto, objetivos de integração do homem marginal nos problemas da vida cívica e de unificar a cultura brasileira".(PAIVA, 1987, p.184). A alfabetização e a educação de adultos deveriam partir sempre de um exame crítico da realidade existencial dos educandos, da identificação das origens de seus problemas e das possibilidades de superá-los. "Uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção".(FREIRE, 1985, p.59). Em outras palavras, uma educação que "tratasse de ajudar o homem brasileiro em sua emersão e o inserisse criticamente no seu processo histórico. Educação que por isso mesmo libertasse pela conscientização". (FREIRE, 1986, p.66). Além da dimensão social e política, os ideais pedagógicos que se difundiam tinham um forte componente ético, implicando um profundo comprometimento do educador com os educandos. Os analfabetos deveriam ser reconhecidos como homens e mulheres produtivos, que possuíam uma cultura. Dessa perspectiva, Paulo Freire criticou a chamada educação bancária, que considerava o analfabeto rejeitado e ignorante, uma espécie de gaveta vazia onde o educador deveria depositar conhecimento. No dizer de Freire (2002, p.67): A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres "vazios” a quem o mundo "encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como "corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. Tomando o educando como sujeito de sua aprendizagem, Freire propunha uma ação educativa que não negasse sua cultura, mas que fosse transformando através do diálogo. Na época, ele referia-se a uma consciência ingênua ou intransitiva, herança de uma sociedade fechada, agrária e oligárquica, que deveria ser transformada em consciência crítica, necessária ao engajamento ativo no desenvolvimento político e econômico da nação. O paradigma da educação popular, inspirado originalmente no trabalho de Paulo Freire nos anos 60, encontrava na conscientização sua categoria fundamental. A prática e a reflexão sobre a prática, levou a incorporar outra categoria não menos importante: a da organização. Afinal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder transformar. Sob a denominação de "educação popular", entretanto, diversas práticas educativas de reconstituição e reafirmação dos interesses populares inspiradas pelo mesmo ideário das 4 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 experiências anteriores persistiram sendo desenvolvidas de modo disperso e quase que clandestino no campo da sociedade civil. Algumas delas tiveram vida curta; outras resistiram durante o período autoritário. No plano oficial, alguns programas de caráter conservador foram consentidos, como a Cruzada de Ação Básica Cristã (ABC), nascido no Recife e que se espalhou por outros estados. Em 1967, visando ocupar o lugar deixado pelos movimentos sociais reprimidos pelas iniciativas governamentais suspensas, o governo militar lançou o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), "que em muitos aspectos era apresentado com antítese dos movimentos que vinha substituir"(BEISIEGEL, 2003, p.23). Em meados da década de 70, movimentos populares, sindicais e de comunidades de base começaram a se manifestar, como uma reação da sociedade ao autoritarismo e à repressão. Faziam-se também presentes diversos movimentos defensores do direito à diferença e contestadores das múltiplas formas de discriminação entre as quais as relativas às etnias e ao gênero. Renascia a sociedade civil organizada, acionada pelas condições socioexistenciais de vida marcadas pela ausência de liberdade, de espaços de participação e de ganhos econômicos. Ganhou força a idéia e a prática de uma educação popular autônoma e reivindicativa. O governo Federal instituiu, o III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (1980-1985), tomando como base à resolução das desigualdades e assinalando a educação como direito fundamental para a conquista da liberdade, da criatividade e da cidadania. Nesse contexto, o ensino supletivo começou a contar socialmente com a mobilização pedagogicamente inovadora da comunidade, tendendo à não-formalização. Surgiram, então, os programas de caráter compensatório, que se caracterizavam por recuperar o atraso dos que não haviam usufruído da escolarização na idade própria. Com a "redemocratização" do país (1985), a chamada "Nova República” extingue o MOBRAL e cria a Fundação Educar, com propósitos mais democráticos, mas sendo extinta em março de 1990, no âmbito do processo de enxugamento do Estado promovido no começo do governo Collor. A União só voltaria a atuar na educação de jovens e adultos analfabetosa partir de 1997, com a criação do Programa de Alfabetização Solidária. O programa "foi objeto de críticas de grande parte dos educadores envolvidos com a educação popular". (BEISIEGEL, 2003, p. 26). Em outubro de 1988, a nova Constituição Federal incluíra os jovens e adultos pouco escolarizados nas garantias de obrigatoriedade e gratuidade, antes asseguradas somente às crianças em idade escolar. A Constituição Federal garante, pela primeira vez, no plano legal, o direito ao ensino fundamental gratuito, inclusive aos que a ela não tiveram acesso na idade própria, incluindo, 5 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 portanto, os jovens e adultos. A Constituição afirma também, que "o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito subjetivo" e que "o não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente". Em 1990, o Brasil participou da Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, durante a qual se reforçou a necessidade de expansão e melhoria do atendimento público na escolarização de jovens e adultos. Ainda, na década de noventa, destaca-se a tentativa de implantação do Plano Decenal de Educação, visando acabar, principalmente com o analfabetismo no país, no prazo de dez anos, mas que na prática nenhuma meta foi estabelecida, ignorando-se os compromissos firmados no Plano Decenal de Educação. A União continuou ausente dos trabalhos efetivamente realizados nessa área. A eleição de alguns prefeitos ligados aos movimentos populares favoreceu o investimento de recursos e de criatividade regionais e locais na educação de jovens e adultos, como exemplo podemos citar o MOVA (Movimento de Alfabetização de jovens e adultos), que surgiu em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina e foi implementado em outras administrações populares. Desde 1997, a Presidência da República apóia ações de alfabetização por meio do Conselho da Comunidade Solidária que, a rigor, a partir de 1999, transformou-se em uma ONG. Seu Programa de Alfabetização Solidária, realizado em parcerias com o MEC e a iniciativa privada, atua em vários municípios, prioritariamente no Nordeste e no Norte, e, dentre esses, os que apresentam maiores índices de analfabetos. Universidades associadas ao programa fornecem apoio para o processo de alfabetização. Em 2003, o Governo Federal, visando à inclusão educacional, lança o programa Brasil Alfabetizado com a missão de abolir o analfabetismo no Brasil e aumentar a escolarização de jovens e adultos, promovendo o aceso à educação como um direito de todos em qualquer momento da vida. O programa é coordenado pelo MEC e atua por meio de convênios com instituições de alfabetização de jovens e adultos. A EDUCAÇÃO POPULAR NA ESCOLA PÚBLICA: POSSIBILIDADES E LIMITES Nos últimos anos, os educadores que permaneceram fiéis aos princípios da educação popular atuaram principalmente, em duas direções: na educação pública popular, ou seja, no espaço conquistado no interior do Estado, e na educação popular comunitária, predominantemente não-governamental. As práticas de educação popular também se constituem em mecanismos de democratização, onde se refletem os valores de solidariedade e de reciprocidade e formas alternativas de produção e de consumo, sobretudo as práticas de educação popular comunitária, muitas delas realizadas de forma voluntárias. O terceiro setor está crescendo não apenas como alternativa entre o Estado burocrático e o Mercado insolidário, mas como espaço de novas vivências 6 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 sociais e políticas hoje consolidadas com as ONGS (Organizações não -governamentais) e as OBCs ( Organizações de Base Comunitária). Este está sendo hoje um campo bastante fértil da educação popular. Diante desse quadro, a educação popular, como modelo teórico reconceituado, tem oferecido grandes alternativas. Dentre elas está a reforma dos sistemas de escolarização pública. A vinculação da educação popular com o poder local e a economia popular abre, também, novas e inéditas possibilidades para a prática da educação. Não podemos esquecer, que o modelo teórico da educação popular, elaborado na reflexão sobre a prática da educação durante várias décadas, tornou-se sem dúvida, uma das grandes contribuições da América Latina à teoria e à prática educativa ao nível internacional. A noção de aprender a partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a educação como ato de conhecimento e de transformação social, a politicidade da educação, a preocupação com a liberdade, com o diálogo e o dialógico, a importância do respeito à identidade cultural dos alunos e aos "saberes construídos pelos seus fazeres" são apenas alguns dos legados de Paulo Freire a educação popular à pedagogia crítica universal. Tornar popular a educação pública não significa relativamente criar programas paralelos, supletivos de alfabetização das camadas populares, particularmente de jovens e adultos que se encontram fora da faixa etária escolarizável-concepção desde muito prevalecente entre muitos autores e profissionais que discutem a educação brasileira. Ao contrário, significa universalizá-la e democratizá-la em seus diferentes níveis e em suas diferentes dimensões, tornando-a de fato acessível às camadas populares, promovendo, pela via do conhecimento e da cidadania, as condições de inteligibilidade necessárias à transformação social e a emancipação humana, o fim último da ação político-pedagógica. Durante muito tempo a educação popular, foi vista e realizada no espaço da informalidade, na prática político-pedagógica fora da escola, no interior dos movimentos populares. Nesse novo século que estamos vivendo, a educação apresenta-se numa dupla encruzilhada: de um lado o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da universalização da educação básica de qualidade, ainda temos um grande contingente de crianças fora da escola e um grande número de analfabetos, sem contar que os resultados da aprendizagem dos que estão ocupando os bancos escolares é insatisfatório. Por outro lado, as novas matrizes teóricas não apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros numa época de profundas e rápidas transformações. A concepção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito de educação popular podem constituir numa alternativa viável, de um lado, ao projeto neoliberal da educação, amplamente hegemônico, baseado na ética do mercado, e, de outro lado, à teria e à prática de uma educação burocrática, sustentada na "estadolatria"(Gramsci). É preciso uma escola que fortaleça autonomamente o seu projeto político-pedagógico relacionando-se dialeticamente, e não mecanicamente e subordinamente com o Mercado, o Estado e a Sociedade. É necessária uma educação contestadora, superadora dos limites impostos pelo Estado e pelo Mercado, portanto, uma educação muito mais voltada para a transformação social do que para a transmissão cultural. Não podemos esquecer, evidentemente, que numa sociedade de classes como a nossa, "é 7 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 muito mais difícil trabalhar em favor da desocultação, que é um nadar contra a correnteza, do que trabalhar ocultando, que é um nadar a favor da correnteza. É difícil, mas possível" (FREIRE, 1995, p.98). Em outras palavras, é necessário reconhecer o papel da educação e seus limites. Mas apesar dos obstáculos, os Movimentos Populares precisam continuar sua luta política para pressionar o Estado no sentido de cumprir o seu dever. "Jamais deixá-lo em sossego, jamais eximi-lo de sua tarefa pedagógica,jamais permitir que suas classes dominantes durmam em paz". (FREIRE, 1995, p.21). Tornar a escola pública popular, para Gadotti (1998) não é tão simples, e exige autonomia face ao Estado, sendo autônoma terá "maiores chances de garantir a qualidade de ensino do que uma escola obediente, submissa e burocratizada". (GADOTTI, 1998, p.8). Este não é um processo isolado, e só é possível na totalidade social, no sentido de que é preciso popularizar as diferentes instituições da esfera pública, não apenas a educacional. E visto que a esfera pública é a mediadora da ação estatal e de suas políticas, popularizá-la implica a popularização do Estado e do poder nele constituído. É preciso, pois fazer uma reviravolta geral e romper com a unicidade de pensamento e com os limites impostos pela ordem econômica. A democratização social, para a emancipação humana, passa necessariamente por uma educação pública popular, democrática e esclarecedora, em suas diferentes etapas e dimensões. Uma escola pública popular, tem compromisso com as camadas populares e tem uma função social junto a essas camadas.Ela reflete com as camadas populares o que é feito no seu interior, pois o espaço que a educação escolar representa para as classes populares ainda é muito significativo. Para Souza (1998, p.22), "parece, hoje, ser consenso a necessidade da intervenção e do potencialmente dessa intervenção dos educadores populares no âmbito da educação escolar, sobretudo da escola pública". Isso mostra a importância das articulações da educação popular com outras práticas sociais. A esse respeito, Freire (2001) ao analisar o impacto da dinâmica da globalização econômica sobre a sociedade brasileira, busca refletir sobre a necessidade da construção de um espaço público democrático para os problemas brasileiros. E uma das alternativas apontadas por ele, foi pensar no fortalecimento de uma escola pública popular autônoma e democrática, isto é, sob a hegemonia social. Não podemos negar, que a educação popular sempre lutou pela ampliação do público, pela transgressão de fronteiras que garantem privilégios privados caracterizados como direitos. Vivemos em uma sociedade onde existe desigualdade em todos os planos, a exclusão, a injustiça e a arbitrariedade constituem o próprio chão das relações entre tipos de pessoas e de grupos humanos. Somos uma das nações mais mal divididas em termos de distribuição de renda, em todo o planeta. Sabemos que elementos essenciais à partilha universal como a atenção à saúde, moradia, saneamento básico, acesso à educação e o direito a uma qualidade de vida são negados a uma 8 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 parcela muito grande da população. E isso é o resultado de exercícios arbitrários do poder e do interesse de ganhos do tipo de sociedade subordinada a um modelo político e econômico de relações entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. A crescente perversa desigualdade entre uma educação pública precária e de má qualidade para os cidadãos pobres versus uma educação privada de alta qualidade, para os que podem pagar por ela, é um dos efeitos de um modelo neoliberal de sociedade, em que nos vemos submergidos.Temos consciência que para construir uma escola pública popular é algo que não se constrói de um dia para a noite, pois democratizar o ensino não significa apenas criar mais escolas, mantendo os padrões elitistas e o privilégio social. Precisamos de uma educação democrática na sua estrutura, na mentalidade dominante, nas relações pedagógicas e nos produtos dos processos educacionais. E para que isso aconteça, demanda tempo e espaço, mas é possível, mesmo tendo que enfrentar algumas limitações. Algumas experiências pelo Brasil a fora, estão mostrando que é possível construir uma escola a partir da incorporação dos princípios da EP, como democracia, cidadania, autonomia e trabalho coletivo. É o caso de Belo Horizonte, com a proposta da Escola Plural; Blumenau,, com a Escola sem Fronteiras; Brasília com a Escola Cadanga; e outras que apresentam em comum a proposta de uma política de educação pública marcada pela preocupação da oferta de uma escolarização como direito de todos. UMA REFLEXÃO EM TORNO DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E A EDUCAÇÃO POPULAR Para Jezine (2003) a educação de jovens e adultos ao longo da história, passou a ter várias denominações como: educação permanente, educação não-formal, educação comunitária, educação não escolar, educação extra-escolar, além de outras. Ela surgiu como instrumento primordial do processo de integração e suprimento das deficiências sociais, com o objetivo de responder às necessidades da população e de incorporá-la ao processo de desenvolvimento, tanto do ponto de vista econômico como político. Ao longo do tempo a EP tem ocupado os espaços onde a EJA oficial não conseguiu ocupar, ou não levou muito a sério. Durante muito tempo, predominou a existência de um certo pré- conceito no que se refere às práticas de EP que se realizavam fora dos muros da escola, hoje existe necessidade de se "transcender o modelo dicotômico educação formal/educação não- formal, [...]” (GONSALVES, 1998, p. 220) e se construir novas conexões entre estas dimensões. Para Freire (1995, p. 27), "a educação de adultos é melhor percebida quando a situamos hoje como educação popular", ou seja, ela se torna mais abrangente e representativa. Em muitos momentos a EJA confunde-se com a EP, mas elas têm muitos pontos em comum, pois buscam resgatar o direito de acesso ao saber para as camadas populares. Parece-nos que hoje o problema da educação para todos ainda é grave. O Brasil ainda engrossa as estatísticas com uma gorda contribuição no número de analfabetos. 9 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 Nos últimos anos, de maneira significativa, cresceu, as iniciativas voltadas para a educação de jovens e adultos. Em lugares em que a ação do Estado não chega, os grupos populares e as organizações não-governamentais continuam desenvolvendo projetos. As experiências mais significativas partem sempre da atuação dos grupos populares, que têm contribuído para as inovações nas relações pedagógicas. Os relatos dessas experiências oxigenam e questionam as formas tradicionais dos sistemas regulares de ensino. Atualmente existe, uma vasta produção de impressos que se espalha pelo país, mostrando a diversidade existente e as múltiplas possibilidades de formatos do atendimento para jovens e adultos. Esse material circula com freqüência nos sistemas públicos de ensino, provocando discussões, reflexões e mudanças nas práticas desenvolvidas nas escolas. A educação de jovens e adultos, tanto no passado como no presente, sempre compreendeu um conjunto muito diverso de processos e práticas formais e informais relacionadas à aquisição ou ampliação de conhecimentos. Muitos desses processos se desenvolveram e se desenvolvem de modo mais ou menos sistemático fora de ambientes escolares, realizando-se na família, nos locais de trabalho, nos espaços de convívio sociocultutral e lazer e nas instituições religiosas. A legislação brasileira (Constituição, LDB) e os diversos acordos internacionais firmados por nosso país têm assumido como desafio central para a educação de jovens e adultos a proposição e o desenvolvimento de políticas educacionais que contribuam, de modo efetivo, para a construção de uma sociedade mais justa, sustentada por valores democráticos e pelo respeito aos direitos humanos. A educação constitui condição básica para a realização da pessoa e é fator estratégico para o desenvolvimento social e econômico do país. A educação de adultos impõe-se como instrumento de conquista da cidadania, enquanto sistematizadora das experiências dos alunos etransmissora de um saber organizador, agindo, ainda, como elemento propulsor das mudanças necessárias para a construção de uma sociedade mais justa e participativa. Na sociedade contemporânea, a educação é condição indispensável para que o sujeito exerça a sua cidadania. Ela possibilita ao indivíduo jovem e adulto retomar seu potencial, desenvolver suas habilidades, confirmar competências adquiridas na educação extra-escolar e na própria vida, possibilitar um nível técnico e profissional mais qualificado. Com o advento das novas relações no mundo do trabalho, a educação de jovens e adultos passou a ser evidenciada como estratégia e elemento de requalificação profissional. A V Conferência Internacional de Educação de Adultos-CONFINTEA, organizada pela UNESCO e considerada o principal fórum mundial sobre o tema, realizada em Hamburgo, em julho de 1997, considerou a educação de adultos como a "chave" de entrada para o século XXI. Portanto, ela é um componente essencial de promoção da eqüidade e da garantia de direitos básicos de cidadania. TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Nessa rápida reflexão sobre a EJA como viés da EP, podemos dizer que a educação ocupa 10 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 lugar central na construção da cidadania e a prática da EP ao longo do tempo tem contribuído de forma significativa para a extensão da educação formal para todos e, de outro lado, para a formação social, política e profissional, sobretudo de jovens e de adultos. Não podemos esquecer também, que as numerosas experiências de EP receberam e recebem toda a influência do pensamento freireano, pois suas idéias serviram e servem de alimento para os educadores, sejam populares ou não, mas que buscaram e buscam não desvincular a sua prática educativa e, a partir dela, refletir sobre seu mundo em busca de maior consciência dos problemas e de solução para eles. As lutas pela ampliação das oportunidades educacionais, e de alguns direitos negados, como saúde, moradia, saneamento básico, emprego e outros, empreendidos pelos movimentos sociais populares, têm sido essenciais, no sentido da construção de uma sociedade mais humana e mais justa. Infelizmente, ainda vivemos um momento de ampliação das desigualdades sociais e do processo de exclusão social no país, que atinge cada vez mais os setores menos privilegiados da sociedade, implicando em dificuldades por esses setores em relação ao acesso ao processo de escolarização e à permanência com sucesso no mesmo. São milhões de jovens e adultos, que apesar de todos os esforços que vêm se efetivando nas várias esferas, sejam governamentais ou não, continuam à margem da escola ou, dentro dela, sem aprender, ou, ainda, aprendendo, mas não sabendo o que fazer com o que aprenderam em seu processo de escolarização, por terem sido obrigados a estudar conteúdos sem significação para suas vidas. Assim, ainda é mais do que necessário uma concepção popular de educação, comprometida com a construção de uma sociedade vinculada aos interesses e a emancipação das classes populares. REFERÊNCIAS BEISIEGEL, Celso de Rui. A educação de Jovens e adultos no Brasil. Alfabetização e cidadania, São Paulo, RAAB, n. 16, jul/2003. FÁVERO, Osmar (Org.).Cultura popular-educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro: Graal, 1983. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 33 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 8 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. FREIRE, Paulo. Política e educação. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1995. (coleção questões de nossa época; v.23). FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 11 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 16 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 11 V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005 GADOTTI, Moacir. 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